Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
725/23.2T8PVZ-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO
NOMEAÇÃO DO CABEÇA DE CASAL
TESTAMENTO
Nº do Documento: RP20240222725/23.2T8PVZ-A.P1
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: O testamenteiro só é chamado a exercer o cargo de cabeça de casal não havendo cônjuge sobrevivo, não separado judicialmente de pessoas e bens, que seja herdeiro ou meeiro nos bens do casal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO DE APELAÇÃO
ECLI:PT:TRP:2024:725.23.2T8PVZ.A.P1
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SUMÁRIO:
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. Relatório:
AA, contribuinte fiscal n.º ..., de nacionalidade portuguesa, residente no Brasil, veio requerer a abertura de processo de inventário para partilha dos bens sitos em Portugal deixados por óbito do seu marido BB, contribuinte fiscal n.º ..., de naturalidade e nacionalidade portuguesa, falecido em 17/02/2023 em ..., ..., Brasil, onde residia, no estado de casado no regime da comunhão de adquiridos com a requerente, e do qual são herdeiros a requerente e os quatro filhos.
A requerente afirmou na ocasião caber-lhe o exercício do cargo de cabeça de casal.
Por despacho judicial a requerente foi nomeada cabeça de casal.
Os interessados foram citados.
Na sequência da citação, a interessada CC veio alegar que o inventariado deixou testamento no qual a instituiu «testamenteira e inventariante», que essa disposição é válida nos termos dos artigos 2320.º, 2321.º e 2322.º do Código Civil e já foi aceite pela interessada nos termos e para os efeitos do artigo 2323.º do Código Civil, razão pela qual, nos termos da al. b) do n.º 1 do artigo 2080.º do Código Civil, lhe cabe o exercício do cargo de cabeça de casal a que alude o artigo 2079.º do Código Civil.
Com tal fundamento, requereu que a requerente seja destituída de tais funções, dando-se sem efeito as declarações que prestou nessa qualidade.
A requerente pronunciou-se no sentido de lhe caber o exercício do cargo de cabeça de casal.
A seguir foi proferida decisão na qual foi julgado procedente o incidente de impugnação da competência da cabeça de casal, removeu-se a requerente do exercício desse cargo, anularam-se todos os actos praticados pela mesma no exercício do cargo e nomeou-se a interessada CC cabeça de casal.
Do assim decidido, a requerente recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
I- As funções de cabeça de casal da herança do inventariado são um dever e um direito das pessoas elencadas no artigo 2080, nº 1, do C.C.
II- O artº 2080, nº 1 do C.C., nas suas várias alíneas estabelece a ordem pela qual se defere as funções de cabeça de casal, sendo a da alínea b), depois da alínea a) e assim sucessivamente.
III- O cargo de cabeça de casal só se defere ao testamenteiro se não existir cônjuge do inventariado, herdeiro ou meeiro.
IV- O artigo 2326, alínea c) do C.C. não é passível de ser interpretado como dando preferência ao testamenteiro sobre o cônjuge herdeiro e meeiro, para ser nomeado como cabeça de casal.
V)- A decisão recorrida violou os artºs 2080, nº 1, alínea a) e 2326, al. c) do C.C.
Termos em que, deve julgar-se o presente recurso totalmente procedente, revogando-se a decisão recorrida, e confirmando-se a recorrente no cargo de cabeça de casal.
A recorrida respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida a quem cabe exercer no presente processo de inventário o cargo de cabeça de casal: o cônjuge meeiro e herdeiro do inventariado ou a herdeira que o inventariado nomeou testamenteira e cabeça de casal.

III. Fundamentação de facto:
Encontram-se julgados provados em definitivo os seguintes factos:
1. AA requereu o presente inventário com vista à partilha da herança de BB, falecido em 17/02/2023.
2. O inventariado faleceu no estado de casado com a requerente, no regime de comunhão de adquiridos.
3. Deixou os seguintes filhos:
. CC, solteira, residente no … Brasil.
. DD, casado, residente no … Brasil.
. EE, casado, residente no … Brasil.
. FF, solteira, residente no … Brasil.
