Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
521/20.9T8ALB.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
FACTOS ESSENCIAIS
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: RP20240205521/20,9T8ALB.P1
Data do Acordão: 02/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Atento o carácter instrumental da reapreciação da decisão da matéria de facto, no sentido de que a reapreciação pretendida visa sustentar uma certa solução para uma dada questão de direito, a inocuidade da aludida matéria de facto justifica que este tribunal indefira essa pretensão, em homenagem à proibição da prática no processo de atos inúteis (artigo 130.º do CPCivil).
II - Na vigência do Código de Processo Civil anterior, mas igualmente após 01/09/2013, ocasião em que passou a vigorar a Lei 41/2003, de 26 de junho (NCPC) a matéria de facto à qual há que aplicar o direito tem de cingir-se a verdadeiros factos e não a questões de direito ou a meros juízos conclusivos, razão pela qual a revogação do artigo 646, n.º 4 do anterior CPC, não significa que o princípio nele estabelecido haja sido alterado devendo, assim, eliminar-se da fundamentação factual os pontos que neles se contenham meras conclusões.
III - Os factos essenciais têm de ser alegados pelas partes (artigo 5.º, nº 1 do CPCivil) e, como tal, não pode o juiz tomá-los em consideração na respetiva decisão mesmo que eles resultem da instrução e discussão da causa, sendo que, os que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado apenas podem ser considerados desde que sobre eles as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar.
IV - O instituto da litigância de má fé constitui sanção civil para o inadimplemento gravemente culposo ou doloso dos deveres de cooperação e de boa fé (ou probidade) processual.
V - A afirmação da litigância de má fé depende da análise da situação concreta, devendo o processo fornecer elementos seguros para por ela se concluir, exigindo-se no juízo a realizar uma particular prudência, necessária não só perante o natural conflito de interesses, mas também face ao desvalor ético-jurídico em que se traduz a condenação.
VI - A condenação como litigante de má fé exige a prova de factos dos quais se conclua com meridiana clareza pela atuação da parte com a consciência ou convencimento da sua sem razão no plano factual, não bastando para tal a prova da tese da parte contrária ou a sucumbência no plano jurídico.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 521/20.9T8ALB.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro-Juízo de Competência Genérica de Albergaria-a-Velha-J2
Relator: Des. Dr. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Drª Eugénia Marinho da Cunha
2º Adjunto Des. Miguel Baldaia
Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO
AA, residente na Rua ..., ..., ..., instaurou a presente ação de Impugnação de Escritura de Justificação Notarial contra BB, residente na Rua ..., ..., Albergaria-a-Velha e CC, residente na Rua ..., ..., Albergaria-a-Velha, pedindo que se declarem impugnados, para todos os efeitos legais, os factos justificados na escritura identificada nos autos; ineficaz a escritura de justificação notarial, de forma a que os réus não possam, através dela, registar quaisquer direitos sobre o prédio lá identificado; se declare inexistente o direito de propriedade dos Réus justificado na escritura identificada nos autos; se ordene o cancelamento de quaisquer registos operados com base na dita escritura.
Alega para o efeito, em suma, que é irmã do Réu e que na sequência do processo de inventário instaurado para partilha dos bens deixados pelos pais–DD e EE Rodrigues–tomou conhecimento de uma escritura de justificação notarial realizada a 19 de Julho de 2019, realizada pelos Réus e que tem por objeto, metade indivisa do prédio urbano, composto por casa de três pisos, pequena dependência e logradouro, sito em ..., Freguesia ..., concelho de Sever do Vouga, com a área total de duzentos e cinquenta e dois metros quadrados, sendo a área de implantação de centro e trinta e sete vírgula trinta e seis metros quadrados e a área de superfície descoberta de cento e catorze vírgula sessenta e quatro metros quadrados, a confrontar do Norte com Estrada, do Sul e do Poente com FF e do Nascente com Caminho, inscrito na matriz sob o artigo ..., do qual desconhecem a proveniência, com o valor patrimonial tributável para efeitos de IMT correspondente à fração de 26.313,88 euros, ao qual atribuem valor idêntico, omisso na Conservatória do Registo Predial de Sever do Vouga, sendo já possuidores da restante metade indivisa.
Segundo a Autora, os factos alegados na dita escritura de justificação notarial são falsos, nunca tendo os Réus adquirido metade indivisa do referido prédio a GG e esposa, uma vez que os pais do Réu e da Autora sempre foram os únicos proprietários do referido imóvel, tendo sido os mesmos a construir a casa e a utilizá-la para os mais diversos fins.
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Em sede de contestação, vieram os Réus defender-se por exceção, impugnar o valor da causa e pedir a condenação da Autora como litigante de má fé.
Alegam que a Autora não tem interesse em agir, sendo parte ilegítima e reiteram que, a partir de 1990, após a doação de metade indivisa do prédio, efetuada por DD, a favor do Réu, este e a sua esposa foram falar com GG e a sua esposa, CC, tendo-lhes comprado a sua metade do referido imóvel, pelo valor de três mil contos. No entanto, não outorgaram escritura para formalizar a compra e venda, nem ficaram com qualquer documento que comprove essa aquisição.
Mais alegam que passaram a considerar e a usar a referida casa como sendo totalmente sua, pedindo a um vizinho que olhasse pela sua casa. Também fizeram obras de melhoramento que ultrapassaram o valor de €25.000,00 (vinte e cinco mil euros), após a morte do pai.
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A Autora respondeu à exceção e ao incidente de impugnação do valor da causa, terminando com um pedido de condenação dos Réus como litigantes de má fé.
