Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4811/21.5T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS GIL
Descritores: ACESSÃO INDUSTRIAL IMOBILIÁRIA
DÍVIDA DE VALOR
INDEMNIZAÇÃO
ABUSO DE PODER
Nº do Documento: RP202310094811/21.5T8MTS.P1
Data do Acordão: 10/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Na acessão, o aumento do valor resultante da incorporação de obras afere-se com referência a este momento e o valor do solo corresponde ao que tinha antes das obras.
II - O montante que o autor da incorporação tem de pagar ao dono do solo visa conferir a este um valor correspondente àquele de que ficou privado por efeito da invocação da acessão pelo autor da incorporação de obras de maior valor do que o solo no qual se processou essa incorporação, sendo por isso uma dívida de valor.
III - Porque a contrapartida devida ao dono do solo preterido pelo autor da incorporação é uma dívida de valor, o valor que o solo tinha à data da incorporação deve ser atualizado como se dispõe no artigo 551º do Código Civil de modo a que se mantenha o poder aquisitivo da indemnização a que tem direito o proprietário do solo, atualização que se processa aplicando os índices de preços ao consumidor sucessivamente verificados entre o momento imediatamente anterior ao da incorporação e o momento em que se venha a verificar o efetivo pagamento do montante devido.
IV - Não incorrem em abuso do direito aqueles que exercem o direito à aquisição originária do direito de propriedade do solo sobre o qual edificaram a sua casa de habitação volvidos cerca de vinte e três anos sobre a conclusão das obras e mediante o pagamento do valor que o solo tinha à data da conclusão das obras atualizado de acordo com os índices de preços ao consumidor sem habitação até à efetivação desse pagamento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 4811/21.5T8MTS.P1

Sumário do acórdão proferido no processo nº 4811/21.5T8MTS.P1 elaborado pelo seu relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório[1]
Em 26 de outubro de 2021, no Juízo Local Cível de Matosinhos, Comarca do Porto, AA e marido, BB, vieram propor contra CC e marido, DD, EE e marido FF, a presente ação declarativa sob a forma de processo comum pedindo que os réus sejam condenados “a reconhecerem o direito de propriedade dos Autores por acessão industrial imobiliária sobre o lote nº ..., sito na Travessa ..., em ... e composto por terreno para construção com 448 m2, a confrontar do Norte com GG, do sul com a Travessa ..., do Nascente com o lote nº ... e do Poente com a Rua ..., descrito na conservatória do registo predial de Matosinhos sob a ficha .../... e inscrito na matriz predial urbana da União das freguesias ..., ... e ... sob o artigo ... e também a reconhecerem, que às heranças abertas pelo óbito dos pais cabe o direito de crédito inerente ao valor que o terreno tinha, á data da incorporação, no estado e situação jurídica em que se encontrava, e que se obrigam a pagar-lhes, logo que o Tribunal, a fixar nestes autos e que se liquida em € 164,60 correspondente aos 33.000$00 que custou, valor reportado á data da incorporação.
Alegam, para tanto, e em resumo, que os falecidos pais da autora e das rés compraram, em 08 de junho de 1978, pelo preço de 33.000$00, 11/200 do prédio rústico denominado “Campo ...”, sito no lugar ..., freguesia ..., concelho de Matosinhos, descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o nº ... a fls. 168v.º do livro ..., gleba quarta do prazo nº ... e inscrito na matriz sob o artigo ..., sendo que os vendedores do prédio, com uma área real de 9.200m2, dividiram-no em vinte parcelas e, como esta divisão de facto era ilegal, titularam as vendas por percentagens indivisas do prédio, proporcionais à concreta parcela de terreno, que desde logo cada comprador passou a possuir.
Na concreta parcela que os pais da autora adquiriram, com 506m2 de área bruta, os autores começaram a construir em 1981 a sua casa com a autorização verbal dos seus falecidos pais e sogros e conhecimento e aquiescência das suas irmãs e cunhados aqui demandados. A casa ficou pronta no final de 1988 e em dezembro de 1988, ficou inscrita sob o artigo urbano da freguesia ... nº ... e com o valor patrimonial tributário global atribuído de Esc. 2.880.000$00. Atualmente, o imóvel encontra-se inscrito na matriz predial urbana da União das freguesias ..., ... e ... sob artigo ..., sendo o seu valor tributário atual de € 38.712,10.
