Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1517/14.5T8STS-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: INSOLVÊNCIA
CRÉDITO SUBORDINADO
PESSOA ESPECIAL RELACIONADA COM O DEVEDOR
QUALIFICAÇÃO DE CRÉDITOS
Nº do Documento: RP201803061517/14.5T8STS-B.P1
Data do Acordão: 03/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 815, FLS.49-56)
Área Temática: .
Sumário: I – “A simples constatação do vínculo ou da situação de que é feita depender a qualificação como pessoa especialmente relacionada com o devedor (artº 49º nº1 CIRE) basta para que ela opere e desencadeie os seus efeitos; por assim ser, não pode, em circunstância alguma, o atingido afastá-los com a alegação e prova de que esse vínculo ou situação em nada determinou ou condicionou o relacionamento com o devedor ou mesmo com a demonstração que desse relacionamento resultaram – ou até resultaram só – benefícios para o devedor”.
II – Esta solução fundou-se na suspeição que estes créditos suscitam, procurando-se, como afirma o ponto 25 do Preâmbulo do CIRE, o “combate a uma fonte frequente de frustração das finalidades do processo de insolvência, qual seja a de aproveitamento, por parte do devedor, de relações orgânicas ou de grupo, e de parentesco, para praticar actos prejudiciais aos credores”.
III - Entende-se que as pessoas especialmente relacionadas com o devedor podiam ter contado com uma maior informação sobre a situação desse devedor/insolvente e que, em consequência, deviam tê-lo financiado mais criteriosamente ou, noutras hipóteses, que exerceram efectiva influência sobre o devedor (o facto de os credores serem ascendentes pode favorecer situações de ulterior e indiscriminado endividamento).
IV – Considerar um eventual limite temporal para a constituição do crédito subordinado dos ascendentes sobre os Insolventes, designadamente dentro de 2 anos referenciados a propósito da norma do artº 48º al.a) parte final CIRE, é proporcionar a apresentação à insolvência por forma a resguardar ou prevenir a “desclassificação do crédito” das “pessoas especialmente relacionadas com o devedor”, algo que o legislador manifestamente visou evitar.
V – A não consideração de qualquer limite temporal, levando em conta apenas a grande anterioridade do crédito face à declaração de insolvência, torna a matéria em causa excessivamente dependente da ponderação (equidade/arbítrio) do julgador, algo a que é avessa a simples consideração de uma presunção iuris et de iure (presunção absoluta, inilidível por prova em contrário – artº 350º nº2 parte final CCiv, e que visa tão só facilitar a tarefa ao julgador, tornando-o mais explicitamente equidistante das matérias em discussão).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ● Rec. 1517/14.5T8STS-B.P1. Relator – Vieira e Cunha. Adjuntos – Des. Maria Eiró e Des. João Proença Costa. Decisão recorrida de 22/12/2017.
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Razão do Recurso
Recurso de apelação interposto na acção com processo especial de reclamação de créditos, por apenso a processo de insolvência, nº1517/14.5T8STS-B, da Comarca do Porto, Juízo de Comércio de Santo Tirso.
Insolventes – B… e mulher D….
Credores Reclamantes – Banco E…, S.A., e F…, S.A.
Credores Impugnantes – G… e marido H….
Apelante – G…
Apelada – Massa Insolvente, representada pela Administradora da Insolvência.

Nos presentes autos, junta a lista de créditos reconhecida pela Administradora da Insolvência, foi essa referida lista impugnada pelos credores G… e marido H…, por da mesma não constar o respectivo e reclamado crédito de €200.000,00, sustentando que tal crédito deve ser havido como garantido, face à existência de uma hipoteca, oportunamente registada a favor dos aludidos impugnantes, sobre prédios apreendidos na insolvência.
Alegaram que o crédito reclamado decorre da existência de diversos mútuos realizados pelos Impugnantes aos Insolventes, entre os anos de 1994 e 2006, das mais diversas quantias, e num total que veio a redundar no valor de €200.000,00.
