Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
530/16.2T8AVR-F.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: LIQUIDAÇÃO DA MASSA INSOLVENTE
PRETERIÇÃO DE FORMALIDADES LEGAIS
EFICÁCIA DOS ACTOS DO ADMINISTRADOR
Nº do Documento: RP20170130530/16.2T8AVR-F.P1
Data do Acordão: 01/30/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 642, FLS 261-268)
Área Temática: .
Sumário: I - A preterição de formalidades legais na venda efectuada pelo administrador da insolvência não constitui fundamento da declaração de ineficácia do acto de alienação dos bens nem de nulidade da venda.
II - A declaração da ineficácia do acto relativamente à massa insolvente, só pode ser declarada nos termos do artigo 163.º do CIRE se, em acção declarativa, a instaurar, nomeadamente pelos credores, for reconhecido que a violação do disposto nos artigos 161º e 162º do CIRE conduziu a um manifesto desequilíbrio entre as obrigações assumidas pelo administrador da insolvência e as do adquirente do bem.
III - Não obstante, isso não afasta a eventual responsabilidade do Srº. Administrador da insolvência, que poderá responder pelos danos causados à devedora e aos credores (artigo 59.º do CIRE).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 530/16.2T8AVR-D.P1-Apelação
Origem: Comarca de Aveiro-Juízo de Comércio de Oliveira de Azeméis-2ª Secção
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
Sumário:
I- A preterição de formalidades legais na venda efectuada pelo administrador da insolvência não constitui fundamento da declaração de ineficácia do acto de alienação dos bens nem de nulidade da venda.
II- A declaração da ineficácia do acto relativamente à massa insolvente, só pode ser declarada nos termos do artigo 163.º do CIRE se, em acção declarativa, a instaurar, nomeadamente pelos credores, for reconhecido que a violação do disposto nos artigos 161º e 162º do CIRE conduziu a um manifesto desequilíbrio entre as obrigações assumidas pelo administrador da insolvência e as do adquirente do bem.
III- Não obstante, isso não afasta a eventual responsabilidade do Srº. Administrador da insolvência, que poderá responder pelos danos causados à devedora e aos credores (artigo 59.º do CIRE).
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I-RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
No apenso da liquidação do activo da massa insolvente de B…, Ldª e na sua tramitação vieram os credores C…, Lda. e D…, Lda., apresentar requerimento do seguinte teor:
Credores que são nos autos à margem referenciados, vêm nos termos e para os efeitos do disposto n.º 5 do art.º 161º do CIRE dizer e requerer a V.ª Ex.ª o seguinte:
1. Os Requerentes representam um universo do passivo reconhecido superior a um quinto do total dos créditos não subordinados.
2. No passado dia 09/08/2016, pelas 16:01, teve lugar a abertura de propostas para a transmissão dos bens móveis arrolados e sob verbas 4 a 8, apreendidos para a Massa Insolvente.
3. As duas únicas propostas apresentadas são manifestamente inferiores ao valor mínimo definido pela avaliação dos bens da massa e que foi junta a fls….
4. Os Requerentes têm conhecimento da existência de um interessado na transmissão do conjunto desses mesmos bens móveis em causa, em condições mais vantajosas para a Massa Insolvente, pois pelo interessado é proposto o preço global de € 12.500,00 (doze mil e quinhentos euros), tendo já o proponente interessado obtido cheque bancário para pagamento do valor de sinal, correspondente a 20% do valor da proposta, ou seja, de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), tudo conforme cópia em anexo.
5. Nesta data os Requerentes irão dar conhecimento à Ex.ma Senhora Administradora da Insolvência desta proposta, remetendo o original da proposta assim como o cheque bancário emitido a favor da massa insolvente.
Em face do exposto, requerem a V.ª Ex.ª que se digne mandar sobrestar a venda, dado que ainda decorre prazo para a Insolvente se pronunciar quanto à proposta admitida no âmbito da negociação particular promovida pela Ex.ma Senhora Administradora da Insolvência, declarando mais vantajosa para a massa insolvente a proposta que ora foi dada a conhecer e, nessa medida, determinar a adjudicação dos bens ao proponente E…”.
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Notificada a Srª Administradora veio responder alegando que já não era possível sustar ou suspender a venda porque os bens já havia sido devidamente transmitidos ao Sr. F… a quem foram adjudicados.
