Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
80/21.5T8VGS-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: DEOLINDA VARÃO
Descritores: PEDIDO DE APOIO JUDICIÁRIO
NOMEAÇÃO DE PATRONO
CONSTITUIÇÃO DE MANDATÁRIO
APRESENTAÇÃO DE DUAS CONTESTAÇÕES
Nº do Documento: RP2021121580/21.5T8VGS-A.P1
Data do Acordão: 12/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Se na sequência da concessão do pedido de apoio judiciário o patrono nomeado apresenta contestação nos autos, e se, posteriormente, é constituído mandatário que apresenta nova contestação, sendo que nenhuma delas foi notificada ao Autor, deve ser admitida a substituição da primeira contestação pela segunda, sobretudo se a primeira é de cariz meramente formal e a segunda representando uma defesa efectiva dos interesses da ré.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 80/21.5T8VGS-A.P1 – 3ª Secção (Apelação) - 1425
Acção Comum – Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo de Competência Genérica de Vagos

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B… e C… instauraram acção declarativa, com forma de processo comum, contra D… e E….
Em 26.03.21, a ré E… foi citada, mediante “citação com hora certa”.
Em 05.05.21, a ré juntou aos autos comprovativo de requerimento de pedido de protecção jurídica, incluindo na modalidade de nomeação e pagamento da compensação de patrono.
Em 13.05.21, a Ordem dos Advogados comunicou ao Tribunal que tinha sido nomeado patrono à ré.
Em 31.05.21, o patrono nomeado informou os autos que apresentou pedido de escusa junto da Ordem dos Advogados.
Em 02.06.21, foi proferido despacho a considerar interrompido o prazo de que a ré dispunha para contestar.
Em 10.06.21, o patrono da ré informou o Tribunal de que lhe foi indeferido o pedido de escusa e, na mesma data, apresentou contestação, em nome/representação daquela.
Nessa contestação, impugnou os factos alegados pelos autores e indicou as testemunhas que haviam sido indicadas na petição inicial,
Em 16.06.21, a ré apresentou contestação deduzida por mandatário por si constituído, juntando aos autos procuração outorgada a favor do mesmo, com data de 15.06.21.
Naquela contestação, foram invocadas as excepções de ineptidão da petição inicial e de ilegitimidade activa e passiva, foram impugnados motivadamente os factos alegados pelos autores e foram juntos e requeridos meios de prova não indicados pelos autores.
Nenhuma das contestações foi notificada aos autores.
Em 25.06.21, o patrono nomeado à ré requereu que fosse dada sem efeito a contestação por si apresentada e que fosse considerada a que foi deduzida pelo mandatário constituído.
Como fundamento, alegou que nunca foi contactado pela ré, razão pela qual apresentou pedido de escusa à Ordem dos Advogados, e que, face ao indeferimento do mesmo, apresentou contestação em 10.06.21 apenas para evitar que aquela fosse condenada de preceito.
Na mesma data, a ré apresentou requerimento de teor idêntico, assumindo nunca se ter reunido com o patrono nomeado e alegando ainda que a contestação apresentada por aquele não corresponde à sua vontade e conhecimento, ao contrário do articulado oferecido pelo seu mandatário constituído, que acautela os seus interesses, sendo que o direito à defesa não pode ser meramente formal, em denegação da tutela jurisdicional efectiva.
Em 06.07.21, os autores requereram que fosse desconsiderada a segunda contestação deduzida, por extemporânea, prevalecendo a primeira.
Como fundamento, alegaram que o prazo de que a ré dispunha para contestar terminava em 14.06.21, e que o aproveitamento da interrupção do prazo emergente do pedido de protecção jurídica, para apresentar contestação subscrita por mandatário constituído, consubstancia uma clara situação de abuso de direito e violação do princípio da igualdade.
Em 02.09.21, a ré respondeu ao requerimento dos autores, contrapondo que a segunda contestação por si apresentada é tempestiva, atenta a interrupção do prazo emergente do pedido de escusa apresentado pelo patrono que lhe foi nomeado.
Adicionalmente, sustentou não existir abuso de direito, sendo que o prazo alargado para contestar também se compreende nas situações em que o requerente perdeu confiança neste ou se desentendeu, ou ainda simplesmente decidiu constituir um advogado porque a sua situação económica melhorou (podendo custear os seus honorários) ou recorreu a um empréstimo, tudo na perspectiva de que com tal patrocínio voluntário os seus direitos serem melhor defendidos.
Com os requerimentos de 25.06.21, 06.07.21 e 02.09.21, não foi apresentada ou requerida qualquer prova.
Em 09.09.21, foi proferido despacho que:
- Julgou intempestiva e legalmente inadmissível a contestação deduzida pela ré E…, em 16.06.21 e, em conformidade, ordenou o respectivo desentranhamento;
- Julgou tempestiva a contestação deduzida pela ré em 10.06.21 e, em conformidade, admitiu a mesma.
A ré recorreu daquele despacho, suscitando, nas suas CONCLUSÕES, a seguinte questão:
- Se deve ser ordenado o desentranhamento da contestação apresentada em 10.06.21 e se deve ser admitida a contestação apresentada em 16.06.21.
Em 26.10.21, foi proferido o seguinte despacho:
Nas alegações de recurso em referência, a ré suscita questões novas que não alegou nos requerimentos de 25-06-2021 e 02-09-2021, sobre os quais recaiu o despacho proferido em 09-09-2021, assim como junta documentos anteriores àqueles (datados de 11-06-2021), os quais são contrários aos argumentos invocados e à posição assumida nos autos pelo ilustre patrono que lhe foi nomeado (bem como, de acordo com os elementos reunidos nos autos, junto da Ordem dos Advogados).
Nesta medida, dê conhecimento das alegações e documentos ora apresentados ao ilustre advogado que foi nomeado patrono à ré E…, para conhecimento.”.
Na mesma data, foi admitido o recurso do despacho de 09.09.21.
Na sequência do despacho acima transcrito, em 12.11.21, o patrono nomeado à ré respondeu às alegações de recurso.
Em 26.11.21, a ré respondeu àquela resposta.

