Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9238/13.0TDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: BORGES MARTINS
Descritores: CRIME DE ESCRAVIDÃO
BEM JURÍDICO
Nº do Documento: RP201512099238/13.0TDPRT.P1
Data do Acordão: 12/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - No crime de escravidão, p.p. pelo art.º 159.º a) CP, não está apenas em causa a exploração do ser humano, feita por outro, mas abrange todas as formas de servidão humana.
II - O bem jurídico protegido por tal incriminação é o interesse da sociedade no reconhecimento e salvaguarda da personalidade individual de toda a pessoa humana.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Comum Colectivo 9238/13.0TDPRT.

Porto - Inst. Central – 1.ª Secção Criminal – J6.

Nos presentes autos, foi exarada que, entre outros, condenou B… e C… como autores, em concurso real, de três crimes de escravidão, p. e p. no art.º 159, al. a) do CP, na idêntica pena de cinco anos e seis meses de prisão por cada um deles; e, em cúmulo jurídico, nos termos do disposto no art.º 77.º do CP, na idêntica pena de sete anos de prisão.

Recorreram estes dois arguidos, em síntese, aquele arguido alegando erro notório na apreciação da prova e impugnando o juízo da matéria de facto, nos termos do disposto no art.º 412.º, ns. 3 e 4 do CPP; nulidade de sentença, prevista no art.º 379.º, n.º 1, al) a do CPP; na procedência da alteração reclamada, evidencia-se a não integração do tipo; esta arguida, também impugnando o juízo da matéria de facto, nos termos do disposto no art.º 412.º, ns. 3 e 4 do CPP e invocando nulidade de sentença, prevista no art.º 379.º, n.º 1, al) a do CPP, por violação do disposto no art.º 374.º, n.º 2 do CPP.
Entende ainda a recorrente que a matéria apurada não permite integrar os elementos do tipo; invoca a necessidade de atenuar especialmente as penas, nos termos do disposto no art.º 72.º, n.º 2, als. a) e d) do CP, para um ano as parcelares e a unitária fixada em dois anos e meio de prisão. Alega para tal o terem decorrido mais de onze anos depois da prática dos factos, ser reduzida a culpa da recorrente e a sua situação familiar.
Respondeu o MP, alegando, em síntese, quanto ao primeiro recurso, inexistir qualquer vício previsto no art.º 410.º, n.º2 do CPP ou qualquer nulidade de sentença; não ter o recorrente cumprido os ónus previstos no art.º 412.º, ns. 3 e 4 do CPP – pelo que relativamente a ele deverá manter-se inalterado o juízo da matéria de facto; e quanto ao segundo, a verificação também desta última circunstância; inexistência da apontada nulidade sentença; correcta subsunção dos factos ao tipo.

Recorreu também o MP, pretendendo a elevação das penas de prisão com que os dois arguidos foram condenados, particularmente a pena única para nove anos de prisão.
Relativamente a este recurso, entendeu o Exmo PGA junto deste Tribunal da Relação não merecer o mesmo provimento, devendo ter-se em consideração o facto de os arguidos serem delinquentes primários; concordar com teor da Resposta, relativamente aos recursos dos arguidos, e não ter deparado com erro algum no julgamento da matéria de facto.
Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417.º, n.º2 do CPP, não ocorrendo resposta.
Colhidos os Vistos, importa decidir.

Foi a seguinte a fundamentação de facto da decisão recorrida:

2.1. Os factos.
2.1.1. Factos provados.
Discutida a causa resultou provada a seguinte matéria de facto:
2.1.1.1-Factos gerais e comuns
Dadas as dificuldades económicas e sociais que afectam Portugal, nomeadamente a verificação de elevado número de desempregados, muitos portugueses, passaram a emigrar para Espanha em busca de melhores condições de vida.
Assim, nos últimos anos, muitas pessoas provenientes de Portugal, foram aliciadas para trabalharem em Espanha, mediante a oferta de trabalho agrícola, bem remunerado e em condições vantajosas, através de contactos pessoais.
Com este fenómeno foram constituídos grupos organizados de cidadãos, a maioria de nacionalidade portuguesa, que encaminham, controlam e exploram os trabalhadores que vão trabalhar em Espanha.
Estes grupos através de formas de intimidação aterrorizam os trabalhadores visando obter, à sua custa e contra a sua vontade, lucros patrimoniais, que sabem não lhes serem devidos.
Os arguidos B… e C…, nos termos abaixo descritos, trataram do transporte para Espanha, em veículos automóveis, dos trabalhadores que recrutaram até às localidades onde iam prestar o seu trabalho agrícola.
Uma vez em Espanha, os trabalhadores eram colocados a trabalhar, desconhecendo as respectivas condições de trabalho e sem qualquer garantia de que lhes fossem assegurados os seus direitos laborais.
Os arguidos B… e C…, recorreram à intimidação e privação da liberdade dos trabalhadores.
Aproveitando a circunstância de aqueles já se encontram fragilizados pela própria condição de emigrantes e trabalhadores e estarem longe das suas famílias.
Temendo pela sua integridade física e vida, as vítimas, em geral, não apresentavam queixa às entidades policiais competentes nem denunciavam esta situação.
Mesmo na presença das autoridades policiais, as vítimas e testemunhas revelavam medo e receio de poderem vir a sofrer represálias por parte dos membros do grupo.
Os arguidos B… e C… actuavam de comum acordo, em conjugação de esforços, de forma concertada, com distribuição de tarefas entre si, na execução de um plano devidamente delineado visando um enriquecimento ilegítimo, e ganhos patrimoniais para ambos.
Utilizando, em território espanhol um regime de intimidação, alicerçados num medo omnipresente, sendo a distância e o isolamento elementos presentes e quotidianos.
E os ofendidos coarctados na sua liberdade de movimentos porque não se podiam mover em espaços por si escolhidos, sempre vigiados pelos arguidos B… e C…, que lhes geravam um regime de intimidação, lhes subtraiam os seus documentos pessoais e se apropriavam de pelo menos parcialmente de toda e qualquer remuneração, salário ou importância em dinheiro que tivessem direito a receber.
Os proprietários espanhóis das “D…” suportavam a remuneração média de 30,00/40,00€, como contrapartida pela prestação laboral diária por cada trabalhador, sendo que a entidade empregadora entregava as remunerações devidas directamente ao fornecedor da mão-de-obra, limitando-se este a reter a totalidade das retribuições.
Apesar de manifestarem o desejo de regresso a território nacional, os trabalhadores eram coagidos a permanecer em Espanha perante as constantes ameaças de que eram vítimas.
Os arguidos B… e C…, recrutavam, transportavam e arranjavam trabalho directamente e com recurso a intermediários.
Num primeiro contacto, aos trabalhadores recrutados é-lhes prometido um vencimento diário que varia entre 25,00/40,00€, incluindo alimentação e transporte para as localidades onde iriam prestar serviço.
O alojamento e a alimentação eram efectuadas em casas dos arguidos B… e C…, ou por eles arrendadas, que não possuíam o mínimo de condições de higiene e, que, regra geral, eram espaços exíguos onde também habitavam, igualmente, entre oito a dez trabalhadores, o patrão e seus familiares.
As refeições eram preparadas pela arguida C…, sendo o arguido B… que efectuava o transporte para o campo, e a estadia, alimentação, transporte e o trabalho era por eles controlado.
Os arguidos B… e C… pagavam aquilo que muito bem entendiam aos trabalhadores, alguns deles conseguindo apenas que, diariamente, lhe entregassem um maço de tabaco e o pagamento de bebidas.

2.1.1.2-Factos relativos ao arguido E…

Na busca efectuada, no dia 25.04.2005, à residência sita no …, …, pertencente a F…, e onde vivia o arguido E…, composta por três quartos, uma casa de banho, uma sala e uma cozinha, conforme consta do auto de busca e apreensão junto a fls. 845 dos autos, foram encontradas e apreendidas:
- no quarto, onde dormia o arguido E…, mais concretamente no armário ali existente, cinco cartuchos nº 6 e duas pistolas de calibre 6,35 mm, adaptadas, uma delas com carregador com sete munições de calibre 6,35 mm, que, devidamente examinadas, foram identificadas como sendo uma pistola transformada da marca …, de modelo .., originariamente de alarme mas, como resultado de transformação artesanal, actualmente apta para o disparo de munições de calibre 6,35 mm …, não apresentando qualquer número de série, mas apresenta as inscrições originais de fábrica, embora posteriormente adulterados de modo a fazer crer tratar-se de arma de calibre 6,35 mm, possuindo cano toscamente estriado, medindo cerca de 6 cm e está em razoável estado de conservação, com acabamento a pintura de óleo preto fosco e aparenta estar em bom estado de funcionamento; uma pistola transformada da marca …, de modelo …, originariamente de alarme mas, como resultado de transformação artesanal, actualmente apta para o disparo de munições de calibre 6,35 mm …, não apresentando qualquer número de série e foram removidas as inscrições originais de fábrica e gravados os algarismos 635, de modo a fazer crer tratar-se de uma arma de calibre 6,35 mm, possuindo cano toscamente estriado, medindo cerca de 6 cm e está em razoável estado de conservação, com acabamento a pintura de óleo preto fosco, dotado de carregador original, e aparenta estar em bom estado de funcionamento, conforme consta do auto de exame directo de fls. 851 e seguintes dos autos.
- Na sala, e pertença do arguido E…, foram encontrados e apreendidos 8 (oito) cartuchos n.º 6, quatro (4) munições de calibre 6,35 mm, um facalhão de cozinha, com cabo preto e cuja lâmina mede cerca de 22 cm de comprimento, o punhal, integralmente em liga metálica, cuja lâmina mede cerca de 16 cm de comprimento, uma das navalhas é integralmente em liga metálica e a lâmina mede cerca de 10 cm de comprimento;
- Outra das navalhas, com cabo em material de plástico, madrepérola, em tons de … e cuja lâmina mede cerca de 16 cm de comprimento, outra navalha integralmente em liga …, cuja lâmina mede cerca de 11,5 cm de comprimento, uma faca com cabo de … de cor … e cuja lâmina mede cerca de 10 cm de comprimento e um punhal, com cabo …, …, cuja lâmina mede cerca de 16 cm de comprimento, com respectiva bolsa, em material tipo …, de cor …, conforme consta do auto de exame directo junto a fls. 856 e seguintes dos autos;