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Designada data para a realização de audiência prévia, foi tentada a conciliação das partes, proferido despacho saneador onde se julgou improcedente a exceção de ilegitimidade ativa da Autora e se determinou a realização de uma avaliação ao prédio, para fixação do valor da causa.
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Junto o respetivo relatório de avaliação, foi indeferido um pedido de esclarecimentos deduzido pela Autora (despacho que foi alvo de recurso) e fixado o valor da causa em € 28.500,00 (vinte e oito mil e quinhentos euros)–despacho esse que também foi alvo de recurso, pela Autora.
Proferido o resto do despacho saneador, foi fixado o objeto do litígio e os temas da prova e admitidos os requerimentos probatórios.
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Designada data para julgamento, a mesma decorreu com respeito pelo legal formalismo.
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Afinal foi proferida decisão com a seguinte parte dispositiva:
“Nestes termos, julga-se a presente ação procedente e, em consequência:
a) declara-se ineficaz a escritura de justificação notarial outorgada pelos Réus, BB e CC, a 19 de Julho de 2019, no Cartório Notarial da Notária HH, de ..., referente ao direito de propriedade de metade indivisa do prédio urbano, composto por casa de três pisos, pequena dependência e logradouro, sito em ..., Freguesia ..., concelho de Sever do Vouga, com a área total de duzentos e cinquenta e dois metros quadrados, sendo a área de implantação de centro e trinta e sete vírgula trinta e seis metros quadrados e a área de superfície descoberta de cento e catorze vírgula sessenta e quatro metros quadrados, a confrontar do Norte com Estrada, do Sul e do Poente com FF e do Nascente com Caminho, inscrito na matriz sob o artigo ...;
b) ordena-se o cancelamento dos registos efetuados sobre o referido prédio;
c) absolvem-se Autora e Réus dos pedidos recíprocos de condenação como litigantes de má fé.
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Não se conformando com o assim decidido veio a Autora interpor o presente recurso concluindo da seguinte forma:
1. O âmbito objetivo da presente apelação circunscreve-se àquilo que se considera ser mister à litigância de má-fé.
2. Com efeito, a presente apelação advém da irresignação para com a não censura do comportamento de quem bem sabe que inventa factos para “justificar” a propriedade de metade de uma casa que, afinal, pertence ao património hereditário advindo de seus pais-“justificação notarial” essa que, para mais, se dá em prejuízo da própria irmã (pessoa ingénua, humilde e de parcos recursos).
3. Fruto de uma inexatidão na consideração da totalidade dos factos a inserir na matéria factual dotada de relevo para a decisão da causa, bem como ainda através da inserção de uma incorreta conclusão no plano factual dado como não provado, adveio uma decisão que peca por não trazer Justiça à apelante, à Comunidade e ao instituto da litigância de má-fé (na sua vertente substancial).
4. No que respeita aos factos de contextualização e de carga simbólica, pugna-se pela inserção dos seguintes factos (por via da adição) no bloco factual da sentença: factos alegados nos arts. 2, 3 e 4 da pi (os quais se encontram admitidos por acordo); factos alegados nos arts. 14 e 15 da pi (os quais se encontram provados por documento autêntico); a versão parcialmente provada (por documento autêntico) da alegação vertida no art. 1 da pi; e o seguinte facto (versão sintética e parcialmente provada dos arts. 8, 9 e 10 da pi), resultante de prova testemunhal- “Quando, nos últimos tempos das suas vidas, os pais da Autora e do 1º Réu, adoeceram e precisaram de cuidados, foi a Autora que deles cuidou”.
5. No que concerne aos factos fundamentais para a ativação e aplicação do instituto da litigância de má-fé pugna-se pela inserção dos infra vertidos factos (por via da adição) ao bloco factual da sentença.
6. Em preâmbulo a esta factualidade, refira-se que às testemunhas — a sete da apelante e a duas dos réus (as que também foram testemunhas da justificação notarial) foram feitas, entre as demais, duas questões fundamentais: quem construiu a casa sub judice? e quem usava a casa sub judice?
7. A resposta foi categórica: quem construiu a casa foi o pai da apelante e do apelado; quem usava a casa, até ao falecimento do pai da apelante e do apelado (ou seja, até 21/11/2010), era este (e a família que com ele vivia).
8. Há nove testemunhas oriundas do ..., em ... (entre as quais, as da justificação dos apelados), a descrever a mesma realidade. Há uma laje em pedra afixada na fachada, com o nome do dono e a data de construção. Não há uma única prova em contrário.
9. Pelo que deve ficar provado, por via do aditamento à matéria de facto, que (narração inspirada no art.  28 da pi): “A casa objeto dos autos foi construída e possuída por DD e esposa até à data da sua morte, sendo tal facto do conhecimento público dos habitantes da aldeia de ....
10. Ex vi da motivação da própria sentença, da prova testemunhal (máxime, as passagens das gravações, indicadas no corpo das alegações, relativas ao filho do visado-primo direito da autora/apelante e do réu/apelado) e, logicamente, por tudo o que ficou dito em relação ao facto imediatamente supra abordado, deve ficar provado, por via do aditamento à matéria de facto, que (narração inspirada no art. 27 da pi) “O irmão de DD-GG-jamais teve o que quer que fosse relacionado com a propriedade ou posse da casa objeto dos autos.”
11. É clamoroso que a narrativa vertida na “justificação” e trazida aos autos pelos réus/apelados-máxime, na contestação (entre os vários outros, sobretudo, o art. 37.º, 41.º e 48.º) é manifestamente falsa.
12. Pelo que deve ficar provado, por via do aditamento à matéria de facto, que (narração inspirada no art. 24 da pi e nos arts. 43. e 44. da réplica): “É falso que a partir de por volta de 1990 os réus tenham passado a exercer todos os atos materiais de posse sobre a casa objeto dos autos ou, sequer, que tivessem assumido e tomado posse da mesma”.