Os autores não contra-alegaram.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II.
Os elementos com interesse para a decisão do recurso são os que constam do ponto I.
*
III.
O recurso é balizado pelas conclusões das alegações, estando vedado ao tribunal apreciar e conhecer de matérias que naquelas não se encontrem incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do CPC), acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
A questão que está delimitada pelas conclusões da alegação da apelante é a que se enunciou no ponto I:
- Se deve ser admitida a substituição da contestação apresentada em 10.06.21 pela contestação apresentada em 16.06.21.

No despacho recorrido, concluiu-se que ambas as contestações foram apresentadas dentro do prazo de que a ré dispunha para contestar.
Tal conclusão é favorável à ré e os autores não recorreram, pelo que o despacho recorrido transitou em julgado, nesta parte.

Com os requerimentos de 25.06.21 e de 02.09.21, não foi apresentada ou requerida nos autos qualquer prova sobre as razões que levaram a ré a, após lhe ter sido nomeado patrono, ter vindo constituir mandatário e ter juntado aos autos uma contestação subscrita por este.
Sucedendo que, no requerimento que apresentou em 25.06.21, a ré alegou apenas que nunca reuniu com o patrono nomeado.
Só nas alegações de recurso, veio a ré alegar que tentou contactar com o patrono nomeado e que este não respondeu a essas tentativas de contacto.
E, para prova de tal facto, juntou a ré cópia de uma carta datada de 11.06.21, ou seja, com data anterior à dos requerimentos apresentados nos autos.
A ré vem, pois, em sede de alegações alegar um facto novo, que não pode ser considerado provado por este Tribunal, – cfr. o que, sem intuito meramente tabelar, acima dissemos acerca do âmbito do recurso – bem como juntar aos autos um documento para prova de tal facto, cuja junção é inadmissível (artigo 651.º, n.º 1 do CPC).
Quanto à “resposta” apresentada pelo patrono nomeado à ré às alegações de recurso, e aos documentos juntos com a mesma, bem como à “contra-resposta” apresentada pela ré, trata-se de peças anómalas, alheias à tramitação normal do recurso de apelação, que apenas permite a apresentação de alegações e de contra-alegações (artigos 637.º, n.º 2 e 638.º, n.º 5, do CPC).
Acrescendo que os documentos juntos com a “resposta” do patrono nomeado à ré também têm data anterior à dos requerimentos acima referidos, pelo que, só por essa razão, seria inadmissível a sua junção aos autos na instância recursiva.
Não pode, pois, ser considerado provado que a ré nunca reuniu com o patrono nomeado por razões imputáveis a este, assim como não pode ser considerado provado que essa reunião não ocorreu por razões imputáveis à ré.
As vicissitudes da relação entre a ré e o patrono que lhe foi nomeado ficam a relevar apenas para efeitos do pedido de escusa que foi formulado e foi indeferido pela Ordem dos Advogados e cujo conhecimento pelo Tribunal se circunscreve à respectiva decisão (cfr. artigo 34.º da Lei 34/04, de 29.07).
Desconhecem-se, pois, as razões, que motivaram a junção aos autos pela ré de procuração a mandatário constituído e de contestação subscrita por este.

Temos então de partir apenas deste pressuposto: há duas contestações nos autos, ambas apresentadas dentro do prazo de que a ré dispunha para contestar (tal como se decidiu no despacho recorrido).
A questão que se coloca é, então, a de saber se a contestação apresentada em 10.06.21 pelo patrono nomeado à ré pode ser substituída pela contestação apresentada em 16.06.21 pelo mandatário constituído.