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Notificados os credores acima referidos vieram os autos apresentar o seguinte requerimento:
Em face do teor da exposição da Ex.ma Sra. A.I., de fls. 49. e segs., cumpre aos aqui Requerentes esclarecer que não têm nenhuma relação pessoal, comercial ou profissional com o mencionado Sr. E…, pessoa que os procurou, dando-lhes conta de que representava a sociedade proprietária do edifício onde se encontram depositados os bens apreendidos nos presentes autos.
2. Igualmente lhes deu conta esse Sr. E… de que essa sociedade sua representada já estaria na posse do imóvel e, por isso, interessada em adquirir os bens da Massa Insolvente pelo valor da proposta que lhes entregou e que estes fizeram chegar aos autos.
3. Ora, não obstante qualquer urgência que a venda dos bens possa revestir ou justificar, até pelo facto de se encontrarem em local pertencente a terceiros, a verdade é que não tendo sido obtida proposta de compra de valor pelo menos igual ao da avaliação existente, já que as únicas propostas apresentadas foram de valor inferior, sempre a Ex.ma A.I. deveria ter obtido prévio consentimento dos credores para a conclusão da venda, atento o disposto pelo art.º 161º do CIRE, por se tratar de acto com especial relevo para a Massa Insolvente.
4. Mais a mais, tendo a Ex.ma A.I. notificado a Insolvente para, nos termos do art.º 161º do CIRE, em cinco dias apresentar proposta de maior valor, se assim o entendesse, deveria ter concedido igual faculdade aos credores, não só para salvaguarda do princípio da igualdade de tratamento das partes processuais, mas, principalmente, por serem estes os verdadeiramente interessados na liquidação da Massa Insolvente e da qual dependem para ver satisfeitos os seus créditos.
5. Motivo pelo qual os aqui Requerentes agiram em prazo, no exercício de um direito que legalmente lhes assistia e em defesa da Massa Insolvente.
6. A desconsideração do então requerido pelos aqui Credores ao abrigo do n.º 5 do art.º 161º do CIRE, configurará, a nosso ver, uma nulidade processual por violação do princípio da igualdade do tratamento das partes, nulidade que é relevante já que é susceptível de poder influenciar o mérito da questão decidenda.
7. Como se vê, não deveria a Ex.ma A.I. concluir o processo de venda e emitir o título para transmissão dos bens sem o decurso do prazo de que dispunham as partes, neste caso os Credores e a Insolvente, para se pronunciarem sobre a proposta aceite ou, querendo, apresentarem propostas de maior valor.
8. Por último se dirá ainda que, como os bens não foram entregues ao proponente, nada obsta a que o Mmº Julgador proceda à anulação da venda, determinando que a mesma seja realizada em favor da proposta de maior valor, tudo em conformidade com disposto pelo art.º 161º/n.º 5 do CIRE e ainda al. d) do n.º 1 do art.º 839º do CPC.
9. Assim, ressalvando-se o devido respeito por entendimento contrário, deverá ser anulada ou ordenada sem efeito a venda realizada pela Ex.ma A.I., reconhecendo-se como legítimo e tempestivo o direito exercido pelos credores aqui Requerentes, admitindo-se como válida a proposta de compra por estes trazida aos autos pelo valor global de € 12.500,00 (doze mil e quinhentos euros)”.
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Sobre o assim impetrado o tribunal recorrido exarou o seguinte despacho:
A fls. 47 e ss. vieram os credores C…-Lda e D…, Lda. dar conta que, à data e hora da abertura de propostas para a transmissão dos bens móveis apreendidos sob as verbas 4 a 8, existiria um interessado na aquisição das referidas verbas por valor superior, o qual não foi considerado.
A fls. 49 e ss. a Sr.ª AI veio informar que o conhecimento da proposta agora em causa foi posterior à hora da adjudicação feita nos autos, pelo que, não é possível sustar ou suspender a venda uma vez que os bens foram devidamente transmitidos, sendo o ora requerido manifestamente extemporâneo.
Na sequência da resposta da Sr.ª AI vieram os credores C…-Lda e D…, LDA. invocar que a adjudicação, por valor mais baixo que o da avaliação, foi feita sem prévio consentimento dos credores, em violação do art.º 161.º, do CIRE, estando ferida de nulidade.
Cumpre decidir.