2.1.1.3-Factos relativos ao ofendido G…

No dia 26 de Janeiro de 2004, o ofendido G…, foi abordado por um conhecido seu, de nome H…, residente na Rua …, n.º …, …, nesta cidade e comarca, propondo-lhe a ida para Espanha, para trabalhar na manutenção de máquinas.
O referido H… transmitiu ao ofendido G… que teria de permanecer em Espanha, durante alguns meses, recebendo diariamente a quantia de €40,00 tendo ainda incluído alojamento, transporte e alimentação, descontando 10 € por dia para a alimentação.
O ofendido G… entendeu aceitar tal proposta e, na data, hora e local previamente acordadas apareceu um indivíduo, o ora arguido B…, ficando a saber que aquele era o indivíduo que o iria transportar para Espanha, bem como a I…, e seria quem lhes conseguiria o trabalho.
O arguido B…, confirmou, as condições da prestação laboral que haviam sido as referidas pelo H….
Na deslocação para Espanha, fizeram-se transportar num veículo automóvel, da marca Mercedes-Benz, de nove lugares, de cor … e com a matrícula ..-..-OU, propriedade do arguido B…, com destino á residência deste, sita em Murça, que era de cor …/…, situada à face da E.N., num dos extremos desta cidade.
Nessa noite dormiu naquela residência, e, no dia seguinte, reiniciaram a viagem para Espanha, passando ainda pela residência da irmã e pais da arguida C…, sita em …, Alfândega da Fé.
Chegou o ofendido a …, localidade que dista cerca de doze quilómetros de … e cerca de cinquenta de cinco quilómetros de …, no dia 29 de Janeiro de 2004
Aí vieram a instalar-se na residência do arguido B….
A 30 de Janeiro de 2004, ao ofendido G… foi dado conhecimento que o tipo de trabalho a prestar não era aquele que acordara em Portugal, porquanto teria de trabalhar no serviço agrícola, na poda.
Assim, o ofendido G…, como os restantes trabalhadores, iniciava o seu trabalho, cerca das 06h00, sendo transportados no veículo Mercedes … pelo arguido B… para as vinhas, cuja localização variava, e pertenciam a espanhóis, passando o dia na poda.
O referido ofendido parava para almoçar, cerca das 13h00, abandonava as vinhas, deslocando-se para à residência do arguido B…, onde lhe era servida uma refeição, retomando o trabalho pelas 14h00, terminando ao fim do dia, altura em que regressavam à residência daquele arguido, onde era servido o jantar.
As refeições eram, a maior parte das vezes, constituídas por ossos rapados com massa ou arroz.
O arguido B… não permitia ao ofendido G… e aos outros, o acesso ao WC, pelo que quando precisavam de satisfazer as necessidades fisiológicas, tinham de se dirigir ao monte, e só lhe era permitido tomar banho uma vez por semana, quase sempre ao domingo.
Nas quintas, quando da prestação do serviço agrícola, o arguido B… exercia uma vigilância constante sobre o referido ofendido e os demais trabalhadores.
O trabalho agrícola era efectuado, em qualquer condição climatérica.
Face a tais condições, de modo frequente, era solicitado ao arguido B… o regresso a Portugal, porém, este não acedia, não permitindo que algum trabalhador abandonasse o trabalho antes de acabar a campanha.
Em Fevereiro de 2004, o arguido B… regressou temporariamente a Portugal, passando as actividades dos trabalhadores a ser controladas por indivíduos de nomes J… e L….
Era a arguida C…, na ausência do companheiro, o arguido B…, quem orientava a prestação de trabalho na residência, dividindo o trabalho a efectuar por todos os trabalhadores, sendo que neste período de tempo, eram os proprietários espanhóis que asseguravam o transporte, quer á ida quer á vinda, das quintas.
No lapso de tempo que ali permaneceu, o G…, presenciou tentativas de fuga de trabalhadores, porém, o arguido B…, assim que se apercebia de tal, de imediato, iniciava a perseguição, no seu veículo automóvel, procedendo á recolha e transporte dos mesmos para a residência.
O ofendido G… solicitou algumas vezes aos arguidos B… e C…, que permitissem o seu regresso Portugal, o que recusaram.
No dia 4 de Julho de 2004, o ofendido G…, foi conduzido pelo arguido B…, juntamente com o J… à estação ferroviária de …, situada a cerca de vinte quilómetros da residência, no veículo automóvel pertença do arguido.
Na estação em causa, o arguido B… entregou, ao ofendido G…, um rolo de notas do Banco Central Europeu, no montante de €900.
O ofendido G… teve que pagar a viagem de regresso do seu próprio bolso.

2.1.1.4-Factos relativos ao ofendido I…

O ofendido I…, no dia 26 de Janeiro de 2004, foi contactado pelo seu amigo H…, residente no Porto, propondo-lhe ir trabalhar, no serviço agrícola, na poda das vinhas, para Espanha.
O tal H… deu-lhe conhecimento que teria de permanecer em Espanha, por alguns meses, recebendo diariamente a quantia de €40,00 tendo ainda incluído alojamento, transporte e alimentação, descontando 10 € por dia para a alimentação.
O ofendido I… aceitou essa proposta, ficando acordado que iriam encontrar-se para iniciarem a viagem até Espanha, a fim de começar a trabalhar no serviço agrícola.
No dia, hora e local, previamente, acordados, o ofendido I… encontrou-se com o H…, que se encontrava na companhia do arguido B…, e de um indivíduo que veio a conhecer como G…, sendo que o arguido os ia transportar para Espanha e ali arranjar-lhes emprego no serviço agrícola.
Ali, o arguido B… confirmou ao ofendido I… as condições de prestação laboral que o H… havia mencionado pelo que iniciaram a viagem par Espanha, circulando num veículo automóvel da marca Mercedes-Benz, de cor …, com a matrícula ..-..-OU, pertencente e conduzida pelo arguido B…, acabando todos por pernoitar em Murça, na residência do arguido, uma vivenda de cor … ou …, situada num dos extremos dessa cidade, junto da ….
Ali já se encontrava, a aguardar a chegada do arguido B… e acompanhantes, um outro trabalhador, que os iria acompanhar para Espanha, assim como a mulher do arguido B…, a arguida C….
Na manhã do dia seguinte prosseguiram a viagem até Espanha, passando ainda pela residência da irmã e pais da arguida C…, continuando a viagem, agora acompanhados de mais outros trabalhadores, de nomes J…, L… e outro de identidade que se desconhece.
Chegou o ofendido I… a …, localidade que dista cerca de doze quilómetros de … e cerca de cinquenta de cinco quilómetros de …, no dia 29 de Janeiro de 2004
Aí vieram a instalar-se na residência do arguido B….
O ofendido I… iniciou o seu trabalho a dia 17 de Fevereiro de 2004, sendo que tinha de sair de casa pelas 06h00, deslocava-se para as vinhas, que eram propriedade de cidadãos espanhóis, transportado pelo arguido B…
O referido ofendido parava para almoçar, cerca das 13h00, abandonava as vinhas, deslocando-se para à residência do arguido B…, onde lhe era servida uma refeição, retomando o trabalho pelas 14h00, terminando ao fim do dia, altura em que regressavam à residência daquele arguido, onde era servido o jantar.
A alimentação era, normalmente, constituída por ossos rapados com massa ou arroz
Para satisfazer as necessidades fisiológicas tinha de se deslocar para o monte, porquanto o arguido B… não lhe permitia o acesso ao WC, que ali existia, e somente lhe era permitido tomar banho apenas uma vez por semana, normalmente, ao domingo.
Quando o ofendido I… se encontrava nas D… nos serviços agrícolas, era o arguido B… que exercia uma vigilância constante sobre aquele e os restantes trabalhadores.
O trabalho agrícola era efectuado, quaisquer fossem as condições climatéricas.
Sempre que o referido ofendido e os demais, solicitavam ao arguido B… para regressar a Portugal, este recusava com o argumento que ninguém abandonava a actividade laboral, até terminar a campanha.
Em Fevereiro de 2004, o arguido B… regressou temporariamente a Portugal, passando as actividades dos trabalhadores, a serem controladas pelo J… e pelo L…
Ocorrendo uma situação fora da normalidade, o J… e o L… davam conta à arguida C…, que ali havia ficado.
Estando ausente o arguido B…, era a arguida C… que orientava a prestação de trabalho na residência, distribuindo o trabalho pelos trabalhadores, sendo que, neste período, eram os proprietários espanhóis que asseguravam o transporte, quer á ida quer á vinda, dos trabalhadores para o trabalho agrícola desenvolvido nas vinhas.
Enquanto ali permaneceu, o ofendido I…, assistiu a tentativas de fuga dos trabalhadores, sendo que o arguido B…, assim que se apercebia de tal situação, iniciava, de imediato a perseguição, no seu veículo automóvel, e após localizá-los recolhia-os e transportava-os para a residência.
Na sequência da fuga, ocorrida em Maio de 2004, um trabalhador de nome M… dirigiu-se á polícia local, a quem participou a situação a que estavam a ser sujeitos, tendo alguns elementos policiais comparecido na residência do arguido B…, à noite.
O arguido B… não esteve presente nessa altura.
Os elementos policiais que se faziam acompanhar do M…, retiraram, de imediato, os residentes para o monte e questionaram se havia algum problema, alguém insatisfeito ou com quaisquer queixas a fazer.
Quando o G… se preparava para denunciar as condições em que se encontravam, de verdadeira escravatura, foi impedido pelo L…, pois este, sem que os elementos policiais se tivessem apercebido, encostou-lhe uma navalha à zona do abdómen.
Perante tal ameaça, o G… nada disse, o mesmo aconteceu com o ofendido I… e os demais, tendo aqueles elementos policiais abandonado o local na companhia do M…, que regressou a Portugal.
No mês de Junho de 2004, em dia indeterminado, o arguido B… aceitou o regresso a Portugal de todos os trabalhadores, a efectuar um a um e em dias diferentes.
Em 6 de Julho de 2004, o I… foi transportado pelo arguido B… à estação ferroviária de …, que fica situada a cerca de vinte quilómetros, da localidade onde se encontrava, e uma vez ali, o arguido B… entregou-lhe 550 €, em notas do Banco Central Europeu, dizendo que aquela quantia correspondia á retribuição pelo seu trabalho agrícola.
O ofendido I…, tinha direito ao pagamento duma quantia não inferior a €2.650, já descontando o tabaco e cerveja, que consumira, pela remuneração dos serviços prestados.
O veículo automóvel da marca Mercedes-Benz, de cor verde, com a matrícula ..-..-OU, utilizado para a angariação e transporte dos trabalhadores para Espanha, encontra-se registado em nome do arguido B…, conforme registo do certificado de registo automóvel junto, que aqui se dá por reproduzido.
O ofendido G… esteve registado, na segurança social espanhola, com inscrição em 02 de Junho de 2004 e, como períodos de trabalho, registado, nas datas de 02 de Junho de 2004 a 03 de Junho de 2004, 12 de Junho de 2004 a 15 de Junho de 2004, 16 de Junho de 2004 a 17 de Junho de 2004, 24 de Junho de 2004 e 23 de Fevereiro de 2005, como resulta dos documentos de fls. 2147 e segs. dos autos, que aqui se dão por reproduzidos.
O ofendido I… esteve registado, na segurança social espanhola, com inscrição em 02 de Junho de 2004 e, como períodos de trabalho, registado, nas datas de 02 de Junho de 2004 a 03 de Junho de 2004, 12 de Junho de 2004 a 15 de Junho de 2004, 16 de Junho de 2004 a 17 de Junho de 2004, 24 de Junho de 2004 e 23 de Fevereiro de 2005, como resulta dos documentos de fls. 2152 e segs., que aqui se dão por reproduzidos

2.1.1.5-Factos relativos ao ofendido M…
O ofendido M…, em data não apurada do mês de Dezembro de 2003, foi abordado pelo arguido B… que lhe propôs trabalhar em Espanha, na actividade agrícola.
Referiu-lhe o arguido B… que teria de permanecer em Espanha para as campanhas da poda, auferindo a remuneração diária de €25, incluindo, nomeadamente alojamento e alimentação.
O ofendido M… por aceitar tal proposta, ficando acordado que alguns dias depois se encontrariam para iniciarem o percurso para Espanha.
Conforme o acordado, o arguido B…, passados alguns dias, apareceu tendo ambos seguido viagem para a residência do arguido, situada em Murça, onde se encontrava a arguida C…, mulher do arguido, e onde acabaram por pernoitar.
Uns dias depois, o arguido B… voltou a aparecer acompanhado da arguida C… e de mais cinco trabalhadores, de nacionalidade portuguesa, de nomes G…, I…, H…, todos naturais do Porto, e J….
Nesse mesmo dia não apurado do mês de Janeiro de 2004, fazendo-se transportar no veículo automóvel acima referido, da marca Volkswagen, iniciariam a viagem para Espanha, onde chegaram, à localidade de ….
Nesta localidade ficaram alojados na residência do arguido B….
Iniciado que foi o trabalho agrícola, o ofendido M… saía da residência cerca das 07h00, deslocando-se, no veículo automóvel, conduzido pelo arguido B…, para as vinhas, cuja localização variava, propriedade de indivíduos de nacionalidade espanhola, onde passavam o dia na poda e a arrancar videiras.
Paravam cerca das 13h00, para almoçar na residência do arguido B…, retomando o trabalho pelas 14h00, e terminando pelas 18h00, altura em que retornavam à residência do mesmo, onde lhes era servida, como jantar, um prato de ossos rapados com massa ou batata.
O ofendido M… de satisfazer as necessidades fisiológicas no monte, porque o arguido B… não lhe permitia o acesso ao WC, e somente lhe era permitido tomar banho uma vez por semana, normalmente, ao domingo.
Era o arguido B… quem, nas vinhas, fiscalizava o trabalho do ofendido M… e demais trabalhadores, e quando tinha de se ausentar, dava ordens expressas ao J… e ao L…, para que tal tarefa fosse desempenhada por eles.
O arguido B… intimidava o ofendido M… mediante a utilização de uma bengala, a que chamava “…”, pois independentemente das condições climatéricas, o arguido obrigava os trabalhadores a efectuar o trabalho agrícola.
Durante a campanha agrícola, o M… solicitou ao arguido B…, para regressar a Portugal, o que este recusava.
Durante o mês de Fevereiro, o arguido B… regressou a Portugal, temporariamente, passando as actividades agrícolas a ser fiscalizadas pelo J… e L….
Devido às péssimas condições de trabalho e de vida que lhe eram proporcionadas, e ainda pelo facto de ver recusado o seu regresso a Portugal, o ofendido M… resolveu fugir do local onde se encontrava, sendo que na primeira vez não teve sucesso.
Foi perseguido e recolhido pelo arguido B….
Após ter sido localizado, foi o ofendido M… obrigado a entrar no veículo automóvel em que o arguido B… e fazia transportar, e conduzido para a residência onde se encontrava, e pertencente ao arguido B….
Ali, o arguido B… disse ao ofendido M… que se tentasse fugir outra vez que o metia debaixo de terra.
À segunda tentativa, o ofendido M… conseguiu concretizar a fuga, e chegado á localidade mais próxima, dirigiu-se ao posto da polícia, onde deu conhecimento do que se estava a passar.
Perante isso, os elementos policiais, na companhia do ofendido M…, deslocaram-se à residência do arguido B…, que não se encontrava presente, tendo questionado os trabalhadores que ali se encontravam, sobre as condições em que os mesmos se encontravam.
Porém, face ao clima de intimidação, nenhum dos restantes trabalhadores referiu as condições de trabalho e de vida em que se encontravam, receosos da sua integridade física.
A arguida C…, face á intervenção policial acima descrita entregou ao ofendido M… cerca de metade da quantia oferecida pelo trabalho prestado, em notas do Banco Central Europeu, como parte da retribuição devida pelo seu trabalho, não tendo, até ao presente momento, efectuado o pagamento da restante quantia em dívida