Os pais e sogros dos autores, por iniciativa própria, decidiram reduzir a escrito a
autorização verbal dada, o que fizeram em 04 de janeiro de 1993.
Como nem este concreto terreno nem os dos vizinhos estavam formalmente autonomizados, os comproprietários tentaram junto da Câmara que o loteamento de facto se tornasse legal, o que vieram a conseguir, já que o Município ... emitiu o alvará de loteamento nº 817/02, de 25 de novembro, tendo sido autorizada a constituição de 20 lotes, e à parcela ocupada pela construção da casa dos autores foi atribuído o lote nº ... e atribuída a área de 448m2.
Depois de constituído em lotes os comproprietários outorgaram uma escritura de divisão de coisa comum celebrada no dia 18 de junho de 2003 e aos pais da autora foi adjudicado o Lote ..., tendo sido atribuído ao lote o valor de cinco mil euros.
O terreno foi ocupado pela construção nele incorporada tendo os autores adquirido a propriedade do que incorporaram, bem como a propriedade do terreno, pelo instituto da acessão imobiliária, cabendo-lhe apenas ver ser relacionado na herança aberta por óbito dos seus pais o valor que o terreno tinha à data da incorporação da construção existente.
Citados, os réus ofereceram contestação-reconvenção e por despacho proferido em 26 de outubro de 2022 foi determinado o seu desentranhamento.
Em 16 de dezembro de 2022 foi proferido despacho a julgar confessados os factos articulados na petição inicial, ordenando-se o cumprimento do disposto no artigo 567º, nº 2 do Código de Processo Civil.
Os autores ofereceram alegações nas quais concluem que o valor do terreno à data da implantação era o equivalente em euros a 33.000$00, atualizado, o que perfaz € 2.954,29 como resulta da atualização que efetuaram no site do INE, pugnando pela procedência da ação declarando-se os autores donos e legítimos proprietários do Lote ... e do prédio nele construído pagando os autores a cada irmã 1/3 do valor pois o outro 1/3 cabe-lhe como herdeira dos pais, requerendo que na sentença seja fixado prazo para efetuar os depósitos nos autos.
Os réus apresentaram alegações nas quais concluem que o valor do prédio/terreno, deve ser o valor atual do mesmo, mas sem a construção, que o terreno em causa tem um valor patrimonial tributário de € 23.030,00, sendo que segundo os próprios autores, o valor da construção que implementaram no prédio ascende a 2.845.000$00 ou seja, aproximadamente, € 9.227,76, ou em alternativa, o valor das edificações corresponderá à diferença entre o valor patrimonial tributário do terreno, fixado em € 23.030,00 e o valor patrimonial tributário do prédio, que consta da caderneta predial junta pelos autores e que ascende a € 38.140,00, ou seja, o valor das obras corresponderia a € 15.110,00. Assim, o valor das obras é inferior ao valor do prédio, logo, não se verifica um dos requisitos de que depende a acessão industrial imobiliária, verificando-se, ao invés, que caberá aos donos do terreno, o direito a ficarem com as obras, pelo respetivo valor. Em todo o caso, sempre será necessário ao tribunal proceder à respetiva avaliação, quer do terreno, quer das obras, à data da instauração da presente ação, pois foi aqui que os autores invocaram o direito potestativo à aquisição por via da acessão e nunca nas datas indicadas na petição inicial. Deste modo, a ação ou não pode proceder ou, em alternativa, terá que ser feita a averiguação do valor do terreno à data da instauração da presente ação.
Em 13 de fevereiro de 2023 foi proferida sentença[2] que terminou com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto:
a) - Declara-se, e condenam-se os RR. a reconhecer, a aquisição, pelos AA. do direito de propriedade sobre o lote nº ... sito na Travessa ..., em ... e composto por terreno para construção com 448 m2, a confrontar do Norte com GG, do sul com a Travessa ..., do Nascente com o lote nº ... e do Poente com a Rua ..., descrito na conservatória do registo predial de Matosinhos sob a ficha .../..., no qual se encontra implantado o prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da União das freguesias de sob o artigo ...;
b) – Condiciona-se o reconhecimento do direito identificado na al. a) ao pagamento, no prazo de 10 dias, a cada uma das Rés, na qualidade de herdeiras das heranças abertas por óbito de HH e II, do valor correspondente a 1/3 da quantia de € 167,50 (centos e sessenta e sete euros e cinquenta cêntimos) devidamente actualizada, em função da inflação (Índice de Preços do Consumidor publicado pelo Instituto Nacional de Estatística) verificada e contada a partir do ano de 1988 (mil novecentos e oitenta e oito) inclusive, até ao momento do efectivo pagamento.