Nos presentes autos está em causa saber se a preterição da formalidade prevista no art.º 161.º, do CIRE, ou seja, se o facto de a Sra. AI não ter colhido parecer dos Credores previamente à adjudicação dos bens móveis por valor inferior ao da avaliação acarreta a nulidade dos actos que se seguiram à omissão em causa, nomeadamente, a nulidade da compra e venda.
Questão semelhante foi decidida no Acórdão da Relação do Porto, datado de 16-09-2014 (in www.dgsi.pt) onde se lê:
“De acordo com o disposto no artigo 161, nº1, do CIRE a prática de actos jurídicos, que assumam especial relevo para o processo de insolvência, depende do consentimento da comissão de credores, ou, se esta não existir, da assembleia de credores, sendo que o nº 2 “ apresenta índices de qualificação e o nº 3 tipos de actos que se presumem ter particular relevo”–cfr. Prof. Paula Costa e Silva, obra citada [ROA 65 ( 2005), 3, pág.740 tb acessível via internet] - Entende a apelante que, no caso concreto, no mínimo deveria ter sido obtida “a prévia concordância da comissão de credores ou do juiz para a concretização da venda, que atento o preço oferecido afecta, sem margem para dúvida, a ora credora”.
Coloca-se, assim, a questão de saber se o Administrador da Insolvência deveria ter comunicado à comissão de credores os elementos constantes da proposta antes de proceder à sua aceitação, mas, salvo sempre o devido respeito, cremos que não em face do preceituado no nº4 do referido normativo legal o qual só impõe tal comunicação quando a venda é efectuada na modalidade de negociação particular, permitindo, neste caso, o nº5 do referido normativo, que “a mesma seja sobrestada pelo juiz havendo requerimento do devedor ou de credor relevante nesse sentido e desde que o requerente demonstre a plausibilidade da alienação a outro interessado ser mais vantajosa para a massa insolvente “–cfr. Prof. Paula Costa e Silva, obra citada-
Mas mesmo que assim se não entendesse, o que não se concebe, a inobservância do preceituado no artigo 161.º não afectaria a venda levada a cabo pelo Sr. Administrador uma vez que o “ preceituado no artigo 163.º do CIRE privilegia a tutela daqueles que negoceiam com o Administrador, mesmo à custa dos interesses dos credores”–cfr. Acórdão desta Relação e secção de 21-05-2013, Relator José Carvalho, e tb. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada, pág. 547/548».
No mesmo sentido-de que a preterição do regime previsto no art.º 161.º, do CIRE não consubstancia nulidade-já se havia pronunciado anteriormente o Tribunal da Relação do Porto (21-05-2013, in www.dgsi.pt). Lê-se nesse aresto que «A inobservância do preceituado no artigo 161.º não prejudica a eficácia dos actos do administrador da insolvência, excepto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte (art. 163.º). Decorre da leitura desta norma que a venda por negociação particular nas situações em que as alienações constituam actos de especial relevo, sem prévia comunicação ao devedor e sem o prévio consentimento da assembleia de credores não se encontra ferida de nulidade. (…) a regra geral é a de que a violação da lei, traduzida na falta do consentimento necessário para a prática do acto, nos termos em que ocorreu, e de que o administrador devia munir-se, não afecta a eficácia do acto, o que significa a inoponibilidade do vício à contraparte. Só assim não será, precisamente, quando as obrigações que se projectam na massa e a vinculam excederem manifestamente as assumidas pela outra parte.” Acrescentam que a solução adoptada no artigo 163.º privilegia a tutela daqueles que negoceiam com o administrador, mesmo à custa dos interesses dos credores (obra citada, p. 542) [Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, 2008].
Também o Prof. Luís Menezes Leitão refere que a violação pelo administrador da insolvência das disposições contidas nos artigos 161.º e 162.º não prejudica a eficácia dos actos que pratique, excepto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte (Direito da Insolvência, 2009, p. 251)».
Ora, quer nas situações analisadas nos dois acórdãos citados, quer no caso ora em apreço, não se coloca o problema de obrigações assumidas pela Sra. Administradora da Insolvência. Assim sendo, não existe fundamento para a anulação da venda dos mencionados bens.