4. Por despacho de 08/05 pp a requerente foi nomeada cabeça de casal.
5. O inventariado outorgou testamento, em 29/07/2020, por via do qual, além do mais, instituiu testamenteira CC.

IV. Matéria de Direito:
A questão jurídica suscitada prende-se com a definição de pessoa que deve exercer o cargo de cabeça de casal nos casos em que por testamento o inventariado nomeou testamenteiro e não o excluiu do exercício do cargo de cabeça de casal: se o cônjuge meeiro e herdeiro do inventariado ou antes o herdeiro que por testamento outorgado no Brasil, onde tinha residência, o inventariado nomeou testamenteiro e «inventariante».
As regras legais a que deve obedecer a atribuição do cargo de cabeça de casal encontram-se definidas no artigo 2080.º do Código Civil. A sua redacção é a seguinte:
«1. O cargo de cabeça-de-casal defere-se pela ordem seguinte:
a) Ao cônjuge sobrevivo, não separado judicialmente de pessoas e bens, se for herdeiro ou tiver meação nos bens do casal;
b) Ao testamenteiro, salvo declaração do testador em contrário;
c) Aos parentes que sejam herdeiros legais;
d) Aos herdeiros testamentários.
2. De entre os parentes que sejam herdeiros legais, preferem os mais próximos em grau.
3. De entre os herdeiros legais do mesmo grau de parentesco, ou de entre os herdeiros testamentários, preferem os que viviam com o falecido há pelo menos um ano à data da morte.
4. Em igualdade de circunstâncias, prefere o herdeiro mais velho.»
Esta norma estabelece de modo expresso uma ordem hierárquica entre os critérios de designação, de modo que só se a designação não for possível por aplicação do primeiro critério se passa ao segundo, e assim sucessivamente.
No caso, sucedem ao inventariado a viúva e cônjuge sobrevivo, não separada judicialmente de pessoas e bens, e os filhos, sendo que por testamento outorgado no Brasil pelo inventariado uma das filhas, a interessada CC, foi nomeada e constituída «testamenteiro e inventariante».
A primeira situa-se no primeiro grau da ordem fixada na norma, os outros no segundo (a testamenteira) e no terceiro grau (os restantes filhos) da mesma ordem, razão pela qual, nos termos da norma citada, aquela prefere a qualquer destes na designação para o exercício do cargo.
Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume VI, Coimbra Editora, 1998, página 137, em anotação ao artigo 2080.º do Código Civil que estabelece a ordem a observar na designação do cabeça-de-casal, escrevem que este preceito
«…corresponde ao artigo 2068.º do Código de 1867, sem esquecer o diferente enquadramento sistemático da figura do cabeça de-casal nos dois diplomas legislativos.
Já no Anteprojecto de Galvão Telles (artigo 57.º) se propunham algumas alterações à escala de preferências fixada no Código de 1867, às quais outras se substituíram na primitiva redacção deste artigo 2080.º do novo Código.
A mais importante das alterações introduzidas pelo Código de 1966, em relação ao Código anterior, foi a da atribuição das funções de cabeça-de-casal, com os amplos poderes de administração de toda a herança, aos testamenteiros, salvo declaração do testador em contrário (cfr. al. b) do n.º 1).
O testamenteiro, que até à entrada em vigor do novo Código tinha a sua função, dentro do fenómeno sucessório, apertadamente limitada ao papel de agente da execução, total ou parcial, do testamento, saltou (decerto por inspiração do sinal de confiança que revela a sua designação por parte do testador) para o expressivo segundo lugar que passou a ocupar no artigo 2080.º (n.º 1, al. b)), dentro da lista dos possíveis cabeças-de-casal, logo a seguir ao cônjuge sobrevivo.
Este, que já na lista do Código de 1867 (artigo 2068.º) ocupava o 1.º lugar, continua a manter essa posição, salvo na hipótese de não partilhar nos bens a inventariar e de não serem herdeiros do inventariado descendentes seus. E, nesse ponto, houve também uma relativa alteração das coisas, apesar de o cônjuge sobrevivo continuar a figurar no 1.º lugar do rol das pessoas a quem, em princípio, compete o cargo de cabeça-de-casal.». (sublinhados nossos).
Os mesmos autores, na anotação ao artigo 2326.º do Código Civil, loc. cit., página 509-510, afirmam ainda o seguinte:
«Confrontando agora o texto do artigo 2326.º do Código actual com o disposto no artigo 1899.º do Código anterior, duas conclusões saltam imediatamente à vista do leitor.