2.1.1.6- factos provados relativos ao ofendido N…
- Nenhuns

2.1.1.7-Factos provados - Buscas
Na busca efectuada ao veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca Fiat, modelo …, de matrícula UL-..-.., pertencente ao arguido B…, conforme auto de busca a apreensão em veículo automóvel, de fls. 4555, que aqui se dá por reproduzido, foi apreendido um caderno de capa azul, com a referência “…”, que continha, devidamente manuscritas, declarações de prestação de serviços de vários trabalhadores, nomeadamente de,
- H…, J…, O…, P…, Q…, S…, T…, U…, V…, W… e X…,
- Nas quais estes trabalhadores declaram que o horário de trabalho é de oito horas diárias, mediante a retribuição de €30 diários, com um dia de descanso semanal e estadia para dormir, almoço, café da manhã e jantar, todas emitidas a favor do arguido B….
- Duas declarações de demissão referentes aos trabalhadores X… e T…, nas quais declaram que receberam a quantia de €1.440, em notas do BCE, como retribuição pelo trabalho prestado entre 11 de Maio e 18 de Junho de 2005 e
- Três documentos comprovativos do pagamento de trabalho prestado em Espanha, á empresa Y…, relativo ao mês de Junho de 2005 e referente aos trabalhadores Z…O…, H… e T….
Na busca efectuada á residência sita em … – …, Murça, pertencente ao arguido B…, conforme auto de busca e apreensão, de fls. 4488 e segs, que aqui se dá por reproduzido, foram apreendidos:
- extractos bancários relativos á conta poupança n.º …. ……….., da Z…, balcão de …, titulada pela arguida C…;
- Extractos bancários referentes á conta n.º ………….., da AB…, balcão de …, titulada pelo arguido B…;
- Documentos relativos ao pagamento de trabalho prestado nas AC…, S.L., em …, Espanha, pelos trabalhadores L…, G…, AD…, AE…, O… e I... pelo período compreendido entre Maio e Junho de 2004;
- E um telefone da rede móvel da marca NEC, com o IMEI ……………, com a respectiva bateria da marca Nec, modelo …-..., tendo inserido o cartão SIM da operadora da rede móvel espanhola Telefónica Movistar, com o número ………….., devidamente examinado no auto de exame directo junto a fls. 4528 e seguintes dos autos;
- Na revista efectuada ao arguido B…, conforme do auto de revista pessoal e apreensão de fls. 4489 , que aqui se dá por reproduzido, foi encontrado e aprendido um telefone da rede móvel da marca SONY … com o IMEI ……-..-……-., com a respectiva bateria da marca Sony …, modelo BKB 170/3 3.7 V Li-ion, tendo inserido o cartão SIM da operadora da rede móvel Optimus, com o n.º …. …. …., devidamente examinado no auto de exame directo junto a fls. 4528 e seguintes dos autos.
299.
Na busca efectuada ao veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca Mercedes-Benz, modelo …, com a matrícula ..-..-OU, pertencente ao arguido B…, conforme auto de busca e apreensão em veículo junto a fls. 4547 que aqui se dá por reproduzido, foi encontrado e apreendido um cartão de contribuinte emitido pela Direcção-Geral dos Impostos em nome de H…, com o NIF ………;
- Uma fotocópia do bilhete de identidade n.º …….., emitido em 5 de Março de 2001, pelo Arquivo de Identificação de Vila Real e uma fotocópia de Confirmação de Dados de Identificação – Inscrição na Direcção-Geral dos Impostos em nome de AF… e quatro documentos do Ministério de Trabajo Y Assuntos Sociales em nome de Q….

2.1.1.8-Factos Provados - Elemento Subjectivo
O arguido E… conhecia as características das armas e munições que detinha e sabia que não tinha autorização para tal detenção.
Os arguidos B… e C…, bem sabiam que não lhes era permitido impor um número indeterminado de horas de trabalho aos trabalhadores que angariavam e transportavam para Espanha, bem como de se apoderarem de toda ou parte da retribuição devida pelos serviços prestados por tais trabalhadores bem como dos seus documentos, neste caso dos ofendidos G…, I… e M…, reduzindo-os à condição de escravos.
Os arguidos E…, B… e C… agiram deliberada, livre e conscientemente.
308.
Bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

2.1.1.9-Factos Provados - Outros -

O arguido B… é natural de …, oriundo de uma família numerosa de etnia cigana, sendo o mais novo elemento de uma fratria de nove irmãos. A progenitora sempre se dedicou às lides domésticas, sendo o sustento da família assegurado, apenas, pelo pecúlio auferido pelo progenitor, decorrente do seu trabalho como engraxador, actividade que lhe permitiu, com dificuldades, colmatar as necessidades básicas dos filhos, os quais se foram autonomizando. O arguido ingressou na escola primária, em …, na idade própria, tendo concluído, apenas o … ano de escolaridade, com cerca de 13 anos de idade, após algumas reprovações, sendo o seu insucesso escolar resultado da pouca motivação e empenho que o arguido revelava face ao seu percurso escolar. Quando o arguido tinha 13/14 anos de idade, ocorreu o falecimento da sua progenitora, vítima de doença, tendo nesta ocasião, B… sido entregue aos cuidados de uma irmã, residente na localidade de Murça, integrando um meio familiar marcado pela coesão afectiva entre os vários elementos, no qual lhe foram proporcionadas condições de vida favorecedoras de um desenvolvimento adequado. A família vivia … em Murça e não obstante algumas dificuldades económicas com que o agregado se debatia, ao arguido foram sempre garantidos os bens essenciais. Por volta dos 20 anos de idade contraiu matrimónio com uma jovem da mesma etnia (C…), passando o casal a viver autonomamente, em Murça, numa residência próxima dos familiares daquela. Desta relação existem 2 filhos, actualmente com .. e .. anos de idade respectivamente. Cerca de um ano após o casamento, o casal deslocou-se para Espanha, onde se fixou e passou a trabalhar na área da agricultura, nomeadamente, em trabalhos sazonais, regressando a Murça, apenas, por curtos períodos de tempo. Na altura da ocorrência dos alegados factos o arguido mantinha um estilo de vida idêntico ao acima descrito, residindo e trabalhando em Espanha. Contudo, a residência efectiva do casal continuava a ser em Murça, onde dispunham de urna habitação. Aproximadamente há 18 meses, segundo refere, e na sequência dos factos pelos quais se encontra indiciado, o casal separou-se passando o seu ex. cônjuge e filhos a residir na casa de família em Murça, tendo o arguido permanecido em Espanha a morar com familiares. O arguido trabalha na agricultura, efectuando qualquer trabalho para o qual for solicitado, não sabendo precisar um montante mensal, urna vez que esta dependente da oferta de trabalho. Assim, o seu quotidiano é gerido em função da actividade que desenvolve e do convívio que mantém com familiares e amigos, deslocando-se a Portugal, apenas, para visitar os filhos. Dos contactos efectuados no meio (Murça), onde o arguido residiu até a um passado recente, pese embora seja do conhecimento da comunidade os factos pelos quais se encontra indiciado, transpareceu uma inserção social adequada, sendo referenciado como pessoa educada. Até à data, na localidade de Murça, o presente processo não teve qualquer impacto em termos da imagem social do arguido, sendo considerado pessoa educada e respeitadora.

A arguida C… é proveniente de um agregado carenciado, ao nível cultural e económico, constituído pelos pais e 7 irmãos, dos quais uma falecida. O espaço habitacional onde a família residia, localizado em meio rural, não lhe garantia as condições mínimas de habitabilidade e salubridade. Os progenitores subsistiam do trabalho desenvolvido pela compra e venda de animais em feiras, insuficiente para fazer face às despesas básicas, de higiene e alimentação. Em termos escolares, a arguida apenas concluiu o .. ano, uma vez que esta não era uma preocupação educativa no contexto onde se inseria, antes o incentivo ao ingresso precoce no mercado de trabalho, como veio a suceder, prestando C… trabalhos indiferenciadas no sector agrícola. Contraiu matrimónio aos 26 anos, nascendo dois filhos desta união. Numa fase inicial permaneceu a residir em Murça, junto do agregado constituído, sendo a dinâmica familiar descrita como harmoniosa. A trajectória profissional da arguida esteve associada a diversos sectores, iniciou-se com 10 anos de idade no sector agrícola, prestação de serviços de limpeza e apoio domiciliário a idosos, passando ainda pela emigração em França, onde prestou apoio na área da restauração, como auxiliar de cozinha e serviço de mesa até à idade em que se casou. Em 1999, a arguida conjuntamente com o marido, emigraram para Espanha, para desenvolvimento de actividades sazonais, na área da agricultura, vinha, onde se mantiveram por um período de oito anos, com idas/voltas alternadas de dois meses. Em 2006, decidiram fixar residência pelo facto do filho mais novo ter ingressado no ensino escolar, regressando a Portugal apenas em períodos de férias escolares, sendo que regressaram definitivamente a Portugal em Agosto de 2013. No período a que se reportam os factos constantes da acusação, a arguida vivia juntamente da família constituída, marido e um dos filhos menores (B…), em Espanha, em moradia integrada numa quinta, local onde ambos prestavam serviços laborais. O seu quotidiano era circunscrito basicamente ao espaço habitacional, onde se mantinha a executar as tarefas domésticas e refeições para os trabalhadores da quinta (muitos deles angariados por si e pelo seu marido, B…, coarguido no presente processo). A ruptura conjugal, concretizada há alguns meses, despoletou uma grande mágoa e tristeza na arguida, pelo distanciamento e ausência que o progenitor revela no contacto com os filhos, constituindo-se, no momento, a mãe como única figura de suporte no seu quotidiano. Actualmente e desde o início do ano lectivo 2013/2014, encontram-se (arguida e os dois filhos) a residir na cidade de Murça, Vila Real, em habitação própria, moradia tipologia quatro, de condições de habitabilidade adequadas, inserida em meio urbano, sem problemáticas relevantes associados. O agregado apresenta, presentemente, algumas carências económicas, sendo que subsiste do trabalho prestado, única e exclusivamente pela arguida, pontualmente (quando existe), em serviços de limpeza e do rendimento social que recebeu em duas fatias (300€ mais 200€) e, que vai deixar de usufruir enquanto não provar documentalmente que o marido os abandonou. Na área de residência as fontes abordadas revelam conhecimento superficial da situação em que C… se encontra envolvida, porém, referiram que se trata de uma pessoa de trato educado e cordial com os vizinhos, pelo que não suscita sentimentos de hostilidade. A arguida foi referenciada pelas forças policiais como sendo uma pessoa bem integrada, sem registo de situações anómalas.