Note-se que, no entanto, como bem se diz na segunda decisão invocada “Isto não afasta a eventual responsabilidade do Sr. administrador da insolvência, que poderá responder pelos danos causados à devedora e aos credores (art. 59.º). Mas nos presentes autos apenas estava em causa a validade da venda por negociação particular, de um bem integrante da massa insolvente”.
Face ao exposto, indefere-se a nulidade invocada, declarando-se válida a adjudicação levada a cabo nos autos pela Sr.ª AI.
Sendo esta venda válida, entendemos que a segunda proposta é extemporânea, pois que posterior à adjudicação, não podendo a mesma ser considerada.
Custas pelos Credores C…-Lda e D…, Lda, que se fixam no mínimo legal.
Notifique”.
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Não se conformando com o assim decidido vieram os credores C…-Lda e D…, Lda interpor o presente recurso concluindo as suas alegações pela forma seguinte:
1.ª- À liquidação do património que integra a massa insolvente são supletivamente aplicáveis as regras da venda regulamentadas no Código de Processo Civil (vide art.º 17.º do CIRE).
2.ª- Razão pela qual no contexto de uma venda por negociação particular dos bens móveis apreendidos para a massa insolvente, se as propostas de compra existentes são de valor inferior àquele que foi fixado como o valor base, só por acordo dos credores ou com autorização judicial será possível concretizar a venda, não estando a AI munida dessa autorização ou da concordância dos credores, é nula a venda por si concretizada contra a lei, nos termos do art.º 195.º do CPC, pela violação da formalidade prescrita pelo disposto no art.º 816.º/2 e 821.º/3 do CPC, aplicável analogamente à disciplina recortada pelos arts. 832.º e 833.º do CPC.
Sem prescindir,
3.ª- O AI assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência, materializando-se esse poder dever na competência para promover a venda nas melhores circunstâncias que puder, tendo em conta o interesse dos credores em geral, face às regras do mercado, em cada momento, com o corolário natural da venda pelo melhor preço possível.
4.ª- Porque a Ex.ma Sra. AI, ao arrepio de todas as regras procedimentais da modalidade de venda por negociação particular, modalidade de venda que escolheu para concretizar a venda dos bens da massa insolvente, já que nenhuma norma a impedia de aceitar a formulação de proposta superior àquela que veio a aceitar no próprio ato de abertura de propostas, ao rejeitar a possibilidade de realizar um negócio mais vantajoso, em completa desarmonia com o mandato que lhe foi conferido pelo n.º 4 do art.º 81.º do CIRE, consequenciou um acto de venda nulo nos termos do art.º 195.º do CPC.
Ainda sem prescindir,
5.ª- É nulo o acto da venda pelo qual a Ex.ma Sra. AI, no decurso da venda por negociação particular, instituiu um prazo de cinco dias à Insolvente para que esta pudesse apresentar uma proposta superior (sem que para tal existisse uma obrigação legal) sem deixar de o fazer modo aos credores, já que o art.º 161.º do CIRE não impõe que se ouça o insolvente para, se assim o entender, realizar proposta superior, deixou de tratar de igual forma os credores (os principais interessados no resultado da venda).
6.º- Com tal conduta, a AI violou o princípio da igualdade das partes imposto aos intervenientes processuais e que decorre do preceituado pelo art.º 4.º do CPC, omitindo, assim, as formalidades nele prescritas-o que implica a nulidade do ato (a venda), por força do disposto no art.º 195.º do CPC, já que a desigualdade impediu a possibilidade de ocorrer uma venda em condições diferentes para melhor acautelar os interesses dos credores.
Novamente sem prescindir,
7.ª- Constitui um ato de especial relevo para a Massa Insolvente a decisão de venda do AI dos bens da massa insolvente por preço inferior a metade do valor base anunciado, estando esse acto sujeito ao consentimento dos credores.
8.ª- E as alienações que constituam actos de especial relevo por negociação particular devem ser comunicadas aos credores e ao devedor com a antecedência mínima de 15 dias da intenção de as realizar, contendo as informações acerca da identidade do adquirente e das condições do negócio.
9.ª- Porque o acto de venda impugnado pelos Recorrentes não cumpriu tais formalidades, resulta o mesmo tratar-se de acto ineficaz por violação do disposto pelo n.º 1 e 3 do art.º 161.º; n.º 1 e 4 do art.º 164.º do CIRE.