Custas pelo AA. (art. 535º, nºs 1 e 2, al. a) do C.P.C.).
Fixa-se à acção o valor indicado na p.i. (arts. 306º, nº 2, 297º, nº 1 2ª parte e 305º, nº 4
do C.P.C.).
Em 21 de março de 2023, inconformados com a sentença, CC e marido, DD, EE e marido FF interpuseram recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
a) O tribunal recorrido, fez, s.m.o. uma errada aplicação do direito aos factos apurados.
b) O tribunal considera, erradamente que o momento a levar em conta para a determinação do valor do terreno é o da realização da obra.
c) É jurisprudência pacifica que o momento de conversão ou de liquidação é aquele em que o autor da incorporação manifesta a vontade de adquirir o imóvel (ver Ac. do STJ de 10-2-2000, rel. Miranda Gusmão, BMJ 347, Ac. do STJ de 18-10-2007, rel. Azevedo Ramos, revista 4132/2007, Ac. do STJ de 19-4-2012, rel. Lopes do Rego, revista 34/09, Ac. da Relação de Lisboa de 24-1-2002, rel. Salvador da Costa, CJ, 1, pág.87;
d) Não restam dúvidas de que é o momento da incorporação aquele que releva para se considerar se o valor económico que a obra determinou no prédio é superior, igual ou inferior ao valor do prédio antes da incorporação.
e) Mas já não para a determinação do valor do prédio para efeitos e compensação ao proprietário dos prédios.
f) É pacifico que o pagamento da quantia que o autor da incorporação tem de liquidar ao proprietário do prédio constitui condição legal suspensiva de aquisição da propriedade (Ac. do STJ de 6-2-207, rel. Ribeiro de Almeida, revista n.º 4623/06[3], Ac. do STJ de 27-5-2008, rel. Pereira da Silva, revista 1276/2008).
g) A doutrina e a jurisprudência têm vindo a entender de forma unanime que a aquisição do imóvel pelo autor da acessão não é automática, antes depende de declaração negocial por parte do autor da obra (veja-se sobre o levantamento das questões suscitadas no domínio da acessão industrial imobiliária, "A Jurisprudência Portuguesa sobre Acessão Industrial Imobiliária - Algumas Observações" por Rui Pinto Duarte, Themis, n.º5, 2002, pág. 255-264).
h) O entendimento de que a aquisição não é automática, mas potestativa, não é isenta de consequências quanto a saber se o valor a pagar pela aquisição é o valor nominal do prédio antes das obras ou o seu valor atualizado à data da manifestação de vontade.
i) Sendo a aquisição automática, o autor da acessão fica imediatamente obrigado a pagar ao dono do prédio o valor que este tinha antes da aquisição, tendo sido esta precisamente uma das razões que levaram a sustentar que a aquisição por acessão é potestativa, já que a não ser assim, " impor-se-ia ao beneficiário da acessão o pagamento de uma indemnização, em contrapartida da sua aquisição, que este pode não estar em condições de satisfazer imediatamente" (Direitos Reais, José de Oliveira Ascensão, Coimbra Editora, 5º edição, pág. 308; mencionando argumentos a favor da não automaticidade, veja-se "Dois Apontamentos sobre Acessão Industrial Imobiliária" por Rui Pinto Duarte, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor M. Henrique Mesquita, Studia Juridica, 95, separata, pág. 783-793.
j) Na aquisição automática o dono do prédio podia, portanto, verificada a acessão, exigir o pagamento; não ficava obviamente dependente da vontade aquisitiva do autor da acessão.
k) Compreende-se, assim, que a quantia a pagar fosse fixada rigidamente pois o pagamento, embora diferido em relação ao momento aquisitivo, era exigível imediatamente.
l) Não assim no caso da aquisição potestativa pois dono do prédio fica sujeito à vontade do autor da acessão que pode manifestar a sua vontade aquisitiva muito tempo depois da realização da obra e, a entender-se que o dono do prédio não podia pedir o valor atualizado do prédio à data do pedido de aquisição deduzido pelo autor da acessão, seria agora o dono do prédio a sofrer um prejuízo patrimonial, não se justificando que as razões que levaram à atribuição do poder potestativo ao autor da acessão, na sua outra face fossem causa de prejuízo para o dono do prédio.
