Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0621470
Nº Convencional: JTRP00039606
Relator: MARQUES DE CASTILHO
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
EXEQUIBILIDADE
Nº do Documento: RP200610170621470
Data do Acordão: 10/17/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 228 - FLS 25.
Área Temática: .
Sumário: I - O Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho de 22/12/2000 relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de sentenças em matéria civil e comercial, distingue reconhecimento de exequibilidade.
II - O reconhecimento de decisões de qualquer Estado Membro dá-se sem necessidade de recurso a qualquer processo.
III - Para que tenham força executiva necessitam de declaração executória a requerimento de qualquer interessado.
IV - Só em sede de execução e por via de oposição se pode conhecer de eventuais anomalias.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

Relatório

B………., S.P.A.
veio intentar contra
C………., Ldª,
ambas melhor identificadas com os sinais dos autos, acção nos termos do artigo 38º do regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho de 22 de Dezembro de 200 na qual requer que seja reconhecida automaticamente a sentença proferida que junta em cópia autenticada proferida no Tribunal de Rieti, em Itália (fls. 5) e tradução certificada da mesma e declarada a sua executoriedade.
Após conclusão dos autos o Mmº Juiz do Tribunal a quo proferiu decisão em conformidade tendo a final exarado o seguinte:
“…Face ao exposto e nos termos do disposto no art. 41º desse diploma declara-se que a sentença de fls. 5 a 7, possui força executiva na ordem jurídica portuguesa, nos precisos termos dela constantes.
Registe e notifique a requerente.
Proceda à citação da requerida com cópia da decisão Italiana e da tradução apresentada para, querendo, nos termos do art. 43º interpor recurso no prazo de 30 dias….”
Inconformada veio a requerida através do documento de fls. 56 para além de interpor recurso da aludida decisão por cautela suscitar a aclaração no sentido de se precisar perante a citação que foi efectuada se deveria observar o que consta da parte final do despacho que acompanhou a nota de citação dão que além do mais se mostrava transcorrido o prazo de 15 dias
Na nota de citação que foi junta a fls. 57 dos autos verifica-se na quadrícula própria sob a epígrafe Objecto e fundamento da citação o seguinte:
“Nos termos do nº 2 do art. 233º e do art. 239º do Código Processo Civil, fica V.Exª citado para nos termos do artigo 1098º do Código Processo Civil, no prazo de 15 dias deduzir oposição, querendo na acção acima identificada, com o pedido constante do duplicado da petição inicial e as cópias e os documentos que se encontram nos autos”
Na sua sequência o Mmº Juiz a fls.60 profere despacho no qual refere:
“….A citação requerida destinou-se a possibilitar-lhe a interposição de recurso da decisão que recaiu sobre o pedido de declaração de executoriedade. Porque assim …. Em consonância como que se estabelece nos arts. 43 e 44 do regulamento R(CE) nº 44/00 do Conselho de 22.12.00 bem como anexos 3º e 4º do aludido regulamento admite-se o recurso interposto pela requerida da aludida decisão para o Tribunal da Relação do Porto.”
Foi o mencionado recurso admitido como de agravo a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo após intervenção do Exmº Presidente deste Tribunal no acto de distribuição processual tendo nas alegações oportunamente apresentadas sido formuladas as seguintes conclusões que passamos a reproduzir:
1. Há nulidade de citação relativamente ao despacho e há erro quanto ao prazo e forma de processo da acção.
2. Não estamos perante qualquer exequível sentença estrangeira, mas sim a um pedido de citação.
3. O Tribunal recorrido violou os artigos 1094º a 1098º do código Processo Civil, e ainda os arts. 198º, 199º e 462º.
Termina pedindo que seja dado provimento ao interposto recurso.
Foram apresentadas contra alegações nas quais se pugna pela manutenção da decisão.
O Mmº Juiz sustentou tabelarmente a decisão proferida.
Mostram-se colhidos os vistos dos Exmº Juízes adjuntos pelo que importa decidir.