10.ª- Sendo a venda invalida, por ineficaz relativamente à massa insolvente, não pode a mesma produzir os seus efeitos.
11.ª- Pelo que deverá ser revogado o douto despacho aqui objecto de recurso e declarada a alienação dos bens da massa insolvente nula ou ineficaz.
Termos em que, e nos demais de Direito com o douto suprimento de Vossas Exas., deve:
a) Ser o presente recurso recebido e julgado procedente;
b) Consequentemente ser a decisão recorrida revogada.
Com o que assim se fará inteira
JUSTIÇA.
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Devidamente notificada contra-alegou a Massa Insolvente concluindo pelo não provimento do recurso.
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Foram dispensados os vistos.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação é apenas uma a questão que importa apreciar e decidir:
a)- saber se a venda por negociação particular dos bens móveis feita pela Srª Administradora da Insolvência devia, ou não, ser anulada por preterição de formalidades legais.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A matéria de facto a ter em conta para a decisão do recurso é que consta do relatório supra e que aqui se dá integralmente por reproduzida.
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III. O DIREITO

Como supra se referiu é apenas uma a questão que importa apreciar e decidir:
a)- saber se venda por negociação particular dos bens móveis feita pela Srª Administradora da Insolvência devia, ou não ser anulada por preterição de formalidade legais.
Importa porém, antes de avançar na apreciação da questão colocada, delimitar o objecto de recurso tendo aquilo que foi impetrado pelos recorrentes e aquilo foi decidido.
Efectivamente, como é sabido, os recursos destinam-se a permitir que um tribunal hierarquicamente superior proceda à reponderação da decisão recorrida, constituindo, assim, um instrumento processual para reapreciar questões concretas, de facto ou de direito, que se consideram mal decididas e não para conhecer questões novas, não apreciadas e discutidas nas instâncias, sem prejuízo das que são de conhecimento oficioso.
Entendimento, conforme com a natureza dos recursos e subjacente às regras que dimanam dos artigos 635.º e 639.º do CPCivil, tem sido afirmado pela doutrina e pela jurisprudência, com clareza e unanimidade.
Ora, nos requerimentos apresentados, sendo que, um deles foi objecto do despacho recorrido, os recorrentes circunscreveram a preterição das formalidades legais no âmbito do artigo 161.º do CIRE[1] (Código de Insolvência e Recuperação de Emepresa), tendo também sido sobre tal normativo que se moveu o despacho recorrido.
Como assim, o vertido nas conclusões 1ª a 4ª formuladas pelos recorrentes são, como nos parece evidente questões novas sobre as quais o tribunal recorrido não se pronunciou, estando, pois vedado o seu conhecimento a este tribunal já que o seu conhecimento não é oficioso, não obstante, nunca poderem ser procedentes como infra se analisará.
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Isto dito, no arquétipo legal do CIRE, cabe ao administrador da insolvência um lugar de particular destaque entre os Órgãos da Insolvência, definindo-se as suas competências na Secção I, do Capítulo II.
Entre as demais funções consignadas no artigo 55.º incumbe ao administrador da insolvência promover a venda dos bens do insolvente, tendo em vista o pagamento das dívidas do insolvente [alínea a), do n.º 1].
Tais funções são exercidas sob a fiscalização da Comissão de Credores ou, na falta desta, pela Assembleia de Credores, e pelo juiz do processo (artigos 55.º, n.º 5, 58.º e 68.º), sendo que, no exercício desse poder de fiscalização, o juiz pode, a todo o tempo, destituir o administrador da insolvência e substituí-lo por outro, se, ouvidos a comissão de credores, quando exista, o devedor e o próprio administrador da insolvência, considere, fundadamente, existir justa causa (artigo 56.º).
O administrador responde pelos danos causados ao devedor e aos credores da insolvência e da massa insolvente pela inobservância culposa dos deveres que lhe incumbem, sendo a sua culpa apreciada pela diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado (artigo 59.º, n.º 1). O administrador responde igualmente pelos danos causados aos credores da massa insolvente se esta for insuficiente para satisfazer integralmente os respectivos direitos e estes resultarem de acto do administrador (artigo 59.º, n.º 2).
