Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
12021/20.2T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: CONVENÇÃO DE ARBITRAGEM
REVOGAÇÃO
DECISÃO SURPRESA
ABUSO DO DIREITO
Nº do Documento: RP2022102712021/20.2T8PRT.P1
Data do Acordão: 10/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Se determinada questão foi suscitada no decurso dos autos e as partes tiveram ambas a oportunidade de se pronunciar sobre ela e emitiram efectivamente tal pronúncia, a decisão do juiz que venha a recair sobre essa questão não pode constituir uma surpresa por violação do conteúdo material do contraditório.
II - A revogação da convenção de arbitragem pressupõe o mútuo acordo das partes.
III - Para que a forma escrita desse acordo se considere cumprida é necessário que uma das partes instaure uma acção num tribunal estadual alegando que o pode fazer porque a convenção de arbitragem foi revogada por acordo das partes e ainda que na contestação a outra parte não impugne essa alegação.
IV - A invocação do abuso do direito para neutralizar a convenção de arbitragem e levar a que seja o tribunal estadual a pronunciar-se, em primeira mão, sobre a ineficácia da convenção deve ser limitada aos casos em que o abuso é incontroverso e não deixa qualquer dúvida séria, uma vez que, em regra, cabe ao tribunal arbitral o poder de decidir sobre a sua própria competência, mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a eficácia da convenção de arbitragem.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2022:12021.20.2T8PRT.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
M..., Lda., pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ..., com sede na Maia, Portugal, instaurou procedimento de injunção europeia contra I..., pessoa colectiva n.º ..., com sede em ..., Suécia, reclamando o pagamento da quantia de €34.530,00.
Foi ordenada a emissão de injunção de pagamento europeia, nos termos do artigo 12.º do Regulamento (CE) nº 1896/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de Dezembro de 2006.
A requerida apresentou oposição à injunção, através do “Formulário F” do referido Regulamento.
Foi determinado o prosseguimento do procedimento como acção.
As partes foram convidadas a apresentar os articulados da acção, consubstanciando a autora os fundamentos do requerimento e a ré os fundamentos da oposição.
Mediante requerimento autónomo, a ré veio alegar que o presente tribunal é, nos termos das alíneas a) e b) do artigo 96.º do Código de Processo Civil, absolutamente incompetente para dirimir o presente litígio, em virtude da infracção das regras de competência internacional e da preterição de tribunal arbitral, requerendo que fosse declarada a incompetência absoluta do tribunal e a requerida absolvida da instância.
A autora apresentou depois petição inicial aperfeiçoada, alegando a celebração com a ré de um contrato de prestação de serviços, a prestação destes, a emissão das facturas relativas a parte do preço, e o seu não pagamento cuja prestação.
Terminou pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de €37.170,56, acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor, desde a data de vencimento de cada factura até integral pagamento.
Na ocasião tomou antecipadamente posição sobre a excepção arguida autonomamente pela ré, defendendo a competência absoluta dos tribunais portugueses e a não preterição de tribunal arbitral.
A ré apresentou contestação, impugnando, excepcionando e reconvindo.
Por excepção, pede que o tribunal seja declarado absolutamente incompetente para julgar os presentes autos, em virtude da existência de cláusula compromissória válida, e remeter os autos para mediação e/ou arbitragem, sendo a ré absolvida da instância, declarado que ocorre violação efectiva da cláusula de mediação por parte da autora, bem como a preterição do tribunal arbitral, em ambos os casos sendo ordenada a absolvição da instância, declarado que a lei aplicável ao contrato sub judice e aos presentes autos é a lei sueca.
Com fundamento na inexistência de incumprimento da sua parte e, ao invés, no incumprimento pela autora das obrigações assumidas no contrato e nos danos causados por esse incumprimento, a ré pede, se as excepções não forem julgadas procedentes, que a acção seja julgada totalmente improcedente, absolvendo-se a ré do pedido, e, subsidiariamente, o pedido reconvencional seja julgado procedente, condenando-se a autora a pagar à ré o valor de €160.158,00, acrescido de juros legais vencidos e vincendos até integral pagamento.
A autora replicou respondendo à matéria das excepções arguidas pela ré e defendendo a sua improcedência.
Findos os articulados, foi, sem mais, proferida a seguinte decisão:
«A autora M..., Lda. veio intentar a presente acção declarativa, com processo comum contra I..., tendo deduzido diversos pedidos, entre os quais, a excepção dilatória de Incompetência Absoluta dos Tribunais Estaduais.
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade.
Da incompetência absoluta do tribunal por violação de cláusula compromissória escalonada (mediação e arbitragem):
A ré veio em sede de contestação suscitar, para além do mais, a excepção dilatória de incompetência absoluta, por violação de cláusula compromissória escalonada, a mediação e em caso desta se frustrar, a arbitragem. Solicita a procedência da presente excepção e a consequente absolvição da instância.
Devidamente notificada, veio a autora, responder nos termos e fundamentos de fls, os quais por uma questão de brevidade e economia processual, aqui se consideram por integralmente reproduzidos.
Cumpre aferir da alegada violação de cláusula compromissória:
O Contrato “sub judice” contem, na sua cláusula 11.ª, uma convenção de foro segundo a qual todos os litígios resultantes deste contrato serão, em primeira linha, dirimidos por mediação privada e, frustrando-se a mediação, submetidos a arbitragem ad hoc, incorporando neste sentido uma verdadeira cláusula compromissória escalonada.
Estatui a cláusula compromissória o seguinte:
“11. Arbitragem e Lei aplicável.
As partes acordam em resolver todos e quaisquer litígios emergentes do presente contrato por mediação voluntária, sendo o serviço, o mediador e o local de mediação a ser acordado mutuamente entre as partes. No caso de frustração da mediação voluntária, as partes acordam em submeter todos e quaisquer litígios a arbitragem vinculativa, por um árbitro, ou um serviço arbitral, designado de mútuo acordo pelas partes, processo arbitral esse a ser conduzido em local a ser definido igualmente pelas partes, sem a intervenção de advogado externo. As partes concordam antecipadamente que o árbitro pode consultar a legislação Portuguesa e Sueca e as regras e leis que regem os contratos de “Procurement” da EU [Contratos de aquisição da EU] ao tomar a sua decisão.