13. E ainda também deve ficar provado, por via do aditamento à matéria de facto, que (narração inspirada daquilo que resultou da instrução, de tudo o que ficou alegado e em consequência do art. 40.º da petição inicial: “Até à data da sua morte, em 2010, era DD e esposa quem usavam em exclusivo (e permitiam usar), à vista de toda a gente, a casa objeto dos autos-mais nunca tendo os réus usado, pelo menos até tal data, muito menos à vista de quem quer que fosse, a casa objeto dos autos.
14. A proposição conclusiva ínsita na alínea M) dos factos dados como não provados deve ser expurgada da matéria factual (por se consubstanciar numa pura apreciação jurídica resultante da ponderação daquela) ou, caso assim não se entenda, deve ser mobilizada para o bloco factual da matéria de facto dada como provada.
15. A Comunidade sabe e sente que os réus/apelados falsearam factos possessórios, sendo público e notório que alteraram a verdade dos factos relevantes para a decisão da causa, bem como ainda que deduziram pretensões cuja falta de fundamento não deviam ignorar (rectius, que bem sabiam inexistir).
Nada acontece? Os réus/apelados não são punidos?
É essa a mensagem que se quer passar à Comunidade?
É esse o País que queremos?
E os danos que a apelante sofreu? Todo o trabalho que adveio da obrigação de combater uma narrativa consabida e manifestamente falsa não é compensado?
16. A sentença apelada, ao lavrar numa inexata e incompleta apreciação factual, pecou por não fazer Justiça ao instituto da litigância de má-fé, nesse iter violando, portanto, o art. 607.º/4 do CPC, bem como ainda as alíneas a) e b), do n.º 2, do art. 542.º, do mesmo diploma.                                                                             
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são as seguintes as questões que importa apreciar decidir:
a)- saber se tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto;
b)- saber se os Réus deviam, ou não, ter sido condenados como litigantes de má fé.     
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido:
1) No dia 19 de Julho de 1965, FF e sua mulher II–avós da Autora e do Réu–doaram ao seu pai DD e seu tio GG, casas de palheiro e terra culta, com seus arredores, com água de rega, na Fundada, ditos limites e Freguesia ..., a confrontar a norte com a estrada, do sul com o carreiro, do nascente com o caminho e do poente com JJ; inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo número ..., com o valor matricial de mil quatrocentos e quarenta escudos.
2) No dia 21 de Março 1990, DD e EE outorgaram uma escritura pública de doação, das suas quotas disponíveis, doando aos Réus três bens imóveis todos sitos na Freguesia ..., com as matrizes prediais rústica n.º ... e ... e metade indivisa de uma casa de habitação com a matriz predial urbana n.º ....
3) A 19/07/2019 os Réus outorgaram uma escritura de justificação notarial nos termos da qual declararam “Que são donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, de metade indivisa do prédio urbano, composto por casa de três pisos, pequena dependência e logradouro, sito em ..., Freguesia ..., concelho de Sever do Vouga, com a área total de duzentos e cinquenta e dois metros quadrados, sendo a área de implantação de centro e trinta e sete vírgula trinta e seis metros quadrados e a área de superfície descoberta de cento e catorze vírgula sessenta e quatro metros quadrados, a confrontar do Norte com Estrada, do Sul e do Poente com FF e do Nascente com Caminho, inscrito na matriz sob o artigo ..., do qual desconhecem a proveniência, com o valor patrimonial tributável para efeitos de IMT correspondente à fração de 26.313,88 euros, ao qual atribuem valor idêntico, omisso na Conservatória do Registo Predial de Sever do Vouga, sendo já possuidores da restante metade indivisa. Que a posse sobre o direito predial acima identificado foi adquirida, por compra e venda verbal não titulada, feita, por volta do ano de mil novecentos e noventa, a CC e marido GG, ela já falecida e ele residente na Freguesia ..., concelho de Sever do Vouga. Que a partir da referida data passaram a exercer todos os atos materiais de posse. Que não são detentores de qualquer título formal que legitime o seu domínio ou posse, não obstante isso, possuem o referido direito predial há mais de vinte anos, nele praticando os normais atos correspondentes ao direito de propriedade, usufruindo-o e gozando todas as utilidades por ele proporcionadas, nomeadamente, limpando-o”.
4) Após 21.11.2010, os Réus fizeram obras de melhoramento.
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Factos não provados
Não resultaram provados, com relevância para a decisão da causa, os seguintes factos:
A) Desde o momento descrito em 1) que GG pagava os respetivos impostos na proporção do seu quinhão e assim se continuou a passar, mesmo depois do Sr. DD ter doado ao seu filho, aqui Réu, por escritura de doação em 1990 metade indivisa da casa de habitação com a matriz predial n.º ....
B) Depois da doação do seu pai em 1990, o Réu assumiu e passou a tomar posse do que lhe havia sido doado, metade da casa indivisa, e por insistência da Ré sua esposa, foram conversar com o seu tio GG e a sua esposa CC tendo-lhes comprado a sua metade do referido imóvel.
C) Tendo os Réus entregue aos seus tios GG e CC o valor em dinheiro de três mil contos (cerca de quinze mil euros).
D) No entanto, na altura não outorgaram escritura para formalizar a compra e venda, nem ficaram com qualquer documento que comprove essa aquisição, até porque tratava-se de uma época em que a palavra valia mais que um papel e por isso não se preocuparam muito com a sua formalização, nomeadamente por terem total confiança no seu tio e esposa.
E) E passaram a considerar e usar a referida casa como sendo totalmente sua.
F) Aí vindo esporadicamente, primeiro por ter alguns problemas com o seu pai, e por as suas vidas não lhes permitirem mais, mas cuidando e sobretudo pedindo ao vizinho que “olhasse” pela sua casa.
G) As obras de melhoramento ultrapassaram o valor de 25 mil euros.
H) Tendo na altura solicitado à sua irmã, já que o pai, já havia falecido, que lhe permitisse usar a eletricidade da casa dos seus pais onde esta reside, para a realização das obras a qual, não permitiu.
I) Tendo sido o seu amigo e vizinho quem mais uma vez lhe valeu e lhe permitiu o uso da eletricidade, para assim realizar as referidas obras.
