Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0711856
Nº Convencional: JTRP00040509
Relator: PAULO VALÉRIO
Descritores: CRIME DE MAUS TRATOS
Nº do Documento: RP200707110711856
Data do Acordão: 07/11/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 494 - FLS 160.
Área Temática: .
Sumário: Para que se considere preenchido o condicionalismo integrador do crime de maus-tratos, previsto no art. 152º do C.P, não basta uma acção isolada do agente, embora também se não exija uma situação de habitualidade. Só em casos de excepcional violência uma única agressão bastará para integrar o crime, ou seja, quando a conduta assuma uma especial gravidade, traduzida em crueldade, insensibilidade ou até vingança.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃO (Tribunal da Relação)
Recurso n.º 1856/07
Processo n.º …/02.9 PPPRT
Acórdão em audiência na 1.ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto
RELATÓRIO
1- Na ..ª vara criminal do Tribunal do Porto, no processo acima referido, foi o arguido B………. julgado em processo comum, com tribunal colectivo, e condenado pela prática, em autoria material e em concurso real de :
-1 crime de maus-tratos a cônjuge p. e p. pelo art. 152°, n.°2 do Código Penal em que é ofendida C………., na pena de 2 anos de prisão;
- 1 crime de maus-tratos a menor p. e p. pelo art. 152°, n.°l, alínea a) do Código Penal em que é ofendido D………., na pena de dois anos de prisão ;
- 1 crime de maus-tratos a menor p. e p. pelo art. 152°, n.°l, alínea a) do Código Penal em que é ofendido E………., na pena de dois anos de prisão;
- Em cúmulo jurídico de todas as referidas penas, condenado na pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 anos, sujeita, pela duração da suspensão, às seguintes condições, em conformidade com o preceituados nos artigos 50º, 52º, nº 1 e nº 2 do C. Penal: - Obter apoio clínico especializado junto do Gabinete de Apoio à Vítima (F……….), dando o seu consentimento prévio, por forma a desenvolver competências de relacionamento prosocial, com acompanhamento do Instituto de Reinserção Social; - Abster-se de interferir, por qualquer forma, na vida pessoal da assistente C………., apenas a podendo contactar dentro do estritamente necessário para zelar pelos interesses dos filhos de ambos, designadamente do ainda menor G………. .
Condenar o arguido a pagar a cada um dos ofendidos C………., D………. e E………. a quantia de € 5.000,00, como compensação pelos danos não patrimoniais que lhes causou.

2- Inconformado, interpôs recurso o arguido, concluindo a sua motivação do seguinte modo:
Há insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, no acórdão recorrido, já que não resulta da audiência de discussão e julgamento prova suficiente para que sejam dados como provados, e que devam ser considerados integradores para imputar ao arguido os três crimes de maus-tratos por que foi condenado;
Há contradição insanável na, fundamentação, já que há factos dados como provados que contrariam frontalmente a prova produzida por documentos e testemunhal;
Na maior parte dos factos relatados, que eventualmente serviriam de base à condenação, não estão balizados no tempo, não estão concretizados, e portanto, sempre haveria lugar à prescrição do procedimento criminal, e à falta de legitimidade processual (no caso das injúrias - a falta de constituição de assistente); Dos únicos factos que se encontram concretizados temporalmente, não foi feita prova suficiente para condenar o arguido nos crimes de maus-tratos;
Eventualmente, a entender-se que houve prova, o que por mera hipótese se admite, o arguido apenas poderia ser condenado pelo crime de ofensas corporais simples;
O valor das indemnizações cíveis a que, foi condenado o Recorrente, são manifestamente exageradas, face à falta de nexo de causalidade;
Assim, houve violação do princípio "in dúbio pro reo ", e dos arts. 410°, n° 2, alíneas a) e b) e art. 68° do CódProcPenal, e arts. 113°, 115° e 118°, do Cód Penal.

4- Nesta Relação, o Exmo PGA, acompanhando o parecer do MP na 1.ª instância, pronunciou-se no sentido de ser negado provimento ao recurso do arguido

4- Foram colhidos os vistos legais e teve lugar a audiência de discussão e julgamento.
+
FUNDAMENTAÇÃO
Os factos
Na 1.ª instância deram-se como provados os seguintes factos:
1- O arguido casou com a assistente C………. no dia 8 de Janeiro de 1983, tendo deste casamento nascido a 7 de Julho de 1983 o ofendido D………., a 5 de Agosto de 1986 o ofendido E………. e a 4 de Março de 1994 o G……….;
2- O casal viveu sempre na cidade do Porto, inicialmente na ………. e, posteriormente, até à separação, ocorrida em Março de 2003, na Rua ………., n.° .., .º esquerdo;
3- Pouco tempo após o início da vida em comum, no interior da residência do casal, o arguido começou a encetar discussões com a assistente, no decurso das quais a apelidava de "puta", "vaca", afirmando que a mesma tinha "amantes";
4- Era também no decurso dessas discussões que o arguido desatava a agredir a assistente com bofetadas na cara, puxões de cabelo, a qual sofreu, durante aquele período de tempo, por vezes hematomas e equimoses que, no início e por vergonha, procurava esconder da pessoas suas conhecidas;
5- De igual modo o arguido agredia os seus filhos, D………. e E………., fazendo com que estes ofendidos crescessem num ambiente de intimidação;
6- Assim, com uma periodicidade praticamente semanal o arguido encetava discussões com os filhos D………. e E………. e, seguidamente, agredia-os, puxando-lhes os cabelos, batendo-lhes com os nós dos dedos na nuca, desferindo-lhes pancadas na parte lateral dos músculos dos braços e na parte lateral externa das coxas, deixando-o sem qualquer reacção;
7- Ao E………. o arguido ordenava também que retirasse os óculos e, seguidamente, desatava a agredi-lo, por vezes munido de um cinto;
8- Igualmente o arguido desferia pancadas nos objectos que cada um dos filhos mais gostava, procurando estragar a guitarra ao D………. e o computador ao E………., causando-lhes enorme receio por temerem ver-se privados de tais objectos;
9- No dia 21 de Dezembro de 2002, cerca das 18h20, no interior da residência do casal, sita na Rua ………., n.°.., .º esquerdo, na sequência de uma discussão por ele encetada, o arguido desferiu à assistente C………. uma bofetada que a atingiu na cara e no olho direito, causando-lhe dores;
10- Nesse mesmo dia 21 de Dezembro de 2002, cerca das 20h00, ainda no interior da mencionada residência do casal, o arguido iniciou mais uma discussão com a assistente C………., no decurso da qual afirmou que ela "tinha amantes", afirmando-lhe que a iria agredir;
11- Em dia não concretamente determinado mas situado no final do ano de 2002, quando o ofendido E………. se encontrava na via pública, junto à sua residência, a falar com amigos, o arguido abeirou-se dele, desatando a gritar-lhe ao mesmo tempo que descalçou os chinelos que trazia nos pés e arremessou-lhos, atingindo-o no tronco e na cabeça;
12- No dia 1 de Fevereiro de 2003, a hora não concretamente determinada, e também no interior da residência do casal, o arguido dirigindo-se à assistente C………. apelidou-a de "puta", mais declarando "isto não fica assim!".