m) Que é precisamente o que acontece caso se venha a cristalizar a decisão recorrida.
n) Já que é precisamente o que está em causa nestes autos, pois os autores reivindicam agora, em acção intentada no ano de 2021, a aquisição da propriedade do terreno por via da acessão, mas pretendem (e o tribunal subscreveu) que ao mesmo fosse atribuído o valor que o mesmo tinha quase há 40 anos atrás, apenas considerando actualizações monetárias.
o) Em suma, um terreno com cerca de 448 metros quadrados, em lavra, a cerca de 500 metros da praia, pela astronómica quantia de 167,50 euros.
p) Tal posição é uma completa afronta aos mais elementares critérios de racionalidade, de justiça e de equidade.
q) A posição de que a aquisição é potestativa é perfeitamente dominante na jurisprudência e está estabilizada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
r) A pretensão manifestada pelos autores consubstancia um claro abuso do direito (artigo 334.º do Código Civil), que o tribunal não conseguiu discernir.
s) No sentido de que a aquisição é potestativa, vejam-se os Acs. do STJ de 3-4-2003, rel. Reis Figueira, P. 02A 4712, de 27-5-2008, rel. Pereira da Silva, revista 1276/2008, de 29-1-2004, rel. Loureiro da Fonseca, revista n.º 4163/03, de 4-4-1995, rel. Martins da Costa, BMJ 446-245, de 6-7-2006 e 12-9-2006, rel. Ribeiro de Almeida, revista 4270/2005 e 2246/06, 18-12-2007, rel. Azevedo Ramos, revista 4132/2007, de 13-3-2008, rel. Azevedo Ramos, revista 4687/07, de 19-11-2009, rel. Garcia Calejo, revista n.º 561/09, de 7-4-2011, rel. Moreira Alves, revista 108/1999, de 31-5-2011, rel. Fonseca Ramos, revista n.º 3196/04, de 19-4-2012, rel. Lopes do Rego, revista 34/09. Ver ainda Direitos Reais, Henrique Sousa Antunes, UCE, 2017, pág. 257.
t) Assim, os autores que pretendem exercer o poder potestativo de aquisição do imóvel por via da acessão industrial imobiliária, sabem que têm de liquidar ao dono do prédio (no caso aos herdeiros) o valor do imóvel antes da incorporação e sabem que, se não o fizerem, a aquisição não pode ser declarada.
u) Assim e em suma, não restam dúvidas de que a aquisição por via da acessão industrial imobiliária não é automática, mas sim potestativa.
v) Pelo que apenas ocorre quando os titulares do direito manifestam essa vontade/poder, o que apenas ocorreu com a instauração dos presentes autos.
w) De igual forma, não restam dúvidas de que o valor a pagar pelo prédio, embora seja considerado antes da incorporação da construção, deve ser actualizado à data da manifestação da vontade de aquisição, ou seja, o valor do prédio/terreno, deve ser o valor actual do mesmo, mas sem a construção.
x) Ora, o terreno em causa tem, como se disse, 448 metros quadrados, segundo a escritura de divisão de coisa comum e trata-se de um terreno destinado à construção, sito a escassos metros da praia.
y) E cujo valor patrimonial tributário ascende a 23.030,00€, segundo a caderneta predial correspondente aquele prédio e cuja matriz se encontra ainda activa, conforme documento constante dos autos.
z) Este terreno possui uma percentagem para calculo de implantação de 18%, permitindo a construção de habitação – facto que consta de documento autêntico junto aos autos.
aa) Pelo que o tribunal teria que ter fixado o valor do terreno em causa à data da manifestação de vontade de aquisição por parte dos autores, o que ocorreu, tão só, no ano de 2021.
bb) Seria esta o valor a fixar como valor do terreno e, consequentemente, como valor de indemnização aos proprietários, no caso, a herança indivisa.
cc) Sem este elemento, que o tribunal deveria ter cuidado de apurar, a sentença encontra-se ferida de ilegalidade, por violação do disposto, entre outros, no artigo 1317º d) e 1340º ambos do CC, bem como violação dos entendimentos jurisprudenciais acima citados e amplamente vigentes.
dd) Pelo que deverá ser ordenada a remessa dos autos ao tribunal recorrido, para que este possa ordenar o apuramento do valor do prédio à data da manifestação de vontade pelos autores, ou seja, à data da instauração dos presentes autos.
ee) Se assim não se entender, deve, ao menos, ser fixado o valor patrimonial tributário do prédio àquela data.
ff) Devendo levar-se aos factos provados, pelo menos que:
“O terreno em causa nos autos possuía, aquando da manifestação da vontade aquisitiva pelos autores, o valor patrimonial tributário de 23.030,00€.”
gg) Daqui retirando como consequência que seria este o valor a considerar para efeitos de indemnização aos proprietários do prédio.