No despacho recorrido, escreveu-se o seguinte:
(…).
Ora, de acordo com o disposto no artigo 573º do Código de Processo Civil, toda a defesa deve ser deduzida na contestação, sem prejuízo das excepções, incidentes e meios de defesa supervenientes ou de conhecimento oficioso.
Trata-se dos princípios da concentração e da preclusão, que visam salvaguardar os princípios da estabilidade processual e da segurança jurídica, os quais impedem, em nosso entendimento, que as partes pratiquem actos processuais em juízo e que, após a citação dos réus e a consequente estabilização da instância, os retirem de seguida ou os substituam por outros.
Tanto significa que as partes não podem praticar actos no processo e substituí-los, depois, por outros, mesmo que ainda não se mostre integralmente decorrido o prazo de que dispunham, ab initio, para o efeito.
Se assim não fosse, enquanto não se esgotasse o prazo em curso, as partes poderiam apresentar sucessivamente várias versões do mesmo acto processual, tendo as demais partes que aguardar, necessariamente, pelo termo do prazo previsto para a prática do mesmo, para poderem exercer o contraditório ou se poderem praticar os actos subsequentes do processo.
Tal implicaria que a prática de qualquer acto processual não se estabilizaria e não produzira quaisquer efeitos, até ao último dia do prazo previsto para a sua apresentação em juízo, visto que, até esse momento, poderia ser livremente retirado ou substituído por outro (rectius, por outra versão do mesmo).
É manifesto que tal entendimento não pode ser acolhido, por se assomar incompatível com os princípios supra enunciados, bem como com o princípio da celeridade processual.
De facto, as partes deverão adaptar a sua postura processual e diligenciar por praticar os actos processuais no momento devido, sob pena de, permitindo-se generalizadamente a substituição de peças processuais por outras se subverter toda a tramitação processual e se colocar em causa, inexoravelmente, a estabilidade e segurança jurídicas. [2 Neste sentido vejam-se os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 15/05/2020, Processo: 2274/19.4T8VNG A.P1 e de 03-06-2019, Processo: 1155/18.3T8AVR B.P1, acessíveis em: www.dgsi.pt.].
Assim sendo, ao praticar determinado acto antes do último dia do prazo de que dispõe para o efeito, a parte renuncia tácita e necessariamente ao remanescente do prazo em curso, tal como se decidiu, nomeadamente, no acórdão da Relação do Porto de 15-05-2020, que acompanhamos, onde se exarou que:
«I - Excetuados os casos em que pode ser deduzida defesa fora da contestação, vigora o princípio da concentração da defesa e a consequente preclusão dos meios de defesa.
(…)
III - A contestação, uma vez apresentada, não pode ser substituída por outra, estando o respetivo prazo ainda em curso. Quando se apresenta a contestação antes de esgotado o prazo, renuncia-se à parte deste que ainda restava.».
Admitimos que, excepcionalmente, tal substituição possa ter lugar, mediante acordo das partes ou se a preterição de tal possibilidade contender com algum direito ou princípio constitucional, nomeadamente, com os princípios da tutela jurisdicional efectiva e do direito a um processo justo e equitativo, invocados pela ré, nos seus requerimentos.
(…).”.

O caso dos autos apresenta uma especificidade que consiste em que nenhuma das contestações foi notificada aos autores.
Por isso, os autores não criaram qualquer expectativa acerca da defesa da ré e, nessa medida, os princípios da estabilidade da instância, da concentração da defesa e da preclusão processual não se mostram violados.
Por outro lado, resulta claramente do teor da contestação apresentada pelo patrono nomeado à ré que se trata de uma contestação apresentada apenas por dever de patrocínio, devido à ausência de contactos entre a ré e o patrono (não relevando aqui a imputabilidade dessa ausência de contactos).
Ao invés, a contestação apresentada pelo mandatário constituído tem um conteúdo diferente, não meramente formal, representando uma defesa efectiva dos interesses da ré.
E como – reiteramos – os autores nenhuma expectativa criaram quanto à defesa da ré, a admissibilidade da segunda contestação não lhes causa qualquer prejuízo nem põe em causa os princípios processuais acima enunciados.
Por outro lado, a inadmissibilidade da apresentação da segunda contestação, levaria à violação do direito da ré à tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20.º da CRP.

Pelas razões expostas, terá de ser admitida a substituição da contestação apresentada em 10.06.21 pela contestação apresentada em 16.06.21.
Não há necessidade de ordenar o desentranhamento da primeira contestação apresentada.
*
IV.
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se o despacho recorrido e, em consequência:
- Admite-se a substituição da contestação apresentada a 10.06.21 pela contestação apresentada a 16.06.21.
Custas pelos apelados.
***
Porto, 15 de Dezembro de 2021
Deolinda Varão
Freitas Vieira
Isoleta de Almeida Costa