13- No dia 3 de Fevereiro de 2003, a hora não concretamente determinada, no interior da residência do casal, o arguido dirigiu-se ao quarto do D………. e abanou com força o beliche onde a assistente C………. dormia, fazendo com que o mesmo se desconchabasse, sendo certo que nessa altura já não dormiam na mesma cama;
14- No dia 28 de Fevereiro de 2003, cerca das 8h00, no interior da residência do casal, o arguido encetou nova discussão com a assistente C………. no decurso da qual retirou as chaves de todos os compartimentos da casa por forma a impedir que ela se fechasse no interior dos mesmos;
15- Poucos dias volvidos e quando a assistente se encontrava no interior da casa de banho da residência do casal envergando apenas umas cuecas e um soutien o arguido abriu a porta - uma vez que havia previamente retirado as chaves da mesma impedindo que a assistente a trancasse quando ali se encontrava -, abeirou-se dela e tentou arrancar-lhe as cuecas, causando-lhe sentimentos de humilhação;
16- No dia 6 de Março de 2003, da parte da manhã, ainda no interior da residência do casal, o arguido quando se apercebeu que a assistente se encontrava na casa de banho acedeu ao interior deste cómodo e desatou a discutir com ela, afirmando-lhe que a porta da casa de banho deveria estar sempre aberta quando ela ali se encontrasse, ao mesmo tempo que lhe arrancou da cabeça uma toalha com que ela segurava o cabelo, puxando-lhe assim os cabelos;
17- Cerca das 22h30 do dia 8 de Março de 2003, sempre no interior da residência do casal, o arguido encetou nova discussão com a assistente C………., no decurso da qual atirou à cara desta uma costeleta de porco, causando-lhe um ferimento junto ao olho esquerdo;
18- Após este dia e não suportando mais esta situação a assistente e os filhos abandonaram a residência do casal;
19- No entanto, e pese embora esta separação, em ocasião que não foi possível apurar do mês de Novembro de 2003, altura em que tomou conhecimento da nova morada da assistente, o arguido passou a perseguir a assistente e os filhos, e, sempre que os encontrava, apelidava a ofendida de "puta", vaca" e que os filhos não eram dele, expressões estas que muito ofendiam a C………. .
20- Nessa mesma altura, o arguido passou a perseguir a assistente quando ela se deslocava para o local de trabalho, passando pela mesma de carro, e apelidando-a de prostituta.
21- De igual modo, desde ocasião que não foi possível apurar do mês de Novembro de 2003 e até Janeiro de 2005, com uma periodicidade quase diária, o arguido colocou-se frente à residência da ofendida sita na Rua ………., n.° …, .º, no Porto, procurando observar os movimentos da C………. e dos filhos, e fazendo-se ver pela ofendida, de forma a que esta se sentisse constrangida.
22- Durante o aludido período de tempo o arguido causou à assistente sofrimento ao nível físico, como consequência das agressões que o mesmo lhe infligiu, bem assim sofrimento profundo ao nível psíquico pela humilhação, nervosismo, constrangimento, desgosto, medo e vergonha a que o mesmo a sujeitou ao tratá-la da forma acima descrita, utilizando as expressões que acima se descreveram que a ofenderam na sua honra tendo-lhe causado instabilidade emocional, que se reflectiu na sua vida do dia a dia. A assistente sentiu-se insegura, nervosa, temerosa, incapacitada e limitada na sua liberdade de circulação, por constante receio de se deparar com o arguido. Foi submetida a tratamento medico - psiquiátrico, bem como a medicação anti depressiva como "Zoloft", "Olcadil", "Diazepam" "Remeron";
23- A assistente ainda sente receio pela saúde e segurança, física e psicológica dos seus filhos; frequentemente anda em estado de nervos; é vítima de pesadelos constantes, vómitos, insegurança, frustração e tristeza;
24- A assistente entrou algumas vezes em crise, pondo em causa a sua própria existência;
25- A assistente e os seus filhos D……… e E………. são respeitados, estimados e considerados no meio onde residem; pautam o seu comportamento por atitudes de respeito e educação para com terceiros; e são ambos estudantes. A assistente é igualmente respeitada e considerada no seu local de trabalho; exerce a profissão de Técnica Psicossocial e é licenciada em Ciências da Educação;
26- Como consequência directa e necessária do comportamento do arguido sobre a assistente durante o período de tempo que acima se delimitou, ou seja, desde pouco tempo após o casamento e até Janeiro de 2005 resultou para esta uma síndrome depressiva reactiva, de gravidade moderada, assim como níveis elevados de ansiedade e angústia, como melhor resulta do relatório da avaliação psicológica constante de fls. 339 a 343;
27- Como consequência directa e necessária do comportamento do arguido sobre o ofendido D………. durante o período de tempo que acima se delimitou resultou para este instabilidade emocional e fragilidade psicológica, que se reflectem na sua auto-estima, medo, perda de apetite, apatia (astenia abulia), insónias e tristeza permanentes e, além do mais, um quadro depressivo configurador de um trauma psicológico ainda não ultrapassado, como melhor resulta do relatório de perícia psicológico-forense de fls. 213 a 216;
28- Também como consequência directa e necessária do comportamento do arguido sobre o ofendido E………. durante o período de tempo que acima se delimitou resultou para este um quadro de instabilidade emocional e afectiva, com sinais de agressividade aos seus pares com elementos de psicossomatização configurador de um trauma psicológico, como melhor resulta do relatório de perícia psicológico-forense de fls. 218 a 220;
29- O arguido com o comportamento acima descrito causou aos ofendidos D………. e E………., seus filhos, sofrimento ao nível físico, como consequência das agressões que o mesmo lhes infligiu, bem assim sofrimento profundo ao nível psíquico mercê da humilhação, desgosto, medo, vergonha, nervosismo, e constrangimento a que o mesmo os expôs;
30- Agiu sempre o arguido de forma livre, voluntaria e consciente;
31- Actuou com a intenção concretizada de atingir a ofendida sua mulher na respectiva integridade física e saúde física e psíquica, lesar a sua integridade moral e dignidade pessoal e de a fazer temer pela sua integridade física;
32- De igual modo ao agir da forma acima descrita quis atingir os seus filhos na respectiva integridade física e saúde física e psíquica, bem sabendo que lhes provocava um trauma psicológico;
33- Bem sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei;
34- Sobre a história de vida e condições pessoais do arguido apurou-se que:
O arguido, que nasceu a 14.03.1960, foi criado no seio da sua família com mais três irmãos, sendo a dinâmica familiar pouco harmoniosa, fruto do consumo de álcool, por vezes excessivo, do progenitor que era pessoa muito autoritária para os filhos.