AA e marido, BB responderam ao recurso pugnando pela sua total improcedência.
Uma vez que o objeto do recurso é de natureza estritamente jurídica[4], com o acordo dos restantes membros do coletivo dispensaram-se os vistos, cumprindo apreciar e decidir de seguida.
2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelos recorrentes nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil
2.1 Do cálculo da indemnização devida pela aquisição do solo por acessão industrial imobiliária;
2.2 Do abuso do direito por parte dos autores da incorporação ao exercerem a sua pretensão de aquisição do solo sobre o qual construíram a sua habitação pelo valor que o mesmo tinha à data da incorporação, atualizado de acordo com as taxas de inflação até à data em que se verificar o pagamento da indemnização.
3. Fundamentos de facto exarados na decisão recorrida que não foram impugnados[5], não se preenchendo hipótese legal determinante da sua alteração oficiosa
3.1 Factos provados
3.1.1
HH faleceu em 30/06/2017, no estado de casado com II, no regime de comunhão geral de bens, em primeiras e únicas núpcias de ambos, sem ter outorgado testamento ou qualquer outra disposição de última vontade.
3.1.2
II faleceu em 22/01/2018, no estado de viúva de HH, sem ter outorgado testamento ou qualquer outra disposição de última vontade.
3.1.3
A autora AA e as rés CC e EE, são as únicas e universais herdeiras dos referidos HH e II, seus pais.
3.1.4
Por escritura púbica lavrada em 08/06/1978, JJ e mulher, KK, declararam vender ao pai da autora e rés, HH, que declarou aceitar comprar, 11/200 do prédio rústico denominado “Campo ...”, sito no lugar ..., freguesia ..., concelho de Matosinhos, descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o nº ... a fls. 168vº do livro ... e gleba quarta do prazo nº ... e inscrito na matriz sob o artigo ....
3.1.5
O pai da autora e das rés pagou aos vendedores o valor correspondente a 11/200 do preço global de Esc. 600.000$00, ou seja, Esc. 33.000$00.
3.1.6
Os vendedores do referido prédio dividiram-no em vinte parcelas e formalizaram a sua venda naquela escritura por percentagens indivisas do prédio proporcionais à concreta parcela de terreno de cada comprador.
3.1.7
O referido prédio tinha uma área real de 9.200m2.
3.1.8
Na concreta parcela que o pai da autora e das rés adquiriu, os autores começaram a construir em 1981, a expensas próprias, a sua casa, composta de casa de r/c, com dois quartos, sala, cozinha, quarto de banho, hall e despe[n]sa.
3.1.9
A referida casa ficou pronta em finais de 1988.
3.1.10
A partir dessa data, a família formada pelos autores passou a viver no prédio, aí pernoitando, tomando as refeições, recebendo os amigos, situação que até hoje se mantém.
3.1.11
Os falecidos pais e sogros dos autores autorizaram verbalmente essa construção.
3.1.12
Essa construção foi efetuada com conhecimento e aquiescências de todos os réus.
3.1.13
O autor, em dezembro de 1988, participou ao Serviço de Finanças de Matosinhos a conclusão das obras, tendo participado o prédio com uma área coberta de 85m2 e descoberta de 245m2.
3.1.14
Na sequência da referida participação, o imóvel ficou inscrito sob o artigo urbano da freguesia ... nº ... e o valor patrimonial tributário global atribuído foi de Esc. 2.880.000$00.
3.1.15
Atualmente, o imóvel encontra-se inscrito na matriz predial urbana da União das freguesias ..., ... e ... sob artigo ..., sendo o seu valor patrimonial atual de € 38.140,00.
3.1.16
Os pais e sogros dos autores reduziram a escrito a autorização verbal referida em 11 [3.1.11] em 04/01/1993 com assinatura notarial de ambos, reconhecida, na Secretaria Notarial de Matosinhos em 20/01/1993[6].
3.1.17
Como nem este concreto terreno nem os dos vizinhos estavam formalmente autonomizados, os comproprietários, tentaram junto da Câmara que o loteamento de facto, se tornasse legal, o que vieram a conseguir.