Materializando as noções supra expendidas ao caso que nos cumpre apreciar e decidir, e tendo em conta o teor das clausulas que foram convencionadas pelas partes, não restam dúvidas que a autora, não atendeu à referida clausula contratual, ao ter instaurado a presente acção nos Tribunais Estaduais.
Com efeito, a cláusula em questão configura uma cláusula escalonada habitual, que foi negociada entre as partes, sendo manifestamente inteligível e válida, através, da qual se afasta o recurso aos tribunais estaduais e se estabelece a obrigatoriedade de recorrer a mediação para dirimir todos e quaisquer litígios relacionados com o contrato” sub judice”, previamente ao recurso ao tribunal arbitral.
Significa isto que, nos termos desta cláusula compromissória, sendo eventualmente frustrada a tentativa de mediação, que ainda nem sequer possa ter ocorrido, tal não significa que as partes, neste caso a Autora, possam recorrer simplesmente ao tribunal judicial.
Pois não ficou estabelecida in casu a competência alternativa dos tribunais estaduais.
Mas somente a competência exclusiva do tribunal arbitral, precedida de mediação privada.
Pelo que o Tribunal não tem, efectivamente, jurisdição para dirimir o presente litígio, em virtude de incompetência absoluta, nos termos do artigo 96.º do CPC.
Este entendimento encontra-se plasmado em diversos arestos estaduais dos tribunais superiores, dos quais se destaca o seguinte Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (acessível em www.dgsi.pt), bem clarificador desta matéria:
“III - Quando um artigo estabelece a obrigatoriedade da tentativa de conciliação previamente ao recurso ao tribunal arbitral, o artigo seguinte, ao dizer que, frustrada essa tentativa, as partes podem recorrer ao tribunal arbitral, deve ser interpretada no sentido de estar aberta a fase da arbitragem, e não como estabelecendo a competência alternativa dos tribunais estaduais.”
Ora, a incompetência absoluta é de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 97.º do CPC, podendo ser arguida pelas partes, como ora se faz, mas devendo ser suscitada oficiosamente pelo Tribunal em qualquer estado do processo.
Com efeito, a preterição do tribunal arbitral por parte do Tribunal a quo configura um caso clássico de incompetência absoluta do mesmo, que origina a imediata absolvição da instância.
Como explica, inequivocamente, o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 8.11.2018 (acessível em www.dgsi.pt): “I. A preterição do tribunal arbitral por força de uma cláusula compromissória é determinante da incompetência absoluta do tribunal judicial, nos termos do artigo 96º, alínea b) do Código de Processo Civil.”
Face ao exposto, é cristalino que a Autora, ao arrepio do princípio pacta sunt servanda, violou esta cláusula compromissória ao instaurar os presentes autos, nos Tribunais Estaduais.
Nos termos e fundamentos supra expendidos, decide-se julgar procedente, a excepção dilatória de incompetência absoluta deste Tribunal e, em consequência absolver a ré da instância. […]»
Do assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
I. Projectando o Tribunal a quo conhecer da excepção dilatória consistente na incompetência absoluta do tribunal, pretendendo julgá-la procedente, cabia-lhe ter proferido um despacho prévio notificando as partes da sua intenção de pôr termo ao processo pela procedência da referida excepção dilatória e concedendo às partes a possibilidade de se pronunciarem.
II. Não o tendo feito, proferiu uma decisão-surpresa, o que consubstancia uma nulidade que influi no exame e decisão da questão, e que deve ser declarada verificada, com as demais consequências legais.
III. O Tribunal a quo andou mal ao julgar procedente a excepção dilatória da incompetência absoluta.
IV. Cessando a vontade das partes na manutenção de cláusula arbitral, não pode a mesma considerar-se como mantendo-se em vigor.
V. No caso sub judice, ambas as partes optaram por intentar acções em tribunais estaduais, respeitantes a questões resultantes do contrato no âmbito do qual se encontrava estipulada a cláusula arbitral.
VI. Face a tais inquestionáveis contundentes comportamentos das partes do contrato (nos presentes autos, autora e ré), é manifesto que as partes pretenderam desvincular-se/revogar da cláusula arbitral que, de forma abusiva, a recorrida veio invocar, tornando a mesma ineficaz.
VII. Não faria o mínimo sentido manterem as partes a pretensão de submeterem os litígios emergentes entre si a uma qualquer convenção de arbitragem e, concomitantemente, intentarem acções estaduais emergentes de questões resultantes do contrato, esvaziando, por completo, a cláusula arbitral.
VIII. Encontra-se, pois, verificada a circunstância constante do artigo 5.º, n.º 1, última parte, da LAV, norma violada pelo Tribunal a quo.
IX. Face ao exposto, requer-se, mui respeitosamente, a V/Exas., Venerandos Senhores Juízes Desembargadores, seja revogada a Sentença do Tribunal a quo e, em consequência, seja, aquele Tribunal, considerado competente para apreciação da lide.
Nestes termos, e nos melhores de direito que, V/Exas., doutamente, suprirão, requer a V/Exas. seja julgada verificada a nulidade invocada e, sem prescindir, seja revogada a sentença do tribunal a quo e, em consequência, seja, aquele tribunal, considerado competente para apreciação da lide assim se fazendo inteira e sã Justiça.
O recorrido respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado, apresentando para o efeito as seguintes conclusões:
I. O acórdão proferido pelo tribunal a quo julgou correctamente e considerou procedente a excepção dilatória de incompetência absoluta, ordenando a absolvição da instância.
II. Outra decisão não se esperava perante a cláusula compromissória sub judice, não existindo surpresa nesta decisão, e muito menos qualquer decisão-surpresa, pois o princípio do contraditório foi amplamente assegurado e exercido pelas partes.
III. A recorrente procura invocar a existência de uma decisão-surpresa com vista a obter a nulidade da decisão recorrida, bem como a alegação de não verificação da excepção de incompetência absoluta.
IV. Os argumentos da recorrente não têm fundamento legal, consubstanciando uma errada interpretação e aplicação da lei, para além de ignorarem por completo a extensa jurisprudência dos tribunais superiores sobre a matéria.
V. Entende a recorrente que o tribunal a quo deveria ter proferido um despacho prévio notificando as partes da sua intenção de pôr termo ao processo pela procedência dessa mesma excepção e conceder às partes a possibilidade de se pronunciarem (uma vez mais!)