Frequentou o ensino dos 6 aos 14 anos, altura em que iniciou a actividade profissional na empresa "H……….", como ajudante de serralheiro, onde permaneceu 10 anos, saindo com a categoria de escriturário. Este período foi interrompido pelo cumprimento do SMO aos 21 anos, durante 10 meses. Saiu desta empresa aos 24 anos por problemas de saúde. Em 1991 ingressou na J………., tendo a categoria de Inspector Tributário de 1ª Classe.
Paralelamente foi estudando sempre no período nocturno ao longo dos anos, com algumas interrupções, concluiu em 2001/2002 no I………. uma licenciatura na área da contabilidade.
Contraiu matrimónio pela primeira vez aos 22 anos de idade, tendo a mulher 17 anos de idade.
O casamento teve sempre momentos de algum conflito agravados, em parte, pela sua problemática aditiva, pois apesar de ser consumidor de haxixe desde os 14 anos de idade, aos 29 anos passou a ser consumidor de heroína, tendo abandonado o seu consumo há cerca de 7 anos após ter procurado ajuda médica no K………. de Gondomar com o apoio da mulher. O facto de ter procurado ajuda neste K………. fora da sua área de residência ficou a dever-se ao facto de a mulher trabalhar neste serviço na cidade do Porto.
No seu local de trabalho o arguido goza de uma imagem muito positiva, sendo referido, por forma unânime, que "é bom funcionário, trabalhador, não causa nenhum problema, tem bom relacionamento com os colegas e os chefes".
Actualmente, o arguido reside sozinho e mantém actividade profissional na J………., auferindo cerca de 1600€ mensais.
Procura manter algum contacto com os descendentes, por vezes dificultado pela recusa destes, nestes últimos meses, em o acompanhar.
O arguido abandonou o consumo de haxixe há cerca de 3 meses procurando frequentar aulas de ioga e dando longos passeios que lhe permitem combater a sua ansiedade.

E deu-se como não provado que:
1- O arguido, durante o período de tempo delimitado nos factos provados, desferiu murros na assistente;
2- O arguido, durante o período de tempo delimitado nos factos provados, desferiu socos e pontapés nos ofendidos D………. e E……….;
3- No dia 18 de Janeiro de 2003, cerca das 10.00 horas, no interior da residência do casal, o arguido encetou discussão com os ofendidos, no decurso da qual desatou a pontapear o E………. nas pernas, apertando-lhe o pescoço com ambas as mãos;
4- No dia 28 de Fevereiro de 2003, cerca das 8h00, no interior da residência do casal, o arguido bateu na assistente com uma toalha no rosto e agarrou-lhe o cabelo;
5- No dia 6 de Março de 2003, da parte da manhã, no interior da residência do casal, o arguido colocou uma toalha junto ao rosto da assistente C………. ao mesmo tempo que desatou a dar-lhe socos, batendo-lhe com um toalheiro no corpo;
6- Actualmente o arguido continua a tentar dominar a assistente psicologicamente, através dos seus filhos e através da sua presença velada, junto dos locais frequentados por esta;
7- Actualmente o arguido insistentemente procura a assistente e os filhos, quer telefonicamente quer pessoalmente, para os coagir, para os intimidar, amedrontar, chantagear e perturbar o seu são desenvolvimento, bem assim para tentar desse modo "mandar recados" à assistente.
-
O direito
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, extraídas das motivações apresentadas, cabe agora conhecer das questões ali suscitadas.
Sem antes, porém, dizer que o presente recurso não pode incidir sobre a matéria de facto tal como foi produzida na audiência, isto é com a análise das declarações testemunhais prestadas na mesma, por duas ordens de razões.
Em primeiro lugar porque, como realça o Exmo PGA nesta Relação, o recorrente não seu cumprimento ao disposto no n.º 3 do art. 412.º do CodProcPenal. É que quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 3 referido fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição» (art. 412.º). Para quê? Para que o tribunal recorrido, cabendo-lhe a transcrição das provas gravadas que, segundo o recorrente, «impõem decisão diversa da recorrida», a possa, «por referência aos [respectivos] suportes técnicos», realizar. Ora, no caso em apreço o recorrente não fez as devidas especificações com referência aos suportes de gravação, limitando-se a referências genéricas sobre supostas contradições na prova.
Por outro lado, o recorrente não efectuou o pagamento dos preparos devidos para a transcrição da prova, e daí que esta não tenha sido feita.
E, sem transcrição, a Relação fica impedida de «modificar a decisão recorrida» porque, nos termos do art. 431.º-b) do CodProcPenal, «Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1.ª instância pode ser modificada (pela Relação) se, havendo documentação da prova, esta tiver sido impugnada, nos termos do art. 412.º-.3», e tiver havido lugar à transcrição das provas concretamente especificadas (art. 412.º-3- e 4).