3.1.18
O Município ... emitiu, para o prédio referido em 4) [3.1.4], o alvará do loteamento nº …, de 25/11, tendo sido autorizada a constituição de 20 lotes.
3.1.19
À parcela ocupada pela construção da casa dos autores foi atribuído o lote nº ....
3.1.20
Na sequência do modo como o Município aprovou o loteamento e ao modo como delimitou os lotes e as cedências ao domínio público para arruamentos, a área do terreno deste lote foi fixada em 448m2, tendo todos os lotes sido objeto de alterações das áreas efetivamente demarcadas pelo primitivo proprietário.
3.1.21
Depois de constituídos em lotes, os comproprietários outorgaram uma escritura de divisão de coisa comum celebrada no dia 18/06/2003 e aos pais da autora e rés foi adjudicado o referido lote nº ..., tendo-lhe sido atribuído o valor de cinco mil euros.
3.1.22
O valor da parcela de terreno que veio a corresponder ao lote nº ..., em 1988, era de Esc. 33.000,00.
3.1.23
O valor da construção nela implantada e referida em 8) e 9) [3.1.8 e 3.1.9] era, em 1988, pelo menos, de Esc. 2.450.000$00.
4. Fundamentos de direito
4.1 Do cálculo da indemnização devida pela aquisição do solo por acessão industrial imobiliária
Os recorrentes pugnam pela revogação da decisão recorrida e pela realização de uma diligência instrutória a fim de se determinar o valor atual do solo sobre o qual os autores edificaram a sua habitação na data da instauração da presente ação, já que, na sua perspectiva, é este o valor da indemnização a que têm direito ou, assim não se entendendo, sempre se deverá ter em conta o valor patrimonial atualizado do referido solo no montante de € 23.030,00.
Os recorrentes fundamentam esta pretensão recursória com a natureza potestativa da aquisição por acessão industrial imobiliária sustentando que é no momento em que é manifestada a vontade de aquisição por acessão que se cristaliza o valor do solo adquirido por essa via.
Cumpre apreciar e decidir.
Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 1340º do Código Civil, “[s]e alguém, de boa-fé, construir obra em terreno alheio, ou nele fizer sementeira ou plantação, e o valor que as obras, sementeiras ou plantações tiverem trazido à totalidade do prédio for maior do que o valor que este tinha antes, o autor da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o valor que o prédio tinha antes das obras, sementeiras ou plantações.”
Desta previsão legal parece inequívoco que o aumento do valor resultante da incorporação de obras se afere com referência ao momento da incorporação e que o valor do solo corresponde ao que tinha antes das obras. Estes são os momentos fulcrais para a verificação dos pressupostos legais da acessão[7] e bem assim para a determinação do montante que o autor da incorporação tem de pagar ao dono do solo[8].
O montante que o autor da incorporação tem de pagar ao dono do solo visa conferir a este um valor correspondente àquele de que ficou privado por efeito da invocação da acessão por parte do autor da incorporação de obras de maior valor do que o solo no qual se processou essa incorporação.
Trata-se assim de uma dívida de valor que, nas palavras do Sr. Professor Antunes Varela, são “dívidas que não têm directamente por objecto o dinheiro, mas a prestação correspondente ao valor de certa coisa ou ao custo de determinado objectivo, sendo o dinheiro apenas um ponto de referência ou um meio necessário de liquidação da prestação”[9].
O valor em causa é o do solo no momento imediatamente anterior ao da incorporação.
Porém, porque “invito no datur beneficium”[10], a acessão depende da sua ,invocação por parte daquele a quem aproveita[11], o que, pelas mais diversas razões, pode envolver um desfasamento temporal maior ou menor entre o momento em que ocorre a incorporação e aquele em que se manifesta a vontade tendente a fazer valer a nova situação jurídica dela decorrente.
Nestes casos, porque a contrapartida devida ao dono do solo preterido pelo autor da incorporação é uma dívida de valor, o valor que o solo tinha à data da incorporação deve ser atualizado como se dispõe no artigo 551º do Código Civil de modo a que se mantenha o poder aquisitivo da indemnização a que tem direito o proprietário do solo.
Essa atualização processa-se aplicando os índices de preços ao consumidor sucessivamente verificados entre o momento imediatamente anterior ao da incorporação e o momento em que se venha a verificar o efetivo pagamento da indemnização devida[12].
