Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0654515
Nº Convencional: JTRP00040514
Relator: JORGE VILAÇA
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
PENSÃO DE INVALIDEZ
DESCONTOS
Nº do Documento: RP200707160654515
Data do Acordão: 07/16/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 308 - FLS. 127.
Área Temática: .
Sumário: Quando esteja em causa a realização coactiva da prestação alimentar em que o progenitor tenha sido condenado para com o filho menor, deve atender-se como valor de referência necessário a assegurar a auto-sobrevivência do devedor ao valor do rendimento social de inserção, que no subsistema de solidariedade social se assume como o mínimo dos mínimos compatível com a dignidade da pessoa humana.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I

Relatório

B…………….. interpôs recurso da decisão proferida no incidente de incumprimento de regulação do exercício do poder paternal a correr termos pelo …..º Juízo do Tribunal de Família e Menores do Porto que determinou o desconto mensal da quantia de € 99,76 na pensão de reforma, para pagamento das prestações vincendas a título de alimentos ao filho menor, e a quantia mensal de € 25,00 no complemento de pensão de reforma, para pagamento das prestações vencidas até perfazer a quantia de € 3.691,12, formulando as seguintes “CONCLUSÕES”:
1ª - Por sentença de 07 de Abril de 2006, determinou o Juiz “ a quo”, julgado procedente o incumprimento do poder paternal no montante global de € 3.691,12, fosse notificado o Instituto de Segurança Social para deduzir da pensão de reforma do Recorrente o montante mensal de € 99,76 (noventa e nove euros e setenta e seis cêntimos) para pagamento das prestações vincendas e fosse notificado o Banco C………….. para deduzir do complemento de reforma do Recorrente o montante mensal de € 25,00, para pagamento das prestações vencidas, até perfazer aquele montante total de € 3.691,12 (três mil seiscentos e noventa e um euros e doze cêntimos);
2ª - O Recorrente aufere mensalmente a pensão de reforma ilíquida no montante de € 236,01 e um complemento de reforma ilíquida no montante de € 225,10;
3ª - Recebe, assim, o Recorrente o montante mensal ilíquido total de € 461,11 para o seu sustento;
4ª - Conforme decorre do Relatório Social, a fls. 103 e segs daqueles autos, o Recorrente tem como despesas fixas mensais medicação, padecendo o mesmo de doença do foro cardíaco, o montante de € 30,00, água, luz, gás e telefone € 60,00 e de alimentação € 150,00;
5ª - Só com os encargos fixos, o Recorrente fica com o valor de € 221,11;
6ª - Cumprindo-se o despacho do qual se recorre ficaria o Recorrente com o valor de € 96,35 para viver!!;
7ª - O valor do salário mínimo nacional para o ano de 2005 é de 374,70 (DL 242/2004) e para o ano d 2006, atento o DL 238/2005, é de € 385,90;
8ª - Verifica-se que a pensão global de reforma do Recorrente é muito próxima do salário mínimo nacional e que o mesmo fica com uma quantia muito inferior ao salário mínimo – € 221,11, mesmo sem as deduções que o despacho de que se recorre determina;
9ª - Por outro lado e salvo melhor opinião, dever-se-á entender que as deduções terão que atender não a um vencimento ilíquido, um valor sobre o qual o Recorrente não recebe ou dispõe de facto, mas a um valor liquido de impostos e outras deduções legais – vide Ac. Da RP de 25/10/1994, in BMJ, pág. 546;
10ª - O despacho do qual se recorre, viola o princípio da dignidade humana contido em qualquer Estado de Direito;
11ª - Não se diga que se trata do cumprimento de prestação de alimentos;
12ª - De facto, não está aqui em causa, até porque o Recorrente não o permitiria, a falta de alimentos, vestuário ou condições escolares em relação ao seu filho menor, D……………..;
13ª - Mas da própria sobrevivência do Recorrente – doente crónico do foro cardíaco – e a sua dignidade humana que estão postas em causa;
14ª - A sentença do Tribunal “ a quo ” violou o principio constitucional da dignidade humana, devendo por isso ser revogada, isentando-se o Recorrente, por um período razoável, de o cumprir;
15ª - Ou caso assim não se entenda, serem os valores substancialmente reduzidos, por forma a garantir a sobrevivência do Recorrente em condições de dignidade.

II

- FACTOS
Na decisão recorrida foram considerados assentes os seguintes factos:
a) O requerido desde Outubro de 2002, inclusive, não paga a prestação de alimentos ao menor nos termos fixados;
b). O menor residiu com o pai desde Dezembro de 2003 a Abril de 2004;
c) O requerido recebe uma pensão de reforma no montante de € 236,01 processada pelo Instituto de Segurança Social do Porto, com sede na Rua António Patrício, n.º 262, 4150, Porto e complemento de reforma do Banco C……….., com sede na Rua ……………, n.º …., 4100-476, Porto, no montante de € 221,72.

