Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
61/20.6T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: DIVÓRCIO SEM CONSENTIMENTO
ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
ARRENDAMENTO
Nº do Documento: RP2022050461/20.6T8PRT.P1
Data do Acordão: 05/04/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Havendo arrendamento sobre a casa de morada da família, o seu destino, em caso de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens, na falta de acordo, é decidido tendo em conta a necessidade dos cônjuges, os interesses dos filhos e outros fatores relevantes.
II – Na avaliação da necessidade da casa o tribunal deve ter em conta, em particular, a situação patrimonial dos cônjuges – os rendimentos e proventos de um e outro, bem como os respetivos encargos – e, compaginando estes elementos com o interesse dos filhos, atribuirá o direito ao arrendamento da casa de morada da família ao cônjuge que mais precise dela.
III – Só se as necessidades de ambos os cônjuges forem iguais ou sensivelmente iguais é que se deverá recorrer a critérios suplementares, podendo, nessa situação, a casa de morada da família ser atribuída ao cônjuge que com ela tem maior ligação, designadamente por lá viver desde a adolescência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 61/20.6T8PRT.P1
Comarca do Porto – Juízo de Família e Menores do Porto – Juiz 5
Apelação
Recorrente: AA
Recorrida: BB
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e João Ramos Lopes

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
A autora BB instaurou ação de divórcio, sem consentimento do outro cônjuge, contra o réu AA e, entre outras questões, suscitou o incidente da atribuição da casa de morada de família.
Alegou, em síntese, que o casal fixou residência numa habitação social, que inicialmente fora atribuída à mãe do réu.
Devido à renúncia por aquela ao direito à ocupação, o mesmo foi atribuído ao seu agregado familiar, pagando de renda a quantia mensal de 132,00€.
Acrescentou que não tem condições económicas para arrendar um imóvel e que o cônjuge tem maior capacidade económica para o efeito.
Pediu, a final, que lhe seja atribuída a casa de morada de família.
Realizou-se tentativa de conciliação, sem sucesso.
O réu, notificado para se opor ao pedido de atribuição da casa de morada de família, apresentou contestação, tendo alegado, em síntese, que a casa de morada de família é o local onde sempre viveu, desde os seus 16 anos de idade, antes e depois de casar com a autora, pretendendo ali continuar a viver, em regime de guarda partilhada, com os seus filhos.
Referiu ainda que a casa em questão foi a casa de morada da mãe e que esta lha “deixou” para si, acrescentando que a autora faz limpezas, não trabalhando mais porque não quer.
Concluiu, pedindo a improcedência da pretensão da autora e que o incidente seja decidido a seu favor.
Realizou-se audiência de produção de prova, com observância do formalismo legal.
Foi depois proferida decisão que julgou procedente, por provado, o incidente e, em consequência, determinou a concentração na autora, BB, da posição jurídica de arrendatária no contrato que tem como objeto o imóvel sito na Rua ..., ..., Porto, assim lhe atribuindo o direito à casa de morada de família.
Simultaneamente foi julgado improcedente o pedido formulado pelo réu AA.
Inconformado com o decidido interpôs recurso o réu que finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:
I) O presente recurso tem por objeto a douta sentença, proferida a fls., do processo, que julgou procedente o pedido da Apelante de atribuição da casa morada de família.
II) Sucede que a indicação dos meios de prova e fundamentação da convicção do julgador devem ser feitas com clareza, objetividade e discriminadamente, mas tal não sucedeu na sentença proferida pelo Tribunal a quo.
III) Na página 3, da sentença, pode ler-se o seguinte:
“B) Factos não provados: Com interesse para a decisão da causa, não se provaram quaisquer outros factos que vão para além dos dados como provados, designadamente, os constantes: - dos arts. 29, 30 e 31 da contestação.”
IV) Daqui não se consegue apreender se os factos constantes dos artigos 29, 30 e 31 não tinham interesse para a boa decisão da causa ou se o Tribunal os considerou não provados.
V) Caso se entenda que o Tribunal os considerou não provados, a fundamentação é, senão omissa, obscura, violando o disposto no art. 607. °, n.°4, do Código de Processo Civil, e as als. a) e b) do nº1 do art. 640º do Código de Processo Civil.
VI) Verifica-se que a matéria de facto compreendida na sentença recorrida limitou-se a enumerar os factos provados, sem praticamente nenhuma referência aos factos não provados, não concretizando os meios de prova que determinaram aquela decisão, sendo que a omissão de tal formalidade legal tem manifesta influência no exame e decisão da causa, quer para efeitos de impugnação, quer do seu julgamento.
VII) Acresce que na Motivação, a Meritíssima Juiz a quo referencia que “Os depoimentos referidos foram conjugados com todos os documentos juntos aos autos, os quais foram analisados e ainda com as declarações de parte”.
VIII) Sucede que na Audiência de Julgamento não houve declarações de parte.
IX) Assim sendo, e se não era a essas declarações de parte que o Tribunal a quo se refere, deveria, em concreto, indicar a que declarações de parte se refere e qual o seu conteúdo.
X) Deste modo, com a omissão das formalidades referidas, previstas no art.° 607.°, n.º4, do Código de Processo Civil, cometeu-se uma nulidade processual prevista no art.° 195.°, n.°1, do Código de Processo Civil.
XI) Assim, por efeito da nulidade processual, justifica-se a anulação da sentença e de todos os atos subsequentes, nos termos do art. 195.°, n.°2, do Código de Processo Civil, nulidades essas que aqui se arguem para todos os efeitos legais.
Todavia e sem prescindir,
XII) O presente recurso tem por objeto a douta sentença, proferida a fls., do processo, que julgou procedente o pedido da Apelante de atribuição da casa morada de família.
XIII) O Ponto 12, dos factos dados como provados refere que: “O Requerido é pintor de automóveis, ganhando a quantia mensal líquida de cerca de 1.019,00 euros (cfr. recibo de fls. 38, 41 e 42 aqui dado por inteiramente reproduzido).”