Uma vez que a aquisição do direito de propriedade do solo assume os contornos de uma expropriação por utilidade particular, justifica-se a aplicação analógica do artigo 24º do Código das Expropriações, seja no que respeita à aplicação dos índices de preços ao consumidor com exclusão da habitação, seja na atualização da indemnização até ao momento do efetivo pagamento da indemnização, como se determinou na sentença recorrida.
A pretensão dos recorrentes de que a indemnização devida pelos autores seja correspondente ao valor de mercado do solo no momento em que foi exercido o direito à sua aquisição mediante acessão industrial imobiliária, ou, em alternativa, o seu valor tributário nesse mesmo momento, não tem assim qualquer suporte normativo e, a ser acolhida, iria gerar assintonias dificilmente compreensíveis.
Na realidade, como justificar que os pressupostos objetivos da acessão se aferissem com referência ao momento imediatamente anterior ao da incorporação ou ao momento da incorporação e a contrapartida devida pela verificação desse instituto se aferisse pelo tempo em que fosse exercida essa pretensão, numa altura em que quer o valor do solo quer o da incorporação podem ser em muito divergentes dos legalmente relevados para a verificação objetiva do instituto?
Pelo exposto, conclui-se pela improcedência desta questão recursória.
4.2 Do abuso do direito por parte dos autores da incorporação ao exercerem a sua pretensão de aquisição do solo sobre o qual construíram a sua habitação pelo valor que o mesmo tinha à data da incorporação, atualizado de acordo com as taxas de inflação até à data em que se verificar o pagamento da indemnização
Os recorrentes pugnam pela revogação da sentença recorrida porque, na sua perspetiva, aos autores ao exercerem o direito de adquirirem por acessão industrial imobiliária volvidos quase quarenta anos sobre a realização das obras pagando como valor do solo o que ele tinha nessa data com atualização monetária desse montante incorrem em abuso do direito.
Cumpre apreciar e decidir.
Nos termos do disposto no artigo 334º do Código Civil, “[é] ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
Antes de mais recordemos os factos essenciais que se provaram:
- Na concreta parcela que o pai da autora e das rés adquiriu, os autores começaram a construir em 1981, a expensas próprias, a sua casa, composta de casa de r/c, com dois quartos, sala, cozinha, quarto de banho, hall e despe[n]sa (ponto 3.1.8 dos factos provados);
- A referida casa ficou pronta em finais de 1988 (ponto 3.1.9 dos factos provados);
- A partir dessa data, a família formada pelos autores passou a viver no prédio, aí pernoitando, tomando as refeições, recebendo os amigos, situação que até hoje se mantém (ponto 3.1.10 dos factos provados);
- Os falecidos pais e sogros dos autores autorizaram verbalmente essa construção (ponto 3.1.11 dos factos provados);
- Essa construção foi efetuada com conhecimento e aquiescências de todos os réus (ponto 3.1.12 dos factos provados).
Destes factos resulta que os elementos objetivos para a verificação da acessão se verificaram todos ainda em vida dos progenitores da autora e das rés e que estas tiveram conhecimento e anuíram ao que seus pais autorizaram.
Desde 1988 os autores e sua família vivem na casa que construíram na parcela de solo que pertencia aos progenitores da autora.
Não resulta da factualidade provada que o exercício do direito à aquisição da propriedade do solo por parte dos autores decorridos mais de trinta anos sobre o termo da obra tenha correspondido a uma qualquer opção estratégica de verificação se entretanto ocorria uma valorização do mesmo que justificasse o acionamento do instituto da acessão industrial imobiliária. Sublinhe-se que já nos anos oitenta os terrenos situados à beira-mar eram bastante valorizados.
A ter ocorrido uma qualquer valorização do solo posterior à realização da incorporação, é justo que esse acréscimo caiba a quem reúna as condições para o adquirir por acessão, tal como caberá ao dono do solo na eventualidade de não se preencherem os requisitos necessários à aquisição por acessão.
Finalmente, a demora no exercício do direito à aquisição da propriedade do solo por acessão[13] decorre também da inércia dos titulares do solo, pois que se acaso estes pretendessem uma clarificação da situação, bastava-lhes ter reivindicado a propriedade do solo. Certamente isso não sucedeu em vida dos progenitores da autora e das rés porque aqueles tinham consentido na construção que os autores levaram a cabo e, naturalmente, honraram a palavra dada.