Dos CRCs dos arguidos E…, B…, C… e AG… não constam quaisquer condenações.
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2.1.2. Factos não provados.
Não se provaram outros factos com interesse para a decisão da causa, designadamente:
-Que o arguido E… (juntamente com F…, e AH…, estes acusados no âmbito do processo 2731/04.7JAPRT), fazia parte do grupo/clã de AI...
- Que os arguidos B…, C… e AG… (juntamente com AJ…, AL…, AM…, NA…, estes acusados no Proc. 2731/04.7JAPRT) faziam parte do Clã de AO….
- Que o H… tenha transmitido ao ofendido G… o número exacto de meses que teria de permanecer em Espanha, e que este receberia mensalmente a quantia de €1.500, que lhe seria paga no final da campanha.
- Que dado que o senhorio do arguido B… havia mudado as fechaduras, por falta de rendas devidas, o ofendido G… foi descansar numa residência de AJ…, irmão da arguida C…, e que já se encontravam ali outros três portugueses, que trabalhavam na agricultura, sendo que o AJ… era proprietário de um veículo automóvel, marca Mercedes-Benz, modelo …, de cor … e de um outro da marca Volkswagen, modelo …, de cor …, ambas com matrícula espanhola.
- Que o ofendido G… ao confrontar o arguido B…, este disse simplesmente que “os que sabiam fazer faziam, aqueles que não sabiam aprendiam”.
- Que foi comunicada pelo arguido B… ao ofendido G… que não era permitida qualquer saída da residência, bem como idas ao café ou telefonar de qualquer posto público para os familiares.
- Que nas quintas, quando da prestação do serviço agrícola, o arguido B… na presença do ofendido G… empunhava um pau, como forma de intimidação e com o qual chegou a agredir alguns trabalhadores, ao mesmo tempo que dizia para efectuarem o trabalho mais rápido.
- Que alguns dos proprietários espanhóis alertaram o arguido B…, para as difíceis e deploráveis condições em que o ofendido G… e os outros trabalhadores, que angariava, se encontravam a trabalhar.
- Que a arguida C… punia os trabalhadores com trabalho doméstico, como qualquer tipo de limpeza, na residência.
- Que quando do regresso à residência, o arguido B… agredia quem tentara fugir, a soco e com vergastadas, sendo que tal punição acontecia na presença dos restantes trabalhadores, para servir de lição e para afastar a intenção de mais alguém que tinha a fuga no pensamento.
- Que o ofendido G…, tentou a fuga, por três vezes, sendo que sempre foi apanhado e recolhido, pelo arguido B… e, naturalmente agredido pelo mesmo e nos moldes acima referenciados.
- Que até ao seu regresso a Portugal, ocorrido em 4 de Julho de 2004, o ofendido G… foi, permanentemente, humilhado pelos arguidos B… e C…, que o obrigaram a fazer todo o trabalho doméstico, desde limpezas, lavagens e regas, várias vezes ao dia, ao mesmo tempo que diziam “que até agora gozaste tu, agora quem vai gozar somos nós”.
- Que o ofendido G… ao conferir a quantia que lhe fora entregue pelo arguido B…, veio a verificar que se tratava somente de €800.
-Que o senhorio do arguido B… havia mudado as fechaduras, por falta de pagamento da renda devida, não conseguiram entrar na residência, tendo assim, de ir descansar à residência do arguido AJ…, irmão da arguida C…,
-Que já se encontravam ali outros três portugueses, que trabalhavam na agricultura, sendo que o AJ… era proprietário de um veículo automóvel, marca Mercedes-Benz, modelo …, de cor branca e de um outro da marca Volkswagen, modelo …, de cor branca, ambas com matrícula espanhola.
-Que o ofendido I… tinha ordens do arguido B… para não se ausentar da residência.
-Que não era permitida ao ofendido I…, qualquer saída daquela residência, pelo arguido B…, incluindo as saídas para o café ou telefonar de para a família em Portugal.
-Que só os arguidos B… e a C…, possuíam telefone da rede móvel e apenas o J… e o L… tinham autorização para se ausentarem da residência, porquanto já ali trabalhavam há muitos anos para o arguido B….
- Que o arguido B… perante o ofendido I… empunhava um pau, como forma de os intimidar e com o qual os chegava a agredir, enquanto dizia para trabalharem mais rápido.
- Que os proprietários espanhóis alertaram o arguido B…, para as miseráveis condições em que o ofendido I… e os demais trabalhadores se encontravam a trabalhar.
- Que a arguida C…, castigava os ofendidos com trabalho doméstico, nomeadamente a limpeza, de qualquer tipo, na residência.
- Que o arguido B… agredia os “autores da fuga” corporalmente a soco e com vergastadas, sendo que esta retaliação acontecia na presença dos restantes trabalhadores, servindo de lição, e para alertar outros candidatos à fuga.
- Que o arguido B… entregou ao ofendido I… €40, dizendo que era “para os copos” e mais €80, dizendo que era para efectuar o pagamento do bilhete de viagem de regresso.
- Que o AJ… era visita frequente da residência dos arguidos acima referidos, mantendo alguns cidadãos portugueses, a trabalhar nas condições em que o fazia o arguido B…, sendo que ambos se auxiliavam mutuamente.
- Que o ofendido M…, foi abordado também por AM…, este conhecido por “AM1…”,.
- Que o ofendido M… foi informado pelo arguido B… que não seguiriam para Espanha, pois a sogra deste estava doente, mas que poderia ali ficar, até que fosse possível encetar tal viagem.
- Que nesse mesmo dia, o arguido B… apareceu na residência, acompanhado de AM… e NA…, irmã da arguida C…, que ficaram, também, instalados na residência.
- Que face à doença da sogra do arguido B…, o ofendido M… acabou por permanecer na residência cerca de quinze dias, período no qual efectuou todo o tipo de trabalhos agrícolas, designadamente arrancar ervas e batatas nos terrenos adjacentes e que pertenciam aos arguidos B… e C…
- Que durante o período referido, o arguido B… acabou por angariar mais um outro trabalhador, de nome L…, que acompanhou o ofendido M… na execução dos trabalhos supra referidos, enquanto os referidos AM… e AN… foram ao Porto, onde vieram adquirir um veículo automóvel da marca Volkswagen, modelo …, de cor ….
- Que passados os quinze dias, o arguido B… informou o ofendido M… e o individuo de nome L…, que teriam de acompanhar o AM… e AN… para a residência dos pais deles, que ficava situada em AO…, onde teriam de cortar lenha, que ali se encontrava, até à sua chegada, que estava prevista para o final do dia seguinte.
- Que acedendo a tais ordens, o ofendido M… e o L…, juntamente com a AN…, deslocaram-se para AO…, fazendo-se transportar no veículo automóvel de marca Volkswagen, modelo …, conduzido pelo AM…, não tendo levado consigo os sacos com os seus haveres, pelo facto do arguido B… não o ter permitido, pois que ele próprio se encarregaria de o fazer.
- Que uma vez em AO…, de imediato, o AM… arranjou serviço para o ofendido M… e para o L…, que consistiu em cavar a terra e cortar lenha.
- Que em … não puderam alojar-se na residência do arguido B…, uma vez que o senhorio havia mudado as fechaduras da residência, por motivo da falta de pagamento da renda, pelo que tiveram necessidade de ir para a residência de outro irmão da arguida C…, de nome AJ…, que ficava situada próxima da igreja,
- Que ali o ofendido M… e acompanhantes acabaram por ficar alojados e permanecer, até que o arguido B… ter resolvido os problemas existentes com o proprietário da residência.
- Que a residência do arguido B…, era uma casa velha e sem quaisquer condições de habitabilidade e de salubridade, tendo o referido ofendido e os demais, de dormir dois a dois na cave da mesma.
- Que após o jantar, o ofendido M… era obrigado diariamente, pelos arguidos B… e C…, a fazer a lide doméstica da residência.
- Que o ofendido M… recebia €1 ao domingo, como retribuição do seu trabalho, sendo que o arguido B… não lhe permitia qualquer saída da residência, nomeadamente ao café, ou telefonar para a família.
- Que durante o mês de Fevereiro, o transporte para os locais de trabalho era efectuado pelo AJ…, que utilizava o seu veículo automóvel da marca Volkswagen, modelo ….
- Que o ofendido M… tentou fugir por três vezes.
- Por quem foi perseguido e recolhido o ofendido M…, para além do arguido B….
- Que o arguido B… agarrou o ofendido M… pelo pescoço.
- Que numa segunda vez, o ofendido M… foi recolhido pelo arguido B…, que o transportou de regresso á residência, no interior da qual, o arguido e o J… o agrediram violentamente a pontapé e a soco.
- Que passado este episódio, o ofendido M…, que já se encontrava na sua terra natal, em Portugal, veio a ter conhecimento, por vizinhos, que o arguido B… o havia procurado, por diversas vezes, na sua residência,
- Que, receando pela sua vida, o ofendido M… teve de abandonar a sua residência, deslocando-se para Peniche.
- Que a arguida C…, face á intervenção policial acima descrita entregou ao ofendido M… a quantia de €650, em notas do Banco Central Europeu.
- Que o ofendido N… em data não apurada, mas no início de 2007, cerca das 13Horas, quando se encontrava em Macedo de Cavaleiros, foi abordado pelo arguido AG… e por AM…, que se faziam transportar num veículo automóvel, de cor …, que lhe disseram “anda daí connosco que nós levamos-te a casa”.
- Que o N… aceitou a boleia e durante o trajecto o arguido AG… disse que tinham de ir a AO… ver o sogro e que depois o levariam á sua residência, o que foi aceite, mais uma vez.
- Que na residência do AJ…, o arguido AG… e o AM…, abordaram o N… no sentido de o convencerem a ir para Espanha trabalhar, ao que o ofendido respondeu que “não, não quero, agora não me interessa”.
- Que face à recusa do ofendido N…, em acto contínuo, os arguido AG… e o AM…, contra a vontade daquele e mediante o recurso à força física, introduziram o N… no veículo automóvel, seguindo para uma zona de castanheiros perto da residência.
- Que ali, retiraram o N… do veículo e o arguido AG… empunhou uma navalha, conhecida por …, cujas características não foi possível determinar, e apontou ao ofendido, ao mesmo tempo que lhe disse que “ou vais para a Espanha ou mato-te”.
- Que temendo pela sua vida, o ofendido N… acabou por aceitar a ida para Espanha, e, em consequência, voltaram à residência,
- Que, Aproveitando uma distracção do arguido AG… e AM…, quando entravam na residência, cerca das 18H00M, o N… empreendeu a fuga, correndo pelo campo e montes até chegar á localidade de …, cerca das 10H00M, do dia seguinte, obstando desta forma que o os arguidos concretizassem os seus intentos de o levar para Espanha.
- Que, em dia não apurado de Abril de 2007, cerca das 22Horas, o ofendido N… encontrava-se deitado no quarto da sua residência, quando o arguido AG… e o AM… ali deram entrada, sem o seu consentimento, através da respectiva janela.
- Que os arguidos em tom ameaçador disseram ao N…, para estar calado, não fazer barulho, e para se vestir e calçar, pois iriam ao café tomar uma bebidas.
- Que receando pela sua vida, o ofendido N… teve de acompanhar o arguido AG… e o AM…, vestindo apenas um par de calças e uma camisa, não trazendo consigo qualquer elemento de identificação ou dinheiro.
- Que assim, deixaram a residência e dirigiram-se para um veículo automóvel de cor …, cuja marca, modelo e matrícula não foi possível de determinar, e pertencente ao arguido AG…
- Que com o arguido AG… ao volante, o AM… no banco ao lado do condutor, o N… ocupou o banco posterior, foi iniciada a viagem para o tal café, que acabou por não acontecer, pois vieram a passar sem pararem, seguindo em direcção a ….
- Que apesar de questionados e das solicitações do ofendido N… para pararem o automóvel, o arguido AG… e o AM… não acederam dizendo que já se encontravam perto, mas acabaram por circular durante horas, por trajecto desconhecido, apenas tendo parado junto de um armazém, já em Espanha, na zona de Saragoça.