O recorrente assaca ao acórdão recorrido os vícios previstos nas alíneas a) e b) do n.º 2 do art.º 410 º do CodProcPenal, ou seja a insuficiência para a decisão da matéria de facto, a contradição insanável da fundamentação.
Para verificar a existência dos vicios do art. 410.º-2 do CodProcPenal, que são do conhecimento oficioso (Ac do STJ, fixador de jurisprudência, de 95-10-19, DR de 28-12-95 e art. 431.º do CodProcPenal) e para tomar posição sobre a correcta qualificação jurídico-penal dos factos, o tribunal de recurso tem de averiguar se os mesmos resultam do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência; se tais vicios não forem aparentes, o tribunal de recurso não pode tomar conhecimento dos mesmos.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art. 410.º-2-a)) é também vício que existirá dentro da própria sentença ou acórdão, sem ter de se recorrer a outros elementos externos que não sejam as regras da experiência comum ou elementos de prova vinculada existentes no processo (vg, perícias, exames, relatórios, documentos autênticos).
A suficiência pode revelar-se através de uma avaliação quantitativa ou qualitativa, conforme se procure o que basta ou o que permite definir o real; quer numa perspectiva quer noutra, a insuficiência apresenta-se sempre como um minus em relação à totalidade, sem o qual não se consegue chegar ao todo. A al. a) do n.° 2 refere-se á insuficiência que decorre da omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados pela acusação ou defesa ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos aqueles factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão. Daí que aquela alínea se refira à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova (art.° 127.°), que é insindicável em reexame da matéria de direito (Ac STJ, de 13-1-1993 , AJ, 15-16, p. 7; Ac STJ, de 23-9-98, BMJ, 479º- 252 ). Ocorre este vício quando, da factualidade vertida na decisão em recurso, se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição, ou seja, quando: (1) os factos provados não são suficientes para justificar a decisão; (2) o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite a aplicação do direito ao caso submetido a apreciação; (3) no cumprimento do dever de descoberta da verdade material, que lhe é imposto pelo normativo do art.º 340.º do CodProcPenal, o tribunal podia e devia ter ido mais longe, e não o tendo feito ficaram por averiguar factos essenciais, cujo apuramento permitiria alcançar a solução legal e justa, determinando ou a alteração da qualificação jurídica ou da medida da pena ou de ambas (Ac.STJ, de 99/06/02 Proc. n.° 288/99). Mas é necessário que esses factos possam ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis e que, vindo a ser provados, determinarão ou a alteração da qualificação jurídica ou da medida da pena ou de ambas (arresto citado)
No caso em apreço, o recorrente não é nada explícito em que facto ou raciocínio se baseia para atribuir tal deficiência à sentença recorrida. Por isso apenas se dirá que o tribunal recorrido ponderou todos os factos alegados e integradores dos ilícitos imputados na acusação, sendo os factos dados como provados suficientes para alcançar a decisão relativa aos ilícitos e aos pedidos cíveis. Conclusão que melhor se comprovará quando, mais à frente, fizermos um análise sobre o tipo legal de crime imputado ao recorrente --- e desde já remetemos para tal momento

Quanto ao vício da contradição insanável da fundamentação (art. 410.º-2-b), diz o recorrente que há factos dados como provados que contrariam frontalmente a prova produzida por documentos e testemunhal.
Como se disse, a matéria de facto resultante da prova produzida em audiência é insindicável por este tribunal.
E analisando o texto do acórdão posto em causa, não verificamos qualquer contradição da fundamentação nestas dimensões normativas: (1) na fundamentação da matéria de facto, (2) quer na própria matéria de facto dada como provada e não provada, (3) quer entre os factos e a decisão, (4) quer ainda entre a fundamentação de facto e de direito e a decisão, mas sempre a partir do texto da sentença. Ora, na sentença impugnada a fundamentação de facto é suficiente para dar como provados e não provados os factos referidos como tal no acórdão recorrido, pois na generalidade faz uma análise critica e objectiva dos meios de prova e não há qualquer contradição entre os factos provados entre si, entre estes e os não provados e entre uns e outros e a respectiva fundamentação e entre esta e a decisão recorrida. Aliás a fundamentação é exaustiva e de fácil compreensão e de grande coerência. Como é fácil de ver pelos seguintes excertos (na parte em que agora interessa): «(...) o arguido (...)disse ter discutido muitas vezes com ela e, durante os cerca de 20 anos em que foram casados, aconteceram agressões físicas e verbais, “mas nada de violento” (...) Quanto aos filhos D………. e E………., referiu que os factos por si praticados não têm a gravidade que a acusação lhes pretende imprimir. Sempre foi sua intenção educar os seus filhos por forma a terem bom aproveitamento escolar e a terem regras de comportamento de acordo com valores por si defendidos (...)
A assistente e os ofendidos D………. e E………. descreveram e contextualizaram os factos praticados pelo arguido e dos quais todos foram vítimas. Efectuaram declarações que, no confronto com as declarações prestadas pelo arguido, pela sua espontaneidade, objectividade e aparente sinceridade, nos convenceram. (...)
G………., filho do arguido e da assistente, actualmente com 12 anos de idade. Descreveu o comportamento habitualmente adoptado pelo seu pai para com a sua mãe e irmãos por forma confirmar os depoimentos efectuados por eles. Efectuou um depoimento que ao tribunal pareceu fidedigno, não obstante também tenha parecido que actualmente “tomou partido da sua mãe”.
L……….., mãe da assistente, que apesar de não ser visita habitual da casa da assistente e do arguido (habitualmente aí se deslocava nas festas de aniversário), descreveu a personalidade do arguido e o seu comportamento habitual para com a sua filha e os seus netos. Na parte em que mostrou conhecimento, e no essencial, efectuou um depoimento coincidente com os que foram realizados por aqueles.
M………., ex professora e ex colega de trabalho da assistente, a qual disse conhecer há 16 anos. De relevante referiu que a assistente lhe falava nos problemas que tinha em casa com o arguido, tendo referido que ela andava habitualmente em baixo. Descreveu a assistente como sendo “deprimida”, “pessoa sofrida, triste e apagada”.