No circunstancialismo factual antes rememorado existe algum abuso do direito por parte dos autores no exercício do direito à aquisição originária do direito de propriedade do solo sobre o qual edificaram a sua casa de habitação volvidos cerca de vinte e três anos sobre a conclusão das obras?
A nossa resposta à interrogação que se acaba de formular é inequivocamente negativa.
De facto, não se vislumbra na referida conduta dos autores qualquer excesso manifesto dos limites das regras da boa-fé, dos bons costumes ou do fim social e económico do direito.
Tendo a autorização para a realização das obras sido concedida pelos progenitores da autora e das rés donos do solo sobre o qual foi implantada a obra é natural que apenas após o óbito daqueles surja a necessidade de regularizar a situação jurídica da casa de habitação dos autores implantada sobre solo propriedade dos progenitores da autora e das rés.
Pelo exposto, improcede esta questão recursória.
As custas do recurso são da responsabilidade dos recorrentes pois que as suas pretensões recursórias improcederam totalmente (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
5. Dispositivo
Pelo exposto, os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto por CC e marido, DD, EE e marido FF e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida proferida em 13 de fevereiro de 2023 nos segmentos impugnados.
Custas do recurso a cargo dos recorrentes, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso.
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O presente acórdão compõe-se de quinze páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.

Porto, 09 de outubro de 2023
Carlos Gil
Fernanda Almeida
Teresa Fonseca
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[1] Segue-se, com alterações, o relatório da decisão recorrida.
[2] Notificada às partes mediante expediente eletrónico elaborado em 14 de fevereiro de 2023.
[3] Neste ponto os recorrentes copiam acriticamente parte do nº 47 do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de maio de 2018, proferido no processo nº 194/05.9TCFUN.L1.S2, acessível na base de dados da DGSI, não atentando que no ano de 207 o Supremo Tribunal de Justiça ainda não existia. Fizemos buscas na base de dados da DGSI e no Google no sentido de identificar precisamente este acórdão mas não o conseguimos.
[4] Mesmo a pretendida realização de uma diligência instrutória ou de ampliação da base factual implica a prévia resolução de uma questão de direito, qual seja, como se apura a indemnização devida pela aquisição do direito de propriedade por acessão industrial imobiliária.
[5] Expurgados das meras remissões probatórias.
[6] Na realidade, em virtude de não saberem assinar, as assinaturas de HH e de II foram feitas a rogo por LL [?] ..., tendo os rogos sido reconhecidos notarialmente e presencialmente no dia 20 de janeiro de 1993.
[7] No momento em que se consuma a incorporação, ou seja, no caso de construção de obra, na conclusão da obra apura-se o valor da incorporação enquanto no momento imediatamente anterior à conclusão da obra se apura o valor do solo sobre o qual se procedeu à edificação.
[8] Por todos sobre esta problemática, na doutrina, veja-se: Da Acessão, Mormente da Acessão Industrial Imobiliária, Universidade Católica Porto, 2020, Júlio Manuel Vieira Gomes, páginas 124 a 130; na jurisprudência veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08 de fevereiro de 2011, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Pedro Martins no processo nº 179/08.3TBSAT.C1, acessível na base de dados da DGSI.
[9] Citação extraída da obra intitulada “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 6ª edição, Almedina 1989, primeiro parágrafo da página 829.
[10] Sobre este princípio jurídico veja-se Dicionário de Adágios e Princípios Jurídicos, Livraria Ferin, Lda., Lisboa 1958, Volume I, António Simões Correia, página 246.
[11] A este propósito, por todos veja-se Tratado de Direito Civil, XIV, (2ª parte), Almedina 2023, António Menezes Cordeiro, páginas 358 a 363, nº 127.
[12] Veja-se a este propósito, na doutrina o Tratado de Direito Civil, XIV, (2ª parte), Almedina 2023, António Menezes Cordeiro, páginas 374 e 375, ponto VIII. Na jurisprudência, por todos, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de maio de 2018, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Salazar Casanova, no processo nº 194/05.9TCFUN.L1.S2, acessível na base de dados da DGSI.
[13] Sublinhe-se que se acaso o legislador pretendesse que o exercício do direito potestativo a adquirir o solo por acessão se verificasse dentro de certo prazo teria previsto prazos de caducidade para esse efeito. Não o tendo feito, serão quando muito aplicáveis as regras da prescrição (veja-se o artigo 298º, nº 1, do Código Civil).