- Que o que aconteceu cerca das 03Horas, do dia seguinte, tendo o ofendido N… sido alojado no armazém, onde já se encontravam cerca de vinte trabalhadores portugueses e o também supra referido AJ…. E que tal armazém, não possuía as mínimas condições de habitabilidade encontrando-se os colchões colocados no chão, não havia WC, pelo que os utentes do armazém tinham de satisfazer as suas necessidades fisiológicas no mato que rodeava e tinham de tomar banho com a utilização de uma mangueira, somente de água fria, quaisquer que fossem as condições atmosféricas.
- Que o ofendido N… começou o seu trabalho agrícola nas “D…”, a retirar os “mamões” das videiras, que se iniciava pelas 06Horas, quando abandonava o armazém para se dirigir para as “D…”, transportados em veículo automóvel conduzido pelo arguido AG….
- Que o trabalho era iniciado ás 07Horas até as 13Horas, hora em que efectuava uma breve paragem para almoço, que consistia sempre em massa com carne, que era confeccionada pela AN….
- Que retomava o trabalho pelas 14Horas até às 20Horas, hora a que o arguido AG… o conduzia de regresso ao armazém, onde tomava banho e jantava.
- Que após o jantar, o ofendido N… e os demais eram obrigados a acompanhar o arguido AG… e os referidos AM… e AJ… e, onde eram obrigados a subtrair materiais de construção, nomeadamente ferro, cimento e areia, que retiravam das obras em construção, para posteriormente os utilizados na reconstrução de um imóvel adquirido pelo AJ….
- Que uma vez que o AJ… se recusava pagar a retribuição devida pelo trabalho prestado, alguns trabalhadores, oriundos da área do Porto, acabaram por fugir daquele local.
- Que em consequência desta fuga, o arguido AG…, o AM… e o AJ…, ameaçaram os demais trabalhadores, entre eles o ofendido N…, que se tentassem fugir, seriam perseguidos e mortos, ameaças estas que foram levadas a sério.
- Que durante o período que esteve naquela localidade e no trabalho agrícola referido, o ofendido N… foi vítima de permanentes ameaças e agressões físicas, por parte do arguido AG…, bem como não foi devidamente alimentado, chegando mesmo a passar fome, pois não lhe era fornecida, que satisfizesse as necessidades mínimas exigidas.
- Que o ofendido N…, teve de ser submetido a uma intervenção cirúrgica a uma hérnia, em consequência das agressões sofridas, nomeadamente de um pontapé, desferido pelo AJ…, na zona da …,
- Que não foi entregue ao ofendido N… a totalidade da retribuição devida pelo trabalho prestado até Agosto de 2007, pois só lhe foi entregue a quantia de €250, em notas do BCE, quando o AJ…, se deslocou a Portugal, e transportou o referido ofendido e o veio a abandonar junto ao local onde se realiza a … de Macedo de Cavaleiros,
- Que o ofendido N… manifestou, por diversas vezes, o desejo de regressar a Portugal, mas nunca lhe foi autorizado pelo arguido, que usava as mais variadas ameaças e agressões físicas, embora não tendo recorrido às autoridades policiais espanholas, por recear pela sua vida.
- Que em busca efectuada á residência dos arguidos B… e C… sita na Estrada … na Meda, , foram apreendidos: - uma agenda telefónica, de cor …, com margens em cor …, contendo manuscrito vários contactos telefónicos da rede móvel e fixa, uma agenda, tipo organizer, de cor …, em dois …, contendo manuscrito diversos apontamentos e vários contactos telefónicos da rede móvel e fixa; - Uma munição, por percutir, contendo gravadas as inscrições … … …, em razoável estado de conservação, uma munição, por percutir, contendo gravadas as inscrições … …L, em razoável estado de conservação; - Um recibo novo de seguro do veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca Mercedes-Benz, de matrícula ..-..-GN, emitido em 12 de Novembro de 2004, pelo período de um ano, entre 8 de Novembro de 2004 e 7 de Novembro de 2005, em nome de AP…; - Três documentos bancários do AQ…, balcão de …, um cartão de visita do arguido AS…, um recibo de seguro da Seguradora AT…, relativo á apólice …. .. ……, emitido em nome do arguido AS…, relativo ao veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca Mercedes-Benz, de matrícula ..-..-AI; - Um documento bancário do AQ…, balcão de …, da conta n.º …. …. …., manuscrito por AU…, um talão de depósito de numerário no montante de €5.000, na conta n.º …. …. …., do balcão de … do AQ…, efectuado pelo arguido AS…; - Um envelope do Ministério do Trabajo Y Assuntos Sociales contendo vários documentos de trabalho espanhóis, um documento do Centro Inspecções Automóveis AV…, Lda., referente ao veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca Mercedes-Benz, modelo …, de matrícula ...-..-GN, em nome de AW…, um livrete e titulo de registo de propriedade do veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca Peugeot, …, de matrícula VU-..-.., em nome do arguido AS…; - Um bilhete de identidade com o n.º ……., emitido em nome de AX…, trinta e sete extractos bancários referentes á conta n.º …. …. …., sobre o AQ…, balcão de …, titulada pelo arguido AS…, três extractos bancários referentes á conta n.º …. …. …., sobre o AQ…, titulada em nome de AU…; - Três extractos bancários referentes á conta n.º …. …. …., sobre o AQ…, balcão de …, titulada por AY…, quatro documentos referentes á apólice ………, da seguradora AZ…, em nome do arguido AS…, referente a uma vivenda sita em … – …, cinco catões de visita em nome de firmas espanholas; - Um revólver de calibre .32 …, da marca Rossi, modelo não identificado, com o número de série rasurado, com cano estriado medindo cerca 7,5 cm, com tambor dotado de seis câmaras, provido de sistema de disparo por dupla acção, simples e guarnecido com … de …, em bom estado de conservação e de funcionamento e dezassete (17) munições de calibre .32 ….
Que na busca efectuada á residência sita na Avenida…, Saragoça, pertencente a BA… e BB…, foi encontrado e apreendido: - a quantia de €6.054,42 (seis mil e cinquenta e quatro euros e quarenta e dois cêntimos) referente ao saldo da conta n.º … …… ….., do AQ…, titulada pelo arguido AS…; - a quantia de €1.030,91 (mil e trinta euros e noventa e um cêntimos), referente á conta n.º …. ……. …, da AB…, titulada pela arguida C…;- a quantia de €59.260,00 (cinquenta e nove mil e duzentos e sessenta euros), referente á conta n.º …. …… …, da AB…, titulada pela arguida C…; - a quantia de €2,15 (dois euros e quinze cêntimos), referente á conta n.º …. …… …, da Z…, titulada pela arguida C….
- Os que não se encontrem descritos entre os provados, estejam em oposição com estes ou constituam meras conclusões, repetições, matéria instrumental ou matéria de direito.
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2.1.3. Formação da convicção do tribunal.
O Tribunal formou a sua convicção na análise e ponderação crítica, de acordo com as máximas da experiência e as regras da lógica, do conjunto da prova – designadamente, por declarações, testemunhal e documental –, produzida, a qual se revelou suficiente para, além da dúvida razoável, dar por provados os factos que o foram.
Com efeito, quanto ao modo de actuação e episódios relatados nos factos provados, a prova produzida não ofereceu grandes dúvidas quanto ao essencial do sucedido, pois, desde logo, com a explicação global que a testemunha BC…, Inspector da Polícia Judiciária, fez da investigação que foi feita neste caso e noutros da mesma natureza, esclarecendo sobre o modo de actuação repetido que foi encontrando, tendo ainda esclarecido sobre as diligências realizadas nos autos e os documentos relativos aos trabalhadores encontrados na posse do arguido B…, bem como pelos depoimentos dos ofendidos G…, I… e M… que narraram as condições em que foram recrutados, o modo como foram transportados e o modo como trabalharam e viveram em Espanha, sob o jugo dos arguidos B… e C… e dos homens de mão que se encontravam às ordens destes. E se em alguns pormenores os depoimentos não foram totalmente coincidentes, a verdade é que tal não invalida que o tribunal retire de cada um dos depoimentos e do conjunto dos mesmos o que de essencial se passou e que ficou plasmado nos factos provados. Cabe ainda referir que não só de alguma fragilidade pessoal destas três testemunhas o tribunal se apercebeu, como também ainda de algum medo ou pelo menos receio que transpareceu, a que acresce o facto de a testemunha, não credível, H…, ter, conforme resultou dos depoimentos, contactado algumas das testemunhas em período próximo ao do julgamento. Seja como for, os episódios relatados pelas testemunhas, nomeadamente os das fugas da testemunha M…, a primeira em que foi perseguido e capturado pelo arguido B…, trazido de volta à residência e ameaçado por este, bem como da fuga em que teve sucesso dirigindo-se à polícia, altura em que acompanhado da polícia foi ao local onde residiam, tendo então recebido parte do dinheiro que lhe era devido, sendo que os demais trabalhadores nada disseram, por medo. A narração que as testemunhas fizeram da proibição da utilização do quarto de banho (tinham de ir ao monte fazer as necessidades), da comida que lhes era fornecida (ossos rapados com massa), da vontade de virem embora que manifestaram, mas que os arguidos B… e C… não deixavam. Do medo que todos sentiam. Enfim, tudo devidamente analisado e concatenado permitiu ao tribunal dar por assentes os factos que o foram quanto à condição e situação em que os três referidos ofendidos se encontraram. E a isto não obsta o depoimento de H…, o qual se mostrou na sua maior parte de credibilidade duvidosa e comprometido.
Resumindo, a prova produzida foi abundante quanto ao modus operandi empreendido pelos arguidos B… e C… no empreendimento relatado nos factos provados.
Quanto aos factos não provados, a prova produzida foi insuficiente para que o tribunal pudesse formar convicção positiva e os pudesse dar por assentes.
Assim, teve o Tribunal em conta designadamente:
As declarações da arguida C…, na estrita parte em que pareceram verdadeiras, embora com pouco relevo, que primeiro disse não desejar prestar declarações, tendo posteriormente prestado declarações apenas sobre parte dos factos, referindo, nomeadamente que o ofendido I… não queria tomar banho e que havia problemas com a casa e banho porque não tinha chave e às vezes havia fila para lá ir. Referiu ainda que quem fez os contratos com os trabalhadores foi o arguido B….