THEMA DECIDENDUM
A delimitação objectiva do recurso é feita pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal decidir sobre matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam do conhecimento oficioso, art. 684 nº3 e 690 nº1 e 3.
As questões que estão subjacentes no âmbito de apreciação do presente recurso traduzem-se a verificar da existência de nulidade de citação bem como e ainda da inexistência de qualquer sentença estrangeira exequível

DOS FACTOS E DO DIREITO
A matéria de facto para além do que foi exposto supra traduz-se no seguinte com relevância para a decisão da causa:
Em 18 de Julho de 2003, a ora Requerente instaurou contra a ora Requerida um processo injuntivo, que teve o número ../03, junto do Tribunal de Rieti, em Itália - cfr. Doc. nº 1, que se junta: certidão emitida pelo referido Tribunal contendo a petição, respectiva decisão e notificação (com traduções), o que tudo aqui se dá por integralmente reproduzido por razões óbvias atenta a natureza dos textos em causa.
Nesse processo, conforme se pode verificar designadamente do documento junto a fls. 34 cuja tradução se encontra junta a fls. 35 e ainda do original de fls. 36 e tradução de fls. 37 pode ler-se além do mais o seguinte
“O cartorario signatário da presente, verificado que a ordem judicial precedente foi considerada executiva pelo Juiz deste Ofício em data de 07.07.2004, apõe a seguinte fórmula executiva:
REPUBLICA ITALIANA – EM VIRTUDE DE LEI
Ordenamos a todos os oficiais de Justiça que sejam requeridos, bem como a qualquer um que deva exigir o presente acto, ao Ministério Publico de dar-lhes assistência e a todos os oficiais pertencentes a força pública de cooperar quando sejam legalmente solicitados.”
O outro aludido documento trata-se do atestado emitido de acordo com os artigos 54º e 58º do regulamento referente às decisões e às transacções judiciais cujo texto se dá por reproduzido e que se encontra no aludido original emitido “em ………. em 16/7/2004 e assinado e timbrado pelo Juiz Dr. D……….”
A factualidade de relevância para a decisão é a que se encontra exarada supra.

DO DIREITO
Vejamos.
O Regulamento (CE) nº 44/2001, do Conselho, de 22.12.2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões, em matéria civil e comercial (publicado no J.O.C., nº L 12, de 16.01.2001), veio criar um instrumento normativo de direito comunitário que permitiu a unificação, no âmbito da sua aplicação, das normas de conflito de jurisdição em matéria civil e comercial, bem assim a simplificação das formalidades com vista ao reconhecimento e execução, rápidos e simples, das decisões proferidas sobre essas matérias.
No caso sub judice, está em causa a exequibilidade de uma sentença proferida por um Estado-Membro, Itália - uma “decisão” desse tribunal, na noção que nos é concedida na conformidade do art. 32º do Regulamento aludido.
Distingue-se no citado diploma o reconhecimento da exequibilidade da “decisão”.
Quanto ao primeiro dispõe o art. 33º do mesmo Regulamento que:
"As decisões proferidas num Estado-Membro são reconhecidas nos outros Estados-Membros, sem necessidade de recurso a qualquer processo".
Trata-se de um preceito que parte do princípio da confiança mútua entre jurisdições dos Estados-Membros, possibilitando a livre circulação das decisões judiciais - a chamada 5ª liberdade (as outras são as liberdades económicas dos Tratados: circulação das mercadorias, dos trabalhadores, dos serviços e dos capitais).
“A confiança recíproca na administração da justiça no seio da Comunidade justifica que as decisões judiciais proferidas num Estado-Membro sejam automaticamente reconhecidas, sem necessidade de recorrer a qualquer procedimento, excepto em caso de impugnação” - Considerando 16º ao diploma.
”A mesma confiança recíproca implica a eficácia e a rapidez do processo para tornar executória num Estado-Membro uma decisão proferida noutro Estado-Membro. Para este fim, a declaração de executoriedade de uma decisão deve ser dada de forma quase automática, após um simples controlo formal dos documentos fornecidos, sem a possibilidade de o tribunal invocar por sua iniciativa qualquer dos fundamentos previstos pelo presente regulamento para uma decisão não ser executada” - Considerando 17º ao diploma.