XIV) Este ponto está incorreto, uma vez que aquele valor, de Eur.1.019,00, não é a quantia mensal líquida que aufere o Recorrente, mas sim Eur.854,40 (oitocentos e cinquenta e quatro euros e quarenta cêntimos), conforme recibo de fls. 38, 41 e 42, do processo, e as declarações do Apelante na Informação sobre Audição Técnica Especializada, datada de 01 de Fevereiro de 2021, uma vez que só se pode considerar o rendimento base, sem incluir prémios e subsídios por horas extra, na medida em que estes são rendimentos variáveis, que o Recorrente não aufere todos os meses.
XV) Assim, no entender do Recorrente, a decisão que deve ser proferida sobre a concreta questão de facto impugnada é a de se considerar provado e passar a fazer-se constar do Ponto 12, dos Factos Provados, o seguinte:
“O Requerido é pintor de automóveis, ganhando a quantia mensal líquida de cerca de Eur. 854,40 (cfr. recibo de fls. 38, 41 e 42 aqui dado por inteiramente reproduzido).”
XVI) No Ponto 15 dos factos dados como provados consta que: “A casa de morada de família, inicialmente, em data não concretamente apurada, foi atribuída à mãe do progenitor, CC, a qual, por já ali não habitar e tal ter sido denunciado à Câmara Municipal, subscreveu a declaração de fls. 19 e o documento de fls. 15.”
XVII) Na verdade, deveria acrescentar-se o seguinte: “A casa de morada de família, inicialmente, em data não concretamente apurada, mas não há menos de 25 anos, foi atribuída à mãe do progenitor, CC (…)”, conforme depoimento da testemunha CC Gravação n.º 20211026144905_15625620_3995019, minuto 2:58 ao 3:13 e Gravação n.º 20211026144905_15625620_3995019, minuto 12:00 ao 12:23, e depoimento da testemunha DD, Gravação 20211026151517_15625620_3995019, minuto 1:49 a 1:58.
XVIII) Atendendo a que o Apelante tem, atualmente, 45 anos (vide Informação sobre Audição Técnica Especializada, datada de 01 de Fevereiro de 2021) e considerando o depoimento das testemunhas, dúvidas não restam, de que não há menos de 25 anos, foi atribuída à mãe do progenitor, a casa de morada de família.
XIX) A decisão que deve ser proferida sobre a concreta questão de facto impugnada é, pois, de se considerar provado e passar a constar do Ponto 15, dos Factos Provados, o seguinte:
“A casa de morada de família, inicialmente, em data não concretamente apurada, mas não há menos de 25 anos, foi atribuída à mãe do progenitor, CC, a qual, por já ali não habitar e tal ter sido denunciado à Câmara Municipal, subscreveu a declaração de fls. 19 e o documento de fls. 15.”
XX) Por outro lado, foram dados como não provados os factos constantes dos artigos 29, 30 e 31 da contestação apresentada pelo Recorrente.
XXI) Contudo, resulta da prova produzida, mormente, o seguinte facto: “A Autora só não faz mais horas de trabalho, preenchendo o dia, porque a mesma assim não quer”, que resulta do depoimento da testemunha EE, Gravação 20210914151747_15625620_3995019, minuto 12:14 a 14:06.
XXII) Tendo por base as declarações acima citadas, o Recorrente entende que deve ser dado como provado o seguinte facto:
“A Autora já teve várias propostas de emprego, designadamente do fundo de desemprego, e não aceitou.”
XXIII) Além das alterações da fundamentação de facto constante na douta sentença, deveriam ainda ter sido considerados outros factos relevantes, por serem pertinentes para a boa decisão da causa.
XXIV) Assim, devia constar o seguinte facto: “o Réu vive na casa que agora é a casa morada de família, desde os seus 16 anos.”
XXV) Tal informação foi referida pelo Recorrente e consta do Relatório de Informação sobre Audição Técnica especializada da Segurança Social (parágrafo 10) junto aos autos, e é corroborada ainda pelo depoimento da testemunha CC, Gravação n.º 20211026144905_15625620_3995019, minuto 11:15 a 12:23.
XXVI) Tendo em conta os mencionados meios de prova, importa aditar à fundamentação o seguinte facto: “O Réu vive na casa que agora é a casa morada de família, desde os seus 16 anos.”
XXVII) Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 1793.º do Código Civil “Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.”
XXVIII) Por seu turno, rege o n.º 2 do artigo 1105º do Código Civil que “Na falta de acordo, cabe ao tribunal decidir, tendo em conta a necessidade de cada um, os interesses dos filhos e outros fatores relevantes.”
XXIX) Temos, assim, três critérios legais que devem ser analisados, in casu, para aferir qual [dos] ex-cônjuges deve ficar com casa morada de família, a saber: (i) as necessidades de cada um dos cônjuges, e (ii) o interesse dos filhos do casal; (iii) outros fatores relevantes.
XXX) Diga-se, desde já, que o Tribunal a quo apenas atendeu a um fator: situação patrimonial de cada umas das partes.
XXXI) No caso o Recorrente tem o dever de assistência a dois filhos menores, ou seja, tem de suportar despesas de alimentação bem como todos os gastos relacionados com o bem-estar e crescimentos das crianças, tais como vestuário, escolaridade, educação, saúde.
XXXII) De acordo com as conclusões de um estudo, de 2008, da Universidade de Coimbra, os pais portugueses da classe média gastam, em média, entre 236 a 678 euros por cada filho (até aos 25 anos).
XXXIII) Ou seja, o Recorrente, em média, terá um custo mensal relativo a cada filho, de Eur. 200,00, o que totalizará, em média Eur. 400,00.
XXXIV) A verdade é que, se o Recorrente tiver de pagar uma renda de uma casa para ele e os seus dois filhos que, por isso, terá de ser semelhante à atual - T3 -, na zona do Porto ou arredores, nunca pagará menos de Eur.800,00, o que significa que nada lhe sobraria para assegurar os alimentos dos dois filhos e para ele próprio sobreviver.
XXXV) Já no caso da Recorrida, que apenas trabalha umas horas por dia e não declara rendimentos, bastaria que pedisse outra habitação social, que, dada a sua situação económica, lhe seria com toda a certeza atribuída.
XXXVI) Assim, tendo a Recorrida esta possibilidade de pedir outra habitação social, e não a tendo o Recorrente, que teria de arrendar uma casa e passaria sérias dificuldades e não conseguiria fazer face a todas as despesas, é este quem efetivamente demonstra mais premência de necessidade da casa morada de família.