O depoimento sincero e isento da testemunha BC…, inspector da Polícia Judiciária do Porto, que participou na investigação dos factos que estiveram na base do inquérito que deu origem aos presentes autos, fazendo primeiro um relato genérico das investigações e do resultado destas, nomeadamente que desde 1999 começaram a chegar várias participações à polícia judiciária dando conta do desaparecimento de vários indivíduos que se veio a apurar serem angariados por vários indivíduos e que depois iam para as campanhas agrícolas em Espanha – … -, nomeadamente para as vindimas, para a poda e apanha de fruta. Que os indivíduos recrutados tinham geralmente como características pessoais o facto de terem deficiências cognitivas, serem um fardo para as famílias, serem homens e já com alguma idade, normalmente com escolaridade baixa, sofrendo de alcoolismo ou toxicodependência. Que os ofendidos eram abordados nas zonas piscatórias e em jardins, sendo procurados pelos indivíduos que os recrutavam. Que o presente processo teve início em 2004, sendo que os arguidos investigados pertenciam a várias famílias residentes em Trás os Montes. Referiu ainda que os arguidos investigados levavam as vítimas para … em viaturas próprias e que em Espanha os ofendidos ficavam alojados em locais controlados pelos arguidos. Que eram preenchidos os requisitos formais para a prestação de trabalho, nomeadamente a inscrição na segurança social; e que os patrões entregavam as remunerações directamente aos arguidos que depois não entregavam as remunerações aos ofendidos. Que mais tarde foram abertas contas bancárias em nome dos ofendidos, mas que os arguidos investigados ficavam com as cadernetas. Que os patrões espanhóis pagavam em média 40/60€ por oito horas de trabalho, mas que o dinheiro era controlado pelos arguidos. Que os ofendidos, além de trabalharem para os patrões Espanhóis ainda tinham de trabalhar na residência onde estavam, nomeadamente a apanhar lenha e a limpar a casa. Que em Espanha, nas campanhas das vindimas os trabalhadores podiam trabalhar aos fins de semana ou mais horas (do que as 8h), com aumento de remuneração. Que havia constrangimento das pessoas, designadamente e desde logo pela própria condição pessoal dos ofendidos, pela falta de documentos, pelo desconhecimento da língua, pela pressão dos arguidos para os ofendidos nãos e deslocarem sem autorização dos arguidos, pelas deslocações dos ofendidos sempre na companhia dos arguidos. Por outro lado, os episódios de fuga tinham como consequência agressões na presença dos restantes membros do grupo. Que os arguidos quando abordavam as vítimas prometiam a remuneração, as condições de trabalho, o alojamento e a alimentação. Os ofendidos aderiam imediatamente e seguiam logo com os arguidos, muitas vezes sem avisar a família. As famílias dos ofendidos só denunciavam o desaparecimento dos ofendidos por vezes quando precisavam de levantar as reformas destes. Os arguidos agiam em grupos recorrendo a familiares próximos ou indivíduos de confiança oriundos das zonas onde angariavam vítimas.
Referiu que, em relação ao arguido E…, a arma apreendida resultou duma busca domiciliária realizada em 25.04.2005, donde resulta que havia uma arma de fogo no quarto do arguido Ilídio, conforme resulta do auto de busca de fls. 845-848, tendo procedido ao exame dos artigos apreendidos (cfr. auto de exame de fls. 856-868).
Em relação aos arguidos B… e C… referiu que as vítimas deste grupo terão sido recrutadas na zona do Porto, tendo realizado o maior número possível de diligências com as vítimas, nomeadamente o reconhecimento de pessoas, de locais e trajectos. Referiu o reconhecimento relatado a fls. 1663 e segs. dos autos, nomeadamente o local onde os ofendidos estiveram em trânsito, a residência dos arguidos B… e C… em Murça.
O depoimento da testemunha G…, pintor de automóveis, que indicou as circunstâncias em que foi recrutado e eu foi para Espanha trabalhar. Referiu, nomeadamente, que se encontrava desempregado na altura dos factos e que o arguido B… o convidou por intermédio do seu amigo e vizinho H… para ir trabalhar para Espanha na manutenção de máquinas. Que foram (a testemunha o H… e o I… e outros dois ou três indivíduos) na carrinha do Chefe – o arguido B… -, tendo parado primeiro em Murça, onde ficaram uma noite em casa do arguido B… e da arguida C…, casa essa que indicou ao Inspector da PJ. Ao chegarem a Espanha, estiveram dois dias de descanso e depois começaram a trabalhar na poda das videiras. Esclareceu o horário de trabalho e as tarefas, diferentes das que lhe tinham sido oferecidas. Referiu que a comida não era boa nem má e que lhe pagavam 40 € por dia e que não lhe ficaram a dever nada. Que quis vir embora mais que uma vez, porque o trabalho era pesado e não percebia nada da poda, mas que não veio porque não conseguiu meios de comunicação e que a estação ficava a mais de 10 km de distância. Que estava num sítio isolado, não podia vir embora. Que disse várias vezes ao arguido B… que se queria vir embora, mas que este dizia para aguentar. Que uma vez foi lá a polícia perguntar se estavam todos bem, mas ninguém falou. Que o B… nunca bateu em ninguém. Que era o Sr. B… que orientava no trabalho e que pagava. Que quando se veio embora, ao fim de seis meses, o Sr. B… levou-o à estação e lhe entregou 900 €. Dos seis meses que lá trabalhou recebeu 900 €. Que as limpezas da casa tocavam a todos, que a casa tinha casa de banho, mas tinham que ir ao monte fazer as necessidades porque a arguida C… não deixava e que tomavam banho só uma vez por semana (ao Domingo). Que o L… uma vez picou-o com uma navalha. Que o M… tentou fugir da quinta, mas alguém o viu e trouxe-o de volta pra casa. Que a arguida C… tomava conta da casa e fazia a comida, que era péssima e sempre a mesma arroz com borrego e que a carne era pouca. Ninguém da sua família sabia que a testemunha estava em Espanha. Que o B… dava um maço de tabaco por dia a cada um, a descontar da conta. Que toda a gente (dos trabalhadores) queria vir embora, mas que ninguém vinha.
O depoimento da testemunha BD…, reformada, irmã do ofendido G…, que referiu que a dada altura deixou de ver o irmão e que lhe disseram que o mesmo tinha ido trabalhar para Espanha e que o irmão é uma pessoa doente. Que a dada altura a mãe do H… lhe deu um número de telefone e que telefonou ao irmão que lhe disse que estava bem, mas que ficou com a ideia de que ele não podia falar; passados dois meses o irmão regressou, muito magro. Que o irmão depois referiu que tinha muito trabalho e tentou fugir.
O depoimento da testemunha I…, serralheiro mecânico, que referiu que foi para Espanha, com o G… e com o H…, para trabalhar, a convite do H…. Que pensaram que os serviços eram adaptáveis à arte de cada um, sendo que o G… até levou a mala com a ferramenta. Quando lá chegou foi trabalhar na poda. A proposta que lhe fizeram era de 40 € por dia, descontando 10 € para alimentação. Foi para Espanha na carrinha do arguido B…, conduzida por este, que ia acompanhado da mulher, o G…, o H…, o I… e outros, incluindo o J… e o L…, tendo ficado uma noite em casa do arguido B…, casa essa que indicou ao Sr. Inspector da Polícia Judiciária. Esteve perto de seis meses em Espanha. Em Espanha ficaram numa habitação do arguido B…, pequena para todos. Que trabalhou para vários patrões que pagavam ao arguido B… ou à arguida C…, sendo esta que mandava mais. Que as refeições eram batatas, arroz, massa ou arroz e ossos à mistura. Que não tinha possibilidades para económicas para vir embora e que eram perseguidos. Que andavam sem dinheiro nenhum nem para telefonar. Só podiam tomar banho ao Domingo. Não podiam ir à casa de banho e faziam as necessidades no monte. Pediu ao arguido B… para vir embora, mas que este lhe dizia que não que era preciso acabar o trabalho. O J… e o L… vigiavam-nos. O M… uma vez à noite fugiu e o L… agrediu a testemunha porque queria saber se tinha ajudado o M… a fugir. Apareceu a polícia a pedir as roupas e o dinheiro devido ao M…. Que a polícia reuniu todos e perguntou quem queria ir embora, só que nessa altura o J… e o L… apontaram navalhas às suas costas e do G…. No final recebeu 550 € por seis meses de trabalho e o arguido B… levou-o à estação para vir embora. Não tinham dinheiro para ir ao café. O arguido B… dava um maço de tabaco por dia a cada um e mais nada. Que na viagem para Espanha ou o arguido B… ou a arguida C… confirmaram que iriam receber 30 € por dia e 10 € para alimentação. Como o pagamento era para ser diário e como não pagavam disse que queria vir embora mas a arguida C… disse que tinha que acabar a campanha.
O depoimento da testemunha M…, agricultor, que referiu que foi com o arguido B… e co a arguida C… para Espanha. Que o arguido B… lhe ofereceu trabalho em Espanha. que foi para Espanha trabalhar na poda, mas que nunca lhe pagaram o que prometeram (25 € por dia+comida). Que a dada altura fugiu e foi à polícia, que se deslocou ao local onde se encontravam alojados e lhe foi paga metade do dinheiro oferecido. Que o arguido B… os ameaçava com a bengala «…». As refeições eram só massa e batata com carne de borrego barata – os restos do talho. Referiu que podia usar a casa de banho para tomar banho e ir à casa de banho. Que o arguido B… lhe retirou o bilhete de identidade que lhe foi devolvido quando foi ao local na companhia da polícia. Que anteriormente havia tentado fugir, mas apanharam-no e que o arguido B… disse que se tentasse fugir outra vez o metia debaixo de terra e que o atirava da Serra abaixo. Que o L… e o J… eram capatazes do B… e que o primeiro o ameaçava e que ambos lhes davam ordens. Que quando foi com a polícia ao local, os outros acobardaram-se e ninguém disse que queria vir embora, embora nas conversas à noite todos dissessem que queriam vir embora. Referiu também que trabalhavam toda a semana e que o B… só dava dinheiro aos capatazes e que não podiam telefonar.
O depoimento da testemunha BE…, mãe de N…, mas cujo depoimento teve pouco interesse, uma vez que não tinha conhecimento dos factos, apenas sabendo que o seu filho terá estado a trabalhar em Espanha.
O depoimento da testemunha H…, electricista, cujo depoimento foi contraditório e prestado de modo a merecer pouca credibilidade, que referiu conhecer os ofendidos I… e G… há muitos anos e que esteve com eles a trabalhar em Espanha, depois de os ter apresentado ao arguido B…. Referiu que não fez contrato nenhum com o I… e com o G…, mas que ficou combinado que receberiam 40 € por dia para trabalharem nas vinhas, tendo dito ao G… par trazer a caixa da ferramenta. Referiu que só se receberia no fim da campanha. Referiu ainda a viagem que fizeram para Espanha, o trabalho que lá faziam, que o M… se veio embora e que o arguido B… não lhe ficou a dever nada. Referiu que podiam tomar banho e que não estavam proibidos de ir ao quarto de banho.
O depoimento da testemunha testemunha BF…, Inspector-Chefe da PJ, que se referiu á busca realizada em AI…, confirmando o teor do auto de fls. 845-848.
O depoimento da testemunha testemunha BG…, vigilante, que referiu ter trabalhado para o arguido B… durante um mês em dois anos, em 2012-2103, nas vindimas em Espanha, referindo que tudo correu bem e tudo foi pago.
O depoimento da testemunha testemunha BH…, que referiu ter trabalhado durante 13 anos até 2013 para o arguido B…, em várias alturas do ano, sendo que nunca houve problemas.
O depoimento da testemunha testemunha BI…, sacerdote, que conhece o arguido B… há muitos anos tendo abonado da sua personalidade.
O depoimento da testemunha BJ…, reformado da GNR, que abonou do comportamento do arguido B….
O depoimento da testemunha BL…, reformado da GNR, que abonou do comportamento do arguido B….
O depoimento da testemunha BM…, Provedor …, que abonou do comportamento do arguido B….
Teve ainda o tribunal em conta os documentos juntos aos autos, designadamente: - Auto de Busca e apreensão de fls. 845 a 848; - Auto de exame de fls. 851 a 853; - Auto de exame directo de fls. 856 a 868; - Informação de serviço de fls. 869 a 876; - Guia de fls. 877; - Registo clínico de fls. 988 a 992; - Auto de reconhecimento de locais e trajectos de fls. 1663 a 1664; - Informações laborais de fls. 2147 a 2156; - Fichas biográficas de fls. 2599 a 2602; - Informações de fls. 2920 a 2931 - Informações de fls. 3294 a 3314; - Auto de revista e apreensão de fls. 4489 a 4510; - Auto de leitura de memória e cartão Sim de fls. 4511 a 4527; - Folha de suporte e Auto de busca e apreensão de fls. 4546 e 4547; - Auto de busca e apreensão de fls. 4488.- Auto de revista pessoal e apreensão de fls.4489- Auto de busca e apreensão em veículo de fls. 4555 a 4560; - Declarações de fls. 4561 a 4573.
Mais foram tidos em conta os relatórios da DGRS e os CRC juntos aos autos.