N………., amiga da assistente, com a qual se relacionou mais de perto desde 1989 até 1995, tendo sido nessa altura visita regular da casa da assistente. Referiu que em 1990 chegou a ver a assistente com nódoas negras nos braços, mas ela desculpava-se sempre. Referiu que, numa ocasião, a assistente surgiu em sua casa cerca das 11.00 horas da noite, pedindo se podia lá dormir. Nessa noite ela ficou em sua casa, mas não apresentava sinais visíveis de agressões físicas. No dia seguinte, o arguido telefonou à depoente, reclamando que não deveria ter deixado ficar a assistente em sua casa.
O………., amiga e ex colega de trabalho da assistente durante vários anos. Referiu que a assistente lhe fazia confidências sobre o comportamento do arguido para com ela e para com os filhos, tendo dito, nomeadamente, que ele lhe batia. A assistente parecia-lhe submissa, tímida, fechada e faltava com frequência ao trabalho. Achava que ela, no fim do dia, não gostava de ir para casa.
P………., amiga e ex colega de trabalho da assistente. Referiu que a assistente lhe fazia confidências sobre o comportamento do arguido para com ela e para com os filhos, tendo dito, nomeadamente, que ele lhe batia. Nunca ocasião apercebeu-se que de que a assistente tinha um nódoa negra num braço. Na altura em que trabalhou com a assistente, esta era uma pessoa triste e ansiosa. Desde há cinco anos para cá poucos contactos tem tido com a assistente.
Q……….., que trabalhou com a assistente no K………. de ………. entre 2003 e 2005, embora anteriormente já conhecesse a assistente. Referiu que a assistente lhe fazia confidências sobre o comportamento do arguido para com ela, dizendo que ele a maltratava em termos psicológicos. No trabalho a assistente era uma pessoa triste e deprimida e, aparentemente, não tinha dinheiro para satisfazer necessidades básicas.
Os depoimentos efectuados pelas cinco testemunhas que imediatamente antecedem, todas amigas e ex colegas de trabalho da assistente, foram considerados relevantes, na medida em que reforçaram a credibilidade das declarações desta.
S……….., que foi vizinha do arguido e da assistente (...) em 2000 ou 2001, numa altura em que se encontrava na lavandaria de sua casa, tendo o arguido desferido estalos no filho E………., a quem primeiro lhe disse para tirar os óculos que usava. Nesta ocasião ouviu também o arguido a chamar várias vezes à assistente “minha vaca, és uma puta”. A assistente tinha vergonha dos vizinhos, pelo facto de saber que eles se apercebiam do que se passava em sua casa. Os filhos da assistente e do arguido não se relacionavam com as crianças da vizinhança. O E………. era triste, deprimido, andava sempre sozinho e com os olhos “pregados” no chão. Esta testemunha efectuou um depoimento seguro, objectivo, aparentemente desinteressado, tendo, por isso, convencido o tribunal quanto aos factos de que mostrou ter conhecimento.
T………., amigo do ofendido E………. desde que ambos frequentavam o 8º ano de escolaridade. Referiu que o E.......... confidenciava-lhe que o pai lhe batia, bem assim ao seu irmão mais velho e à sua mãe (...)
U………., amigo dos ofendidos D………. e E………., mas sobretudo deste último. Referiu ter assistido o arguido a arremessar um chinelo ao E………. e de o ter insultado, chamando-lhe, estúpido e doido. Noutra ocasião, num aniversário em casa do arguido, este chamou burra e estúpida à assistente só porque um prato caiu ao chão (...)
As três testemunhas que imediatamente antecedem, pela forma segura e objectiva como depuseram, efectuaram depoimentos que, quanto aos factos que mostram conhecimento, convenceram o tribunal (...)».

Vem alegado que o arguido devia ser absolvido por força da aplicação do princípio “in dubio pro reo”, mas sem razão.
Haverá erro notório na apreciação da prova quando do texto da decisão recorrida de extrair, por forma mais do que óbvia, que o tribunal optou por decidir, na dúvida, contra o arguido (Ac STJ, de 15-4-1998, BMJ, 476 .º- 82). Isto é, «a violação do princípio "in dubio pro reo" pode e deve ser tratada como erro notório na apreciação da prova, o que significa que a sua existência também só pode ser afirmada quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma mais do que evidente, que o colectivo, na dúvida, optou por decidir contra o arguido» (Ac. da Rel. de Lisboa de 24/1/2001, proferido no Proc. nº 0066773; idem o Ac. do STJ de 27/5/1998 (in BMJ nº 477, pp. 303-349).
Da análise da matéria de facto e dos fundamentos do acórdão recorrido não se retira, em momento algum, que o tribunal recorrido tenha ficado na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido. Por outro lado, o texto da decisão é efectivamente expressivo de que a convicção do tribunal se formou não de maneira arbitrária, por baseada em meras impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas antes fundamentada na consideração cuidada e exaustiva da globalidade complexiva das provas produzidas.

Os factos dados como provados fazem o preenchimento dos elementos objectivo e subjectivo do tipo legal de crime imputado ao arguido, ou seja, de maus tratos sobre o cônjuge e sobre os dois filhos.
Prescreve o art.152° do CPenal: «1. Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação, ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e: a) Lhe infligir maus tratos fisicos ou psíquicos ou a tratar cruelmente; b) A empregar em actividades perigosas, desumanas ou proibidas; ou c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos;
é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se o facto não for punível pelo artigo 144°.
2. A mesma pena é aplicável a quem infligir ao cônjuge, ou a quem com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges, maus tratos físicos ou psíquicos.
3. ...