XXXVII) No que concerne ao segundo critério, temos o interesse dos filhos.
XXXVIII) Os ex-cônjuges têm uma filha menor em comum, a FF e, ao que tudo indica, vai ser decidida a guarda partilhada entre ambos os ex-cônjuges.
XXXIX) O Recorrente tem outro filho, de quem tem, atualmente, a guarda partilhada.
XL) É o Recorrente quem mais necessita de ficar com aquela casa, além do mais, por se tratar de um T3, tendo dois quartos para poder acolher os seus dois filhos, a FF, de quem vem a ter a guarda partilhada, e o GG, de quem já tem essa guarda.
XLI) Nesta medida, está em causa não só o interesse do menor GG, de poder estar com o pai, mas ainda o interesse do GG e da FF, de poderem conviver e manter uma boa relação entre irmãos.
XLII) Assim sendo, enquanto que a mãe apenas terá a seu cargo uma menor, o pai terá a seu cargo dois menores, necessitando efetivamente de dois quartos onde os alojar.
XLIII) Por fim, relativamente ao terceiro critério, devem ser tidos em consideração outros factores relevantes.
XLIV) Neste contexto, não se pode desconsiderar que o Recorrente vive na casa ajuizada desde, pelo menos, os seus 16 anos, tendo lá vivido com a sua própria mãe e com as irmãs, tendo por isso uma enorme ligação emocional à casa e ao meio social envolvente, onde cresceu.
XLV) É, por isso, profundamente injusto que seja ele, o Recorrente, expulso da sua própria casa, onde habita desde a adolescência e que a sua mãe lhe cedeu, para que ele pudesse ali continuar a viver.
XLVI) Em suma, ponderados os três critérios, em todos eles é o pai que demonstra maior premência de necessidade da casa morada de família.
XLVII) Ao julgar procedente o pedido da Autora nesse sentido de lhe ser atribuída a ela a casa morada de família, o Tribunal a quo não aplicou adequadamente o disposto nos artigos 1793º, n.º 1 e 1105.º, n.º 2, ambos do Código Civil.
Pretende assim a revogação da decisão recorrida.
A autora apresentou contra-alegações, pronunciando-se pela confirmação da decisão recorrida.
Formulou as seguintes conclusões:
1. Apelante e autora contraíram matrimónio;
2. Da relação matrimonial resultou o nascimento de uma filha ainda menor;
3. Sempre viveram no locado agora em disputa;
4. O Apelante sempre foi contra a Autora trabalhar, incentivando-a a tratar das lides de casa e da filha;
5. O Apelante alegava, e disse-o directamente aos familiares da Autora, ser o seu vencimento bastante para o sustento familiar;
6. Ainda assim, e também face à premência do fim do matrimónio, mas com o intuito de, de alguma forma contribuir para os encargos familiares, a Autora optou por conciliar uma actividade profissional com os horários escolares da filha;
7. A casa morada de família é um locado Camarário, atribuído à mãe do Apelante, a cujo direito veio renunciar em prol do filho, e, como resulta de documento por esta emanada e dirigido à Autarquia, também à nora e à neta;
8. Está em causa, para além do bem supremo da menor, a necessidade que cada uma das partes tem da casa morada de família;
9. Ora, ao longo de todo o julgamento e pela prova produzida, resulta claro que é a Autora quem mais necessita da casa;
10. Quem menos tem condições para se mudar para outra casa, considerados os valores actuais de mercado bem como o rendimento que neste momento aufere.
11. Ao contrário, o Apelante tem um rendimento base superior ao da Autora;
12. Desde sempre trabalhou horas extra, principalmente ao Sábado de manhã, o que lhe permitiu um rendimento acima dos 1000,00€;
13. Em qualquer das situações a sua disponibilidade para arrendar outro locado é muito maior;
14. Conjugados a necessidade da casa morada de família e o bem estar da filha menor, resulta ser a autora quem mais dela necessita.
O recurso foi admitido como apelação, com efeito suspensivo.
Cumpre então apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
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As questões a decidir são as seguintes:
I – Nulidade da sentença recorrida;
II – Reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto;
III – Atribuição do direito a permanecer na casa de morada de família.
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É a seguinte a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, com relevo para a decisão da causa:
1. No dia 17 de julho de 2010, a Autora e o Réu contraíram, entre si, casamento civil, sem precedência de convenção antenupcial (cfr. assento de casamento junto a fls.18, dos autos principais, aqui dado por inteiramente reproduzido).
2. Na constância do sobredito casamento, em 5/12/2012, nasceu a filha do casal, FF (cfr. CAN junto a fls. 17, aqui dado por inteiramente reproduzido).
3. Em 2/01/2020, a A. instaurou contra o R. ação de divórcio, sem o consentimento do outro cônjuge, com o fundamento de que em 24/01/2018, o R. lhe comunicou que iria ser pai de uma criança, fruto de uma relação extra-conjugal (cfr. p.i.).
4. Foi realizada tentativa de conciliação (cfr. ata de fls. 24) tendo as partes declarado que:
- acordam em converter os presentes autos em divórcio, por mútuo consentimento;
- não acordam quanto à atribuição da casa de morada de família e à Regulação das Responsabilidades Parentais.
5. Desde que casaram, A. e R. moram numa habitação social, atribuída pela Câmara Municipal, sita na Rua ..., ... Porto, pagando o valor mensal de 148,56 euros, a título de renda.
6. O que continua a suceder até à presente data, mesmo após a cessação da comunhão conjugal.
7. Em 18/05/2020, a A. deu entrada de uma ação, que constitui o apenso A, na qual peticiona que se proceda à regulação do exercício das responsabilidades parentais, a qual foi extinta por litispendência, dado estar em curso uma ação com idêntico objeto, a qual constitui o apenso B, instaurada pelo progenitor (cfr. fls. 26 do apenso A).
8. Em 9/06/2020, deu entrada de uma ação para regulação do exercício das responsabilidades parentais, que constitui o apenso B, na qual o progenitor, entre outras, solicita que a residência da criança seja alternada consigo e com a progenitora.
9. No aludido apenso B, realizou-se conferência e, por não tendo sido possível o acordo dos progenitores, estes foram remetidas para ATE (cfr. ata de fls. 31), resultando do respetivo relatório que os progenitores não se conseguem entender quanto ao exercício das RP sem estar previamente atribuída a casa de morada de família, razão pela qual tal ação [está] suspensa até ser decidida esta questão (cfr. fls 40).