Fundamentação:

A) Recurso do arguido B…:

Não se constata a existência, neste julgamento, dos vícios previstos no art.º 410.º, n.º2 do CPP, os quais são de conhecimento oficioso, mas têm que resultar directamente do texto da decisão recorrida, só por si ou conjugadamente com as regras da experiência.
Inexiste qualquer erro notório na apreciação da prova, o qual como é sabido, vem a traduzir-se num erro grosseiro, ostensivo, na apreciação da prova, o qual não passaria despercebido a um cidadão leitor de cultura mediana, e que resultaria apenas do texto da decisão recorrida, só por si ou de forma conjugada com as regras da experiência.

A metodologia que o recorrente B… segue no que diz respeito à contestação de segmentos do julgamento da matéria de facto obedeceu genericamente aos ónus previstos no artigo 412.º, ns. 3 e 4 do CPP, pelo que nada impede que seja apreciado o seu mérito no âmbito do seu mecanismo de impugnação desse juízo. Remetendo para a globalidade de conteúdo dos depoimentos dos principais intervenientes procedeu de modo adequado, a nosso ver, pois só essa globalidade, caracterizadora de todo um modo de vida, durante alguns meses, dos mesmos, nos permite apreender a veracidade dos factos em discussão.
Faz considerações sobre os meios de prova produzidos em audiência, mostrando discordância sobre a avaliação que foi feita pelo julgador.
Mas quanto à adesão que o tribunal fez da versão apresentada pela acusação, em detrimento da do arguido, convém aqui lembrar que um princípio que informa o processo penal é o da livre apreciação da prova. Dispõe o art. 127.º do CPP que, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. É no equilíbrio destas duas vertentes (as regras da experiência e a livre convicção do julgador) que a prova há- de ser apreciada.
Este princípio da livre apreciação da prova é válido em todas as fases processuais, mas é no julgamento que assume particular relevo. Não que se trate de prova arbitrária, no sentido de o juiz decidir conforme assim o desejar, ultrapassando as provas produzidas, A convicção do juiz não deverá ser puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável. Tal decorre do art.º 374.º, nº 2 do CPP, o qual determina que a sentença deverá conter “ uma exposição tanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentaram a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal”.
Mas a decisão do juiz há-de ser sempre uma “convicção pessoal “- até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis ( v. g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais “- Prof. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal “, Coimbra Editora, vol. I, ed. 1974, pag. 204).
Por outro lado, a livre apreciação da prova é indissociável do princípio da oralidade. Como ensinava o Prof. Alberto dos Reis, “ a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há- de julgar e os elementos de que tem de se extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal”. E concluía aquele Professor, citando Chiovenda, que “ ao juiz que haja de julgar segundo o princípio da livre apreciação da prova é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar”.
O art. 127.º do CPP indica-nos um limite à discricionaridade do julgador: as regras da experiência e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Assim, a exposição tanto possível completa sobre os critérios lógicos que constituíram o substracto racional da decisão- art.º 374.º, n.º 2 do CPP- não pode colidir com as regras da experiência.
Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.
Na mencionada obra, a este propósito refere o Prof. Figueiredo Dias: “Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao princípio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento(...). De qualquer modo, desde o momento em que- sobretudo por influxo das ideais da prevenção especial- se reconheceu a primacial importância da consideração da personalidade do arguido no processo penal, não mais se podia duvidar da absoluta prevalência a conferir aos princípios da oralidade e da imediação. Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais”- págs. 233-234.
Os juízos dados como assentes na decisão recorrida asseveram-se como plenamente legítimos face ao conteúdo do princípio da livre apreciação da prova. A versão dada com provada é plausível e não contraria as leis da lógica.
O tribunal recorrido teve acesso a outros elementos, como tom de voz, gestos, capacidade física dos intervenientes, que lhe permitirão formar a sua convicção, a qual não resulta aqui sindicável.
A posição expressa pelo recorrente B… a propósito da não prova dos comportamentos que lhe são atribuídos parece apontar para o entendimento de que este Tribunal estaria agora em condições de proceder a um novo julgamento, considerando credível a versão da defesa do arguido agora exposta e não a da acusação.
Mas, pelas razões expostas supra, tal não é viável. O mecanismo de impugnação da prova previsto no art.º 412.º, ns. 3 e 4 do CPP destina-se antes a corrigir aquilo que se constata serem erros de julgamento e que resultem ostensivos da audição do registo de prova; já não a fazer tábua rasa das vantagens da imediação e do principio da livre convicção de quem tem a difícil missão de julgar.
Os aspectos para que o recorrente B… chama a atenção e referenciados do registo de prova não são de molde a imporem uma decisão diversa da recorrida.
Reparando nos pontos para que o recorrente chama a atenção, é possível realçar contradições de pormenor, que sempre existem. A versão dos factos não foi exactamente contada da mesma forma por duas mesmas pessoas. Por vezes, a absoluta coincidência de versões é que é de molde a exigir algum distanciamento crítico.
Mas a função do julgador não é a de encontrar o máximo denominador comum entre os diversos depoimentos. Nem, tão pouco, tem o juiz que aceitar ou recusar cada um dos depoimentos na globalidade, cabendo-lhe antes a espinhosa missão de dilucidar, em cada um deles, o que lhe merece crédito. Como já há muito escrevia o prof. Enrico Altavilla, o interrogatório como qualquer testemunho está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras – Psicologia Judiciária, vol. II, 3.ª ed., pág. 12.
Particularmente impressivos são os depoimentos dos ofendidos G…, I… e M…. O seu teor é de tal forma pesado que até mesmo um cidadão de sofrível cultura e inteligência não poderia deixar de dar o seu assentimento imediato à confirmação dos factos que foram dados como provados.
Apenas mais uma nota em jeito de reforço: as reticências que poderiam existir são rapidamente eliminadas: o tom receoso inicial do depoimento G… cede face à evidência dos factos, a falta de credibilidade do depoimento do H… manifesta, com a delirante história dos barbecues a meio do trabalho, entre valados.

Como se explicitou no Ac. do STJ, de 7.12.2005, SASTJ, n.º 96,67, o teor do art.º 374.º, n.º2 do CPP, no que ao exame crítico das provas diz respeito, satisfaz-se com a enumeração sem dúvida sintética das razões que fundam a decisão.
Não se trata de construir um exercício de erudição, mas de fazer com que se possa compreender o que levou a decisão a um sentido e não a outro.
A decisão recorrida, como se explicita supra, valorou devidamente os depoimentos das testemunhas, designadamente os ofendidos, dentro dos parâmetros supra referidos, não deixando margem para dúvidas sobre a s razões porque lhes atribuiu credibilidade.
Inexiste, pois, a nulidade prevista no art.º 379.º, n.º1, al) a do CPP.

Não havendo alteração da matéria de facto dada como provada e concernente ao arguido recorrente, fazendo este derivar a não subsunção ao tipo dessa malograda alteração, subsiste necessariamente a incriminação da decisão recorrida.

B) Recurso da arguida C…:
1. O juízo sobre a matéria de facto e a nulidade de sentença.

No que diz respeito ao julgamento da matéria de facto, dão-se aqui como reproduzidas considerações já efectuadas na instância recursiva anterior, por simples razões de economia processual.
No que diz respeito à recorrente, importa ponderar a especificidade da sua actuação.
Após se ponderar o teor do registo de prova, nada há que imponha a menor ou insignificante participação nos factos da recorrente; antes pelo contrário, a sua intervenção é muito vincada, desde a sua confecção das péssimas refeições, passando pelo severo controle dos primitivos cuidados de limpeza e satisfação de necessidades fisiológicas no monte, até à substituição do marido na ausência deste, primando pela fiscalização da mão de obra, como o evidencia a testemunha I…, a qual foi vítima de uma “sacholada no pé de propósito”, e de furto de dinheiro (“num Domingo o Sr. B… deu-me 5 euros a mim e ao G… para irmos ao café e a C… tirou-nos a nota e saímos sem dinheiro nenhum”).
O registo de prova impõe, pois, o juízo de prova contido na decisão recorrida.
Inexiste igualmente qualquer violação do disposto no art.º 374.º, n.º2 do CPP, pois que o trecho referente à formação da convicção do tribunal não se limita a descrever o conteúdo dos diversos depoimentos, sendo objectivo no exame crítico dos mesmos, como se pode depreender, por exemplo, em todo o teor da página 32. Improcede assim a arguição da nulidade de sentença prevista no art.º 379.º, n.º1, al.) a do CPP.
2. Subsunção jurídica dos factos.

A decisão recorrida procedeu a esta subsunção, nestes termos:

Comecemos, então pelo crime de escravidão p. e p. pela al. a) do art. 159º do Código Penal.
Dispõe tal norma:
“Quem:
a) Reduzir outra pessoa ao estado ou à condição de escravo;
É punido com pena de prisão de 5 a 15 anos.”
O bem jurídico tutelado por este tipo de ilícito é (cfr. Taipa de Carvalho no Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, p. 423) a dignidade ou personalidade humana individual.
Quanto ao tipo objectivo, cabe dizer que reduzir uma pessoa à condição de escravo é reduzi-la a uma coisa, tratá-la como sua propriedade, colocando-a num estado de sujeição total, consiste pois em uma pessoa ser tratada não propriamente como uma pessoa mas como uma coisa de que o agente dispõe (cfr. Taipa de Carvalho, loc. Cit. e ainda Paulo Pinto Albuquerque, Comentário do Código Penal, pág. 428). Esta noção de escravidão está contida na Convenção de Genebra de 1926: “A escravidão é o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem os atributos do direito de propriedade ou alguns destes”.
A redução da pessoa ao estado ou à condição de escravo (Cfr. sobre esta matéria Paulo Pinto Albuquerque, loc. Cit., bem como os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 30.01.2013 –Rel. Desemb. José Piedade -, de 27.11.2013 - Rel. Desemb. Augusto Lourenço – e de 05.11.2014 – Rel. Desemb. Artur Oliveira -, todos eles em dgsi.pt) pode se operada por qualquer meio, não implicando necessariamente o cativeiro da vítima. Os meios mais frequentes nas sociedades modernas de reduzir uma pessoa a escravo são o tráfico de seres humanos, a escravidão sexual, a escravidão laboral e a extracção de órgãos.
Em relação à escravidão laboral, cabe referir que a mesma existe, desde logo, quando se verifiquem duas condições cumulativas: por um lado, a vítima não tem qualquer poder de decisão sobre o número de horas de trabalho que tem de prestar e, por outro, a vítima não dispõe de qualquer parte da retribuição pelos serviços prestados (Cfr. Paulo Pinto Albuquerque, op. cit. pág. 429).
Mas não só, porquanto, conforme se referiu no Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 05.11.2014 (Rel. Desemb. Artur Oliveira), o conceito de escravidão do artº 159º, alínea a) do Código Penal, inclui os casos de servidão para a exploração do trabalho. A servidão constitui uma forma particularmente grave de negação da liberdade e uma realidade mais ampla que a invocada pelo sentido comum do termo “escravidão”. A servidão constitui a obrigação de viver e trabalhar na propriedade dos outros e de prestação de determinados serviços, remunerados ou não, bem como a impossibilidade de mudar a condição.
Quanto ao tipo subjectivo exige-se o dolo directo ou necessário, não bastando o eventual.
Começando pelo arguido AG…, cabe dizer que os factos que lhe eram imputados não resultaram provados, pelo que deve ser absolvido do crime de escravidão que lhe era imputado.
Já em relação aos arguidos B… e C… entende o tribunal que dos factos provados resulta que estes dois arguidos cometeram um crime de escravidão sobre cada um dos ofendidos G…, I… e M….
Com efeito, estes arguidos obtiveram o consentimento dos ofendidos para irem trabalhar para Espanha mediante uma determinada remuneração diária, a que acresceria alojamento e habitação. O que se veio a verificar, conforme resulta dos factos provados, é que os referidos arguidos se apropriavam da remuneração devida aos ofendidos, apenas lhes pagando o que quiseram quando estes se vieram embora, ao fim de alguns meses de trabalho. Acresce que, embora os ofendidos tenham pedido para se virem embora, os arguidos não os deixaram vir antes de terminada a campanha, assim lhes suprimindo a liberdade pessoal. Por outro lado, o ofendido M… tentou fugir da quinta onde se encontravam, sendo que o arguido B… o foi apanhar e o ameaçou. Mais, a determinada altura o ofendido M… conseguiu fugir e foi à polícia espanhola que se dirigiu à quinta onde se encontravam tendo a arguida C… pago parcialmente o que lhe era devido pelo trabalho, sendo que nessa altura alguns dos outros trabalhadores foram ameaçados pelos homens de confiança do arguido B…. Os ofendidos não tinham direito a servir-se da casa de banho para fazerem as suas necessidades, tendo de ir «ao monte» e apenas podendo tomar banho numa vez por semana.
Resumindo, destes factos somos forçados a concluir que os ofendidos foram sujeitos a trabalhos forçados, pois não tinham liberdade para se virem embora e apenas recebiam a sua remuneração se, quando, como e na quantidade que os arguidos B… e C… entendessem. Não podiam servir-se da casa de banho para fazer as necessidades, tendo de ir ao monte, sendo por isso tratados como se fossem coisas e não como pessoas. Se tentavam a fuga, como aconteceu com o ofendido M…, eram perseguidos, capturados e ameaçados, como se de coisas móveis pertencentes aos arguidos B… e C… se tratassem. Enfim, foram tratados de forma degradante e desumana pelos arguidos B… e C….
Também, o elemento subjectivo do tipo, o dolo, se mostra preenchido pelo comportamento dos arguidos B… e C…, tal como resulta dos factos provados.