No que concerne em particular à liquidação e ao contrário do que sucedia no CPEREF, o administrador dispõe mesmo da faculdade de escolher a modalidade da alienação dos bens que entender ser a mais adequada à maximização do produto da liquidação, que é o objectivo que está adstrito a prosseguir com zelo, podendo optar por qualquer das que são admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente, sem para o efeito depender de qualquer deliberação ou autorização dos credores (artigo 164.º, n.º 1)[2].
Ora, esta faculdade de escolha de modalidades de venda não reguladas no processo executivo tem inerente a possibilidade de o administrador de insolvência escolher formas atípicas de venda e de definir ele mesmo as regras a que a modalidade escolhida deve obedecer, nada obstando a que a modalidade escolhida seja, afinal, uma mistura de procedimentos próprios das modalidades típicas do processo executivo.
Como nos parece evidente, nessa escolha e definição o administrador deve optar, necessariamente, por aquelas que, de acordo com as circunstâncias concretas que se lhe deparam, se mostrarem mais aptas para optimizar o resultado da liquidação e a satisfação do interesse dos credores, tendo sempre presente o critério de um administrador criterioso e ordenado.
O administrador pode iniciar a venda de todos os bens apreendidos para a massa insolvente logo que a declaração de insolvência tenha transitado em julgado, tenha sido realizada a assembleia de apreciação do relatório e desde que as deliberações tomadas pelos credores na assembleia de apreciação do relatório não se oponham a essa venda (artigo 158.º).
Para a prática de alguns actos, pelo seu relevo económico, a lei exige, porém, que o administrador obtenha o consentimento da comissão de credores, ou, não existindo aquela, da assembleia de credores (artigo 161.º).
Segundo o artigo 161.º, nº 1, a prática de actos jurídicos, que assumam especial relevo para o processo de insolvência, depende do consentimento da comissão de credores, ou, não existindo aquela, da assembleia de credores. São, assim, actos que dependem de uma actuação conjunta de diversos órgãos da insolvência.
Apesar de a actuação do administrador da insolvência estar genericamente submetida à fiscalização da comissão de credores, a lei subordina a eficácia de certos actos jurídicos a prévio consentimento dos credores. Estamos perante a concessão de um poder de fiscalização prévia aos credores, que acresce ao poder geral, previsto no artigo 68.º, nº 1.
Mas que actos têm especial relevo?
Como refere Paula Costa e Silva[3] “A lei utiliza uma técnica mista de qualificação que visa, seguramente, conferir flexibilidade ao preceito. Por um lado, apresenta índices de qualificação no n.° 2 do art. 161, por outro, enuncia, no n.° 3 do mesmo preceito, tipos de actos que se presumem ter particular relevo. Isto implica ter especial relevo quer um acto relativamente ao qual se preencham os índices do n.° 2, quer um acto que se apresente como análogo àqueles que estão enunciados no n.° 3.
Tanto dos índices, quanto dos casos expressamente previstos, resulta que terão especial relevo actos que influenciem decisivamente o processo de insolvência, quer porque têm especial impacto na massa insolvente, quer porque repercutem efeitos no conjunto das dívidas da insolvência. Curiosamente, entre os actos que assumem especial relevo não se prevêem especificamente as actuações processuais”.
No que interessa aos autos, cabe à Comissão de Credores ou, não existindo esta, à Assembleia de Credores, dar o consentimento prévio para a prática de actos jurídicos que assumam especial relevo para o processo de insolvência, entre eles o da alienação de qualquer bem do insolvente por preço igual ou superior a € 10.000,00, que represente pelo menos de 10% do valor da massa insolvente à data da declaração da insolvência [art.º 161º, n.ºs 1, 2 e 3 al. g)].
No caso da alienação que seja considerada acto de especial relevo para efeitos do artigo 161º, ser feita por negociação particular, como aconteceu no caso em apreço, o Administrador da Insolvência deve comunicar à Comissão de Credores e ao Insolvente, com a antecedência mínima de 15 dias relativamente à data prevista para a transacção, a identidade do adquirente e todas as demais condições do negócio (n.º 4 do artigo 161.º do CIRE).
Podendo o juiz do processo sobrestar na alienação do bem e convocar a Assembleia de Credores para dar o seu consentimento a essa alienação, se tal lhe for requerido pelo Insolvente, ou por um credor ou grupo de credores cujos créditos representem, pelo menos um quinto do total dos créditos não subordinados, e resultar do requerimento que será plausível que a alienação a outro interessado se mostre mais vantajosa para a massa insolvente (n.º 5 do artigo 161.º).