10. A Requerente faz algumas limpezas, de segunda a sexta-feira, no período da manhã, auferindo 20 euros por manhã.
11. Quando estava casada, por opção do casal e sugestão do R., não trabalhava para cuidar da filha.
12. O Requerido é pintor de automóveis, ganhando a quantia mensal líquida de cerca de 1.019,00 euros (cfr. recibo de fls. 38, 41 e 42 aqui dado por inteiramente reproduzido).
13. A escola que a filha do casal frequenta situa-se a cerca de 1,5 Km de distância da casa de morada de família, sendo a progenitora que a leva e vai buscar à escola.
14. O Requerido tem outro filho de uma relação extra conjugal de nome GG, tendo sido fixada a residência alternada com os respetivos progenitores (cfr. doc. de 126, aqui dado por inteiramente reproduzido).
15. A casa de morada de família, inicialmente, em data não concretamente apurada, foi atribuída à mãe do progenitor, CC, a qual, por já ali não habitar e tal ter sido denunciado à Câmara Municipal, subscreveu a declaração de fls. 19 e o documento de fls. 15.
16. Após a saída da sua mãe da aludida casa, antes de casar, o R. viveu ali sozinho.
17. Em 18/02/2016, o R. passou a ser titular concessionário/do arrendamento do mencionado imóvel, tendo sido inscrito e autorizado a nele habitar o agregado familiar composto pelo R., pela A. e pela filha do casal, ascendendo a renda ao montante de 148,56 euros (cfr. doc. de fls. 119 e 120, aqui dados por inteiramente reproduzidos).
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Foi depois consignado que “com interesse para a decisão da causa, não se provaram quaisquer outros factos que vão para além dos dados como provados, designadamente, os constantes:
- dos arts. 29, 30 e 31 da contestação.
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Passemos à apreciação do mérito do recurso.
I – Nulidade da sentença recorrida
Nas suas alegações, o réu afirma não conseguir compreender se os factos constantes dos arts. 29º, 30º e 31º da sua contestação não tinham interesse para a boa decisão da causa ou se o Tribunal os considerou como “não provados”.
Se foram havidos como não provados entende o recorrente que, relativamente a eles, não foram concretizados os meios de prova que determinaram essa decisão e, por conseguinte, não foi dado adequado cumprimento ao disposto no art. 607º, nº 4 do Cód. de Proc. Civil.
Ora, a omissão de tal formalidade legal tem influência no exame e decisão da causa, quer para efeitos de impugnação, quer para efeitos de julgamento, daí decorrendo nulidade processual prevista no art. 195º do Cód. de Proc. Civil.
Em sede de contra-alegações a autora/recorrida pugna pela não verificação desta nulidade.
Vejamos então.
O art. 607º, nº 4 do Cód. de Proc. Civil estatui que «na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção…».
LEBRE DE FREITAS (in “A Ação Declarativa Comum”, 4ª ed., págs. 363/363), reportando-se a esta norma, escreve que o juiz deve “explicitar porque acreditou em determinada testemunha e não em outra, porque se afastou das conclusões dum relatório pericial para se aproximar das de outro, porque razão o depoimento de uma testemunha com qualificações técnicas o convenceu mais do que um relatório pericial divergente ou porque é que, não obstante vários depoimentos produzidos sobre certo facto, não se convenceu de que ele se tivesse realmente verificado. A sua análise crítica constitui um complemento fundamental da gravação; indo, nomeadamente, além do mero significado das palavras do depoente (…), evidencia a importância do modo como ele depôs, as suas reações, as suas hesitações e, de um modo geral, todo o comportamento que rodeou o depoimento. Por outro lado, a necessidade de fundamentação séria leva, indiretamente, o juiz a melhor confrontar os vários elementos de prova, não se limitando à sua intuição ou às impressões mais fortes recebidas na audiência decorrida e considerando, um a um, todos os fatores probatórios submetidos à sua livre apreciação, incluindo, nos casos indicados na lei (…), os relativos à conduta processual da parte. A fundamentação exerce, pois, a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo tribunal superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao ato jurisdicional.”
Regressando à sentença recorrida, verifica-se que no segmento intitulado “Motivação” a Mmª Juíza “a quo” escreveu o seguinte:
“- Os factos constantes nos itens 1 a 4, 6 a 9 e 14, resultam dos documentos e/ou dos respetivos processos e da respetiva força probatória (arts. 412 C.P.C. e 371 C.C.).
***
O tribunal firmou a sua convicção relativamente aos demais factos provados e não provados numa apreciação global e crítica de toda a prova produzida, nomeadamente:
A) Nos depoimentos das testemunhas:
1ª) EE, que é irmã da A. e cunhada do R.
A testemunha descreveu, designadamente a situação económico-familiar da A. e do seu cunhado.
***
2ª) HH, que é irmã da A. e cunhada do R.
A testemunha, igualmente, mencionou a situação económico-familiar da A. e do seu cunhado.
***
3ª) CC, que é mãe do demandado.
A testemunha, entre outros, relatou a situação económico-familiar do filho, referindo que caso este necessite pode auxiliá-lo a cuidar dos filhos.
Referiu que subscreveu a declaração para renúncia ao direito à ocupação da casa, pois foi um funcionário da Câmara Municipal “bater-lhe à porta, dado que a situação foi denunciada.”
***
4ª) DD, que é irmã do R. e cunhada da A.
A testemunha, igualmente, referiu a situação económico-familiar do irmão, tendo relatado a dinâmica familiar do ainda casal.
Referiu que a sua mãe, por questões de privacidade deixou a casa, mas depois houve uma queixa.
***
5ª) II, que é irmã do R. e cunhada da A.
A testemunha, igualmente, relatou a situação económico-familiar da A. e do seu cunhado.
***
As testemunhas enunciadas sob os números 1 e 2, atentas as razões de ciência invocadas e os princípios da imediação e da oralidade, prestaram depoimentos isentos e objetivos, revelando conhecimento dos factos sobre que depuseram, razão pela qual convenceram o tribunal das afirmações proferidas.