No documento junto aos autos intitulado “Hipoteca Unilateral”, embora ali se faça alusão a um “empréstimo”, tal não reflecte com rigor o que sucedeu já que o valor ali enunciado diz respeito antes a vários empréstimos ao longo dos anos, e não apenas a um só, empréstimos registados num livro de “deve-haver” da autoria da Impugnante mulher e devidamente rubricado pelo insolvente marido, não enfermando de qualquer nulidade formal, considerando as normas legais então vigentes.
Em Resposta, a Massa Insolvente sustentou a improcedência da reclamação deduzida, alegando que o manuscrito junto com a menção “empréstimo concedido ao B… e D…” não pode ser considerado um documento válido, desacompanhado de qualquer comprovativo documental de que tais quantias tenham sido efectivamente mutuadas, ao que acresce o facto de aquele documento não conter sequer qualquer reconhecimento de assinaturas.
Os alegados mútuos sempre serão nulos por falta da forma enunciada no art.º 1143.º do Código Civil, nas redacções quantitativas e sucessivas introduzidas em 1966 e em 2008, e nessa sequência, também a hipoteca constituída se mostra inquinada de nulidade.
Por último, sempre o crédito reclamado terá de ser reconhecido como crédito subordinado, atento o facto de os Reclamantes serem pais do Insolvente marido, face ao preceituado no art.º 47.º, n.º 4, alínea b), do CIRE.
Sentença Recorrida
A Mmª Juiz a quo decidiu, a final, como segue:
a) Homologar a lista de credores reconhecidos elaborada pela Sr.ª Administradora da Insolvência, constante de fls. 8, dela passando a fazer parte o crédito dos credores G… e H…, no montante de €200.000,00, e sob a qualificação de “subordinado”;
b) Graduar tais créditos, para serem pagos pelo produto da liquidação dos bens apreendidos para a massa insolvente, nos seguintes termos:
No que tange à verba 1 do auto de apreensão:
1.º Os créditos titulados pelo Banco E…, S.A., nos montantes reconhecidos e apurados como gozando de garantia;
2.º Todos os demais créditos, reclamados e reconhecidos, em pé de igualdade, dando-se entre eles rateio se necessário for, sendo que apenas após a já referida salvaguarda das despesas e dívidas da massa, se houver remanescente serão pagos todos os créditos reclamados, rateadamente, em primeiro lugar os comuns e só após, havendo remanescente, os subordinados.
No que tange às verbas 2 e 3 do auto de apreensão:
1.º Todos os créditos, reclamados e reconhecidos, em pé de igualdade, dando-se entre eles rateio se necessário for, sendo que apenas após a já referida salvaguarda das despesas e dívidas da massa, se houver remanescente serão pagos todos os créditos reclamados, rateadamente, em primeiro lugar os comuns, e só após, os subordinados.
Conclusões do Recurso de Apelação da Impugnante G…:
1ª Vem o presente recurso interposto da sentença de verificação e graduação de créditos proferida nos autos de insolvência na parte em que, não obstante tenha julgado verificado e reconhecido o crédito reclamado pelos credores/impugnantes G… e H…; julgado válida a garantia de pagamento do mesmo, constituída mediante hipoteca voluntária de 27 de Outubro de 2009 e registada nessa mesma data sobre três imóveis pertença dos insolventes, qualificou, porém, tal crédito, não como privilegiado ou garantido, mas como subordinado.
2ª Decisão esta que a ora Recorrente, G… não aceita por entender que, salvo o devido respeito, a mesma resulta de incorrecta interpretação e aplicação do direito aos factos apurados, os quais ora se transcrevem: (…)
3ª Na verdade, as classes de créditos sobre a insolvência encontram-se plasmadas no art.47º, nº4 do CIRE, o qual dispõe que: (…)
4ª Dispondo o artigo 48º, al. a) do CIRE, quanto ao caso que aqui nos ocupa que: “ Consideram-se subordinados, sendo graduados depois dos restantes créditos sobre a insolvência:
a) Os créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, desde que a relação especial existisse já aquando da respectiva aquisição,…”, prevendo o artigo seguinte do CIRE (art.49º) quais as pessoas havidas como especialmente relacionadas com o devedor, onde se encontram, na sua al. b) os ascendentes.