Trata-se de um sistema de inversão do contencioso, para possibilitar a celeridade de circulação do título sendo certo que está em elaboração e estudo a instauração do chamado título executivo europeu.
Quanto à exequibilidade da decisão dispõe o art. 38º do mesmo Regulamento que:
“1. As decisões proferidas num Estado-Membro e que nesse Estado tenham força executiva podem ser executadas noutro Estado-Membro depois de nele terem sido declaradas executórias, a requerimento de qualquer parte interessada.”
É essa mesma executoriedade que se pretende nos presentes autos ou seja, reconhecer a exequibilidade da sentença proferida em pelo Tribunal de Rieti, Itália, com certidão junta aos autos.
Dispõe-se no art. 41º do Regulamento que:
“A decisão será imediatamente declarada executória quando estiverem cumpridos os trâmites previstos no artº 53º”
ou seja, estando junta a cópia da decisão que satisfaça os necessários requisitos de autenticidade, bem assim a “certidão” referida no art. 54º - documentação que se encontra junta aos autos como se aludiu supra.
No art. 41º nº 2 estatui-se que:
“A parte contra a qual a execução é promovida não pode apresentar observações nesta fase do processo”.
É justamente na fase de recurso da decisão sobre o pedido de declaração de executoriedade e apenas e só nesta fase - recurso esse admissível para o tribunal da Relação, independentemente do valor (cfr. art. 43º do Reg. e Anexo III) -, que a parte contra a qual a execução é promovida terá ocasião de alegar motivos de recusa da declaração de execução, previstos nos arts. 34º e 35º, do mesmo Regulamento.
Daí que “O tribunal onde foi interposto o recurso ao abrigo dos arts. 43º e 44º apenas recusará ou revogará a declaração de executoriedade por um dos motivos especificados nos artigos 34º e 35º...” por força do regime imposto pelo art. 45º do mesmo diploma legal que vem sendo citado.
Igualmente se deve e tem de referir que as decisões estrangeiras “não podem, em caso algum, ser objecto de revisão de mérito” de acordo com o determinado no nº 2 do citado art. 45º e também do art. 36º - o que constitui uma regra fundamental e estruturante do sistema do Regulamento, baseada nos princípios enunciados supra do reconhecimento da mútua confiança entre as jurisdições dos estados-membros; daí se determinando que a vontade do juiz nacional quanto ao fundo da matéria, não pode ser substituída pela vontade do juiz estrangeiro.
A confiança recíproca entre as jurisdições dos Estados-Membros é a pedra angular que justifica a livre circulação das decisões judiciais, no espaço de liberdade, de segurança e de justiça, como se tratasse de um único território estadual, ou espaço judiciário único.
É assim na fase de recurso da decisão sobre o pedido de declaração de executoriedade que a parte contra a qual a execução é promovida terá ocasião de alegar motivos de recusa da declaração de execução, previstos nos arts. 34º e 35º, do mesmo Regulamento vindo o Agravante invocar em primeiro a nulidade de citação, não naquele referido Tribunal Italiano, mas sim a operada pelo Tribunal a quo, atentos os termos em que foi efectivada a supra mencionada nota de citação, contrariamente ao que estava exarado no despacho proferido e que era do seguinte teor:
“Proceda à citação da requerida com cópia da decisão Italiana e da tradução apresentada para, querendo, nos termos do art. 43º interpor recurso no prazo de 30 dias….”
Vejamos.
As situações em que ocorre a nulidade de citação estão previstas no artigo 195º e suas diversas alíneas do nº 1 o que clara e inequivocamente não é a situação dos autos.
Estatui-se por sua vez no artigo 198º nº 1 que “Sem prejuízo do disposto no artigo 195º é nula a citação quando não hajam sido, na sua realização, observadas as formalidades prescritas na lei”
No nº 4 do mesmo normativo dispõe-se que a arguição só é atendida se a falta cometida puder prejudicar a defesa do citado ou seja, sempre que pela seu modus operandi se possa verificar que a mesma resultará em prejuízo da parte que é abrangida pelo referido acto no exercício dos direitos correspondentes, designadamente a nível processual por forma a garantir além do mais os princípios ínsitos ao regime global designadamente do contraditório e de igualdade das partes perante a lei.
Ora o que se verifica é que a Requerida foi citada “Nos termos do nº 2 do art. 233º e do art. 239º do Código Processo Civil, fica V.Exª citado para nos termos do artigo 1098º do Código Processo Civil, no prazo de 15 dias deduzir oposição, querendo na acção acima identificada, com o pedido constante do duplicado da petição inicial e as cópias e os documentos que se encontram nos autos”
Na verdade e tendo em consideração o regime que vem de ser descrito o que se verifica é que tal notificação à revelia e contrariamente à decisão proferida não foi efectuada em consonância com a mesma, tendo a Solicitadora de Execução, lavrado em erro na sua efectivação e consequentemente tendo encurtado o prazo legal que deve ser concedido às partes em tal situação processual de acordo com o disposto nos artigos 42º e 43º do aludido Regulamento, como aliás bem fixou o Exmº Magistrado no Tribunal a quo.
Assim encurtando-se como efectivamente encurtou o prazo e note-se que a Requerida veio suscitar a questão junto do Tribunal a quo e obteve do mesmo a resposta da sua admissibilidade necessariamente que pela mesma a Requerida poderia ser prejudicada no exercício dos respectivos direitos processuais correspondentes designadamente de apresentação de sua defesa.
Mas o que ocorre é que interveio no processo e interpôs concomitantemente recurso para este Tribunal, o que foi admitido tendo para o efeito alegado nessa conformidade, ou seja, sempre se terá de considerar que a sua argumentação no que tange à citação que foi operada e apenas no Tribunal a quo, e nos termos em que o foi por tempestiva, se teria de atender dado que na verdade pode ter prejudicado o exercício dos respectivos direitos, mas deve ser considerado sanado tal vício porquanto para além de haver exercitado em tempo o seu direito, não vemos nem se alcança em que é que o mesmo pode ter sido postergado ou arredado face aos fundamentos invocados e que analisaremos perante as conclusões formuladas.
Assim.
O recurso é interposto junto do Tribunal indicado na lista constante do anexo III ou seja, este mesmo Tribunal, sendo os motivos de recusa indicados no art. 45º nº1 do Regulamento e na remissão para as normas nele referidas designadamente para um dos motivos que se encontram consignados e especificados nos artigos 34º e 35º o que refira-se não minimamente concretizado perante a formulação das conclusões recursivas à excepção da inexequibilidade da decisão.
Ou seja de acordo com o nº 1 do primeiro dos indicados normativos:
“1. Se o reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado-Membro requerido.”