VI. A recorrente não tem razão, desconhecendo o conceito de decisão-surpresa e ignorando os pressupostos legais da sua proibição, apara além de que o tribunal a quo não tem qualquer obrigação de emitir tal despacho prévio ou qualquer projecto de decisão.
VII. Fazendo tábua-rasa, assim, do entendimento jurisprudencial dos tribunais superiores, nomeadamente deste Tribunal da Relação do Porto.
VIII. Pois não houve qualquer questão que não tivesse sido configurada pela parte, não se preenchendo assim o conceito de decisão-surpresa explanado pelo referido Tribunal.
IX. Tendo a excepção de incompetência absoluta do tribunal sido amplamente desenvolvida tanto pela recorrida como pela recorrente, pelo que nenhuma violação do princípio do contraditório teve lugar.
X. São inclusivamente extensas as alegações sobre a (in)competência do foro judicial nos articulados, pelo que o contraditório foi cumprido e não foi proferida qualquer decisão-surpresa nos termos da lei e da jurisprudência.
XI. É pressuposto essencial da proibição da decisão-surpresa que tenha havido efectivamente violação do contraditório sobre a matéria em causa, como o Tribunal Constitucional bem explica: “A surpresa existe se a parte não pode se pronunciar sobre a solução dada à questão em apreço. E só neste caso.”
XII. É notório que a nulidade invocada pela recorrente é manifestamente desprovida de fundamento legal, não evidenciando sequer esforço nas alegações por si apresentadas, carecendo de total suporte jurisprudencial, com o devido respeito.
XIII. A recorrente insiste igualmente que houve uma revogação mútua (!) da cláusula arbitral, o que não faz qualquer sentido, pois se fosse mútua a recorrida não se estaria a defender ao invocar a preterição dos processos de mediação e arbitral previstos na cláusula compromissória em questão, a que ambas as partes expressamente e de livre vontade se vincularam.
XIV. Esse sim o princípio da autonomia da vontade das partes que a recorrente invoca, mas que, infelizmente, teima em não respeitar ao ignorar o foro (arbitral) convencionado, nem tão pouco o procedimento de mediação que lhe antecede.
XV. Sendo que o facto de a recorrente ter erradamente instaurado uma acção judicial não incorpora qualquer revogação da cláusula arbitral, significa sim uma violação da mesma pela recorrente.
XVI. Tendo o tribunal a quo referido, e bem, na decisão recorrida, que “não restam dúvidas que a autora, não atendeu à referida cláusula contratual, ao ter instaurado a presente acção nos tribunais estaduais”
XVII. Mais, não corre, nem nunca correu, qualquer processo judicial na Suécia instaurado pela recorrida sobre os factos em questão.
XVIII. Essa acção judicial foi efectivamente retirada do registo do tribunal sueco após desistência pela recorrida quando a jurisdição foi questionada por um escrivão do tribunal.
XIX. Como resultado, o tribunal sueco nunca considerou nenhuma das questões levantadas no processo, e nenhuma decisão de qualquer tipo foi proferida para além do acordo do escrivão em retirar o processo do rol de processos do tribunal.
XX. Ora, como bem explica Luís de Lima Pinheiro, a eventual inexequibilidade de cláusula arbitral só poderia ser considerada caso o tribunal estadual tivesse decidido o litígio e houvesse caso julgado do mesmo.
XXI. Pretende a recorrente, astuciosamente, fazer crer que o impulso preliminar frustrado da recorrida junto dos tribunais estaduais suecos representa algum tipo de renúncia à cláusula compromissória, o que não se verificou de todo, sendo a doutrina maioritária bem clara sobre essa matéria.
XXII. Nem sequer num caso limite onde se verificou a existência de uma comunicação em que uma das partes pretendia revogar a convenção de arbitragem - o que não sucede sequer no caso sub judice - o Supremo Tribunal de Justiça afirmou não ser possível concluir pela revogação de tal cláusula ou que a mesma deixasse de ser válida.
XXIII. A citação de Lopes dos Reis ao abrigo da anterior LAV (lei de arbitragem voluntária) não vai, contudo, ao encontro das pretensões da recorrente, porquanto (i) necessário seria que houvesse um processo judicial em curso instaurado pela recorrida sobre os mesmos factos e com as mesmas partes, o que não se verifica; (ii) que o litígio entre as partes já tivesse sido decidido por um tribunal estadual (caso julgado), o que também não se verifica; (iii) que houvesse uma renúncia de fazer valer a excepção de preterição do tribunal arbitral por parte da recorrida (perante a acção judicial ora instaurada pela recorrente), o que também não se verifica; (iv) que a convenção de arbitragem tivesse sido revogada por escrito por ambas as partes, nos termos do artigo 4.º, nº 2 e 3, da LAV (Lei n.º 63/2011 de 14-12-2011), o que também não se verificam.
XXIV. Acresce que, in casu, não se verifica igualmente uma causa de caducidade da convenção arbitral, sendo que a convenção de arbitragem não é nula, nem se tornou ineficaz ou inexequível, nos termos do artigo 5.º, n.º 1, última parte, da LAV.
XXV. Deve ser mantida na íntegra a decisão recorrida e, consequentemente, ser a ré recorrida absolvida da instância por incompetência absoluta do tribunal a quo.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i) Se a decisão recorrida foi proferida em violação de regras processuais que exijam a prática de actos prévios;
ii) Se a convenção arbitral celebrada pelas partes foi revogada.
iii) Se ao arguir a preterição do tribunal arbitral depois de ter também ela ensaiado o recurso aos tribunais estaduais suecos para dirimir o conflito com a autora, a ré actua em abuso do direito.

III. Os factos:
Para a decisão a proferir relevam os factos que constam do relatório e ainda os seguintes que os documentos juntos evidenciam:
1- O contrato celebrado entre a autora e a ré contém uma cláusula com a seguinte redacção:
«11. Arbitragem e Direito aplicável
As partes acordam em resolver quaisquer litígios relativos a este contrato através da mediação voluntária, o serviço, o mediador e a localização a acordar mutuamente. No caso da mediação voluntária não ser bem-sucedida, as partes acordam em apresentar qualquer litígio a arbitragem vinculativa por um árbitro ou serviço de arbitragem mutuamente acordado a realizar num local mutuamente acordado sem a intervenção de um advogado externo. As partes acordam previamente que o árbitro possa consultar o direito português e sueco e as regras e leis que regem os contratos de aquisição da UE na apresentação da sua decisão.»