J) Tudo sempre sendo feito à vista de toda a gente, Autora e demais habitantes de ..., nomeadamente do seu tio GG e seus herdeiros, e sem que alguém levante dúvidas ou questione o seu direito.
K) E sempre no convencimento do exercício de um direito próprio e exclusivo.
L) O Réu permitiu à Autora que usasse o rés-do-chão para colocar as suas sementeiras até Junho de 2020, retirando-lhe essa confiança por achar que lhe faltaram bens que aí se encontravam.
M) Os Réus alteraram a verdade dos factos relevantes para a decisão da causa.                                                                         *
III. O DIREITO
Tal como supra se referiu a primeira questão que cumpre apreciar e decidir prende-se com:
a)- saber se tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto;
Como resulta do corpo alegatório e das respetivas conclusões o apelante impugna a decisão da matéria de facto, não concordando quer com a resenha dos factos provados quer não provados.
Vejamos, então, se lhe assiste razão.
O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialeticamente na base da imediação e da oralidade.
Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objeto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objetivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”.[1]
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objetivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPCivil).
Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância.[2]
Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada”.[3]
Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão à Autora apelante, neste segmento recursivo da impugnação da matéria de facto, nos termos por ela pretendidos.
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Importa, contudo, antes de avançarmos na referida apreciação, salientar que o recurso tem como objeto apenas o segmento decisório que não condenou os Réus como litigantes de má fé, como havia sido peticionado pela Autora apelante, razão pela qual o julgamento do recurso, sob este conspecto, estará condicionado na justa medida da relevância que os factos impugnados tenham para o thema decidendum.
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Refere a apelante no que respeita aos factos de contextualização e de carga simbólica, devem ser inseridos na decisão os seguintes factos:
- arts. 2, 3 e 4 da petição inicial, os quais se encontram admitidos por acordo;[4]
- arts. 14 e 15 da petição inicial, os quais se encontram provados por documento autêntico);[5]
- a versão parcialmente provada (por documento autêntico) da alegação vertida no art. 1 da pi;
- e o seguinte facto (versão sintética e parcialmente provada dos arts. 8, 9 e 10 da petição inicial), resultante de prova testemunhal: “Quando, nos últimos tempos das suas vidas, os pais da Autora e do 1º Réu, adoeceram e precisaram de cuidados, foi a Autora que deles cuidou”.
Mas pergunta-se qual a relevância desta factualidade em termos de apreciação do objeto de recurso para deles se retirar a eventual litigância de má fé por parte dos Réus?
A resposta é simples nenhum.
Ora, atento o carácter instrumental da reapreciação da decisão da matéria de facto, no sentido de que a reapreciação pretendida visa sustentar uma certa solução para uma dada questão de direito, a inocuidade da aludida matéria de facto justifica que este tribunal indefira essa pretensão, em homenagem à proibição da prática no processo de atos inúteis (artigo 130.º do CPCivil).
Como refere Abrantes Geraldes,[6]De acordo com as diversas circunstâncias, isto é, de acordo com o objeto do recurso (alegações e, eventualmente, contra-alegações) e com a concreta decisão recorrida, são múltiplos os resultados que pela Relação podem ser declarados quando incide especificamente sobre a matéria de facto. Sintetizando as mais correntes: (…) n) Abster-se de conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto quando os factos impugnados não interfiram de modo algum com a solução do caso, designadamente por não se visionar qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque de factos provados ou não provados”.
Como assim, abstemo-nos de reapreciar a impugnação relativamente aos pontos em questão.
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Pretende depois a apelante que sejam aditados aos factos provados os dois seguintes pontos:
“A casa objeto dos autos foi construída e possuída por DD e esposa até à data da sua morte, sendo tal facto do conhecimento público dos habitantes da aldeia de ...”;
“O irmão de DD-GG-jamais teve o que quer que fosse relacionado com a propriedade ou posse da casa objeto dos autos” (correspondentes aos artigos 27º e 28 da petição inicial).
Acontece que, os pontos em questão encerram em si conclusões e não factos.
Ora, importa não esquecer que o artigo 607.º, nº 4 do CPCivil[7] preceitua que na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
No âmbito do anterior regime do Código de Processo Civil, o artigo 646.º, nº 4 do CPCivil, previa, ainda, que: têm-se por não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documento, quer por acordo ou confissão das partes”.
Esta norma não transitou para o atual diploma, o que não significa que na elaboração da sentença o juiz deva atender às conclusões ou meras afirmações de direito.
Ao juiz apenas é atribuída competência para a livre apreciação da prova dos factos da causa e para se pronunciar sobre factos que só possam ser provados por documento ou estejam plenamente provados por documento, admissão ou confissão.
Compete ao juiz singular determinar, interpretar e aplicar a norma jurídica (artigo 607.º, nº 3 do CPCivil) e pronunciar-se sobre a prova dos factos admitidos, confessados ou documentalmente provados (artigo 607.º, nº 4).
Às conclusões de direito são assimiladas, por analogia, as conclusões de facto, ou seja, “os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados e exprimindo, designadamente, as relações de compatibilidade que entre eles se estabelecem, de acordo com as regras da experiência[8].
Antunes Varela considerava que deve ser dado o mesmo tratamento “às respostas do coletivo, que, incidindo embora sobre questões de facto, constituam em si mesmas verdadeiras proposições de direito[9].