5ª Pelo que a Mª Juiz a quo, face à demonstração da relação especial existente entre os credores impugnantes e os insolventes, qualificou o crédito da ora Recorrente como subordinado, graduando-o em conformidade;
6ª Fazendo, uma interpretação literal do conjunto normativo composto pelo art.48º, al. a) 1ª parte e art.49º, nº1, al. b), ambos do CIRE, em violação do disposto no art.9º do Código Civil que, para além da letra da lei, manda atender ao pensamento legislativo; à unidade do sistema jurídico; às circunstâncias em que a lei foi elaborada e às condições específicas do tempo em que é aplicada.
7ª Na verdade, ao fazer tal interpretação, a Mª Juiz a quo não atendeu à demais factualidade alegada, nem deu a devida relevância ao período temporal que mediou entre a constituição do crédito (8 anos) e o início do processo de insolvência; também não o fazendo relativamente ao período que mediou entre a constituição da garantia (5 anos) e o início do mesmo processo; e
8ª Principalmente, não deu relevância à factualidade demonstrada sob a al. i) dos factos provados, onde se consignou que a escritura de hipoteca “resultou de acto de vontade por parte dos insolventes, face à circunstância de o marido insolvente ter pretendido salvaguardar a satisfação das quantias mutuadas, atenta a existência de outros filhos daqueles H… e G…”, ou seja, teve como intuito, para além de garantir o pagamento dos mútuos concedidos aos insolventes, salvaguardar uma futura partilha igualitária entre os filhos dos credores H… e G….
9ª Ora, Venerandos Desembargadores, entende a Recorrente que tal decisão não se poderá manter, face à factualidade demonstrada nos autos, e atendendo à teleologia que subjaz à classificação legal de determinados créditos como subordinados, designadamente e para o que aqui importa, os consagrados na al. a) do art.48º do CIRE – “pessoas especialmente relacionadas com o devedor, desde que a relação especial existisse já aquando da respectiva aquisição…”, por se entender que estas beneficiarão de uma situação de superioridade informativa sobre a situação do devedor, relativamente aos demais credores; sempre em consideração às finalidades do processo de insolvência.
10ª Efectivamente, in casu, face aos factos demonstrados, tal relação especial não poderá relevar, dado o lapso de tempo decorrido desde a constituição do crédito e ulterior garantia do mesmo, até à verificação da situação de insolvência, lapso de tempo esse que não poderá ser julgado irrelevante já que é a própria lei que, em várias disposições legais, entende que só deverão ser afectadas pela situação insolvencial as situações verificadas dentro de determinado período temporal, como é o caso dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência previsto nos artigos 48º, al. a) e 49º, 120º, todos do CIRE;
11ª Não deixando também de ser paradigmático de tal relevância do lapso de tempo os prazos ainda mais curtos plasmados nas várias situações consignadas no nº1 do art.121º do CIRE.
12ª Na verdade, e conforme entendimento muito bem plasmado no
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06 de Dezembro de 2016 (ulterior ao desta Relação e mencionado na sentença em crise), em que foi Relator o Conselheiro José Raínho, cujo excerto se transcreve:
“ Efetivamente, estabelece a alínea a) do art.48º, no que interessa aqui, que:
- Consideram-se subordinados os créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, desde que a relação especial existisse já aquando da respetiva aquisição.
Estabelece a alínea b) do nº 1 do art. 49º, no que também interessa aqui, que:
- São havidos como especialmente relacionados com o devedor pessoa singular, os ascendentes. Deste conjunto normativo retira-se, portanto, que os créditos detidos pelo pai daquele que é declarado insolvente se consideram subordinados, sendo assim graduados depois dos restantes créditos sobre a insolvência.