Impondo-se ainda ao Administrador da Insolvência a obrigação de ouvir o credor com garantia real sobre o bem a alienar, sobre a modalidade de alienação, informando-o do valor base fixado ou do preço da alienação projectada a determinada entidade, credor esse que pode, no prazo de uma semana, propor a aquisição do bem por preço superior ao do valor base ou da venda projectada (n.ºs 2 e 3, do artigo 164.º do CIRE).
Perante este quadro normativo e trazendo à liça as regras do CPCivil sobre a invalidade da venda, seria de prever que o CIRE consagrasse regime idêntico à invalidade da venda em processo executivo, ficando a mesma sem efeito, nomeadamente, por a irregularidade cometida poder influir no exame ou decisão da causa [art.º 839º, n.º 1, c) por referência ao art.º 195º, ambos do CPCivil], ou melhor dito, se da irregularidade cometida se concluísse que a alienação do bem, pela forma que foi efectuada, seria prejudicial à massa insolvente e, consequentemente, aos interesses dos credores do insolvente.
Nessa perspectiva, a nulidade da venda pelo Administrador da Insolvência seria de se verificar, à semelhança, aliás, do que acontece com a venda em processo executivo, nos casos em que, por exemplo, “da falta de audição do exequente, do executado e dos credores com garantia sobre os bens a vender sobre a modalidade de venda e o valor base dos bens (art.º 812º, n.º1)”[4], nas situações de falta de consentimento prévio da Comissão de Credores ou da Assembleia de Credores quando a lei o exige, de falta de comunicação, no tempo devido, aos diversos interessados processuais da projectada venda e das suas condições negociais, nomeadamente, entre outros, ao credor com garantia real sobre o bem a alienar, etc..
Acontece que, o legislador do CIRE, pôs de lado todos os princípios que acima enunciámos relativamente à invalidade da venda em acção executiva e veio a consagrar, nos artigos 163.º e 164.º do CIRE, uma solução diversa em que é conferida excessiva protecção ao adquirente do bem em relação aos interessados processuais, em particular aos credores, mas também ao insolvente, desequilíbrio esse que é mitigado por via da ineficácia dos actos de alienação de bens que, violando o disposto nos art.º 161º e 162º, venham a gerar obrigações para a massa insolvente que excedam manifestamente as da contraparte, ou seja, do adquirente dos bens (art.º 163º, n.º1 do CIRE) e ainda pela responsabilização do Administrador da Insolvência nos termos do n.º 3 do art.º 164º, que fica obrigado a colocar o credor na posição que decorreria se alienação fosse pelo preço proposto pelo credor ou ainda, na falta de notificação ao credor garantido nos termos do n.º2 do art.º 164º do CIRE, na responsabilização do Administrador da Insolvência pelo diferencial entre o preço da alienação do bem e o do crédito garantido, deitando mão ao disposto no art.º 59º do CIRE.[5]
Por conseguinte, nessa situação devem distinguir-se os efeitos ao nível interno, isto é, entre o administrador, o insolvente e os credores, em que o administrador, para além de poder ser destituído, é chamado a responder pelas consequências da sua actuação ilícita e terá de indemnizar os danos resultantes para os credores, dos efeitos ao nível externo, isto é, ao nível das relações com terceiros, estranhos ao processo de insolvência, em que se mantém a validade e eficácia do acto praticado.
Destarte, a violação das formalidades legais previstas nos artigos 161º e 162º, não geram, só por si, a ineficácia da venda efectuada sem o cumprimento das mesmas, a menos que venha a gerar obrigações para a massa insolvente que excedam manifestamente as do adquirente do bem.
O mesmo acontecendo relativamente à violação do disposto nos n.ºs 2 e 3 do art.º 164º do CIRE, que gera apenas a responsabilização do Administrador da Insolvência nos termos acima referidos.
Isto, sem prejuízo de, em caso de colusão entre o Administrador da Insolvência e o adquirente do bem, poder considerar-se aplicável o disposto no artigo 281.º do Cód. Civil, declarando-se nulo o acto de venda.[6]
Não consagrando o CIRE meio processual para o efeito, tanto a pretensão de declaração de ineficácia dos actos do administrador da insolvência, deitando mão do disposto no n.º 1 do artigo 163.º do CIRE, como da sua responsabilização nos termos atrás expendidos, por violação do disposto nos n.ºs 2 e 3, do artigo 164.º do CIRE, têm que ser deduzidas em acção declarativa que correrá por apenso ao Processo de Insolvência[7] não podendo, assim, o juiz do processo decidir essa matéria de forma incidental, no processo principal.