2- No dia 06/07/2022 a ré instaurou uma acção nos tribunais estaduais suecos, alegando o incumprimento pela autora do contrato celebrado entre ambas.
3- No dia 17/07/2020 a autora instaurou a presente acção.
4- Em 21/09/2020 a ré desistiu da acção que instaurara nos tribunais suecos.
5- Em 25/11/2020 foi expedida carta para notificação da aqui ré para deduzir oposição à injunção instaurado pela autora.
6- Em 11/01/2021 foi apresentada a oposição da aqui ré à injunção.
7- A ré iniciou, entretanto, diligências com vista à realização da mediação que a mesma cláusula torna obrigatória antes da intervenção do tribunal arbitral na resolução do litigio.

IV. O mérito do recurso:
A] da “surpresa da decisão”:
A recorrente sustenta que o tribunal a quo, antes de julgar procedente a excepção dilatória da incompetência absoluta do tribunal, tinha de ter proferido um despacho prévio notificando as partes da sua intenção de pôr termo ao processo e concedendo-lhes a possibilidade de se pronunciarem; como isso não ocorreu foi proferida uma decisão-surpresa, o que consubstancia uma nulidade que influi no exame e decisão da questão.
Esta argumentação não esclarece que nulidade a recorrente tem em mente, se entende que foi cometida uma nulidade processual ou antes foi proferida uma decisão nula.
Como quer que seja a recorrente não tem, a nosso ver, razão. Com propriedade podemos dizer que é com surpresa que vemos a situação em causa ser qualificada como uma decisão-surpresa.
A expressão decisão-surpresa pretende designar a situação em que uma decisão é proferida com violação do contraditório, a decisão-surpresa é a decisão proferida sem previamente se ter exercido o contraditório nos termos processualmente cabidos, o que significa que foi proferida sem que as partes tenham tido a oportunidade de se pronunciarem nos termos e no local em que a lei processual lhes faculta a possibilidade de se pronunciarem.
Por conseguinte, para afirmar que a decisão é uma surpresa necessitamos, por um lado, de ter presente o conteúdo material do princípio do contraditório e, por outro lado, de ter presente o rito processual estabelecido para saber em que termos se encontra regulado o exercício desse contraditório.
O artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil estabelece que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
Logo, parece dever concluir-se que se uma determinada questão foi suscitada no decurso dos autos e as partes tiveram ambas a oportunidade de se pronunciar sobre ela e emitiram efectivamente tal pronúncia, a decisão do juiz que venha a recair sobre essa questão não pode nunca constituir uma surpresa por violação do conteúdo material do contraditório.
Não existe norma jurídica nem princípio de direito processual que justifique que antes de decidir qualquer questão o juiz tenha, sempre e em qualquer circunstância, a obrigação de anunciar às partes que tem a intenção de o fazer para que elas se possam pronunciar sobre tal questão.
Isso não sucede, designadamente se em diálogo reciproco as partes já se pronunciaram sobre a questão e o sentido da decisão a proferir sobre ela, e a decisão do tribunal não será inovadora na qualificação e enquadramento jurídico da questão relativamente ao que as partes tiveram em consideração na sua anterior pronúncia.
No caso, as partes tiveram já oportunidade para se pronunciarem por escrito sobre a matéria das excepções arguidas pela ré e no aproveitamento dessa oportunidade fizeram-nos inclusivamente por … duas vezes, cada uma: a ré primeiro no requerimento autónomo que antecedeu a apresentação de articulados aperfeiçoados e depois na contestação; a autora logo na petição inicial aperfeiçoada por já ter conhecimento daquele requerimento da ré e depois novamente na réplica.
Por isso as partes não apenas tinham conhecimento das questões que incumbia ao tribunal decidir e dos argumentos que cada uma apresentava para defender decisões opostas quanto a elas, como estavam perfeitamente cientes de que o tribunal iria necessariamente proferir decisão sobre tais questões, não havendo qualquer elemento de surpresa nessa decisão.
Sustenta a recorrente que sendo intenção do tribunal julgar de imediato a excepção procedente, tinha a obrigação de notificar as partes dessa intenção e lhes conceder a possibilidade de se pronunciarem antes de decidir.
Se assim fosse, então, por uma questão de igualdade das partes, a mesma exigência se colocaria se a intenção do tribunal fosse julgar a excepção procedente (ou seja, julgar não em desfavor da autora mas em desfavor da ré), pelo que no fundo qualquer que fosse a intenção das partes o tribunal teria sempre antes de decidir de notificar as partes que se aprestava para decidir, informá-las de qual seria o sentido da sua decisão e dar-lhes oportunidade para … de novo, se pronunciarem!
Que saibamos, nunca ninguém entendeu que o principio do contraditório tivesse uma dimensão que exigisse essa prática que transformaria qualquer processo judicial numa sucessão inacabável de actos inúteis.
Embora a argumentação da recorrente não o aborde, pode, no entanto, questionar-se se houve algum elemento de surpresa na prolação da decisão no momento e pela forma adoptada, isto é, sem prévia realização de audiência prévia.
O artigo 591.º do Código de Processo Civil estabelece que após as diligências do despacho pré-saneador, se a elas houver lugar, é convocada audiência prévia, destinada, designadamente, a «facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar excepções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa».
Daqui resulta, portanto, que ainda que nos articulados da acção as partes já se tenham ocupado de discutir uma excepção dilatória que ao tribunal cabe decidir, nos casos em que a audiência prévia é obrigatória, é-lhe vedado decidir tais excepções sem realizar previamente a audiência prévia e permitir às partes que nesta se pronunciem de novo oralmente sobre a excepção.
Uma decisão proferida por escrito e sem que se tenha realizado a audiência prévia com essa finalidade, será assim uma decisão proferida na sequência da omissão da realização de um acto processual prescrito pela lei e, por isso, uma decisão proferida com o cometimento de uma nulidade processual.
Sucede, contudo, que a audiência prévia não é um acto processual obrigatório em todos os casos. Em determinadas situações a sua realização é obrigatória, em algumas dessas situações ela pode ser dispensada desde que se verifiquem determinadas circunstâncias, noutras situações ela pura e simplesmente não tem lugar, ou seja, o que é obrigatório é a sua não realização.