Em qualquer das circunstâncias apontadas, confirmando-se que, em concreto, determinada expressão tem natureza conclusiva ou é de qualificar como pura matéria de direito, deve continuar a considerar-se não escrita porque o julgamento incide sobre factos concretos.

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Como assim, dado que os referidos pontos contêm meras conclusões, não podem integrar o elenco dos factos provados.
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E as mesmas considerações valem, mutatis mutandis, em relação ao seguinte ponto que também a apelante pretende aditar aos factos provados:
 “É falso que a partir de por volta de 1990 os réus tenham passado a exercer todos os atos materiais de posse sobre a casa objeto dos autos ou, sequer, que tivessem assumido e tomado posse da mesma”.
Efetivamente, a afirmação de que algo é falso implica uma interpretação ou julgamento sobre a veracidade da informação em questão e, como tal, isso não é, em si mesmo, um facto, mas uma conclusão.
Como já acima se referiu só os factos materiais são suscetíveis de prova e, como tal, podem considerar-se provados, as conclusões, envolvam elas juízos valorativos ou um juízo jurídico, devem decorrer dos factos provados, não podendo elas mesmas serem objeto de prova.
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Pretende, depois a apelante que se adite aos factos provados o seguinte ponto:
Até à data da sua morte, em 2010, era DD e esposa quem usavam em exclusivo (e permitiam usar), à vista de toda a gente, a casa objeto dos autos—mais nunca tendo os réus usado, pelo menos até tal data, muito menos à vista de quem quer que fosse, a casa objeto dos autos”.
O ponto em causa não foi objeto de alegação nas peças processuais apresentadas nos autos pelas partes, tendo resultado, como alega a apelante, da instrução da causa.
Ora, o artigo 5.º do CPCivil define em sede de matéria de facto o que constitui o ónus de alegação das partes e como se delimitam os poderes de cognição do tribunal.
Assim, nos termos do seu n.º 1, às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.
Todavia, o n.º 2 acrescenta que além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: a) os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; c) os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
           Resulta desta norma que o tribunal deve considerar na sentença factos não alegados pelas partes. Não se trata, contudo, de uma possibilidade sem limitações.
Desde logo, não cabe ao juiz supor ou conceber factos que poderão ter relevo, é necessário que estejamos perante factos que resultem da instrução da causa, isto é, factos que tenham aflorado no processo através dos meios de prova produzidos e, portanto, possuam já alguma consistência prática, não sejam meras conjeturas ou possibilidades abstratas.
           Por outro lado, o juiz só pode considerar factos instrumentais e, quanto aos factos essenciais, aqueles que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado. E isto é assim porque mesmo no novo Código de Processo Civil o objeto do processo continua a ser delimitado pela causa de pedir eleita pela parte [artigos 5.º, n.º 1, 552.º, n.º 1, alínea d), 581.º e 615.º, n.º 1, alínea d), segunda parte] e subsistem ainda as limitações à alteração dessa causa de pedir (artigos 260.º, 264.º, 265.º).
Acontece que, no caso concreto, o facto em causa não é instrumental, antes se tem de considerar facto essencial no âmbito do núcleo do pedido de condenação dos Réus como litigantes de má fé (aliás, na afirmação da apelante facto “fundamental” ou de “subida relevância para a litigância de má-fé”) e, como tal, incumbia à recorrente a respetiva alegação, (artigo 5.º, nº 1 do CPCivil atrás citado) estando, pois, vedado a este tribunal a sua consideração.
Aliás, mesmo considerando tal facto como complemento ou concretização dos que a apelante alegou, a sua consideração oficiosa, não pode ser feita sem que as partes se pronunciem sobre ela, ou seja, o juiz, ante a possibilidade de tomar em consideração tais factos, tem que alertar as partes sobre essa sua intenção operando o exercício do contraditório e dando-lhe a possibilidade de arrolar novos meios de prova sobre eles.
Ora, não tendo o Sr. juiz do processo feito uso desta possibilidade, teria de ter sido a parte, em momento oportuno, a impetrar requerimento com vista a que tais factos fossem considerados pelo tribunal.
Como assim, não o tendo feito, esta Relação não pode substituir-se à 1.ª instância e valorar já em termos definitivos a prova produzida quanto aos novos factos, ampliando em 2.ª instância a matéria de facto sem que previamente, em fase de audiência de julgamento, as partes estejam alertadas para essa possibilidade e lhes seja facultado produzir toda a prova que entenderem.
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Por último pugna a apelante que deve ser eliminado dos factos não provados a al. M) por conter uma proposição conclusiva.
E assim é, efetivamente, ou seja, na senda do que já supra se expôs, a alínea em causa encerra uma conclusão e não um facto e, por assim ser, não devia constar do elenco dos factos não provados.
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Diante do exposto e permanecendo inalterado o quadro factual que nos autos se mostra assente o que só por si levaria à improcedência da apelação, não deixará, de se analisar a segunda questão supra enunciada, isto é:
b)- saber se os Réus deviam, ou não, ter sido condenados como litigantes de má fé