Como se diz no Ac. desta Relação de 29/05/2014[8] “Feito este percurso pelas normas legais atinentes podemos assim concluir que fora dos casos em que o administrador está condicionado pelas deliberações dos credores e dependente do consentimento destes, onde se não inclui a escolha da modalidade da venda e dos procedimentos a adoptar para a sua concretização, o administrador tem competências próprias para proceder, de acordo com o seu critério, a todos os actos de venda dos bens da massa insolvente, podendo para o efeito, realizá-los conforme bem entender, designadamente no tocante às modalidades e formalidades a adoptar para concretizar a venda (negrito e sublinhados nossos).
O que os apelantes pretendem, por via do presente recurso, é que seja revogado o despacho recorrido, por a Srª. administradora da insolvência ter violado o princípio da igualdade (quando tendo notificado a insolvente para apresentar uma proposta para a venda dos bens invocando o artigo 161.º do CIRE não fez o mesmo em relação aos credores) e ainda a falta de comunicação a que se refere o artigo 161.º, nº 4 do CIRE.
Todavia, como acima se referiu a preterição dessas formalidades (assim como todas as restantes e das quais não se conheceu) não são, por si só, fundamento da declaração de ineficácia do acto de alienação dos bens nem de nulidade da dita venda, só podendo vir a ser declarada a ineficácia do acto relativamente à massa falida, nos termos do n.º 1 do artigo 163.º do CIRE se, em acção declarativa, a instaurar, nomeadamente pelo Apelante, for reconhecido que a violação do disposto nos art.º 161º e 162º do CIRE conduziu a um manifesto desequilíbrio entre as obrigações assumidas pelo Sr. Administrador da Insolvência e as do adquirente do bem.
Também o Prof. Luís Menezes Leitão[9] refere que a violação pelo administrador da insolvência das disposições contidas nos artigos 161.º e 162.º não prejudica a eficácia dos actos que pratique, excepto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte.
No caso, não se coloca o problema de obrigações assumidas pelo Sr. administrador da insolvência, inexistindo fundamento para a anulação da venda por negociação particular dos mencionados bens.
Não obstante o supra referido, isso não afasta a eventual responsabilidade do Sr. administrador da insolvência, que poderá responder pelos danos causados à devedora e aos credores (artigo 59.º). Mas, nos presentes autos apenas estava em causa a validade da venda por negociação particular, de bens integrados na massa insolvente. Forma
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Improcedem, desta forma todas as conclusões formuladas pelos recorrentes e, com elas, o respectivo recurso.
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IV-DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta improcedente por não provada e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
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Custas do recurso pelos apelantes (artigo 527.º, nº 1 do CPCivil).
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Porto, 30 de Janeiro de 2017.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais (dispensei o visto)
Jorge Seabra (dispensei o visto)
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[1] Diploma a que pertencerão todas as restantes normas citada sem menção de origem.
[2] No CPEREF, a escolha da modalidade da venda só podia recair numa das modalidades previstas no Código de Processo Civil (e subsequentemente teria de observar as respectivas regras) e dependia ainda da concordância da comissão de credores (artigo 181.º). O que como anota Maria do Rosário Epifânio, loc. cit., se enquadra “na tendência da desjudicialização do processo de insolvência e no correspectivo reforço dos poderes do administrador da insolvência”.
[3] In ROA 65 (2005), 3, pág.740 e ss.
[4] Cfr. Lebre de Freitas, a Acção Executiva à Luz do CPC de 2013, págs. 399.
[5] Cfr. CIRE Anotado, Carvalho Fernandes e João Labareda, 3ª Ed., págs. 612 e ss.
[6] Vide Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2ª Ed., pág. 331 e Heinrich Ewald Hörster. A Parte Geral do Código Civil Português, pág. 489.
[7] Cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada, 614 e 615.
[8] In www, dgsi.pt, relatado pelo ilustre Desembargador Aristides Almeida.
[9] Direito da Insolvência, Almedina, p. 251.