O n.º 1 do artigo 592.º do Código de Processo Civil elenca os casos em que não cabe na tramitação processual a realização da audiência prévia, estabelecendo que esta não se realiza, designadamente «quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de excepção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados» - alínea b) -.
É, pois, a própria lei processual a estabelecer que se o processo houver que findar no despacho saneador com fundamento na procedência de uma excepção dilatória já debatida nos articulados, as partes não gozam da faculdade de se tornar a pronunciar sobre a mesma de novo, agora oralmente, em sede de audiência prévia.
O legislador terá entendido que por se tratar de uma mera excepção dilatória e, portanto, a decisão apenas absolver da instância, sem se pronunciar sobre o mérito da pretensão, a pronúncia das partes por escrito nos respectivos articulados é suficiente, não se justificando uma nova discussão sobre a matéria, agora de forma oral e em audiência prévia.
No caso, a decisão recaiu precisamente sobre uma excepção dilatória (a incompetência absoluta por preterição do tribunal arbitral) e esta foi julgada procedente, pondo termo ao processo. Trata-se, pois, de uma situação em que não havia sequer lugar a audiência prévia, pelo que as partes não podem invocar surpresa na prolação da decisão sem ter tido lugar aquela audiência e sem lhe ter sido dada oportunidade de nesta se pronunciarem, ... de novo, sobre a excepção.
Em suma, qualquer que seja a natureza do vício que a recorrente tinha em mente na sua arguição, o mesmo não se verifica.
B] da revogação da convenção arbitral:
Face ao teor das conclusões das alegações de recurso, que como é sabido fixam o objecto do recurso e delimitam por essa via os poderes de cognição do tribunal ad quem, a única questão que cumpre decidir é se a convenção de arbitragem foi revogada pelas partes e, como tal, os respectivos efeitos cessaram, designadamente no que tange ao afastamento da competência dos tribunais estaduais para julgar os litígios que tenham por objecto o contrato de prestação de serviços onde essa convenção foi acordada.
Vale isto por dizer que neste momento não se discute já nem a celebração de uma convenção de arbitragem válida, nem que o seu objecto compreenda o presente conflito e, consequentemente, que caso a mesma não tenha sido, entretanto, revogada os tribunais estaduais não serão competentes para preparar e julgar a presente acção.
Sem tergiversações centremos, pois, a discussão naquilo que cumpre apreciar e decidir.
A Lei da Arbitragem Voluntária, aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, estabelece no seu artigo 4.º as situações em que a convenção de arbitragem pode ser modificada, revogada ou caducar. A sua redacção é a seguinte:
«1 - A convenção de arbitragem pode ser modificada pelas partes até à aceitação do primeiro árbitro ou, com o acordo de todos os árbitros, até à prolação da sentença arbitral.
2 - A convenção de arbitragem pode ser revogada pelas partes, até à prolação da sentença arbitral.
3 - O acordo das partes previsto nos números anteriores deve revestir a forma escrita, observando-se o disposto no artigo 2.º.
4 - Salvo convenção em contrário, a morte ou extinção das partes não faz caducar a convenção de arbitragem nem extingue a instância arbitral.»
Conforme resulta da norma, as partes gozam de liberdade para modificar ou revogar a convenção de arbitragem. O limite que a norma lhes impõe diz apenas respeito ao momento até ao qual a modificação ou a revogação podem ser feitas: a modificação pode ter lugar até à aceitação do primeiro árbitro ou até à prolação da sentença arbitral, mas neste caso desde que haja o acordo de todos os árbitros; a revogação pode ter lugar até à prolação da sentença arbitral.
A convenção de arbitragem é um negócio jurídico, razão pela qual a convenção apenas se pode extinguir nos casos previstos na lei ou por mútuo acordo das partes (artigo 406.º do Código Civil). Quer a modificação quer a revogação são actos jurídicos de alteração ou extinção de um negócio jurídico e pressupõem o mútuo acordo de ambas as partes. Não é possível uma das partes modificar unilateralmente a convenção, alterando, por exemplo, aquilo que pode ser objecto da decisão arbitral, tal como nenhuma delas pode revogar a convenção por mero acto potestativo. Em qualquer caso tem de haver acordo entre as partes.
A lei vai ainda mais longe e estabelece que esse acordo tem de ser escrito, observando-se o que prescreve o artigo 2.º para o estabelecimento da própria convenção de arbitragem. É a seguinte a redacção deste preceito:
«1- A convenção de arbitragem deve adoptar forma escrita.
2- A exigência de forma escrita tem-se por satisfeita quando a convenção conste de documento escrito assinado pelas partes, troca de cartas, telegramas, telefaxes ou outros meios de telecomunicação de que fique prova escrita, incluindo meios electrónicos de comunicação.
3- Considera-se que a exigência de forma escrita da convenção de arbitragem está satisfeita quando esta conste de suporte electrónico, magnético, óptico, ou de outro tipo, que ofereça as mesmas garantias de fidedignidade, inteligibilidade e conservação.
4- Sem prejuízo do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, vale como convenção de arbitragem a remissão feita num contrato para documento que contenha uma cláusula compromissória, desde que tal contrato revista a forma escrita e a remissão seja feita de modo a fazer dessa cláusula parte integrante do mesmo.
5- Considera-se também cumprido o requisito da forma escrita da convenção de arbitragem quando exista troca de uma petição e uma contestação em processo arbitral, em que a existência de tal convenção seja alegada por uma parte e não seja negada pela outra.
6- O compromisso arbitral deve determinar o objecto do litígio; a cláusula compromissória deve especificar a relação jurídica a que os litígios respeitem.»
Por via da remissão do artigo 4.º para o artigo 2.º, podemos concluir que também a revogação tem de consistir num acordo das partes no sentido de revogarem a convenção que haviam estabelecido e que esse acordo só é válido se for estabelecido por escrito, não bastando, portanto, um mero acordo verbal.
Em princípio, o acordo revogatório tem de ser expresso. O escrito que o documenta, e que pode revestir diversas formas, tem de ser fidedigno e inteligível, ou seja, não consentir dúvidas sobre o sentido do acordo, isto é, a vontade de revogar a convenção. Essa exigência visa, naturalmente, afastar dúvidas sobre a existência e a eficácia do acordo e, por essa via, evitar que se abra um conflito sobre a vigência da convenção de arbitragem que redundará em mais uma dificuldade e mais um atraso na resolução do verdadeiro conflito que urge decidir.