Já as testemunhas enunciadas em 3 a 5, prestaram depoimentos relativamente apaixonados, razão pela qual não convenceram de todas as afirmações proferidas.
***
Os depoimentos referidos foram conjugados com todos os documentos juntos aos autos, os quais foram analisados e ainda com as declarações de parte.
***
No que toca aos factos não provados, os mesmos resultaram do que ficou referenciado, de uma ausência de prova.”
Mesmo não se podendo qualificá-la de exemplar, entendemos que a Mmª Juíza “a quo”, de acordo com o transcrito, procedeu à análise crítica das provas que lhe é imposta pelo art. 607º, nº 4 do Cód. de Proc. Civil.
Uma análise minimalista, mas que reputamos de suficiente.
E no tocante aos factos constantes dos arts. 29º, 30º e 31º da contestação verifica-se não haver dúvidas de que na sentença recorrida foram considerados como não provados, tendo-se escrito que essa parte da decisão fáctica se fundou na ausência de prova.
A referência que foi feita em sede de motivação à produção de declarações de parte, que não ocorreram em audiência, conforme flui das respetivas atas (fls. 113/114 e 121/123), reportou-se certamente à tentativa de conciliação realizada em 1.10.2020 e em cuja ata se verteu, por súmula, o aí declarado pela autora e pelo réu (fls. 85).
Neste contexto, concluímos que não tendo sido omitida a análise crítica das provas nenhuma nulidade foi cometida nos autos nos termos do art. 195º do Cód. de Proc. Civil.
Improcede, assim, neste segmento, o recurso interposto.
*
II - Reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto
O réu/recorrente impugna depois a decisão de facto pretendendo que os nºs 12 e 15 passem a ter as seguintes redações:
- 12: O requerido é pintor de automóveis, ganhando a quantia mensal líquida de cerca de Eur. 854,40 (cfr. recibo de fls. 38, 41 e 42 aqui dado por inteiramente reproduzido);
- 15: A casa de morada de família, inicialmente, em data não concretamente apurada, mas não há menos de 25 anos, foi atribuída à mãe do progenitor, CC, a qual, por já ali não habitar e tal ter sido denunciado à Câmara Municipal, subscreveu a declaração de fls. 19 e o documento de fls. 15.
Simultaneamente, no que tange à matéria factual alegada nos arts. 29º, 30º e 31º da contestação, sustenta o autor/recorrente que deverá ser aditado à factualidade assente o seguinte ponto:
- A autora já teve várias propostas de emprego, designadamente do fundo de desemprego, e não aceitou.
Tal como entende dever ser ainda aditado, pela sua relevância, um outro ponto factual com o seguinte texto:
- O réu vive na casa que agora é a casa morada de família, desde os seus 16 anos.
Tendo sido devidamente cumpridos os ónus referidos no art. 640º do Cód. de Proc. Civil iremos então apreciar a impugnação da decisão de facto, no que se terá em atenção o disposto no art. 662º, nº 1 do mesmo diploma, onde se estabelece que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa
A Relação goza pois de autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção sobre os meios de prova sujeitos a livre apreciação, sem exclusão do uso de presunções judiciais.
Por conseguinte, a livre convicção da Relação deve ser assumida em face dos meios de prova que estão disponíveis, impondo-se que o tribunal de recurso sustente a sua decisão nesses mesmos meios de prova, descrevendo os motivos que o levam a confirmar ou infirmar o resultado fixado em 1ª instância.[1]
Vejamos então cada um dos pontos factuais impugnados pelo réu/recorrente.
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a) Quanto à alteração de redação do ponto nº 12 da factualidade assente o réu/recorrente indica nesse sentido os recibos de vencimento que se encontram juntos aos autos.
Desses recibos decorre que em dezembro de 2019, em janeiro de 2020 e fevereiro de 2020 o réu, como pintor de automóveis para a “C..., S.A.”, auferiu o vencimento base de 960,00€ e recebeu, em termos líquidos, as importâncias de, respetivamente, 1.019,68€, 1.085,21€ e 1.019,87€ - cfr. fls. 38, 41 e 42.
Ora, entendemos que o teor do dito nº 12 deve reproduzir, com rigor, o que consta dos ditos recibos de vencimento, sendo que nem a redação adotada na sentença recorrida nem a proposta em sede recursiva o fazem.
Consequentemente alterar-se-á a redação deste nº 12, passando esta a ser a seguinte:
“O requerido é pintor de automóveis, tendo auferido em dezembro de 2019, em janeiro de 2020 e em fevereiro de 2020 o vencimento base de 960,00€ e recebido, em termos líquidos, as importâncias de, respetivamente, 1.019,68€, 1.085,21€ e 1.019,87€ - cfr. fls. 38, 41 e 42.”
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b) No que toca à alteração proposta à redacção do nº 15 da factualidade assente, em que o réu/recorrente pretende que se adite que a casa de morada de família foi atribuída à mãe do progenitor, CC, em data não concretamente apurada, mas não há menos de 25 anos, são indicados excertos dos depoimentos produzidos por esta ao ser ouvida como testemunha e também por DD, irmã do réu.
Procedemos assim à audição destes dois depoimentos.
CC é mãe do réu. Disse que a casa lhe foi atribuída há muitos anos e que lá viveu com os seus filhos. Quando a casa lhe foi atribuída os seus três filhos eram pequenos.
DD é irmã do réu. Disse que viveu na casa dos autos. Era adolescente e viviam todos juntos.
Da audição técnica especializada (fls. 101/102) decorre que o réu presentemente tem 45 anos de idade e, conjugando este dado com o que flui dos dois depoimentos testemunhais acima referidos, justifica-se a alteração pretendida em sede recursiva.
A redação do nº 15 passará assim a ser a seguinte:
“A casa de morada de família, inicialmente, em data não concretamente apurada, mas não há menos de 25 anos, foi atribuída à mãe do progenitor, CC, a qual, por já ali não habitar e tal ter sido denunciado à Câmara Municipal, subscreveu a declaração de fls. 19 e o documento de fls. 15.”
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c) Entende depois o réu que relativamente à matéria que foi alegada nos arts. 29º, 30º e 31º da contestação, dada como não provada, se adite à factualidade assente um novo ponto com a seguinte redação:
- A autora já teve várias propostas de emprego, designadamente do fundo de desemprego, e não aceitou.