A primeira é a de que, quando lhe não couberem as funções de cabeça-de-casal, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 2080.º, as atribuições do testamenteiro limitam-se a bastante pouco, tal como sucedia, aliás, na vigência do Código de 1867 (…).
A segunda – que engloba as duas grandes inovações do Código de 1966 no regime da testamentaria – desdobra-se nesta dupla solução:
Por um lado, reconhece-se ao testador, nos termos introdutórios do artigo 2320.º, a faculdade de atribuir ao testamenteiro amplos poderes de execução do testamento. Por outro lado, chama-se o testamenteiro na alínea c) deste artigo 2326.º a exercer supletivamente, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 2080.º, as funções de cabeça-de-casal, com todos os poderes de administração dos bens da herança, que a lei genericamente reconhece a essa entidade.
Na verdade, de harmonia com o disposto na alínea b) do n.º 1 desse citado artigo 2080.º, na falta de cônjuge sobrevivo, herdeiro ou meeiro dos bens do casal, é o testamenteiro a pessoa chamada a exercer as funções de cabeça-de-casal (a menos que o testador a exclua desse chamamento), cabendo-lhe nesse caso todos os direitos referidos no artigo 2079.º, bem como nos artigos 2087.º e seguintes.» (sublinhados nossos).
Capelo de Sousa, in Lições de Direito das Sucessões, II, 2.ª edição, 1986, página 56 e seguintes, depois de indicar que o artigo 2080.º do Código Civil prevê para a herança a que concorram herdeiros «uma escala hierarquizada segundo a qual se defere, «ex lege» e sem necessidade de um acto jurídico de aceitação, o cargo de cabeça-de-casal», razão pela qual «estas funções recaem, pela ordem seguinte, sobre uma das seguintes pessoas: (1.º) cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens, se for herdeiro ou tiver meação nos bens do casal; (2.º) testamenteiro, salvo declaração do testador em contrário», coloca a questão de saber se o de cuius «poderá por testamento indicar sem reservas o cabeça-de-casal» e responde deste modo:
«Oliveira Ascensão entende que sim. Não nos parece líquido. Se é certo que o testamenteiro nomeado pelo de cuius pode vir a ser cabeça-de-casal, o certo é que ele vem em 2.º lugar após o cônjuge, o que se justifica sobretudo pela tutela dos interesses do cônjuge, que normalmente é meeiro, e pela sua maior probidade presumida. Ora, não nos parece que estes objectivos, de matiz público, possam ser prejudicados por decisão unilateral do de cuiús. Por outro lado, se é certo que no artigo 2084.º se diz que «as regras dos artigos precedentes não são imperativas», todavia a ratio do preceito não nos parece abranger a designação do cabeça-de-casal por testamento, o que se espraia desde logo na epígrafe do artigo em causa onde se refere que se regula a «designação por acordo». (…). Finalmente, não deixaria de ser estranho que a lei que regulou tão detalhadamente a matéria, que até colocou os herdeiros testamentários após os legais (artigo 2080.º) e que inclusivamente considerou em várias disposições o cabeçalato exercido pelo testamenteiro, admitisse tal forma de designação pelo de cuiús sem reservas, pelo que não é de presumir tal intenção no legislador (cfr. art. 9.º, n.º 3, do CCiv). Opinamos assim, que as possibilidades de designação testamentária do cabeça-de-casal pelo autor da sucessão se circunscrevem ao espaço legal deixado em aberto para o testamenteiro, sem embargo de o de cuius poder qualificar este apenas como um cabeça-de-casal (arts. 2325.º e 2326.º, al. c), do CCiv).».
Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, volume I, 4.ª edição, Almedina, 1990, página 295, após assinalar que os artigos 2080.º e segs. do Código Civil estabelecem a ordem do deferimento do cargo de cabeça-de-casal, e que nessa ordem o cônjuge sobrevivo ocupa a primeira posição e o testamenteiro a segunda, escreveu a propósito deste que:
«… o testador pode nomear uma ou mais pessoas que fiquem encarregadas de vigiar o cumprimento do seu testamento ou de o executar, no todo ou em parte; é o que se chama testamentaria (..). Tem o testamenteiro as atribuições que o testador lhe conferir, dentro dos limites da lei (…) e, na falta de especificação por sua parte, compete-lhe, além do mais, «exercer as funções de cabeça-de-casal nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 2080.º.°» (…). Daí que, na falta do cônjuge sobrevivo com direito a ser cabeça-de-casal, o encargo se defira, em primeira linha, «ao testamenteiro, salvo declaração do testador em contrário» (Cód. Civil, art. 2080.º-1-b). (…). Pois que a nomeação do testamenteiro só pode ter lugar em testamento, segue-se que ao testador fica lícito excluí-lo do cabeçalato, certo que, à míngua de declaração por sua parte, ele o exercerá; isto, bem entendido, desde que não proceda a regra da alínea a), n.º 1, do artigo 2080.º (…).» (sublinhados nossos).