A norma prevê uma única excepção a essa exigência. Nos termos do n.º 5 considera-se também cumprido o requisito da forma escrita da convenção de arbitragem quando exista troca de uma petição e uma contestação em processo arbitral, em que a existência de tal convenção seja alegada por uma parte e não seja negada pela outra.
Procedendo, em virtude da remissão já aludida, à aplicação desta norma com as necessárias adaptações ao acordo de revogação, temos que para a forma escrita do acordo se poder considerar cumprida é necessário que uma das partes instaure uma acção num tribunal estadual alegando que o pode fazer porque a convenção de arbitragem foi revogada por acordo das partes e ainda que na contestação a outra parte não impugne essa alegação.
Nessa medida, a circunstância de a autora ter instaurado a presente acção num tribunal estadual português para obter uma sentença judicial que decida o conflito sobre o cumprimento do contrato de prestação de serviços celebrado as partes, depois de a ré ter instaurado uma acção num tribunal estadual sueco com o mesmo objectivo (a ré alegando na sua acção que a autora não cumpriu o contrato e incorreu na obrigação de indemnizar os danos a que esse incumprimento deu causa, a autora alegando na presente acção que cumpriu o contrato e reclamando o pagamento do respectivo preço), não é suficiente para cumprir o requisito da Lei da Arbitragem Voluntária para se se poder considerar validamente formado o acordo de revogação da convenção de arbitragem.
Com efeito, na presente acção a autora não alegou em momento algum que as partes acordaram a revogação da convenção de arbitragem (requisito da alegação pela autora na petição inicial) e a ré na contestação não só não aceitou que tal acordo tivesse sido estabelecido como arguiu expressamente a existência e validade da convenção de arbitragem e a sua violação por parte da autora (requisito da aceitação pela ré na contestação).
O que a autora alegou, mas apenas na petição inicial aperfeiçoada (no requerimento com que a acção foi iniciada, a esse respeito nada foi alegado), foi que tendo a ré instaurada uma acção nos tribunais estaduais da Suécia, a convenção de arbitragem ficou sem efeito, permitindo-lhe demandar a ré nos tribunais portugueses. Esse argumento, contudo, confunde e mistura a violação da convenção com o acordo de revogação da convenção de arbitragem.
O acordo de revogação da convenção tem de ser prévio à instauração da acção nos tribunais estaduais e tem de ser alegado pela parte que toma a iniciativa de suscitar nos tribunais estaduais a resolução do conflito (conforme resulta da exigência de que ele seja alegado na petição inicial).
A Lei da Arbitragem Voluntária apenas consente que a demonstração da existência do acordo tenha lugar não através de um documento escrito que o contenha, mas mediante a posição que as partes assumam por escrito nos articulados da acção (alegada pela autora na petição inicial e aceite pela ré na contestação), ou seja, a posição idêntica e convergente de ambas as partes quanto a terem acordado a revogação da convenção.
Por outro lado, tanto quanto parece resultar dos autos (os documentos juntos que o podiam esclarecer não se encontram traduzidos), a acção instaurada pela ré na Suécia foi “retirada” pela respectiva autora quando esta foi confrontada pelo “escrivão” com a falta de competência do tribunal em virtude da convenção de arbitragem constante do contrato (ignoramos as leis processuais em vigor na Suécia e a correspondência desses actos com a lei processual portuguesa).
Por esse motivo, também naquela acção, onde a aqui autora não chegou a ser citada ou intervir, não se chegou a estabelecer a situação processual que nos termos da Lei da Arbitragem Voluntária nacional permitiria considerar estar-se na presença de um acordo de revogação da convenção válido e eficaz.
Essa situação pressupunha que a autora tivesse alegado esse acordo na petição inicial e que a demandada tivesse aceite (expressa ou tacitamente - por confissão ficta) a celebração desse acordo na contestação.
Tanto quanto conseguimos depreender do texto em inglês junto que parece corresponder à petição inicial dessa acção (documento junto com a petição inicial aperfeiçoada, que a autora designa pelo n.º 35 mas que não se encontra numerado) nem a aqui ré alegou naquela acção terem as partes acordado a revogação da convenção (pronuncia-se apenas pela lei aplicável ao contrato, para sustentar o fundamento jurídico da resolução contratual que alega ter operado), nem a aqui autora chegou a apresentar contestação nessa acção.
Em suma, em nenhuma das acções se criou a situação processual que nos termos da Lei da Arbitragem Voluntária geraria o equivalente a um acordo válido e eficaz de revogação da convenção de arbitragem. Por isso, a instauração de qualquer das acções gerou sim, por parte da respectiva autora, uma violação da convenção de arbitragem.
Note-se que as partes estão ainda a tempo de acordar essa revogação e são livres de o fazer. Não podem é impor a sua vontade à outra, nem actuar ao arrepio de uma convenção de arbitragem que celebraram e que continua em vigor enquanto não for revogada por comum acordo.
Também não podem defender que existe um acordo (de revogação da convenção) que confessadamente não foi celebrado, porque, repete-se, o que a recorrente em rigor sustenta não é que as partes acordaram revogar a convenção da arbitragem, mas sim que o facto de ela ter instaurado uma acção judicial fora de um tribunal arbitral (omitindo a posição da ré na contestação) e a ré ter tido idêntico comportamento (omitindo que a ré retirou a acção assim que foi confrontada com a incompetência do tribunal face à convenção de arbitragem estipulada no contrato) anula ou revoga a convenção de arbitragem.
Embora nas conclusões das alegações de recurso a recorrente não recorra a esse fundamento, mas porque a questão é de conhecimento oficioso e foi suscitada nos articulados da acção, o que se pode questionar é se o comportamento da ré de arguir esta excepção quando também ela já tinha ensaiado o recurso aos tribunais estaduais suecos para dirimir o conflito com a autora sobre o (in)cumprimento do contrato de prestação de serviços celebrado por ambas constitui um abuso do direito.