No sentido desta alteração indicou excertos do depoimento da testemunha EE, irmã da autora, a cuja audição procedemos.
Afirmou esta que quando a irmã teve a filha o marido lhe disse para não trabalhar porque ganhava o suficiente para ela estar em casa com a menina. Atualmente a irmã (autora) trabalha a dias, mas só o pode fazer até à hora em que vai buscar a menina à escola. Mais adiante referiu que a irmã andou a procurar emprego, mas ele (réu) disse sempre que não valia a pena; ele ganhava para os dois. E logo a seguir referiu que ela tem tido propostas do fundo de desemprego, mas não aceitou por causa de ele dizer sempre que não valia a pena, que ele ganhava pelos dois. Disse também que, embora separados, eles vivem na mesma casa.
Sucede que a redação dos arts. 29º, 30º e 31º da contestação é a seguinte:
“29. E, só não faz mais horas de trabalho, preenchendo o dia, porque a mesma [autora] assim não quer.
30. Há muito que o Réu, vem falando com a Autora, para aquela iniciar uma procura activa de trabalho noutros sítios ou até fazer mais horas de limpezas, nos sítios onde já faz.
31. Contudo, a mesma sempre foi recusando, encontrando-se precisamente na mesma situação há já 7 anos.”
O único meio probatório que a respeito desta factualidade foi indicado pelo réu/recorrente corresponde, como já se referiu, ao depoimento da testemunha EE, acima sintetizado, e pelo que dele resultou não permite dar como assente qualquer um destes pontos factuais alegados na contestação pelo réu, razão pela qual deverão permanecer como não provados.
E também não se justifica aditar o facto pretendido pelo recorrente, atendendo a que este extravasa o âmbito daqueles arts. 29º, 30º e 31º da contestação, sendo ainda certo que os motivos porque a autora não terá aceitado eventuais propostas de emprego provenientes do Fundo de Desemprego, no dizer da testemunha EE, não se prendem com o desinteresse ou a inércia da autora, mas antes com objeções colocadas pelo próprio réu.
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d) Por último, em termos factuais, o réu/recorrente entende ainda que deverá ser aditado à factualidade assente que “o réu vive na casa que agora é a casa morada de família desde os seus 16 anos.”
Facto que se mostra alegado no art. 7º da contestação que tem o seguinte texto: “Tendo o réu vivido naquela casa desde muito novo, ou seja, desde os seus 16 anos”.
Nesse sentido indicou um excerto do depoimento da testemunha CC, mãe do réu, a qual afirmou que quando a casa lhe foi atribuída os seus três filhos eram pequenos e também uma informação resultante da audição técnica especializada (fls. 101/102), onde se referiu que o réu se encontra na casa desde os 14 anos de idade.
Conjugando esta informação com o teor do depoimento da testemunha EE e também com o que se mostra alegado no art. 7º da contestação entendemos que deverá ser aditado à factualidade assente o seguinte ponto com o nº 18:
- “O réu vive na casa que agora é a casa morada de família desde os seus 16 anos.”
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Em suma:
A impugnação da decisão de facto efetuada pelo réu/recorrente obterá assim parcial procedência, sendo alteradas as redações dos nºs 12 e 15 que passarão a ser as seguintes:
- “12 - O requerido é pintor de automóveis, tendo auferido em dezembro de 2019, em janeiro de 2020 e em fevereiro de 2020 o vencimento base de 960,00€ e recebido, em termos líquidos, as importâncias de, respetivamente, 1.019,68€, 1.085,21€ e 1.019,87€ - cfr. fls. 38, 41 e 42.”;
- “15 - A casa de morada de família, inicialmente, em data não concretamente apurada, mas não há menos de 25 anos, foi atribuída à mãe do progenitor, CC, a qual, por já ali não habitar e tal ter sido denunciado à Câmara Municipal, subscreveu a declaração de fls. 19 e o documento de fls. 15.”.
Simultaneamente, será aditado à factualidade assente o facto nº 18 com o seguinte texto:
- “O réu vive na casa que agora é a casa morada de família desde os seus 16 anos.”
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III – Atribuição do direito a permanecer na casa de morada de família
1. O art. 990º do Cód. de Proc. Civil, que tem como epígrafe «Atribuição da casa de morada de família», dispõe o seguinte no seu nº 1:
«Aquele que pretenda a atribuição da casa de morada de família, nos termos do artigo 1793.º do Código Civil, ou a transmissão do direito ao arrendamento, nos termos do artigo 1105.º do mesmo Código, deduz o seu pedido, indicando os factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito.»
Da matéria fáctica assente decorre que a autora e o réu, desde que casaram, no dia 17.7.2010, estabeleceram a residência do casal numa habitação social, atribuída pela Câmara Municipal, sita na Rua ..., ... Porto, pagando o valor mensal de 148,56€, a título de renda – cfr. nºs 1 e 5.
Situação que, inclusive, se continua a manter, mesmo após a cessação da comunhão conjugal, por não estarem de acordo quanto à sua atribuição – cfr. nº 6.
Estatui o seguinte o art. 1105º do Cód. Civil:
«1. Incidindo o arrendamento sobre a casa de morada de família, o seu destino é, em caso de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens, decidido por acordo dos cônjuges, podendo estes optar pela transmissão ou pela concentração a favor de cada um deles.
2. Na falta de acordo, cabe ao tribunal decidir, tendo em conta a necessidade de cada um, os interesses dos filhos e outros fatores relevantes.
(…)».
Por seu turno, no art. 1793º do Cód. Civil preceitua-se o seguinte:
«1. Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer essa seja comum quer própria de outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.
2. O arrendamento previsto no número anterior fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, mas o tribunal pode definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges, e fazer caducar o arrendamento, a requerimento do senhorio, quando circunstâncias supervenientes o justifiquem.
3 - O regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária.».
2. PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA (in “Curso de Direito da Família”, vol. I, 3ª ed., pág. 726), a propósito deste último preceito, escrevem que “o objetivo da lei [...], não é o de castigar o culpado ou premiar o inocente, como não é o de manter na casa de morada de família, em qualquer caso, o cônjuge ou ex-cônjuge que aí tenha permanecido após a separação de facto, mas o de proteger o cônjuge ou ex-cônjuge que mais seria atingido pelo divórcio ou pela separação quanto à estabilidade da habitação familiar, cônjuge ou ex-cônjuge ao qual, porventura, os filhos tivessem ficado confiados. A necessidade da casa (ou a premência, como vem a dizer a jurisprudência; melhor se diria; a premência da necessidade) parece-nos ser, assim, o factor principal a atender [...].”