O artigo 542.º, n.º 2, do CPCivil tipifica como comportamentos passíveis de sobre eles recair um juízo de censura que justifica a condenação como litigante de má fé da(s) parte(s) que os assuma(m) os seguintes:

- dedução de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento[10] não se devia ignorar;

- alteração da verdade dos factos ou omissão de factos relevantes para a decisão da causa;

- omissão grave do dever de cooperação;

- uso, manifestamente, reprovável do processo ou de instrumentos processuais (visando um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão).

Temos, assim, comportamentos que respeitam ao mérito da causa, pois a parte, sem que lhe assista razão, atua no sentido de alcançar uma decisão injusta ou realizar um objetivo que se afasta da função processual (má-fé substancial) e comportamentos que configuram violações do dever de cooperação ou a utilização de meios processuais para os fins ilegítimos referidos, independentemente da razão que a parte possa ter quanto ao mérito da causa (má-fé instrumental).

Ponto importante a assinalar é a exigência de que, para haver litigância de má-fé, a parte atue com dolo ou negligência grave, ou seja, sanciona-se a lide temerária (violação das regras com negligência grosseira) e dolosa (violação voluntária e consciente das regras), mas não a litigância imprudente.[11]

O instituto em causa acautela um interesse público de respeito pelo processo, pelo tribunal e pela justiça, destinando-se a assegurar a moralidade e eficácia processual, com reforço da soberania dos tribunais, respeito pelas suas decisões e prestígio da justiça–destina-se a combater a específica virtualidade da má fé processual, que transforma a irregularidade processual em erro ou irregularidade judicial.[12]

Com efeito, a tendência atual é para valorizar os princípios da boa fé e da cooperação processuais para que o processo realize a sua função em prazo razoável, ou seja, usando a terminologia da norma, “para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio” (artigo 7.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

Princípios que apontam para a cooperação dos intervenientes no processo no sentido de nele se apurar a verdade sobre a matéria de facto e, com base nela, se obter a adequada decisão de direito de modo a que, sem dilações inúteis, proporcionem condições para que a decisão seja proferida no menor tempo possível.

A condenação como litigante de má fé há de afirmar a reprovação e censura dos comportamentos da parte que, de forma dolosa ou, pelo menos, gravemente negligente (situações resultantes da inobservância das mais elementares regras de prudência, diligência e sensatez, aconselhadas pelas mais elementares regras do proceder corrente e normal da vida), pretendeu convencer o tribunal de pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, alterou a versão dos factos relativos ao litígio ou que fez do processo ou meios processuais uso manifestamente reprovável.

A simples proposição de uma ação, que venha a ser julgada sem fundamento, não constitui, de per si, atuação dolosa ou gravemente negligente da parte. O mesmo acontece com a contestação deduzida a pedido que venha a ser julgado procedente.

A afirmação da litigância de má fé depende da análise da situação concreta, devendo o processo fornecer elementos seguros para por ela se concluir, exigindo-se no juízo a realizar uma particular prudência, necessária não só perante o natural conflito de interesses, contrário, normalmente, a uma ponderação objetiva, e por vezes serena, da respetiva intervenção processual, mas também face ao desvalor ético-jurídico em que se traduz a condenação por litigância de má fé.[13]

Como se refere no Ac. S.T.J. de 28/05/2009[14]“(…) já no ano de 1975 o Supremo havia decidido, por unanimidade, “a falta de razão com que uma das partes litiga não basta para justificar a má fé, apenas podendo provocar a improcedência de pedido”. Assim sendo, a simples circunstância de se dar como provada uma versão factual contrária à alegada pela outra parte, sobretudo quando tal prova se alicerça em depoimentos testemunhais que se confrontam com outros de sentido contrário, não é suficiente para fundar e fundamentar a condenação da parte que viu triunfar a versão da parte contrária, como litigante de má fé. Para se imputar a uma pessoa a qualidade de litigante de má fé, imperioso se torna que se evidencie, com suficiente nitidez, que a mesma tem um comportamento processualmente reprovável, isto é, que com dolo ou negligência grave, deduza pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar ou que altere a verdade dos factos ou omita factos relevantes ou, ainda, que tenha praticado omissão grave do dever de cooperação, nas expressões literais do nº 2 do artº 456º do CPC”.