A apreciação dessa questão não pode ter lugar sem se levar em conta o disposto no artigo 5.º, n.º 1, da Lei de Arbitragem Voluntária que sobre o efeito negativo da convenção de arbitragem estabelece o seguinte:
«O tribunal estadual no qual seja proposta acção relativa a uma questão abrangida por uma convenção de arbitragem deve, a requerimento do réu deduzido até ao momento em que este apresentar o seu primeiro articulado sobre o fundo da causa, absolvê-lo da instância, a menos que verifique que, manifestamente, a convenção de arbitragem é nula, é ou se tornou ineficaz ou é inexequível
E ainda sem atender ao que estabelece o n.º 1 do artigo 18.º da mesma Lei, segundo o qual o tribunal arbitral é o tribunal competente para se pronunciar sobre a sua própria competência (a chamada regra da Kompetenz-Kompetenz). Reza assim esta norma:
«O tribunal arbitral pode decidir sobre a sua própria competência, mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela se insira, ou a aplicabilidade da referida convenção
Como escreveu Lopes dos Reis, in A Excepção da Preterição do Tribunal Arbitral, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 58, Dezembro 1998, a propósito das normas da anterior Lei da Arbitragem Voluntária equivalentes às da actual lei:
«A convenção de arbitragem, em qualquer das suas modalidades, é um negócio jurídico que gera, para ambas as partes, o direito potestativo de submeter à decisão de árbitros um litígio compreendido no seu objecto; e que vincula ambas as partes à sujeição correlativa de, independentemente da sua vontade, ver um litígio que caiba no seu objecto ser cometido a árbitros. Simultaneamente, a convenção de arbitragem constitui ambas as partes no ónus de, querendo ver decidido litígio que se compreenda no seu objecto, preferirem a jurisdição arbitral, privada, à jurisdição pública. [referindo-se ao alcance da consagração do princípio da Kompetenz-Kompetenz do árbitro...] A par do efeito positivo que já ficou assinalado, aquele princípio acarreta o efeito negativo de impor à jurisdição pública o dever de se abster de se pronunciar sobre as matérias cujo conhecimento a lei comete ao árbitro, em qualquer causa que lhe seja submetida e em que se discutam aquelas questões, antes que o árbitro tenha tido oportunidade de o fazer. Isto é, do aludido princípio não decorre apenas que o árbitro tem competência para conhecer da sua própria competência; decorre também que tal competência lhe cabe a ele, antes de poder ser deferida a um tribunal judicial. […] Todas estas cautelas da lei significam que ela quis que o tribunal judicial olhasse a convenção de arbitragem como um sinal de proibição: há convenção de arbitragem, é plausível que ela vincule as partes no litígio, então, quanto ao litígio entre elas, o tribunal judicial não pode intervir senão em sede de impugnação da decisão arbitral. Para que esse limite fique claro, para que fique nitidamente delimitada essa fronteira estabelecida ao poder do juiz, questões relativas à própria convenção, como a sua validade, a sua eficácia, a sua aplicabilidade, só podem ser apreciadas pelo tribunal judicial depois de o árbitro proferir a sua decisão final. Só se ocorrer nulidade manifesta da convenção de arbitragem é que o tribunal judicial pode decidir de outro modo.»
Na linha desse entendimento, escreveu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/03/2011, proc. n.º 5961/09.1TVLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt, ser necessário «começar por definir claramente os parâmetros dentro dos quais incumbirá [aos tribunais estaduais] exercer os seus poderes cognitivos quanto à apreciação da substância da excepção dilatória de preterição de tribunal arbitral voluntário, deduzida pela R.- não podendo olvidar-se que, sendo os tribunais arbitrais constitucionalmente configurados como «tribunais» - isto é, como entidades dotadas das características de independência e imparcialidade que caracterizam o núcleo essencial da função jurisdicional, a que compete definir o direito nas concretas situações litigiosas entre particulares - não poderá deixar de lhes estar reservada uma relevante parcela da jurisdição, abrangendo, desde logo e em primeira linha, a aferição da sua própria competência, emergente do legítimo exercício da autonomia privada pelos interessados, consubstanciada na convenção de arbitragem.
Tal implica que, ao apreciar a referida excepção dilatória, devam os tribunais estaduais actuar com reserva e contenção, de modo a reconhecer ao tribunal arbitral prioridade na apreciação da sua própria competência, apenas lhes cumprindo fixar, de imediato e em primeira linha, a competência dos tribunais estaduais para a composição do litígio que o A. lhes pretende submeter quando, mediante juízo perfunctório, for patente, manifesta e insusceptível de controvérsia séria a nulidade, ineficácia ou inaplicabilidade da convenção de arbitragem invocada (justificando-se então, por evidentes razões de economia e celeridade, e face à evidência da questão, a imediata definição da competência para dirimir o litígio, de modo a dispensar a prévia instalação e pronúncia do tribunal arbitral sobre os pressupostos da sua própria competência).»
Também no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/03/2018, proc. n.º 1149/14.8T8LRS.L1.S1, in www.dgsi.pt, se entendeu o seguinte:
«O artigo 18º, n.º 1, da Lei de Arbitragem Voluntária (…) determina que o tribunal arbitral pode decidir sobre a sua própria competência, mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela se insira, ou a aplicabilidade da referida convenção.
Encontra-se aqui consagrado o princípio da competência-competência, cuja justificação radica na necessidade de evitar que, invocada por uma das partes litigantes a falta de competência do tribunal arbitral, tivesse de ser o tribunal judicial a decidir dessa mesma competência. Atribui-se, portanto, ao tribunal arbitral competência para julgar da sua própria competência, com a necessária ponderação sobre a validade da convenção de arbitragem e sobre a arbitrabilidade do litígio.
Paralelamente, estatui o artigo 5º, n.º 1, da mesma Lei que o tribunal estadual no qual seja proposta acção relativa a uma questão abrangida por uma convenção de arbitragem deve, a requerimento do réu deduzido até ao momento em que este apresentar o seu primeiro articulado sobre o fundo da causa, absolvê-lo da instância, a menos que verifique que, manifestamente, a convenção de arbitragem é nula, é ou se tornou ineficaz ou é inexequível.
Desta norma emana o efeito negativo do referido princípio, ao impor aos tribunais estaduais o dever de se absterem de julgar sobre as referidas matérias, antes que o árbitro se pronuncie sobre as mesmas. […] Apenas não será assim quando seja manifesta a invalidade, ineficácia ou inexequibilidade da convenção de arbitragem, pois, nesses casos, por razões de economia processual, deve o tribunal judicial julgar logo a questão – artigo 5º, n.º 1, parte final, da LAV.
