Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2071/24.5T8VCD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA OLÍVIA LOUREIRO
Descritores: INTERESSE EM AGIR
DIREITO DE PROPRIEDADE
USO ANORMAL DO PROCESSO
Nº do Documento: RP202511242071/24.5T8VCD.P1
Data do Acordão: 11/24/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O interesse em agir enquanto pressuposto processual não se verifica apenas quando a via judicial for a única que o autor tem para atingir o fim desejado com a ação.
II - A pretensão do autor/recorrente de ser reconhecido como proprietário de uma parcela de um imóvel comum, parcela essa que afirma possuir e que entende ter adquirido por usucapião, não configura um interesse indireto ou mediato, sendo manifesta a utilidade que tal pretensão quer alcançar: a afirmação da sua propriedade sobre prédio autónomo.
III – Nada na lei impõe que o mesmo opte por uma via alternativa, como seja o processo de justificação notarial.
IV – A possibilidade de uso indevido do processo, em fraude à lei, com vista a obter um fim ilícito não se relaciona com o pressuposto do interesse processual.
V - O controlo de tal possibilidade cabe ao juiz no âmbito dos seus poderes/deveres de indagação oficiosa, sendo nesses casos seu dever julgar a causa com verificação da veracidade do alegado de forma a evitar o “uso anormal do processo”, nos termos previstos no artigo 612.º do Código de Processo Civil.

(Sumário da responsabilidade da Relatora)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo número 2071/24.5T8VCD.P1 Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim, Juiz 2.

Recorrente: AA

Recorrido: BB

Relatora: Ana Olívia Loureiro

Primeiro adjunto: Jorge Martins Ribeiro

Segundo adjunto: Filipe César Osório

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório:

1. A ação foi proposta por AA contra BB com vista ao reconhecimento da sua aquisição por usucapião de uma parcela, que descreve, de um imóvel de que é comproprietário com o réu, seu irmão, que adquiriram ambos por via de declaração verbal dos seus pais, em 1984 Ambos os seus pais terão declarado nessa data que pretendiam deixar aos dois filhos a totalidade desse imóvel, em partes iguais. Tal veio ser formalizado em escritura de partilha celebrada em 22 de maio de 2009. Logo em1984 as partes procederam à sua divisão física do imóvel comum, ficando cada um deles a usar uma parte dele com casa de habitação e entrada direta para a via pública, passando nesse momento a possuir, cada um deles, a sua parcela, à vista de todos, sem oposição de ninguém e na convicção de que se tratavam de bens próprios. Invocou jurisprudência relativa à possibilidade de aquisição de parcela de um prédio por usucapião ainda que na sua génese tenha estado um fracionamento ilegal do mesmo.

2. O réu contestou aceitando a pretensão do autor e reconvindo, nos mesmos termos, com vista ao reconhecimento a seu favor da restante parcela do mesmo imóvel, sustentado em idêntica causa de pedir.

3. Por despacho de 24-03-3025 foi fixado o valor da causa e, na sequência, foi declarada a incompetência do juízo local cível em razão do valor.

4. Remetidos os autos ao juízo central cível competente, foi proferido despacho em 20-06-2025 pelo qual foi facultado contraditório às partes sobre a possibilidade de vir a ser proferida sentença de imediato, pela qual poderia o Tribunal julgar-se incompetente em razão da matéria “sem prejuízo de se verificar a jusante, igualmente, falta de interesse em agir que só por si também determinaria a absolvição da instância”. Na fundamentação desse despacho sublinhou-se a inexistência de qualquer litígio entre as partes e afirmou-se que pela ação ambas pretendiam o reconhecimento de uma divisão que materialmente já tinham feito, para o que podiam recorrer a justificação notarial.

5. Ambas as partes se pronunciaram defendendo quer a competência material do Tribunal a quo, quer o interesse em agir de autor e de reconvinte.

5. Em 10-07-2025 foi admitida a reconvenção e foi proferida sentença que absolveu o réu e o reconvindo da instância por falta de interesse em agir.