4. Se dos factos previstos rios números anteriores resultar a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos; b)aA morte, o agente é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos»
É sabido que a este tipo de incriminação visa prevenir as frequentes formas de violência no âmbito da família, da educação e do trabalho, com o seu cortejo de consequências graves para a saúde física e psíquica e/ou para o desenvolvimento harmonioso da personalidade ou para o bem-estar, sendo assim puníveis os comportamentos que, de forma reiterada, firam tais bens jurídicos. E para dizer com Taipa de Carvalho (Comentário Conimbricence do CPenal, parte especial, p. 329 ss) «a ratio deste art. 152.º vai muito além dos maus tratos físicos, compreendendo os maus tratos psíquicos, humilhações, provocações, ameaças, curtas privações da liberdade de movimentos, etc., a sujeição a trabalhos desproporcionados à idade ou saúde física, psíquica ou mental do subordinado, bem como a sujeição a actividades perigosas, desumanas ou proibidas. Portanto, deve dizer-se que o bem protegido por este tipo de crime é a saúde - bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade da criança ou adolescente, agrave as deficiências destes, afectem a dignidade pessoal do cônjuge, prejudiquem o possível bem-estar dos idosos ou doentes, ou sujeitem trabalhadores a perigos para a sua vida ou saúde». (no mesmo sentido: Ac STJ, de 30-10-2004, CJ, ano XI, t. 3- 208).
Sendo um crime específico, pois pressupõe um agente que se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo daqueles comportamentos (é assim um crime de vinculação pessoal persistente (cfr. J. M. Tamarit Sumalla, in Comentarios a la Parte Especial del Derecho Penal, 1996, p. 100), exige ele (ao menos implicitamente: cfr Taipa de Carvalho, loc e ob. citados) uma reiteração ou habitualidade das condutas.
E basta-se com o dolo genérico, não se exigindo agora, ao contrário do que acontecia no CPenal de 1982 (art. 153.º deste), um dolo específico, vg., agir por malvadez ou egoísmo
Este crime está em concurso aparente (consumindo estes) com os crimes de ofensas corporais simples, ameaças, difamação ou de injúrias (autor e ob. citados, p. 336). Faltando o aspecto reiterativo, os respectivos factos serão elementos dos crimes referidos, o quer isto dizer que o desenho típico dos maus tratos se não conexiona descritivamente com aquele grupo de infracções, mas a lesão do bem jurídico que suporta a agravação considerável da pena só se dá com a sua repetição plural. O que terá como consequência que esses mesmo actos deixam de poder ser considerados como ilícitos criminais autónomos, sob pena de violação do princípio "non bis in idem". Ou seja, «(...) o crime de maus tratos pode encerrar uma situação de reiteração que passa a unificar. Nem sequer se trata do recurso à figura do crime continuado, própria do art. 30.º, n.º2 do CP, mas duma unificação ínsita no próprio tipo legal. Neste tipo de crimes, como a conduta criminosa se mantém, é a lei que vigora ao tempo da cessação que importa, nos termos do n.º 1 do art. 2.º deste código. Não relevariam, todavia, as condutas anteriores se praticadas em tempo em que a lei as não punia.(...)» (Ac STJ, de 5-4-2006, proc. n.º 06P468, www.dgsi.pt)
Como já dissemos, para que se considere preenchido o condicionalismo integrador de tal crime não basta, porém, uma acção isolada do agente, embora também se não exija uma situação de habitualidade. Só em casos de excepcional violência uma única agressão bastará para integrar o crime, naqueles casos em que a conduta assuma uma especial gravidade traduzida em crueldade, insensibilidade ou até vingança (Ac. STJ de 05.04.2006, www.dgsi.pt, processo nº 06P468; Ac. STJ de 14.11.1997, CJ, V, tomo 3, p. 235; Ac. da RL de 29-04-1987, in Col. de Jur. Ano XII, tomo 2, pág. 183; Acs. do S.T.J. de 17-10-96, e de 14-12-97, in Col. de Jur., Acs. do S.T.J., Ano IV, tomo 3.º, pág. 170 e Ano V, tomo 3.º, pág. 235, respectivamente). Mas em regra é necessário que se verifique uma acção plúrima, reiterada, como aliás resulta do próprio tipo legal. Já em 1989, a Prof. Teresa Beleza, ao analisar o artigo 153.º, nº 3, do Código Penal, na sua versão original, fazia notar que «(...) os vários verbos utilizados implicam uma ideia de reiteração, de continuidade, ligada, justamente, à relação existente entre as pessoas» (Maus Tratos conjugais: o artigo 153º, 3, do Código Penal, Lisboa, 1989, pág. 21). Também Simas Santos e Leal Henriques, em comentário ao artigo 152º do Código Penal, na sua redacção de 1995 (Código Penal Anotado, 2º vol., Lisboa, 1998, pág. 182) anotam que «(...) não basta uma acção isolada do agente para que se preencha o tipo (estaríamos então no domínio das ofensas à integridade física, pelo menos), mas também não se exige habitualidade na conduta: o crime realiza-se com a reiteração do comportamento, em determinado período de tempo» (Neste mesmo sentido: Ac STJ, de 30-10-2004, CJ, ano XI, t. 3- 208; Ac STJ, de 5-2-2004, proc. 2857/03-3; Ac STJ, de 6-4-2006, CJ, t. II, ano XIV, 166; Ac STJ, de 8-1-97, proc. 934/96; Ac RG, de 31-5-2004, CJ, ano XXIX, t. 3-292).

No caso sob recurso, está provado que logo após o casamento em 1983 o arguido começou a proferir palavras insultuosas dirigidas à sua mulher e a agredi-la fisicamente com bofetadas e puxões de cabelo, conduta que se manteve até à separação em 2003 (factos 2. a 4, 26.). E também o arguido-recorrente agredia os filhos, nascidos em 1983 e 1986, com pancadas no corpo, puxando-lhes os cabelos, batendo com um cinto, e isto com uma periodicidade práticamente semanal (factos 1., 5. a 7)
Para além desta descrição genérica em relação ao tempo, o acórdão recorrido concretiza depois agressões e insultos bem localizados no tempo. Assim, os pontos 9., 10., 12., 16., 17. quanto a actos praticados sobre a ofendida C………; o facto 11 quanto a uma agressão física na pessoa do filho E………. .
E depois da separação do casal em 2006 o arguido, segundo os factos, «passou a perseguir a assistente e os filhos, e, sempre que os encontrava, apelidava a ofendida de "puta", vaca" e que os filhos não eram dele, expressões estas que muito ofendiam a C……….; (...) passou a perseguir a assistente quando ela se deslocava para o local de trabalho, passando pela mesma de carro, e apelidando-a de prostituta; do mês de Novembro de 2003 e até Janeiro de 2005, com uma periodicidade quase diária, o arguido colocou-se frente à residência da ofendida (...) procurando observar os movimentos da C………. e dos filhos, e fazendo-se ver pela ofendida, de forma a que esta se sentisse constrangida.