No acórdão do S.T.J de 11/12/2003[15], argumentou-se dever entender-se que “a garantia de um amplo acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprias do Estado de Direito, são incompatíveis com interpretações apertadas do art. 456º do CPC, nomeadamente no que respeita às regras das alíneas a) e b) do nº 2”, pelo que não é por “se não ter provado a versão dos factos alegada pela parte e se ter provado a versão inversa, apresentada pela parte contrária, que se justifica, sem mais, a condenação da primeira como litigante de má fé”, pois a verdade revelada no processo não é mais que a verdade do convencimento do juiz, uma verdade judicial e relativa, “não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico”.

Exige-se, pois, particular prudência e fundada segurança para se afirmar a litigância de má fé, a qual depende sempre de uma apreciação casuística onde deverá caber a natureza dos factos e a forma como a negação ou omissão são feitas.

Como se discreteou no acórdão desta Relação de 26/04/2021[16]: “O instituto da litigância de má-fé visa que a conduta dos litigantes se afira por padrões de probidade, verdade, cooperação e lealdade.

A concretização das situações de litigância de má-fé exige alguma flexibilidade por parte do intérprete, o qual deverá estar atento a que está em causa o exercício do direito fundamental de acesso ao direito (artigo 20º da Constituição da República Portuguesa), não podendo aquele instituto traduzir-se numa restrição injustificada e desproporcionada daquele direito fundamental (veja-se o artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa).

Importa não olvidar a natureza polémica e argumentativa do direito, o caráter aberto, incompleto e autopoiético do sistema jurídico, a omnipresente ambiguidade dos textos legais e contratuais e as contingências probatórias quer na vertente da sua produção, quer na vertente da própria valoração da prova produzida.

A título de exemplo, uma simples divergência na interpretação de certo normativo ou na valoração da prova produzida, desde que dogmaticamente sustentadas, não podem bastar para a condenação da parte cuja interpretação não foi jurisdicionalmente acolhida.

Na verdade, com o passar dos tempos, tem-se verificado, com alguma frequência, que teses jurídicas inicialmente peregrinas vieram a tornar-se teses dominantes.

Por outro lado, a evolução científica da prova tem vindo muitas vezes a revelar que convicções judiciais aparentemente inabaláveis e seguras, assentavam de facto em dados errados que originaram decisões erradas.

Assim, à semelhança da liberdade de expressão numa sociedade democrática, o direito fundamental de acesso ao direito só deve ser penalizado no seu exercício quando de forma segura se puder concluir que o seu exercício é desconforme com a sua teleologia subjacente, traduzindo-se na violação dos deveres de probidade, verdade e cooperação e numa utilização meramente chicaneira dos meios processuais, com o objetivo de entorpecer a realização da justiça.
Por isso também, o tipo subjetivo da litigância de má-fé apenas se preenche em caso de dolo ou culpa grave.”

Ora, da análise do comportamento processual dos Réus não pode concluir-se pela sua litigância de má fé.

É certo que os Réus não lograram provar a sua versão dos factos e, em concreto, aquilo que que consta da escritura de justificação notarial, mas daqui não decorre que tenham litigado com má-fé, no sentido supra definido.

Não podemos, aliás, esquecer-nos, como já supra salientámos, que a verdade revelada no processo não é mais que uma verdade judicial e relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico.

Concretizando.

Vem provado nos autos que DD (pai da Autora e 1º Réu) e GG receberam o prédio urbano ... dos pais, metade indivisa para cada um (verba n.º 38 da escritura de doação de 19 de julho de 1965) (cfr. ponto 1. dos factos provados).

Vem igualmente provado que no dia 21 de março 1990, DD e EE outorgaram uma escritura pública de doação, das suas quotas disponíveis, doando aos Réus três bens imóveis todos sitos na Freguesia ..., com as matrizes prediais rústica n.º ... e ... e metade indivisa de uma casa de habitação com a matriz predial urbana n.º ... (cfr. ponto 2. da resenha dos factos provados).

É verdade que a testemunha KK afirmou residir em ... há 52 anos, todavia, não deixou de referir que esteve emigrada durante muitos anos.

Também referiu que foi o seu tio (por afinidade) DD que construiu o imóvel aqui em apreço e fez uso dele, repare-se, porém, que também afirmou que o Réu passou a fazer uso do citado imóvel só nos últimos anos após a morte de GG, não deixando de se interrogar qual a razão de ser de tal procedimento, pois que o tio GG nada tinha que ver com o imóvel em questão, mais tendo afirmado que só “iria para tribunal com a irmã, após a morte do tio GG”, ou seja, fica por explicar a razão do Réu ter adotado este comportamento só depois da morte do tio GG e, em concreto, de só ter passado a utilizar a casa em questão depois da morte deste.

Também é certo que as testemunhas LL e MM afirmaram que foi DD a construir a casa em causa nos presentes autos e a utilizá-la, até a data da sua morte, tanto para armazenar bens como para permitir que a Autora, durante uns tempos, aí vivesse com as filhas.