II - O recurso:

É desta sentença que recorre o autor, pretendendo sua revogação com o consequente prosseguimento da ação

Para tanto, alega o que sumaria da seguinte forma em sede de conclusões de recurso:

“1. O presente recurso vem interposto do Douto Despacho Saneador – Sentença, proferido pelo Exmo. Sr. Dr. Juiz a quo do Juiz 2 do Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, através do qual colocou termo aos presentes autos por verificação de exceção dilatória inominada por ausência de pressuposto processual – interesse em agir;

2. Decisão recorrida que se funda, em suma, no facto de não existir qualquer conflito ou divergência quanto à divisão material do prédio de que as partes são proprietárias e não terem estas alegado qualquer obstáculo que lhe tenha sido colocado em ordem a poderem obter os respetivos títulos através dos meios não judiciais colocados à sua disposição, nomeadamente os plasmados nos artigos 116.º e ss. do Código de Registo Predial, instituído pelo Decreto-Lei n.º 273/2001, de 13 de outubro.

3. Com o devido respeito, resulta clara, sendo tal “factualidade”, ou pelo menos devendo ser, do conhecimento do Tribunal a quo, a inviabilidade prática de recurso a outros meios legais para definição do direito das partes, que o Recorrente pretende ver reconhecido e declarado através da presente ação, por impossibilidade de recurso ao processo de justificação predial plasmado nos artigos 116.º e ss do Código de Registo predial, estando ao Autor vedado proceder à inscrição da sua parcela na matriz, pois que carece aquela de autorização administrativa para o efeito, a qual o Autor não detém nem consegue obter;

4. Decorrendo tal impossibilidade das próprias regras de natureza administrativa, conforme amplamente plasmado no Douto aresto supra citado, e para o qual remetemos, do Tribunal da Coimbra, de 09/04/2024, processo 139/19.9T8CDR.C2, pelo que, s.m.o., nos termos do disposto no artigo 412.º do CPC, não careciam os mesmos de ser alegados, sendo que, de todo o modo, o ora Recorrente sempre os alegou em sede de requerimento de exercício de contraditório, conforme supra expendido em sede de alegações.

5. Ademais, o recurso à via jurisdicional para apreciação do mérito dos presentes autos, sempre se reveste de indiscutível utilidade prática para o Autor/Recorrente; a incerteza que está na origem da propositura da ação, na parte relativa ao pedido de direito de propriedade invocado pelo Autor, apresenta as características de objetividade e de gravidade exigíveis para que se configure interesse processual, devendo pois concluir-se que é o mesmo titular de um interesse sério e atendível, que justifica o seu recurso à ação na parte em que pede a declaração da existência do direito de propriedade.

6. Pelo que, ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o princípio do acesso ao direito e aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva, mais concretamente artigos 20.º da CRP, 117.º-F e 117.º-H do Código do Registo predial e 30.º do CPC.”


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III – Questões a resolver:

Em face das conclusões da recorrente nas suas alegações – que fixam o objeto do recurso nos termos do previsto nos artigos 635º, números 4 e 5 e 639º, números 1 e 2, do Código de Processo Civil -, é apenas uma a questão a resolver: a da verificação do pressuposto processual inominado de interesse em agir por banda do autor/recorrente.


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IV – Fundamentação:

Os factos relevantes para a decisão são os que constam do relatório.

A ação foi intentada com vista ao reconhecimento do direito de propriedade do autor sobre uma parcela de um imóvel de que ele e o réu são comproprietários. Alega o autor que desde 1984 está na posse dessa parcela, após divisão material do prédio por acordo com o réu, o que faz de forma pública e sem oposição de quem quer que seja, existindo na parcela que quer ver reconhecida uma habitação. Segundo alega o autor, o mesmo age na convicção de que tal parcela é sua, como se de um prédio autónomo se tratasse.

Na decisão recorrida afirma-se que, em face da inexistência de um verdadeiro litígio entre as partes – está alegado pelo autor que ninguém se opõe à posse por ele invocada -, e não tendo sido alegado que não era possível outra forma de exercício do seu direito, a via judicial não é a adequada para que o autor obtenha o título de propriedade que pretende. Ali se salienta, ainda, que se assim não se entender se poderia abrir a porta a putativos litígios para resolver questões que só em circunstâncias específicas o legislador atribuiu aos tribunais. Afirma-se ainda na fundamentação da decisão recorrida que se tivesse sido alegado que a divisão material feita não pode ser reconhecida por outra via por contender com normas imperativas, já o autor teria interesse em agir. Todavia, o autor descreve a divisão feita como sendo admissível, dada a descrição de duas entradas autónomas para cada uma das parcelas em que ele e o réu dividiram o imóvel comum.

Na sentença afastou-se, finalmente, a antes cogitada solução de julgar o Tribunal incompetente em razão da matéria, por se reconhecer que não é “da competência da Conservatória do Registo Predial a tramitação de processo declarativo comum, mas o processo de justificação”.