É neste registo que a jurisprudência do STJ se tem pronunciado, ao decidir que, face ao princípio consagrado no artigo 18º, nº 1, da LAV, (…), os tribunais estaduais só devem rejeitar a excepção dilatória de preterição de tribunal arbitral, deduzida por uma das partes, determinando o prosseguimento do processo perante a jurisdição estadual, quando seja manifesto e incontroverso que a convenção invocada é nula ou ineficaz ou que o litígio, de forma ostensiva, se não situa no respectivo âmbito de aplicação.
Alcança-se, deste modo, com o indispensável respaldo legal, uma solução de compromisso entre o princípio da autonomia privada, corporizado na legítima escolha das partes quanto à desjudicialização de conflitos (mediante recurso à instância arbitral), e a possibilidade de os tribunais estaduais apreciarem uma manifesta inexistência ou invalidade da convenção arbitral, quando confrontados com uma demanda em que tal convenção exista.
Assim, o tribunal judicial só poderá deixar de proferir decisão a absolver da instância se for manifesta a invalidade, ineficácia ou inexequibilidade da cláusula.
Como refere Menezes Cordeiro, o termo ‘manifestamente’, empregue na norma do artigo 5º, n.º 1, da LAV, tem de ser interpretado com o sentido de “dispensar a produção de prova, para se alcançar a nulidade, a ineficácia ou a inexequibilidade”.
Nesta conformidade, o acórdão deste STJ, de 10.03.2011, decidiu que ao tribunal judicial apenas compete “determinar se é manifesto e insusceptível de controvérsia séria e consistente a não aplicabilidade da convenção de arbitragem estipulada à relação contratual litigiosa – devendo, pelo contrário, em caso de dúvida fundada sobre o âmbito da referida convenção, serem as partes remetidas para o tribunal arbitral a que atribuíram competência para solucionar o litígio”.
Logo, quando se suscitem dúvidas sobre o âmbito de aplicação da convenção de arbitragem, devem as partes ser remetidas para o tribunal arbitral ao qual atribuíram competência para solucionar o litígio
Sendo assim, mesmo que se aceite que o instituto do abuso do direito pode determinar a ineficácia da convenção, atenta a plasticidade da solução legal associada ao instituto (artigo 334.º: o comportamento abusivo é ilícito) que procura intencionalmente dar cobertura a situações dispares e permitir soluções muito diversas cuja selecção seja orientada pela medida do necessário para repor a situação que existiria se não fosse o abuso, parece que a invocação do abuso do direito como forma de neutralizar a convenção e, sobretudo, de permitir que seja o próprio tribunal estadual a pronunciar-se em primeira mão sobre a ineficácia da convenção deve ser limitada aos casos de manifesto abuso do direito, aos casos em que o abuso é incontroverso e não deixa qualquer dúvida séria, sendo certo, repete-se, que o artigo confere ao tribunal arbitral o poder de decidir sobre a sua própria competência, mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a eficácia da convenção de arbitragem.
Com toda a probabilidade, seria caso disso se nesta acção a aqui ré tivesse arguido a preterição da convenção arbitral e, em simultâneo, estivesse a fazer prosseguir a acção por si instaurada nos tribunais estaduais de outro país, defendendo ali a competência desses tribunais, ou seja, a inexistência ou a ineficácia de convenção arbitral. Todavia, não é isso que se verifica.
A ré instaurou a sua acção nos tribunais suecos no dia 06/07/2022. A autora instaurou a presente acção nos tribunais estaduais nacionais no dia 17/07/2020. A aqui ré desistiu da acção que instaurara nos tribunais suecos em 21/09/2020. Só em 25/11/2020 foi expedida carta para notificação da aqui ré para deduzir oposição à injunção instaurado pela autora. Apenas em 11/01/2021 foi apresentada a oposição da aqui ré à injunção. Posteriormente a tudo isso a ré iniciou as diligências com vista à realização da mediação que a mesma cláusula torna obrigatória antes da intervenção do tribunal arbitral na resolução do litigio.
Por outras palavras, quando foi notificada para deduzir oposição à presente acçãoa ré tinha retirado a acção instaurada nos tribunais estaduais suecos, razão pela qual, quer quando deduziu oposição quer quando depois veio motivar essa sua oposição e arguir a excepção da preterição do tribunal arbitral, essa sua posição não estava em contradição ou oposição com qualquer outra posição que no âmbito do mesmo conflito estivesse a sustentar perante qualquer dos tribunais, estaduais ou arbitrais.
A nosso ver, não se detecta nestas circunstâncias qualquer comportamento abusivo da ré na arguição da excepção, não podendo confundir-se uma iniciativa errada e cujo erro foi emendado a tempo com um comportamento deliberado e contraditório de invocar num lado o que se recusa noutro, de usar a excepção apenas para fugir ou retardar a resolução do conflito.
Logo, seguramente não nos encontramos perante uma situação de abuso do direito, muito menos que possa ser qualificado como manifesto, claro, insusceptível de controvérsia séria, e, por isso, não se encontra verificada uma situação que permitiria aos tribunais estaduais intervir no conflito antes do tribunal arbitral fixado na cláusula compromissória.
Assim, uma vez que ocorre preterição de tribunal arbitral voluntário se a acção for instaurada num tribunal estadual quando, face ao seu objecto e ao teor da convenção de arbitragem celebrada, devia ter sido instaurada num tribunal arbitral, que a preterição de tribunal arbitral (necessário ou voluntário) determina a incompetência absoluta do tribunal - artigo 96º, alínea b), do Código de Processo Civil - , que esse vicio constitui uma excepção dilatória - artigo 577º, alínea a), do Código de Processo Civil - e que as excepções dilatórias obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal - artigo 576º, nº 2, do Código de Processo Civil -, a decisão recorrida mostra-se correcta e deve ser confirmada.
Improcede, por isso, o recurso.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.

Custas do recurso pela recorrente, a qual vai condenado a pagar à recorrida, a título de custas de parte, o valor da taxa de justiça que suportou e eventuais encargos.
*
Porto, 27 de Outubro de 2022.
*
Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 713)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva


[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]