Cremos não haver como dissentir destes autorizados autores.
A redacção do artigo 2080.º do Código Civil é, cremos bem, clara: o testamenteiro só é chamado a exercer as funções de cabeça de casal verificando-se duas condições cumulativas. A primeira é o testador não ter disposto em contrário (leia-se, não ter estabelecido expressamente no testamento que a pessoa que nomeou testamenteiro não exercerá as funções de cabeça de casal, o que ocorre quando nada diz a esse respeito como quando diz que o testamenteiro exercerá ainda tais funções); a segunda é não haver cônjuge sobrevivo, não separado judicialmente de pessoas e bens, se for herdeiro ou tiver meação nos bens do casal.
A redacção do artigo 2326.º do Código Civil não só não contraria o enunciado do artigo 2080.º, como confirma-o de modo expresso.
Nos termos daquela norma, o testador pode especificar as atribuições do testamenteiro (naturalmente dentro dos limites legais); se não fizer essa especificação, competirá ao testamenteiro, entre outras coisas, «c) exercer as funções de cabeça-de-casal, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 2080.º».
Por outras palavras, a norma não diz que nessa situação caberá ao testamenteiro exercer as funções de cabeça de casal, diz que lhe caberá esse cargo «nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 2080.º», ou seja, se e na medida em que o cargo for deferido à pessoa dessa alínea, ou ainda, se e na medida em que não houver pessoa que de acordo com a ordem das alíneas do artigo 2080.º esteja à frente do testamenteiro para o cargo, rectius, se situe na previsão da alínea a).
Se o artigo 2326.º do Código Civil pretendesse operar uma atribuição do cargo à margem da ordem do artigo 2080.º do mesmo diploma certamente não incluiria a ressalva «nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 2080.º» ou então a remissão seria feita estritamente para o artigo 2079.º que é a disposição que define o âmbito dos poderes do cabeça de casal, não para a norma que estabelece a ordem de atribuição do cargo e na qual o testamenteiro está colocado apenas no segundo grau.
Na mesma lógica, se fosse essa a intenção do legislador, então o artigo 2080.º do Código Civil deveria colocar no primeiro lugar da ordem de preferência «o testamenteiro, havendo-o, excepto se o inventariado dispuser o contrário» e só no segundo lugar «o cônjuge…».
Manifestamente não é isso que a lei determina, sendo certo que o Código Civil é ainda de um tempo (infelizmente longínquo) em que a redacção das normas era, em regra, rigorosa e precisa, fruto de um bom uso das regras gramaticais e linguísticas. A história da lei no tocante à introdução da possibilidade de o testamenteiro exercer as funções de cabeça de casal descrita pelos primeiros autores atrás citados, não deixa qualquer dúvida sobre isso.
Ora, como é sabido, a interpretação jurídica tem por objecto descobrir, de entre os sentidos possíveis da lei, o seu sentido prevalente ou decisivo. Essa tarefa é guiada por elementos lógicos, de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica (nesse sentido, por exemplo, Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, 3.ª edição, tradução, págs. 439-489; Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 12.ª reimpressão, Coimbra, 2000, págs. 175-192; Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, tradução de Manuel Andrade, 3.ª edição, 1978, págs. 138 e seguintes).
O elemento sistemático compreende a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretada, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim, como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico. O elemento histórico abrange todas as matérias relacionadas com a história do preceito, as fontes da lei e os trabalhos preparatórios. O elemento racional ou teleológico consiste na razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao editar a norma, nas soluções que tem em vista e que pretende realizar. O intérprete, socorrendo-se desses elementos interpretativos, alcançará uma das seguintes modalidades de interpretação: interpretação declarativa, interpretação extensiva, interpretação restritiva, interpretação revogatória e interpretação enunciativa.