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O interesse em demandar é referido na lei adjetiva no artigo 30.º do Código de Processo Civil como fundamento do pressuposto processual da legitimidade ativa e está enquanto tal definido no número 2 desse preceito da seguinte forma: “O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação”. Segundo Abrantes Geraldes, Pires de Sousa e Paulo Pimenta[1]A exigência de um “interesse” emergente da pronúncia judicial, reconduz-nos a um interesse direto e indica que é irrelevante para o efeito um mero interesse indireto, reflexo ou mediato, ou ainda mais um interesse diletante ou de ordem moral ou académica”.

Segundo Antunes Varela[2] embora a lei não lhe faça referência expressa deve incluir-se entre os pressupostos processuais o interesse processual como requisito diverso da legitimidade construída sobre o conceito de “interesse em demandar”.

Segundo ele “o interesse processual consiste na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a ação.”. Exemplifica da seguinte forma: “se ninguém contestou o direito do dono do terreno nem violou por qualquer forma as suas faculdades de uso e fruição da coisa, é evidente a falta de interesse na ação que ele proponha para fazer reconhecer o direito de propriedade pelos proprietários vizinhos”. Mais adiante tal autor afirma que “relativamente ao autor tem-se entendido que a necessidade de recorrer às vias judiciais, como substractum do interesse processual, não tem de ser uma necessidade absolta, a única ou a última via aberta para a realização da pretensão formulada. Mas também não bastará para o efeito a necessidade de satisfazer um mero capricho (…) ou o puro interesse subjetivo (…) de obter um pronunciamento judicial. O interesse processual constitui um requisito a meio termo entre os dois tipos de situações. Exige-se por força dele uma necessidade justificada, razoável, fundada de lançar mão do processo ou fazer prosseguir a ação, mas não mais do que isso.”.

Relembre-se que, no caso, a pretensão essencial do autor, traduzida nos pedidos formulados sob as alíneas a), b) e c), é a da autonomização de duas parcelas de imóvel comum e o consequente reconhecimento da aquisição da propriedade de cada uma delas a seu favor e do réu. O subsequente pedido de condenação do réu no reconhecimento da existência do direito do autor, nas palavras de Oliveira Ascenção[3] não tem em direito nenhum sentido” pois “(o) réu não é condenado a reconhecer, não tem de prestar facto ou declaração com este conteúdo. A única declaração que pode estar em causa é a do tribunal”. A pretensão do autor não tem, de facto, um propósito de condenação (caso em que relevaria, de facto, de forma determinante a inexistência de um litígio com o réu, pois nas “acções de condenação, o interesse processual resulta da simples alegação de violação do direito do autor, visto a este não ser lícito fazer justiça por suas mãos[4].

Tampouco nos parece, apesar de estar também pedido o reconhecimento do direito de propriedade, que possa classificar-se a ação apenas como de mera apreciação

Nos termos do artigo 10.º, número 3 do Código de Processo Civil as ações declarativas podem ser: de simples apreciação quando visem a declaração de existência de um direito ou facto; de condenação quando se pretenda exigir a prestação de uma coisa ou facto pressupondo ou prevendo a violação de um direito; ou constitutivas quando tenham por fim “autorizar uma mudança na ordem jurídica existente”.

Atendendo a esta classificação é seguro afirmar que ação proposta pelo autor é, por um lado de mera apreciação - na medida em que visa o reconhecimento de um direito de propriedade adquirido por usucapião[5] -, mas também constitutiva, pois por via dela se pretende a constituição, com existência autónoma, de um novo imóvel até agora inexistente na ordem jurídica.

Dir-se-á que o imóvel, comum, poderia ser dividido por via de processo especial a tanto destinado e previsto nos artigos 925.º e seguintes do Código de Processo Civil. No caso, todavia, o autor alegou que a divisão material está feita e desde a sua realização por acordo ambas as partes vêm possuindo as respetivas parcelas como se de donos se tratassem. Ou seja, não pretende o autor que se proceda à divisão de prédio divisível, mas que se reconheça a constituição originária de um direito de propriedade sobre um imóvel novo, por via da usucapião, estando tal imóvel há muito dividido.