Concordamos no essencial com esta interpretação do tipo, chamando particularmente a atenção para a sua densificação estritamente jurídica, ao nível das Convenções Internacionais, efectuada no mencionado acórdão deste TRP, de 5.11.14, tendo agora presente a segunda alínea do art.º 1.º da Convenção Suplementar de Genebra, de 7 de Setembro de 1956, a qual visa a servidão em tempo indeterminado para o trabalho agrícola.
Aditamos, apenas, em jeito de reforço, e alguma correcção da argumentação em causa, duas ou três notas.
Tutela-se neste preceito legal algo mais profundo que a liberdade referida no excerto acabado de reproduzir. O “Comentário Conimbricense ao Código Penal” refere que a autonomia e especificidade deste tipo de crime passa pela recondução do bem jurídico tutelado à dignidade ou personalidade humana individual(…) Reconduzir o bem jurídico tutelado exclusivamente à liberdade equivaleria a esvaziar de conteúdo prático este tipo de crime, atribuindo-lhe apenas uma função simbólica, pois que as diversas manifestações da liberdade humana (liberdade de decisão, de acção, de movimento, sexual, religiosa, politica, etc) já estão previstas e tuteladas por diversos tipos de crime contra as liberdades) –Tomo I da parte especial, pág. 423.
Trata-se da exploração do ser humano, feita por outro que não se resume à escravidão em sentido estrito, abarcando todas as formas de servidão. Haverá sempre que densificar o conceito com as circunstâncias económicas, sociais e culturais de cada época; e dentro de cada conjunto destas não é unívoco.
Assim, entre os escravos que trabalhavam nas minas e nos latifúndios do sul de Itália de Roma antiga e a deportação sistemática dos negros da África para a América, dos sécs. XVII e XVIII parece haver uma linha de continuidade na dureza e precariedade da condição humana envolvida. Mas melhor, por certo, em regra, era o tratamento dos escravos que viviam na cidade e que, além dos serviços domésticos, podiam estar adstritos, segundo a sua capacidade, a funções delicadas e de responsabilidade: professores, preceptores, ajudantes do dominus no exercício colectivo de actividades empresariais, na realidade romana tardo-imperial e imperial, não se manifestava apenas na forma jurídica da societas, mas frequentemente se desenvolvia através do exercere negotiatones perservos communes. Estamos longe da concepção destes como de re rustica, que assimilava o escravo, como pertencente ao fundo, a um instrumento vocal – cfr. Enciclopédia del Diritto, volume XLI, Giuffrè Editore, Milão, pág. 625, entrada “Schiavitù”.
Não releva a comparação com aquelas formas mais extremas de esclavagismo para excluir o presente tipo legal.
A pág. 640 desta obra pode ainda ler-se: Com esta incriminação, o ordenamento jurídico quer reprimir a constituição ou manutenção de relações de senhorio/sujeição que, considerando a pessoa análoga a um animal ou a uma coisa, não a tratam de acordo com a sua natureza humana. Objecto da tutela é o interesse da sociedade no reconhecimento e salvaguarda da personalidade individual. Mais que a liberdade, objecto de tutela é a pessoa humana.
Já no Trattato di Diritto Penale Italiano, vol. VIII, pág. 633, Manzinni englova no conceito de escravidão «também as condições individuais que correspondem aos antigos institutos da semiliberdade e da servidão da gleba».
A condição análoga à escravidão em sentido estrito vem a ser a condição de um indivíduo que – por meio da actividade aplicada por outrem sobre a sua pessoa – se venha a encontrar (embora conservando nominalmente o status de sujeito do ordenamento jurídico) reduzido à exclusiva senhoria do agente, o qual materialmente o utiliza, apropria-se do seu rendimento, de modo similar aquele que – segundo o conhecimento histórico, reunido no actual património sócio-cultural dos membros da colectividade – o «senhor», em tempos, exercia o seu poder sobre o escravo – Paolo Pisa, Giurisprudenza Commentata di Diritto Penale, vol. I, Cedam, Padova, 1999, pág. 252.
Veja-se também o escrito a pág. 424 do Comentário Conimbricense: A Convenção Suplementar de Genebra de 1956 indicou, a título exemplificativo, várias condutas que qualificou de «condições análogas» à de escravidão. Trata-se de comportamentos que têm o elemento típico da escravidão, ou seja, a redução de uma pessoa à categoria de mero objecto, coisa ou mercadoria.
Dúvidas não existem sobre a sucessão de constrangimentos e desapossamento do fruto do seu trabalho a que os ofendidos foram sujeitos integrarem o tipo de crime de escravidão.
3. A fixação da medida da pena e a suspensão da execução desta.

Face ao que ficou apurado no juízo da matéria de facto, o grau de culpa da arguida é máximo e elevado, sendo altamente censurável o seu procedimento do ponto de vista ético-jurídico – chocando a sensibilidade jurídica e moral de qualquer cidadão médio. Também o facto de ter filhos a seu cargo não é tida como circunstância susceptível de diminuir por forma acentuada o juízo de ilicitude, de culpa ou da necessidade da pena – pressuposto essencial da pretendida atenuação especial da pena, prevista no art.º 72.º, n.º1 do CP.
No que ao tempo decorrido desde a prática dos factos diz respeito, note-se que a decisão recorrida foi exarada em 5.2.2015. A execução dos crimes terminou sensivelmente em meados de 2004, pelo que se pode afirmar terem decorrido entre as duas datas pouco mais de dez anos e meio.
De forma reiterada e pacífica, tem o STJ vincado bem que o decurso do tempo só tem peso atenuativo se a demora não foi causada por conduta processual reprovável do arguido; ainda se o alvoroço social provocado pela prática do crime se esfumou e a personalidade do arguido se tenha transformado para melhor (veja-se conjunto de idênticas decisões na anotação ao art.º 72.º do CP, em Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, 18.ª edição, 2007.
O tipo legal em causa envolve condutas de uma enorme magnitude. A notícia que a comunidade tem destes comportamentos provoca comoção social e fortes juízos de censura. Como escreveu o Prof. Taipa de Carvalho, no aludido Comentário Conimbricense do Código Penal, pág. 425, a dignidade humana e a consequente personalidade jurídica individual é o fundamento de todos os bens jurídicos; donde a indisponibilidade absoluta do bem jurídico protegido por este tipo de crime e, consequentemente, a absoluta impossibilidade humana e jurídica de uma qualquer justificação de uma situação ou acto de escravidão. Acresce, sem que tal fosse necessário, que a redução de uma pessoa à condição de mero objecto nunca contribuiria para preservar fosse que bem jurídico fosse. Logo, são impensáveis quaisquer possibilidades de justificação de comportamentos tão radicalmente desumanos.
E acrescenta o mesmo Autor, a pág. 426: Sob o ponto de vista ontológico, moral e filosófico-jurídico, pode considerar-se a escravidão como o mais grave de todos os crimes: se, por exemplo, no homicídio ou genocídio, se destrói a vida de uma ou várias pessoas que são reconhecidas como tais pelo agente, na escravidão é a própria humanidade e dignidade pessoal que é negada pelo agente, ao transformar a pessoa em seu objecto. Não significa isto que, politico-criminalmente, a pena de escravidão deva ser superior à do homicídio ou do genocídio, pois que a “destruição” da dignidade humana é recuperável na escravidão, o que não acontece no genocídio mortal ou no homicídio. Significa, sim, que são impensáveis quaisquer hipóteses de desculpação.

Mas impensáveis não eram, neste decurso de tempo dilatado entre a prática de tão abomináveis crimes pela recorrente, que esta procurasse convencer o tribunal que foi um ciclo perfeitamente isolado e irreversível da sua vida; que a sua personalidade não se revê neles, em síntese. Ora, a arguida não assumiu qualquer responsabilidade, confessando os factos, mostrando algum tipo de arrependimento, pelo menos reparando parte dos danos, ou sequer publicamente, em audiência, apresentando um simples pedido de desculpas.
O que evidencia que não houve qualquer transformação do mau carácter manifestado naquelas gravíssimas condutas, deixando suspeitar que, se idênticas circunstâncias se voltassem a proporcionar, a recorrente não teria grandes pruridos em as repetir.
E, na verdade, não há exagero algum nesta avaliação dessas condutas. Trata-se de abordar pessoas que já estão fragilizadas na vida, e aproveitar essa situação para as rentabilizar, como se de meras máquinas agrícolas se tratasse.
Repare-se só neste aspecto: sendo elas de humilde condição económica e social, não estariam por certo habituadas a uma boa ou adequada alimentação, conferindo-se rotinas exigentes a esse nível. Mas praticamente o conjunto das vítimas assume que a comida era péssima, que se tratava de arroz ou massa com um conjunto de ossos e pele de carne à mistura – algo que normalmente é entregue a muitos animais domésticos.
Também só os animais é que satisfazem as suas necessidades no monte. E só eles desenvolvem esforço, orientados pelos humanos, que não é recompensado a não ser pela alimentação que estes lhe proporcionam, a fim de se reconstituir elementarmente a sua força de trabalho.
Não, há, pois, qualquer razão para atenuar especialmente a pena, nos termos do disposto no art.º 72.º do CP, pois que nem a imagem global do facto não surge esbatida, na sua ilicitude ou juízo de culpa; nem a necessidade de punição se revelou menor frente a uma evolução favorável da personalidade da arguida.
Foi adequadamente cumprido o disposto no art.º 71.º do CP, limitando-se a recorrente a este nível a simplesmente invocar a violação do preceito – mas não se descortinando qualquer excesso a este nível, tanto mais que o quadro de circunstancialismo atenuante é reduzido face às correctas circunstâncias agravantes mencionadas na decisão recorrida.
Ultrapassando assim a pena única o limiar de cinco anos de prisão, inviável se mostra qualquer acto de ponderar o teor do art.º 50.º do CP.
Por último, em virtude de ter sido suscitada em audiência a questão da constitucionalidade do entendimento perfilhado relativamente ao âmbito do art.º 127.º do CPP, consideramos que o mesmo em nada ofende o art.º 32.º da CRP. Foi lido e reflectido o registo de prova, como supra se deu a entender. Quanto à imediação da prova, essa só a pode ter o tribunal recorrido, com as vantagens à mesma inerentes.

C) Recurso do MP:

Face ao que ficou dito no último parágrafo da instância recursiva da arguida, em coerência entendemos que não há razões, nem são alegadas circunstâncias especiais – além da forte ilicitude da conduta dos arguidos – que justifiquem um agravamento das penas.
Como o Exmo PGA junto deste Tribunal da Relação referiu, os arguidos não têm no seu passado inscrita a comissão de outros crimes.
Inserem-se na sua comunidade de residência de forma pacífica e sem reparos, sendo qualificados como pessoas correctas e educadas.
Não, há, pois razão para alterar a aplicação que foi feita do preceituado no art.º 71.º do CP nesta matéria.

Decisão:

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal Colectivo em negar provimento aos recursos interpostos pelo MP e pelos arguidos B… e C…, confirmando integralmente a decisão recorrida.
Os arguidos pagarão taxa de justiça, a qual se fixa em 5 Ucs.

Porto, 9 de Dezembro de 2015.
Borges Martins
António Gama