Em matéria de interpretação das leis, o artigo 9.º do Código Civil consagra os princípios a que deve obedecer o intérprete ao empreender essa tarefa, começando por estabelecer que «[a] interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (n.º 1); o enunciado linguístico da lei é o ponto de partida de toda a interpretação, mas exerce também a função de um limite, já que não pode «ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (n.º 2); além disso, «[n]a fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (n.º 3).
É ainda oportuno recordar as longínquas palavras de Manuel de Andrade, in Sentido e valor da jurisprudência (Oração de sapiência lida em 30 de Outubro de 1953), Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1972, n.º 48, págs. 265-266: «No entendimento e aplicação do Direito, portanto, deve obedecer-se leal e honradamente à vontade legal (hoc sensu). Não se deve tomar em face dela uma posição de indiferença ou de antipatia. Vai nisso um interesse público, que poderá ser sobrelevado por outros, mas sempre digno de consideração. Não se trata aqui, porém, de uma obediência cega, mecânica, servil, senão antes de uma obediência esclarecida, racional, colaborante. De uma obediência atida ao pensamento fundamental da autoridade legislativa, mais do que aos termos exactos da sua formulação textual; ao escopo que a moveu e inspirou, mais do que aos instrumentos com que pretendeu dar-lhes realização; sua análise e valoração dos interesses conflituantes, mais do que ordenação que em consequência ditou. Este tipo de obediência é o que vem a ponto também noutros domínios da vida. Assim, nas relações entre patrão ou empregado. Assim na própria disciplina castrense, bem conhecida pelo seu rigorismo. Assim, dum modo geral, nas relações entre superior e subalterno. Quem está adicto às determinações de outrem deve, segundo uma velha formulação, olhar menos à letra que mata do que ao espírito que vivifica; menos ao conteúdo da determinação que aos interesses pessoais ou funcionais do seu autor - interesses específicos do caso ou mesmo só, em último termo, interesses genéricos
Nessa medida, parece inevitável concluir que a correcta interpretação das normas legais conduz a que no caso quem deve exercer o cargo de cabeça de casal é a cônjuge sobreviva e herdeira, não a testamenteira.
Para contrariar essa interpretação é totalmente debalde invocar a natureza não imperativa do disposto no artigo 2080.º do Código Civil, a qual nem foi o que parece, nem existe actualmente.
Lopes Cardoso, in loc. cit., página 290, escreveu que «os arts. 2080.º e segs. do Cód. Civil estabelecem a ordem do deferimento do cargo de cabeça-de-casal mas tais preceitos ou regras não são imperativas, pois, por acordo de todos os interessados e do M.º P.º se houver lugar a inventário obrigatório, podem entregar-se a administração da herança e o exercício das demais funções de cabeça-de-casal a qualquer outra (art. 2084.º)». Este autor logo assinalava que «não era este o entendimento comum na vigência do Cód. Civil de 1867, nem mesmo a doutrina propugnada no Anteprojecto das Sucessões», informando que a redacção do preceito provinha do artigo 2137.º do Projecto das Sucessões.
Pires de Lima e Antunes Varela, in loc. cit., página 142, também manifestavam que «a forma genérica como o artigo 2084.º - quer na primitiva, quer na actual redacção – afirma o carácter supletivo das «regras dos artigos precedentes» (sem abrir qualquer excepção, nomeadamente a escala quadripartida de prioridades do artigo 2080.º) revela, em termos inequívocos, que a lei pretende realmente deixar as portas francamente abertas aos interessados na herança para a escolha da pessoa que, em cada caso concreto, melhor possa de fender os seus interesses. Observe-se, no entanto, a esse propósito, que logo na epígrafe do artigo se fala na designação – do cabeça-de-casal ou, pelo menos, do administrador dos bens da herança – por acordo; e que, no texto da disposição se vai ainda mais longe, ao aludir-se ao «acordo de todos os interessados, para que as tarefas de administração da herança e as demais funções de cabeça-de-casal sejam entregues a qualquer outra pessoa».