Continuando a seguir os ensinamentos de Antunes Varela[6] deve afirmar-se, como tal autor, que nas ações constitutivas o interesse processual consistirá no facto de o direito potestativo “não ser daqueles que podem ser exercidos mediante simples ato unilateral do seu titular”. Distingue tal autor as ações constitutivas – como a de divórcio litigioso -em que estão em causa direitos que só podem ser exercidos por via judicial, daquelas em que o direito pode ser exercido por via extrajudicial – como sejam a de constituição de uma servidão -, caso em que afirma que “não se torna necessário que o autor alegue ter tentado infrutiferamente obter o acordo extrajudicial da contraparte; são variadas e ponderosas as razões capazes de justificar o recurso direto à via judiciária e não parece razoável exigir do autor a explicação determinante da sua opção”. Conclui que apenas no caso de o direito potestativo que está na base da ação constitutiva poder ser exercido por ato unilateral deve o juiz abster-se de conhecer do pedido.

Ora a pretensão do autor/recorrente de ser reconhecido como proprietário de uma parcela de um imóvel comum, parcela essa que possui e que entende ter adquirido por usucapião, não configura um interesse indireto ou mediato, sendo manifesta a utilidade que tal pretensão quer alcançar: a afirmação da sua propriedade sobre um imóvel autónomo.

Tampouco se trata de um direito que o autor possa exercer unilateralmente, pois não existe ainda como bem autónomo o imóvel que quer ver declarado como adquirido por usucapião.

O Tribunal a quo também faz assentar a falta de interesse em agir do autor na omissão de alegação de que não dispõe de outro meio para obter o resultado pretendido com a ação.

Ora, salvo o devido respeito, não é correto afirmar que o autor apenas poderia recorrer à via judicial se não tivesse outra forma de exercer o seu direito, pois nada na lei impõe que o mesmo opte por uma via alternativa, como seja o processo de justificação notarial.

São inúmeros os acórdãos que tratam esta questão sendo divergente a jurisprudência quanto à existência de interesse em agir em casos como este, e denotando eles, em muitos casos, a real dificuldade ou impossibilidade dos respetivos autores para conseguirem o reconhecimento de propriedade de parcela de imóvel por usucapião por via notarial.

Como se afirmou em Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25-01-2024[7] “(…) confirmem-se ou não, em concreto, a insegurança e o receio ou mesmo a relutância referidas, elas não são de estranhar num caso como o dos autos. Por mais que estas justificações sirvam, justamente, para permitir ao titular de um imóvel ou outro bem sujeito a registo que não disponha de título comprovativo o seu direito, obter a primeira inscrição de aquisição do bem a seu favor no registo predial, o facto é que o direito de propriedade em causa adquirido por usucapião (…) é um direito cuja existência é controversa. (…)”.

Por ser exaustivo e lapidar na análise da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça sobre tal matéria e por com ela concordarmos in totum, transcreve-se parte da fundamentação do referido acórdão:

“Circunscrevendo a análise à jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça. discute-se, mais precisamente, se a aquisição do direito de propriedade é admissível, rejeitando parte da jurisprudência a possibilidade quando estejam em causa normas de carácter imperativo, designadamente, o artigo 1376.º, n.º 1, do CC em conjugação com o artigo 1379.º, n.º 1, do CC na sua redação actual (i.e., depois da alteração pela Lei n.º 111/2015, de 27 de Agosto13), e admitindo-a de forma tendencialmente irrestrita outra parte.

Veja-se, para ilustrar a primeira corrente, o Acórdão de 26 de Janeiro de 2016 (Proc. 5434/09.2TVLSB.L1.S1), em que se concluiu:

“Na ausência de demonstração do cumprimento das limitações impostas pelas normas administrativas de ordenamento do território relativas à validade das operações urbanísticas como o loteamento ou o destaque (artigos 3.º, alínea a), 5.º, 53.º, n.º 1 e 56.º, n.º 1, do Regime Jurídico dos Loteamentos Urbanos, republicado pelo Decreto-Lei n.º 334/95, de 28-12, aplicáveis na data da celebração da escritura), não podem os actos de posse baseados num facto proibido por essas leis permitir uma aquisição por usucapião na medida em que contrários a uma disposição de carácter imperativo (artigo 294.º do Código Civil), sendo nula a escritura de justificação que a titula”.

Veja-se ainda, admitindo a hipótese de aquisição do direito de propriedade mas apenas no quadro da anterior redacção do artigo 1376.º, n.º 1, do CC, o Acórdão de 3 de Maio de 2018 (Proc. 7859/15.5T8STB.E1), onde se afirma:

“A usucapião, como forma originária de adquirir, pode incidir sobre parcela de terreno inferior à unidade de cultura, contrariando o regime previsto no art. 1379.º, n.º 1, do CC, na versão anterior à alteração legal introduzida pela Lei n.º111/2015, de 27-08”

E, na mesma linha, o Acórdão de 18 de Junho de 2019 (Proc. 1786/17.9T8STB.E1.S1), em que se diz:

“Mostra-se válida a posse sobre parcelas inferiores à unidade de cultura vigente que levou à usucapião do direito de propriedade sobre os terrenos, invocada nas escrituras de justificação notarial, não obstante ter subjacente a violação do então vigente artigo 1379.º, n.º 1, do Código Civil (na redacção anterior à alteração dada pela Lei 111/2015, de 27-08)”.