Da forma como o art. 48º (“Consideram-se subordinados…”) e o art. 47º nº 4 alínea b) («Subordinados», os créditos enumerados no artigo seguinte…) se encontram redigidos (elemento literal da interpretação), é de concluir que a hipótese da alínea a) do art. 48º não admite discussão factual que possa levar a outra qualificação do crédito. Por isso se tem entendido (embora não se trate de questão pacífica), e cremos que bem, que lidamos neste particular com uma presunção inilidível. Dizem a propósito Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, 3ª ed., p. 298) que “O que está aqui em causa é, precisamente, a presunção de os atos praticados pelo insolvente, para mais num período vizinho da abertura do processo de insolvência, com pessoas que, por uma razão ou outra, lhe são próximas, tenderem a beneficiá-las.
Daí que, se de tais atos resultam créditos, estes, em caso de consumação da insolvência, devem ficar sujeitos a um tratamento menos favorável que a generalidade dos demais (…). Sublinhe-se, no entanto, que a presunção referida é inilidível (…) ”.
Este ponto de vista quanto ao caráter iuris et de iure da presunção é partilhado por outros autores (assim, por exemplo, Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, 3ª ed., p. 96).
Porém, ponto diferente e não contraditório com o que acaba de ser dito, é saber se não haverá que proceder a uma interpretação restritiva das normas em questão.
Pensamos que sim.
Assim o impõe a boa interpretação da lei, aliás dentro do comando ao art. 9º nº 1 do CCivil.
Ora, interessa ter presente, no que respeita á razão de ser (elemento racional ou teleológico da interpretação) das estatuições da alínea a) do art. 48º e do nº 1 do art. 49º, o que consta do preâmbulo do DL nº 53/2004, diploma que aprovou o CIRE. Retira-se daí (ponto 25), na síntese de Maria do Rosário Epifânio (Manual de Direito da Insolvência, 6ª ed., p. 245), que a filosofia subjacente à classificação como subordinados dos créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor deve-se «”à situação de superioridade informativa sobre a situação do devedor relativamente aos demais credores”, por um lado, e, por outro, ao aproveitamento dessas relações especiais feito pelo próprio devedor para frustrar as finalidades do processo de insolvência» (à semelhança, aliás, de outros mecanismos previstos no CIRE, como seja a resolução de atos em benefício da massa insolvente).
Sendo esta a razão de ser inerente à estatuição legal, logo se imporá interpretar os citados normativos de modo a abranger na sua previsão apenas (interpretação restritiva) os casos em que se possa estabelecer lógica e razoavelmente um nexo temporal que de alguma forma co-envolva ou comprometa a suposta superioridade informativa (ou o aproveitamento feito pelo devedor) com uma futura condição insolvencial.
O que é dizer, noutra formulação, só fará sentido considerar para o efeito um “período vizinho da abertura do processo de insolvência” (na expressão dos supra citados autores), e não já um qualquer período sem limite algum.
A lei procura subalternizar os créditos daqueles de quem admite que possam ter agido de má-fé ou com ligeireza (estariam em condições de conhecer a situação em que se encontrava o devedor, logo é justo que vejam os seus créditos receberem um tratamento menos favorável) com reporte a uma atual ou futura situação económica deficitária do devedor, e isto só se concebe, com um mínimo de razoabilidade, quando, precisamente, exista alguma proximidade entre uma coisa e outra. A própria lei, no caso previsto na última parte da alínea a) do art. 48º, mostra-se sensível à necessidade de haver limites temporais (dois anos anteriores ao início do processo de insolvência), opção esta que, mutatis mutandis, bem pode aqui ser usada para reforçar a bondade da ideia de que também em caso como o vertente haverá que atender a algum tipo de limite temporal. (O mesmo se poderia
dizer a partir das hipóteses da alínea a), 2ª parte e d) do art. 49º).
Podemos assim concluir que não têm aplicação a alínea a) do art. 48º e a alínea b) do nº 1 do art. 49º quando se mostra que a constituição do crédito está de tal forma afastada no tempo do início do processo de insolvência que, dentro da normalidade das coisas, se trata de dois acontecimentos totalmente independentes, isto é, sem qualquer correlação, afinidade ou implicação entre si. Em um tal caso, a especial relação entre credor e devedor apresenta-se, para os fins ora em discussão, como indiferente ou irrelevante no que tange à constituição do crédito que virá depois a ser reclamado na insolvência. E isto afigura-se-nos ademais de realçar quando o crédito é reportado a momento tão distante que vai cair numa altura em que a figura dos créditos subordinados nem sequer existia ainda no plano legal, hipótese em que não seria exigível ao credor especialmente relacionado com o devedor que representasse a possibilidade de subalternização do seu crédito em caso de uma eventual insolvência do devedor (note-se que não estamos aqui a emitir qualquer juízo acerca da aplicação do CIRE no tempo, mas apenas a significar a ilogicidade de se interpretar a norma em causa sem levar em linha de conta o fator tempo).