No mesmo sentido, Capelo de Sousa, in loc. cit., página 64/65, escreveu que «o que poderá acontecer nos termos do artigo 2084.º, é que por acordo de todos os interessados (..) e do Ministério Público, nos casos de inventário obrigatório (artigo 2053.º do CCiv), se entregue a administração da herança a uma pessoa não abrangida nas categorias previstas nos arts. 2080.º a 2083.º ou que, embora abrangida, não goze das preferências aí referidas.
A doutrina retirava assim do preceito, entre outras, a conclusão de que a ordem de preferência dos artigos 2080.º e seguintes não era imperativa. Todavia, esta posição encontra-se hoje prejudicada pelas alterações que a redacção do artigo 2084.º do Código Civil sofreu no entretanto.
Na redacção do Decreto-Lei n.º 47.344/66, de 25 de Novembro, o preceito estabelecia:
As regras dos artigos precedentes não são imperativas; por acordo de todos os interessados, e do Ministério Público, se houver lugar a inventário obrigatório, podem entregar-se a administração da herança e o exercício das demais funções de cabeça-de-casal a qualquer outra pessoa.
Na redacção do Decreto-Lei n.º 227/94, de 8 de Setembro, o preceito passou a estabelecer:
As regras dos artigos precedentes não são imperativas; por acordo de todos os interessados, e do Ministério Público, nos casos em que tenha intervenção principal, podem entregar-se a administração da herança e o exercício das demais funções de cabeça-de-casal a qualquer outra pessoa.
Na redacção da Lei n.º 29/2009, de 29 de Junho, a norma converteu-se na seguinte:
As regras dos artigos precedentes não são imperativas, podendo, por acordo de todos os interessados, entregar-se a administração da herança e o exercício das demais funções de cabeça-de-casal a qualquer outra pessoa.
Porém, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 23/2013, de 05 de Março, presentemente em vigor e aplicáveis ao caso, a norma assumiu a seguinte redacção:
Por acordo de todos os interessados pode entregar-se a administração da herança e o exercício das funções de cabeça de casal a qualquer outra pessoa.
Até à Lei n.º 23/2013, a norma manteve a primeira parte na qual dispunha expressamente que as regras dos artigos precedentes, relativas às preferências para a designação do cabeça de casal, não eram imperativas; somente foi mudando a segunda parte da norma, tendo as alterações introduzidas consistido apenas na precisão do papel do Ministério Público nos inventários e na necessidade ou não da sua participação no acordo dos interessados sobre a designação do cabeça de casal.
A redacção que a Lei n.º 23/2013 introduziu no artigo 2084.º, contudo, eliminou a primeira parte da norma, a qual deixou de estabelecer que as regras dos artigos antecedentes não são imperativas, passando a consagrar somente a possibilidade de os interessados por acordo designarem para o exercício do cargo outra pessoa que não uma das indicadas nos artigos anteriores.
Independentemente do mérito da escolha feita pelo legislador, uma vez que nenhuma outra questão se colocava a propósito da norma e/ou havia divisões na sua interpretação, não podemos deixar de considerar esta evolução da redacção da norma como uma evidência de que o legislador decidiu repor a natureza imperativa das normas legais relativas à ordem pela qual os diversos herdeiros preferem na designação para o exercício do cargo.
Acresce, ex abundanti, que no caso nem essa questão se podia colocar, porque não está em causa uma nomeação por acordo de todos os interessados (acordo que não existe sequer) mas sim uma nomeação por acto unilateral do inventariado, mais especificamente a designação de testamenteiro. Para esta situação não existe norma legal que permita ao inventariado designar de forma definitiva o cabeça de casal ou afastar por acto unilateral a ordem legal do artigo 2080.º do Código Civil, o qual, repete-se, mesmo na hipótese de haver cônjuge sobrevivo e testamenteiro (ou seja, o legislador teve presente também a hipótese de o inventariado nomear testamenteiro e regulou-a de modo expresso), dá, entre os dois, preferência ao primeiro.
A decisão recorrida não é, pois, correcta e deve ser revogada.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida, mantendo no exercício do cargo de cabeça de casal a requerente do inventário e viúva do inventariado, nomeada no despacho de 08-05-2023.
Custas do recurso pela recorrida, a qual vai condenada a pagar à recorrente, a título de custas de parte, o valor da taxa de justiça que suportou e eventuais encargos.
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Porto, 22 de Fevereiro de 2024.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 804)
Isabel Silva
António Carneiro da Silva

[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]