Veja-se, para ilustrar a segunda corrente, o Acórdão de 21 de Fevereiro de 2019 (Processo n.º 7651/16.0T8STB.E1.S3), do qual consta:

“Mesmo sendo nulo o fracionamento de terreno apto para a cultura que despoletou o início da posse, tal vício não é suscetível de excluir a faculdade de usucapir por parte do possuidor de parcela emergente dessa divisão ilegal.

Não se descortina, entre as normas legais reguladoras do fracionamento de prédios rústicos, alguma que negue a possibilidade de adquirir por usucapião as parcelas de terreno que venham a ser objeto de posse mercê de fracionamento ilegal de prédio rústico.

Igualmente não tem essa natureza o art. 1376º do CC, pelo não existe a “disposição em contrário” que, nos termos do art. 1287º, pode obstar a que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculte ao possuidor a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação”.

Decisivo para comprovar a divergência jurisprudencial de que se fala é, por fim, o recente Acórdão da Formação deste Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Maio de 2023 (Proc. 81/20.9T8TMR.E1.S2), em que, a propósito da admissibilidade do recurso num quadro factual semelhante ao dos autos, se observa:

“Nos autos discute-se, no essencial, se o incumprimento de regras de natureza urbanística obsta à aquisição originária do direito de propriedade por via da usucapião, num caso, como o dos autos, em que está em causa a aquisição por usucapião de parte de um prédio, resultante de fracionamento ilegal.

Ora, muito embora a matéria em discussão nos autos tenha sido já objeto de tratamento por este Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente, nos Acórdãos de 21 de fevereiro de 2019 (Processo n.º 7651/16.0T8STB.E1.S3), de 28 de março de 2019 (Processo n.º 7604/16.8T8STB.E1.S1), de 30 de abril de 2019 (Processo n.º 1293/09.3TBLRA.C1.S2) e de 18 de junho de 2019 (Processo n.º 1786/17.9T8STB.E1.S1), a verdade é que, como resulta à saciedade das alegações de recurso em análise, a matéria trazida à discussão é intrincada e implica operações exegéticas de complexidade superior.

Por outro lado, cumpre afirmar que a matéria atinente às consequências decorrentes das alterações introduzidas pela Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto, ao n.º 1 do art.º 1379º do Código Civil não se mostra, a nosso ver, tratada pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de forma expressiva, uniforme e suficientemente esclarecedora.

De facto, muito embora o Supremo Tribunal de Justiça já tenha abordado esta específica matéria, a verdade é a resposta dada à questão não se nos afigura unânime, havendo quem propugne o entendimento de que a nulidade do fracionamento de prédio rústico não obsta à aquisição do direito de propriedade por usucapião - Acórdãos de 21 de fevereiro de 2019 (Processo n.º 7651/16.0T8STB.E1.S3) e de 30 de maio de 2019 (Processo n.º 916/18.8T8STB.E1.S1) - e quem entenda que a aquisição do direito de propriedade por usucapião apenas se mostra possível se os factos respetivos ocorrerem antes da entrada em vigor da alteração do n.º 1 do art.º 1379º do Código Civil, operada pela Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto - Acórdãos de 30 de abril de 2019 (Processo n.º 1293/09.3TBLRA.C1.S2), de 18 de junho de 2019 (Processo n.º 1786/17.9T8STB.E1.S1), de 1 de março de 2018 (Processo n.º 1011/16.0TBSTB.E1.S1) e de 3 de maio de 2018 (Processo n.º 7859/15.5T8STB.E1.S1).

Assim, não sendo inédito, o tema em discussão aos autos gera, ainda assim, clivagens jurisprudenciais que importa atenuar, o que, aliado à complexidade das matérias em discussão, resulta na evidente relevância jurídica da questão a apreciar”.

Isto é quanto basta para se considerar demonstrado que o pedido de declaração judicial da existência do direito de propriedade sobre a parcela se reveste de indiscutível utilidade prática para os autores.