Repare-se, contudo, que as indicadas testemunhas são filhas da Autora não deixando, pois, de ter um interesse no desfecho favorável da lide.

A testemunha NN, filho de GG negou que o pai tivesse qualquer direito sobre a casa inscrita sob o artigo ... e que nunca contribuiu para a construção daquela moradia.

Acontece que, para além de estar provado nos autos, como já supra se referiu, que DD e GG receberam o prédio urbano ... dos pais, metade indivisa para cada um, também as testemunhas Tanto KK como OO explicaram que DD e seus irmãos procederam a várias trocas entre sido dos prédios recebidos dos seus pais (FF e II) na escritura de doação de 19 de julho de 1965.

 Afirma a testemunha NN que caso o pai tivesse vendido qualquer direito de propriedade ao Réu, ter-lhe-ia contado e, como era usual, divido o dinheiro recebido entre os filhos, o que não aconteceu.

E se não contou?

Daqui se conclui que o caso concreto trazido aos autos não é de uma clareza bastante no sentido da total e intolerável sem razão dos Réus, e, inversamente, de completa e inequívoca razão da Autora.

É antes um caso algo complexo e nebuloso, jaez este pelo menos em parte adveniente da própria identificação e situação do prédio em causa, bem como da identificação dos atos de posse sobre o mesmo.

O tribunal recorrido entendeu, dentro da margem de álea que lhe é concedida valorar os depoimentos prestados nos moldes que ficaram descritos na motivação da decisão da matéria de facto.

Fê-lo, vg. decisivamente com base na prova pessoal–sempre falível-e cuja verdade e eticidade é sempre difícil sindicar, máxime na instância recursiva.

Assim, de tal posição emergiu, desde logo, a verdade processual, a qual se pretende que corresponda, sempre e o mais possível, à verdade substancial.

Perante este teor algo duvidoso–mas não o bastante, como se viu, para não permitir a decisão nos ternos sobreditos–dos factos provados e não provados não se pode concluir, dentro da dúvida razoável, que os autores agiram convencidos da sua sem razão e com o intuito de desvirtuar a realidade e com a consciência da ilicitude e iniquidade da sua atuação, ou seja, em retas contas, como já acima se assinalou, os Réus apenas não conseguiram provar a sua versão dos factos, sendo certo que dos autos não consta ter sido dada por provada versão contrária à por eles apresentada.


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Improcedem, assim, todas as conclusões formuladas pela apelante e, com elas, o respectivo recurso.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta improcedentes por não provada e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
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Custas da apelação pela Autora apelante (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 05 de fevereiro de 2024.
Manuel Domingos Fernandes
Eugénia Cunha
Miguel Baldaia de Morais
_________________
[1] Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348.
[2] Cfr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[3] Cfr. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, processo n.º 3931/03.2TVPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[4] Estes são do seguinte teor:
“2. O 1º Réu (nascido e crescido também na mesma aldeia, conquanto tenha ido morar para Albergaria-a-Velha por volta do seu casamento) é o único irmão da Autora (mais velho por 3 anos e meio).
3. A 2ª Ré é a cônjuge do 1º Réu.
4. A Autora sempre viveu com os seus pais -DD e EE-até ao falecimento destes”.
[5] Estes factos são do seguinte teor:
“13.Para mais, nunca perguntou à Autora se precisava de alguma ajuda para tratar dos pais, mínima que fosse, nem tão pouco impulsionou qualquer diligência nesse sentido (sendo que, a dada altura, a Autora até teve de suspender o trabalho no comércio familiar para poder cuidar dos pais, o que se refletiu no rendimento obtido para o agregado).
14.A mãe da Autora e do 1º Réu faleceu a 28/08/2005-como consta do doc. 1 que ora se junta”.
[6] In Recursos em Processo Civil Novo Regime, 2.ª edição revista e atualizada pág. 297.
[7] No que diz respeito aos factos conclusivos cumpre observar que na elaboração do acórdão deve observar-se, na parte aplicável, o preceituado nos artigos 607.º a 612.º CPCivil aplicáveis ex vi artigo 663.º, nº 2 do mesmo diploma legal.
[8] José Lebre de Freitas e A. Montalvão Machado, Rui pinto Código de Processo Civil–Anotado,Vol. II, Coimbra Editora, pag. 606.
[9] Antunes Varela, J. M. Bezerra, Sampaio Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição Revista e Atualizada de acordo com o DL 242/85, S/L, Coimbra Editora, Lda. 1985, pág. 648.
[10] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2.º, Almedina, 4.ª edição, 457, falam em “manifesta falta de fundamento, por inconcludência ou inadmissibilidade do pedido ou da exceção (alínea a))”.
[11] Idem, 456.
[12] Cfr. Pedro de Albuquerque, Responsabilidade Processual Por Litigância de Má Fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude de Atos Praticados No Processo, Almedina, pp. 55 e 56.
[13] Cfr., entre outros, os Ac. do STJ de 14/03/2002 e 15/10/2002, in www.dgsi.pt.
[14] In www.dgsi.pt..
[15] In www.dgsi.pt..
[16] Processo n.º 10832/19.0T8PRT.P1, relatado pelo Desembargador Dr. Carlos Gil, in www.dgsi.pt..