Quanto à avaliação da necessidade da casa afirma GUILHERME DE OLIVEIRA[2] (in “Manual de Direito da Família”, Almedina, 2020, pág. 289) que “deve o tribunal ter em conta, em particular, a situação patrimonial dos cônjuges ou ex-cônjuges, de saber quais são os rendimentos e proventos de um e de outro, uma vez decretado o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens, assim como os respetivos encargos; no que se refere ao interesse dos filhos, há que saber com qual dos cônjuges ou ex-cônjuges ficou a residir o filho menor no processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, e se é do interesse do filho viver na casa que foi do casal com o progenitor com quem ficou a residir.
Mas o juízo sobre a necessidade da casa não depende apenas destes dois elementos. Haverá que considerar ainda outros fatores relevantes, como a idade e o estado de saúde dos cônjuges ou ex-cônjuges, a localização da casa relativamente ao local de trabalho de um e outro, o facto de algum deles dispor eventualmente de outra casa em que possa estabelecer a sua residência, etc.”
“Quando possa concluir-se, em face destes elementos, que a necessidade de um dos cônjuges é consideravelmente superior à do outro, deve o tribunal atribuir o direito ao arrendamento da casa de morada de família àquele que mais precisar dela[3]; só quando as necessidades de ambos os cônjuges ou ex-cônjuges forem iguais ou sensivelmente iguais haverá lugar para considerar outros fatores, como o facto de, tratando-se de arrendamento anterior ao casamento, o cônjuge arrendatário ser um ou outro, ou as circunstâncias em que, após a separação de facto, a casa de morada da família tenha sido ocupada por um ou por outro dos cônjuges, elementos ou fatores que, neste sentido, tenderíamos a considerar secundários.”
3. Cabe ao cônjuge que pretende que lhe seja atribuída a casa de morada da família alegar e provar que necessita mais que o outro da referida casa, sendo certo que a necessidade da habitação é uma necessidade atual e concreta – e não eventual ou futura – a apurar segundo a apreciação global das circunstâncias particulares de cada caso – cfr. Ac. Rel. Porto de 15.9.2016, proc. 111/11.7TVPRT.P3 (Judite Pires); Ac. Rel. Lisboa de 24.6.2010, proc. 461/09.2TBAMD.L1-6 (Márcia Portela), ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
4. Regressando ao caso dos autos, decorre o seguinte da factualidade assente:
- A autora e o réu casaram entre si no dia 17.7.2020 e desse casamento nasceu, em .../.../2012, a filha do casal, FF [nºs 1 e 2];
- Desde que casaram, a autora e o réu moram numa habitação social, atribuída pela Câmara Municipal, sita na Rua ..., ... Porto, pagando o valor mensal de 148,56 euros, a título de renda, o que continua a suceder até à presente data, mesmo após a cessação da comunhão conjugal [nºs 5 e 6];
- A autora faz algumas limpezas, de segunda a sexta-feira, no período da manhã, auferindo 20 euros por manhã [nº 10];
- Quando estava casada, por opção do casal e sugestão do réu, não trabalhava para cuidar da filha [nº 11];
- O requerido é pintor de automóveis, tendo auferido em dezembro de 2019, em janeiro de 2020 e em fevereiro de 2020 o vencimento base de 960,00€ e recebido, em termos líquidos, as importâncias de, respetivamente, 1.019,68€, 1.085,21€ e 1.019,87€ [nº 12].
5. Na sequência do já atrás exposto, para decidir quanto à atribuição da casa de morada da família, há que ter em atenção como primeiro critério a necessidade que dela tem cada um dos cônjuges, para o que se avaliará e confrontará a situação patrimonial de cada um deles e, mais concretamente, quais os seus rendimentos e proventos e também quais os seus encargos.
Desta avaliação resulta que o réu tem, de forma evidente, maior capacidade económica do que a autora, uma vez que é pintor de automóveis, trabalhando para a firma “C..., S.A.” e auferindo vencimento que, em termos líquidos, supera os 1.000,00€ por mês.
A uma situação profissional que se afigura marcada pela regularidade dos rendimentos contrapõe-se do lado da sua mulher um quadro caracterizado pela manifesta precariedade, atendendo a que esta apenas efetua algumas limpezas, de manhã, de segunda a sexta-feira, no que ganha 20,00€ por manhã.
Aliás, esta situação precária foi de algum modo incentivada pelo próprio réu, pois se deu como provado que a autora não trabalhava para cuidar da filha, por opção do casal e sugestão daquele.
Por isso, do confronto das situações patrimoniais de autora e réu, terá que se concluir que a capacidade económica deste último para procurar e arrendar uma casa, mesmo que não muito elevada, é significativamente superior à da sua mulher.
A autora provou, pois, como lhe cabia, que a sua condição económica é mais precária do que a do réu.
É certo que nas alegações de recurso se veio sustentar que a autora, até pelo seu menor rendimento mensal, teria condições para aceder com mais facilidade a uma outra habitação social, o que, por isso, justificaria que a casa de morada da família fosse atribuída ao réu/recorrente.
Nesse sentido referenciou uma passagem do Ac. STJ de 17.12.2019 (proc. 4630/17.3T8FNC-A.L1.S1, relatora Maria João Tomé, disponível in www.dgsi.pt.) onde se escreveu o seguinte: “… a circunstância de auferir um rendimento mensal um pouco inferior ao do cônjuge mulher seria suscetível de consentir ao cônjuge marido obter habitação social com mais facilidade do que àquele.”
Contudo, convém observar que o caso analisado neste processo não é similar à situação dos presentes autos, uma vez que as condições económicas dos cônjuges se mostravam próximas e a razão que aí levou à atribuição da casa de morada da família ao cônjuge mulher radicou não no facto de ser mais fácil a obtenção de habitação social por parte do cônjuge marido, mas sim no comportamento pretérito deste caracterizado, face ao teor da sentença proferida no processo de divórcio, pelo consumo excessivo de bebidas alcoólicas, pela errância, pelas agressões físicas e verbais e pela atribuição à sua mulher de relações extramatrimoniais.