Em conclusão, a incerteza que está na origem da propositura da acção, na parte relativa aos pedidos do direito de propriedade invocado pelos autores, apresenta as características de objectividade e de gravidade exigíveis para que se configure interesse processual, devendo concluir-se que eles são titulares de um interesse sério e atendível, que justificava o seu recurso à acção na parte em que pedem a declaração da existência do direito de propriedade.

Esclareça-se, a terminar, que para esta conclusão em nada releva o facto de, aparentemente, não ser possível obter a justificação notarial e de a acção se apresentar, em concreto, como o único meio para os autores obterem o título comprovativo do seu direito. A utilidade a que se associa o interesse processual não reside, com efeito, na necessidade, em concreto, da acção para o resultado pretendido pelo autor (faltando, por conseguinte, interesse processual quando existam meios alternativos); o que importa é tão-só a aptidão do meio jurisdicional para a satisfação do interesse do autor. E não há dúvida de que isso se verifica.”.

Cabe finalmente dar resposta a outra das objeções levantadas na sentença recorrida ao prosseguimento da ação: a de que se poderia estar “a abrir a porta a putativos litígios para resolver questões que só em circunstâncias específicas o legislador atribuiu aos tribunais”.

Como já afirmado, não se acompanha o entendimento do Tribunal a quo de que só em circunstâncias específicas o legislador atribuiu aos tribunais competência para reconhecer a constituição do direito de propriedade de forma originária, por usucapião, sobre parcela de imóvel. Acresce que a cogitada possibilidade de uso indevido do processo, em fraude à lei, com vista a obter um fim ilícito não se relaciona com o pressuposto processual em análise. Em qualquer ação pode ocorrer conluio entre as partes com vista a obterem sentença que reconheça ou constitua direito que não têm, o que podem pretender alcançar até pela via de simulação de um litígio realmente inexistente. O controlo de tal possibilidade cabe ao juiz no âmbito dos seus poderes/deveres de indagação oficiosa, sendo nesses casos seu dever julgar a causa, ainda que não contestada, com verificação da veracidade do alegado, de forma a evitar o “uso anormal do processo”, nos termos previstos no artigo 612.º do Código de Processo Civil.

Em face do exposto não se verifica falta de interesse em agir por banda do autor, devendo a sentença ser revogada e ordenado o prosseguimento dos autos para prolação de despacho saneador.


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Não tendo sido apresentadas contra-alegações e nem tendo o recorrido dado causa ao recurso, as custas do mesmo serão a suportar pelo recorrente nos termos do artigo 527.º do Código de Processo Civil, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.


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V – Decisão:

Julga-se a apelação procedente, revogando-se a sentença recorrida e ordenando-se o prosseguimento dos autos com prolação de despacho saneador.

Custas pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

Porto, 24 de novembro de 2025.

Ana Olívia Loureiro

Jorge Martins Ribeiro

Filipe César Osório

_______________________________
[1] Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 3ª edição, Volume I, página 64.
[2] Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, páginas 179 a 181.
[3] Acção de reivindicação, Revista da Ordem dos Advogados, ano 57 (1997), págs. 511-545 (516), apud Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça STJ 259097/17.0T8PRT.P1.S1.
[4] Op. cit, página 182.
[5] Concordando-se aqui com a motivação do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães TRG 300/16.8TAVV.G1 em que se afirma que “o direito de propriedade contrariamente a outros direitos reais menores (servidões legais – art.º 1547º nº 2 do CC) não se constitui por sentença (cfr. art.º 1316º do CC sobre os modos de aquisição do direito de propriedade) embora, pelo teor do pedido formulado (devendo ainda ser proferida sentença que contenha todos os elementos registais obrigatórios para a consolidação do direito de propriedade na esfera do Autor, por forma a que possa a mesma instruir o respectivo registo predial) e o agora alegado (“com o peticionado na PI pretende ver-se criado “ex novo” um direito de propriedade na esfera do ora Apelante (daí a opção por uma acção declarativa constitutiva) ” o autor desconsidere as formas de aquisição do direito de propriedade e as normas do instituto da usucapião que invoca, nomeadamente o art.º 1288º do CC, o que também sucede com algumas decisões dos nossos Tribunais, que assim qualificam a dita acção, mormente quando corresponde à antiga acção de justificação judicial, contrariando a evidência de que a sentença proferida em tais acções se limita a reconhecer a existência do direito e não a decretar a sua constituição”.
[6] Op.cit. página 185.
[7] STJ 2709/22.9T8PTM.E1.S1