Importa assim perfectibilizar e preencher tal conceito normativo sendo de referir que a ordem pública pode ser de natureza processual (lesão grave do contraditório, da imparcialidade do juiz, falta de fundamentação da decisão), ou natureza material (ordem púbica material - lesão grave de regras de concorrência).
Na Doutrina tal conceitualização tem diferentes perspectivas de definição assim por exemplo Mota Pinto, in Teoria Geral Direito Civil pág. 434 define como “o conjunto dos princípios fundamentais, subjacentes ao sistema jurídico, que o Estado e a sociedade estão substancialmente interessados em que prevaleçam e que têm uma acuidade tão forte que devem prevalecer sobre as convenções privadas”.
Manuel de Andrade in Teoria Geral da Relação Jurídica págs 334-335 refere que, pela dificuldade em definir tal noção, se faz apelo aos interesses fundamentais que o nosso sistema jurídico procura tutelar e aos princípios correspondentes que constituem como que um substrato desse sistema.
Vaz Serra in BMJ-74, Separata pág. 127 refere que “…é sempre muito difícil definir o conceito de “ordem pública”, uma vez que o mesmo varia com os tempos. Exemplificativamente são as leis que têm por fim garantir a segurança do comércio jurídico e proteger terceiros, bem como as regras fundamentais da organização económica.”
Mas apreciando a questão existirá in casu violação do principio do contraditório com a prolação do despacho que, refira-se, o próprio Agravante, se bem interpretamos a sua explanação, não consegue factualizar ou concretizar devidamente, mas que julgamos ter mínima e razoavelmente compreendido, ao referir que tendo sido como foi proferido tal despacho deveria ter sido previamente citado ou chamado aos autos face à formulação deduzida podendo evitar as graves consequências da inexistência do mesmo chamamento por concessão de tal executoriedade.
Importa referir que não lhe assiste razão.
O que está em causa nestes autos é a mera declaração de exequibilidade à sentença italiana.
Assim não cabe no âmbito deste Tribunal da Relação, designadamente, tomar conhecimento de eventuais procedimentos, sendo em sede de execução da sentença que pode a agravante, por via de oposição à execução, suscitar o que bem entender, designadamente invocando os motivos de impugnação previstos no art. 813º e segs, e daí que não exista no caso também qualquer violação do invocado principio do contraditório, o que aliás decorre do disposto no artigo 45º nº2 do referido Regulamento uma vez que as “decisões estrangeiras não podem em caso algum ser objecto de revisão de mérito”
Estando clara e inequivocamente garantido tal principio no decurso do iter processual pelo que assim sendo

DELIBERAÇÃO
Nestes termos em face do que vem de ser exposto não se concede provimento ao interposto recurso mantendo a decisão proferida nos seus precisos termos.
Custas pela Agravante.

Porto, 17 de Outubro de 2006
Augusto José Baptista Marques de Castilho
Maria Teresa Montenegro V. C. Teixeira Lopes
Emídio José da Costa