Ao nível das consequências e sequelas físicas e psíquicas da actuação do recorrente falam-nos os pontos 22. e sgs da matéria de facto. Destacamos: «durante o aludido período de tempo o arguido causou à assistente sofrimento ao nível físico, como consequência das agressões que o mesmo lhe infligiu, bem assim sofrimento profundo ao nível psíquico pela humilhação, nervosismo, constrangimento, desgosto, medo e vergonha a que o mesmo a sujeitou ao tratá-la da forma acima descrita, utilizando as expressões que acima se descreveram que a ofenderam na sua honra tendo-lhe causado instabilidade emocional, que se reflectiu na sua vida do dia a dia. A assistente sentiu-se insegura, nervosa, temerosa, incapacitada e limitada na sua liberdade de circulação, por constante receio de se deparar com o arguido. Foi submetida a tratamento medico - psiquiátrico, bem como a medicação anti depressiva como "Zoloft", "Olcadil", "Diazepam" "Remeron"; (...) ainda sente receio pela saúde e segurança, física e psicológica dos seus filhos; frequentemente anda em estado de nervos; é vítima de pesadelos constantes, vómitos, insegurança, frustração e tristeza; (...) resultou para esta uma síndrome depressiva reactiva, de gravidade moderada, assim como níveis elevados de ansiedade e angústia, como melhor resulta do relatório da avaliação psicológica constante de fls. 339 a 343; (...) resultou para o ofendido D………. instabilidade emocional e fragilidade psicológica, que se reflectem na sua auto-estima, medo, perda de apetite, apatia (astenia abulia), insónias e tristeza permanentes e, além do mais, um quadro depressivo configurador de um trauma psicológico ainda não ultrapassado ; para o ofendido o ofendido E……….. «(...) um quadro de instabilidade emocional e afectiva, com sinais de agressividade aos seus pares com elementos de psicossomatização configurador de um trauma psicológico (...) causou aos ofendidos D……….. e E………., seus filhos, sofrimento ao nível físico, como consequência das agressões que o mesmo lhes infligiu, bem assim sofrimento profundo ao nível psíquico mercê da humilhação, desgosto, medo, vergonha, nervosismo, e constrangimento a que o mesmo os expôs»;
Repare-se que todo aquele quadro de agressões físicas, insultos e sequelas físicas e psíquicas aconteceu desde 1983 até 2003, como resulta da matéria de facto no seu conjunto e como se refere mais especificamente no ponto 26., 27. e 28. dos factos (em relação à ofendida e aos filhos do recorrente, respectivamente). Assim, «(...) comportamento do arguido sobre a assistente durante o período de tempo que acima se delimitou, ou seja, desde pouco tempo após o casamento e até Janeiro de 2005 (...), facto 26; (...) do comportamento do arguido sobre o ofendido D………. durante o período de tempo que acima se delimitou (...)», facto 27 ; «(...) comportamento do arguido sobre o ofendido E………. durante o período de tempo que acima (...)», facto 28.
Isto para dizer que foram pelo menos 10 anos de agressões e insultos para a ofendida, mulher do recorrente, e de não menos de 5 anos para os ofendidos D………. e E………., conduta de insultos que se manteve mesmo depois da ruptura conjugal.
Em situações até menos graves que esta, pelo menos quanto à duração e persistência de acções ofensivas e/ou humilhantes, o Supremo Tribunal tem, como uma constância apreciável, considerado que tais condutas integram a prática daquele crime do art. 152.º do CodPenal.
Assim, por exemplo, os factos relatados no Ac STJ, de 6-4-2006, proc. 06P1167, www.dgsi.pt : «comete tal crime aquele que, desde o início da relação de união de facto com a ofendida, discutia com a companheira, atacando-a verbalmente com expressões que ofendiam a sua dignidade e lhe batia, provocando-lhe pânico; que numa ocasião lhe desferiu várias bofetadas e socos fazendo com que esta, com a violência do impacto, caísse ao chão, e sofresse de um hematoma num olho; que meses depois numa discussão que iniciou disse à companheira que a havia de matar e que no dia seguinte iniciou uma nova discussão com a ofendida desferindo-lhe encontrões e dizendo-lhe que a matava, tendo esta, em pânico, conseguido fugir, saltando por uma janela e dirigindo-se aos gritos à estrada onde entrou num veículo, conduzido por uma amiga que procurou afastá-la do local e que lhe moveu perseguição, conduzindo um veiculo automóvel seguiu atrás daquele outro automóvel visando ultrapassá-lo e obrigá-lo a parar, embatendo por diversas vezes na traseira deste, fazendo com que a condutora tivesse que acelerar e conduzir com velocidade para evitar ser abalroada, perseguição que se prolongou ao longo de cerca de 2 kms, até que o veículo conduzido pelo arguido ficou com o pára-choques da parte dianteira da viatura preso no pára-choques traseiro do outro, o que fez com que entrasse em despiste, só a intervenção da G.N.R. pondo termo à situação».
No Ac. do STJ de 08-01-1997, Proc. nº 934/96: «(...) pratica tal ilícito o arguido que, durante os anos de 1993, 94 e 95, agrediu o seu cônjuge, com palavras torpes e batendo-lhe com as mãos».
No Ac. do STJ de 04-02-2004 (Proc. nº 2857/03-3, confirmado em Plenário das Secções Criminais) que «(...) Tendo ficado provado que: (–) em 23.12.2001, o arguido fechou os portões da residência do casal com cadeados. A assistente, pessoa de 74 anos de idade, encontrando os portões fechados quando regressava a casa, foi forçada a saltar o muro da residência para entrar. E no dia seguinte não podia sair, tendo que se socorrer da autoridade policial e dos bombeiros, que cortaram os cadeados colocados nos portões; (–) dentro da residência, o arguido vedou-lhe o acesso a algumas divisões, embora a assistente não ficasse limitada ao espaço de um quarto; (–) em 7.2.2002, depois de uma curta ausência do lar, o arguido impediu a assistente de entrar em casa; (–) já antes, em Agosto de 1998, o arguido havia molestado fisicamente a assistente, o que todavia não impediu que continuassem a viver juntos; (–) todo este comportamento (...) é bastante para integrar o crime de maus tratos.».