III

- FUNDAMENTAÇÃO

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:

Nos termos do art.º 684º, n.º 3, do Código de Processo Civil, o objecto do recurso é limitado e definido pelas conclusões da alegação do recorrente.

No presente recurso discute-se, essencialmente, a questão de saber se com o cumprimento da decisão recorrida é violado o “princípio constitucional da dignidade humana”.

O agravante pretende que sejam considerados, também, encargos que invoca ter com medicação, água, electricidade, gás, telefone e alimentação, com base no relatório social.
Contrariamente ao defendido pelo agravante, a decisão recorrida considerou assentes todos os factos que se encontram demonstrados nos autos com relevância para a decisão.

Sendo o Relatório Social elaborado com base em entrevista individual com o requerido, desacompanho de outros meios de prova, nomeadamente, documentos ou testemunhas, bem andou a decisão recorrida ao não considerar quaisquer dos encargos alegados pelo requerido.
De acordo com o disposto no art.º 342º, n.º 2, do Código Civil, ao requerido cabia provar os factos impeditivos do direito invocado pela requerente.

Não se considerados os factos pretendidos pelo requerido/agravante, desde logo lhe falece razão sobre a questão levantada no recurso, uma vez que esta foi fundamentada em apenas passar a dispor de uma quantia próxima de ¼ do salário mínimo nacional após as deduções ordenadas.

Por sentença de 08-10-2001, transitada em julgado, que homologou acordo de do exercício do poder paternal respeitante ao menor D……………., nascido em 29/08/1989, filho da requerente e do requerido, ficou estabelecido que este contribuiria com o montante mensal de 20.000$00 (€ 99,76) a título de alimentos para o filho, a pagar até ao dia 5 de cada mês.

O requerido não cumpriu com tal pagamento, pelo que foi apurado estar em dívida o montante global de € 3.691,12.

Assim, consideramos que a decisão recorrida não merece censura ao ordenar o desconto da prestação mensal devida ao filho menor na pensão de reforma do requerido e o desconto da quantia mensal de € 25 no respectivo complemento de reforma, a título de pagamento da dívida referida, montante este que consideramos equitativo face aos rendimentos do requerido e ao montante em dívida, em sintonia com o disposto no art.º 189º da OTM.

O recorrente defende que com a decisão recorrida é violado o princípio constitucional da dignidade humana.

O Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 306/2005 (in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050306.html), analisando a jurisprudência daquele tribunal relativamente a impenhorabilidade do rendimento que não ultrapasse o salário mínimo nacional, ao discutir, como no caso vertente, “a extensão da “penhorabilidade” da pensão por invalidez do progenitor (e não de rendimento deste com outra proveniência) para satisfação da obrigação de alimentos ao filho menor (e não de qualquer outra obrigação alimentar)”defendeu que “não bastará, porque não seria adequado à repartição dos “custos do conflito” tal como ele, no plano constitucionalmente relevante, se apresenta perante a norma em apreciação, proceder à simples transposição da ponderação que foi feita e sumariamente se expôs quando estava em causa a satisfação de uma dívida indiferenciada. E não é adequado porque o elemento constitucional que aí foi decisivo (o princípio da dignidade da pessoa humana) não pode aqui ser lançado a um só prato da balança, uma vez que a insatisfação do direito a alimentos atinge directamente as condições de vida do alimentando e, ao menos no caso das crianças, comporta o risco de pôr em causa, sem que o titular possa autonomamente procurar remédio, se não o próprio direito à vida, pelo menos o direito a uma vida digna.”.
Do mesmo acórdão, que julgou inconstitucional, “por violação do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito, com referência aos n.ºs 1 e 3 do artigo 63.º da Constituição, a norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 189.º da Organização Tutelar de Menores, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, interpretada no sentido de permitir a dedução, para satisfação de prestação alimentar a filho menor, de uma parcela da pensão social de invalidez do progenitor que prive este do rendimento necessário para satisfazer as suas necessidades essenciais”, destacamos os excertos que nos parecem mais significativos e relevantes sobre a questão em apreço:
“O dever de alimentos a cargo dos progenitores, um dos componentes em que se desdobra o dever de assistência dos pais para com os filhos menores, não pode reduzir-se a uma mera obrigação pecuniária, quando se trata de ponderação de constitucionalidade dos meios ordenados a tornar efectivo o seu cumprimento. Ainda que se conceba o vínculo de alimentos como estruturalmente obrigacional, a natureza familiar (a sua génese e a sua função no âmbito da relação de família) marca o seu regime em múltiplos aspectos (v.gr. tornando o direito correspondente indisponível, intransmissível, impenhorável e imprescritível – cf. maxime o artigo 2008.º do Código Civil).
Mesmo quando já tenha sido objecto de acertamento judicial, isto é, quando corporizado, para o pai que não tem a guarda, numa condenação a uma prestação pecuniária de montante e data de vencimento determinados, do lado do progenitor inadimplente não está somente em causa satisfazer uma dívida, mas cumprir um dever que surge constitucionalmente autonomizado como dever fundamental e de cujo feixe de relações a prestação de alimentos é o elemento primordial. É o que directamente resulta de no n.º 5 do artigo 36.º da Constituição se dispor que os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos.
Os beneficiários imediatos deste dever fundamental são justamente os filhos, tratando-se de um daqueles raros casos em que a Constituição impõe aos cidadãos uma vinculação qualificável como dever fundamental cujo beneficiário imediato é outro indivíduo (e não imediatamente a comunidade). Assim, tal prestação é integrante de um dever privilegiado que, embora pudesse ser deduzido de outros lugares da Constituição [v.gr. do reconhecimento da família como elemento fundamental da sociedade (artigo 67.º) e da protecção da infância contra todas as formas de abandono (artigo 69.º)], está aqui expressamente consagrado, como correlativo do direito fundamental dos filhos à manutenção por parte dos pais. …
Não é, portanto, pela perspectiva da garantia contida no artigo 62.º da Constituição, aplicável aos direitos de crédito, que a posição do filho, credor da prestação de alimentos, deve ser observada no momento da compatibilização prática com a salvaguarda do princípio da dignidade da pessoa do progenitor afectado pela dedução no seu rendimento periódico para realização coactiva do direito daquele.
Por isso se entende que o critério de comparação com o salário mínimo nacional não é o adequado para determinar a “proibição constitucional de penhora” nesta situação em que (na medida inversa da protecção ao devedor) também o princípio da dignidade da pessoa do filho pode ser posto em causa pelo incumprimento, por parte do progenitor, de uma obrigação integrante de um dever fundamental para com aquele. Não é critério que neste domínio possa ser eleito, como regra geral, pelas consequências incomportáveis no plano social e pelo significativo esvaziamento do conteúdo do direito-dever consagrado no n.º 5 do artigo 36.º da Constituição que implicaria. …
Deste modo, o critério de determinação da parcela do rendimento do progenitor que não pode ser afectado ao pagamento coactivo da prestação de alimentos devidos ao filho não pode alcançar-se por equiparação ao montante do salário mínimo nacional, montante este que pode servir de referencial quando os “custos do conflito” se hão-de repartir, em sede constitucional, entre a preservação de um nível de subsistência condigna do devedor e a garantia do credor à satisfação do seu crédito, tutelada pelo artigo 62.º, n.º 1 da Constituição, mas não quando entram em colisão o dever e o direito correlativo de manutenção dos filhos pelos progenitores, situação em que, de qualquer dos lados, fica em crise o princípio da dignidade da pessoa humana, vector axiológico estrutural da própria Constituição. De um modo ainda aproximativo, pode reter-se a ideia geral de que, até que as necessidades básicas das crianças sejam satisfeitas, os pais não devem reter mais rendimento do que o requerido para providenciar às suas necessidades de auto-sobrevivência.”.

Aquele acórdão acaba por considerar que se deverá ter presente, para o efeito, quanto estejam em confronto os mesmos direitos a que referem os presentes autos, “a garantia do direito a uma sobrevivência minimamente condigna ou a um mínimo de sobrevivência”, chamando a atenção para o facto de que “a consagração do rendimento social de inserção corresponde à realização, na sua dimensão positiva, da garantia do mínimo de existência.”.
Acaba o Tribunal Constitucional por firmar o entendimento de que, quando esteja em causa a realização coactiva da prestação alimentar em que o progenitor tenha sido condenado para com filho menor, se deve atender como valor de referência necessário a assegurar a auto-sobrevivência do devedor o “valor do rendimento social de inserção, que no subsistema de solidariedade social se assume como o mínimo dos mínimos compatível com a dignidade da pessoa humana”.

Chama-se a atenção para o facto de que o acórdão que temos vindo a seguir contém dois votos de vencido no sentido de se oporem ao juízo de inconstitucionalidade por considerarem que “no conflito entre dois direitos de igual natureza, não pode fazer prevalecer-se o direito do titular que, simultaneamente, está adstrito, como se escreveu no acórdão, ao “dever fundamental (...) de cujo feixe de relações a prestação de alimentos é o elemento primordial”. O julgamento de inconstitucionalidade equivale, no fundo, por um lado, a dispensar do pagamento de alimentos o progenitor que, na acção própria, foi condenado a prestá-los, assim inutilizando a avaliação que, pela via adequada, se fez quanto à sua capacidade de os prestar; note-se, aliás, que a sentença de condenação na prestação de alimentos pode ser alterada, nomeadamente por modificação da possibilidade de os prestar por parte do correspondente obrigado.”.

Considerando que o requerido, após as deduções ordenadas na decisão recorrida, mantém um rendimento superior ao rendimento social de inserção, concluímos pela inexistência da apontada inconstitucionalidade.

Em suma, o recurso terá de improceder.

IV

Decisão

Em face de todo o exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso de agravo e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.

Custas pelo agravante.

Porto, 16 de Julho de 2007
Jorge Manuel Vilaça Nunes
Abílio Sá Gonçalves Costa
António Augusto Pinto dos Santos Carvalho