Retornando ao caso “sub judice” aceita-se a afirmação produzida em sede recursiva pelo réu/recorrente quando escreve que a autora, pela magreza dos seus rendimentos, teria mais facilidade na obtenção de uma habitação social, mas esta afirmação não é, a nosso ver, decisiva no sentido de lhe ser atribuído o direito de permanecer na casa de morada da família.
É que não podemos deixar de assinalar que o processo que conduziria à atribuição à autora dessa habitação social não é imediato, nem o seu desfecho é certo. Leva o seu tempo, tem os seus trâmites, o que sempre imporá que o tribunal na decisão da presente causa tenha em particular atenção a posição do cônjuge com situação económica mais débil, que, neste caso, é a autora.
Está assim assente que, do confronto da situação patrimonial das duas partes, flui que a necessidade da casa, mesmo que a vida do réu não se possa caracterizar por grande desafogo económico, assume maior premência para a autora, que, de modo notório, não tem capacidade para arrendar uma casa.
6. Quanto ao interesse dos filhos, outro dos fatores a ter em conta para a atribuição da casa de morada da família, há a referir que no apenso de regulação do exercício das responsabilidades parentais referentes à filha de ambos a autora e o réu não se conseguem entender sem estar previamente definida a questão da casa, razão pela qual essa regulação ficou suspensa até ser proferida decisão nestes autos – cfr. nº 9.
Por esse motivo, na inexistência por ora de regulação do exercício das responsabilidades parentais, não se sabe se a filha do casal será confiada à guarda da mãe, do pai ou alternada entre ambos, sendo esta última a solução pretendida pelo aqui réu [nº 8], e, como tal, também não se pode concluir que o interesse da filha, neste ponto particular, seja melhor realizado com a atribuição da casa à progenitora ou ao progenitor.
Embora se é a progenitora que leva e vai buscar a filha do casal à escola [nº 13] tal aponta no sentido desse interesse ser melhor prosseguido com a atribuição da casa de morada da família à autora.
Já no que concerne ao outro filho do réu, resultante de uma relação extraconjugal deste e relativamente ao qual foi fixada residência alternada com os respetivos progenitores [nº 14], em sintonia com o que foi escrito na sentença recorrida, há a salientar que, apesar de ter sido fixado este regime, o mesmo não está instituído, desconhecendo-se se virá efetivamente a ser concretizado.
Tal como, quanto a este filho, não se apurou, nem sequer foi alegado, se o réu contribui para o seu sustento.
Consequentemente, face à míngua de factos no tocante a este filho do réu, em particular no que tange à real implementação do regime de residência alternada, não haverá que ter em conta o seu interesse para decidir da atribuição da casa de morada da família.
7. Por último, o réu/recorrente alude também a outros fatores relevantes que deveriam ter sido atendidos e que apontariam no sentido da casa de morada da família lhe ser atribuída.
Alega assim que vive na casa em questão desde os seus 16 anos de idade e que viveu ali com a sua mãe e com as suas irmãs, o que flui dos nºs 15, 16, 17 e 18 (este último aditado) da factualidade provada.
Entende, portanto, que tem uma forte ligação emocional à casa e ao meio social envolvente, onde cresceu, e considera ser profundamente injusto sair da casa onde habita desde a adolescência e que a sua mãe lhe cedeu para que ele pudesse ali continuar a viver.
Porém, não lhe assiste razão.
O recurso a critérios suplementares, que não os da necessidade de cada um dos cônjuges relativamente à casa e do interesse dos filhos, só é viável em caso de dúvida ou em situação de igualdade entre os cônjuges.
Entre estes critérios poderão referir-se o da localização da casa relativamente ao local de trabalho de um e outro (em conjugação com o facto de algum deles dispor eventualmente de outra casa em que possa estabelecer residência), e bem assim o da maior ligação de cada um dos ex-cônjuges em relação à casa em disputa – cfr. Ac. Rel. Coimbra de 9.1.2018, proc. 238/13.0TMCBR-B.C1 (Luís Cravo), disponível in www.dgsi.pt..
É inequívoco que, perante a factualidade assente, o réu tem maior ligação do que a autora à casa que aqui está em disputa, mas este critério não é decisivo para que ela lhe seja atribuída.
O critério que se mostra determinante para essa atribuição é o da necessidade da casa e apurando-se que a necessidade da autora é superior à do réu, pela sua maior debilidade económica, é a ela que a casa deverá ser atribuída.
Só se as necessidades dos cônjuges, em relação a essa casa, fossem iguais ou sensivelmente iguais é que haveria que considerar outros fatores para decidir da respetiva atribuição, entre eles surgindo a maior ligação a essa casa.
Como a necessidade da autora quanto à casa, por tudo o que se foi expondo, é superior à do réu, não há que fazer intervir, para a decisão, os fatores de natureza emocional/afetiva invocados pelo réu.[4]
Deste modo, o recurso interposto pelo réu é de julgar improcedente, impondo-se a confirmação da decisão recorrida.
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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo réu AA e, em consequência, confirma-se decisão recorrida.
Custas a cargo do recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.

Porto, 4.5.2022
Eduardo Rodrigues Pires
Márcia Portela
João Ramos Lopes
______________
[1] Cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., Almedina, págs. 823 e 825.
[2] Com a colaboração de Rui Moura Ramos.
[3] No plano jurisprudencial cfr., por ex., Ac. Rel. Porto de 23.11.2020, proc. 16993/19.1T8PRT.P1 (Jorge Seabra), Ac. Rel. Porto de 1.2.2011, proc. 298/06.0TMTS-B.P1 (Cecília Agante), Ac. Rel. Porto de 19.12.2012, proc. 10731/10.1 TBVNG.P1 (Carlos Portela) e Ac. Rel. Lisboa de 31.1.2013, proc. 2557/10.9TBVFX.L1-6 (Tomé Ramião), todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[4] De assinalar também que em 18.2.2016, depois da renúncia da mãe, foi dada autorização para residir na casa ao agregado familiar constituído pelo réu, pela autora e pela filha de ambos, FF – cfr. nº 17 e doc. de fls. 120.