Portanto as acções do arguido em relação à mulher e aos dois filhos assumem, pela sua natureza e sobretudo pela sua duração uma gravidade que não pode escapar à sua integração no tipo legal de crime referido.

E com o que ficou dito quanto à estrutura e natureza do crime, ficam sem sentido a invocada existência de apenas um crime de ofensas corporais, da prescrição do procedimento criminal e da falta de legitimidade processual (no caso das injúrias - a falta de constituição de assistente).
Este tipo legal de crime foi introduzido, pela primeira vez, na versão originária do Código Penal de 1982, através do n.º 3 do art.º 153.º, que tinha por epígrafe «maus tratos ou sobrecarga de menores e de subordinados ou entre cônjuges» e sofreu alterações com a revisão do Código Penal em 1995, passando a integrar o art.º 152.º, sob a epígrafe «maus tratos ou sobrecarga de menores, de incapazes ou do cônjuge», o qual foi alterado pela Lei n.º 65/98, de 02 de Setembro, e ainda pela Lei n.º 7/00, de 27 de Maio, passando a ter a epígrafe «maus tratos e infracções de segurança», sendo de salientar que antes desta última alteração (com a Lei n.º 7/00), o procedimento criminal pelo crime de maus tratos a cônjuge (n.º 2 do art.º 152.º do CP) dependia de queixa, embora na redacção dada pela Lei n.º 65/98, o Ministério Público pudesse dar início ao procedimento se o interesse da vítima o impusesse e não houvesse oposição do ofendido antes de ser deduzida a acusação.
Os factos dos autos aconteceram todos depois da incriminação destes comportamentos pelo CodPenal de 1982 e sucederam-se ao longo de vários anos. Por isso que sempre integraram o crime em causa, por um lado; por outro porque, como se disse supra, «este crime está em concurso aparente (consumindo estes) com os crimes de ofensas corporais simples, ameaças, difamação ou de injúrias e assim os respectivos factos serão elementos dos crimes referidos, o quer isto dizer que o desenho típico dos maus tratos se não conexiona descritivamente com aquele grupo de infracções, mas a lesão do bem jurídico que suporta a agravação considerável da pena só se dá com a sua repetição plural. O que terá como consequência que esses mesmo actos deixam de poder ser considerados como ilícitos criminais autónomos (...)».
Quanto à falta de legitimidade, trata-se, repete-se, de um único crime, devendo os diversos actos parcelares ser considerados como evento unitário. Só em caso de pluralidade de crimes (concurso efectivo de crimes ainda que juridicamente aglutinado no crime continuado) é que seria pertinente questionar a legitimidade para o procedimento criminal quanto aos crimes de injurias; mas «tratando-se de um crime único, embora de execução reiterada, a consumação do crime dá-se com a prática do último acto de execução. O momento decisivo e, portanto, o tempus delicti, é o momento em que foi praticada a última conduta que integra o comportamento típico, que, por exigência da descrição legal, tem de ser reiterado» (cfr. Ac. da RP de 05/11/2003, in www.dgsi.pt ).

No que se refere à condenação cível, foi o arguido condenado a pagar, a título de danos morais e a cada um dos ofendidos, a quantia de € 5.000.
O art. 496.º do CCivil consagra a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. E a doutrina e a jurisprudência, quase unanimemente, limitam a indemnização àqueles casos que tenham efectiva relevância ética e moral por ofenderem profundamente a personalidade fisica ou moral, designadamente as ofensas à honra, à reputação, `a liberdade pessoal, às lesões corporais e de saúde, aos demais direitos de personalidade, etc (cfr Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, v.1, p.572; Ac. STJ de 12-10-73, BMJ, 230.º, 107; Ac. STJ de 26-6-91, BMJ 408.º, 538; Vaz Serra, Reparação do dano não patrimonial, BMJ, 83.º, 69 sgs.), sendo ainda objecto de reparação aqueles danos morais naturais cuja reparação pecuniária se destina a compensar, embora indirectamente, os sofrimentos físicos, morais e desgostos e que, por serem factos notórios, não necessitam de ser alegados nem quesitados, mas só pedidos (Vaz Serra, RLJ, ano 105.º e 108.º, p 37 sgs. e 223; Ac STJ de 27-12-69, BMJ, 141.º, 331; Ac STJ de 22-11-78, BMJ, 204.º, 262).
A gravidade do dano mede-se por um padrão objectivo, embora atendendo às particularidades de cada caso, e tudo segundo critérios de equidade (cfr A. Varela, ob. cit., pag 576; Vaz Serra, RLJ, ano 109.º, p. 115), devendo ter-se ainda em conta a comparação com situações análogas decididas em outras decisões judiciais (Acs do STJ de 2-11-76, de 23-10-79, de 22-1-80, de 13-5-86, in BMJ 261.º-236, 290.º-390, 239.º-237, 357.º-399; Ac STJ, de 25-6-2002, CJ/STJ, ano X, t. II, p. 128) e que a indemnização a arbitrar tem uma natureza mista: a de compensar esses danos e a de reprovar ou castigar, no plano civilistico, a conduta do agente (cfr A. Varela, ob. cit., p. 529 e 534; Ac STJ de 26-6-91, BMJ, 408.º, 538).
“In casu”, as acções agressivas e feridentes da honra prolongaram-se durante vários anos e de forma insistente, isto é, repetida e constante. Acções aquelas que deixaram um lamentável rasto de sequelas psíquicas e psicológicas em todos os ofendidos; em suma, acções que, pela sua natureza e reiteração, foram evidentemente traumáticas do ponto de vista físico e psicológico.
Atentos os factores acima referidos, a indemnização arbitrada a cada um dos ofendidos mostra-se mesmo moderada, não merecendo assim qualquer censura
+
DECISÃO
Pelos fundamentos expostos:
I- Nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

II- Custas pelo arguido, com 4 Ucs de taxa de justiça
-
-
-
-

Tribunal da Relação do Porto, 11 de Julho de 2007
Jaime Paulo Tavares Valério
Luís Augusto Teixeira
Joaquim Arménio Correia Gomes
José Manuel Baião Papão