13ª Não obstante o Acórdão do STJ atrás citado perfilhe o entendimento (da Mª Juiz a quo) de que a alínea a) do art.48º do CIRE estabelece uma presunção inilidível;
Questão diferente é a abrangência ou os limites de aplicação dessa norma, perfilhando o entendimento que o conjunto normativo formado pelos art. 48º, al. a), 1ª parte, e art.49º, nº1 al. b) do CIRE carece de interpretação restritiva, de modo a abranger na sua previsão apenas os casos em que se possa estabelecer lógica e razoavelmente um nexo temporal que co-envolva ou comprometa a razão de ser da norma (a pressuposta superioridade informativa do credor sobre a situação do devedor) com a condição insolvencial do devedor; não tendo aplicação tal conjunto normativo quando se mostra que a constituição do crédito está tão afastada no tempo do início do processo de insolvência que, dentro da normalidade das coisas, se trata de dois acontecimentos totalmente independentes, sem qualquer correlação, afinidade ou implicação entre si. - cfr. sumário do citado Ac. STJ, acessível in www.dgsi.pt.
14ª E a verdade é que, não obstante a Mª Juiz a quo, não afaste liminarmente esta interpretação, opta, in casu, pela interpretação literal das ditas normas, fazendo-o, porém, de forma infundamentada, contraditória e contrária à lei, não podendo a ora Recorrente concordar com este excerto da sentença (pág. 19, § 1º):
Sem embargo de não afastarmos liminarmente a propugnada interpretação (e subsequente eventual inaplicabilidade da norma), certo é que, salvo o devido respeito, a questão ali apreciada diverge, e muito, da situação em análise nestes autos: os aqui devedores apresentaram-se à insolvência em Dezembro de 2014; a constituição da hipoteca em causa nos autos teve lugar escassos 4 anos antes (em 2009); parte dos valores em causa foram mutuados já após o aparecimento do CIRE; a necessidade de constituição desta garantia não pode deixar de se imbricar com a percepção, a determinada altura, que os diversos intervenientes terão tido da possibilidade de um cenário em que os mutuários pudessem não reunir condições para efectivarem a acordada devolução daqueles valores, e de, perante essa realidade, tal redundar num benefício de um filho (o aqui insolvente) em detrimento dos demais (atenta a existência de irmãos do insolvente - cfr. facto acima exarado sob a alínea i).”
15ª Já que, como resulta da factualidade provada, a hipoteca foi constituída em Outubro de 2009, tendo os devedores se apresentado à insolvência em Dezembro de 2014, ou seja, mais de cinco anos após a constituição da mesma, e não quatro como, certamente por lapso, está dito na decisão em crise;
16ª Acresce que o crédito que a dita hipoteca visou garantir foi constituído no período compreendido entre 1994 e 2006 (mais de oito anos antes do inicio do processo de insolvência).
17ª De todo o modo, seja relativamente à data da constituição do crédito; seja relativamente à data da constituição da hipoteca, sempre a Mª Juiz a quo teria de explicar, fundamentando, o porquê de considerar o período que mediou entre a constituição da hipoteca e o início do processo de insolvência “escasso”, o que não fez, o que inquina de nulidade a decisão em crise, nulidade que aqui se invoca – cfr. art.615º al. b) do C.P.C.;
18ª Ainda e sempre sem prescindir, desde já se refere que mal se compreende tal juízo, já que a lei insolvencial, nos normativos atendidos (art.48º, al. a), 1ª parte e art.49º, nº1, al. b) do CIRE) considera como período próximo ou vizinho da abertura do processo de insolvência apenas os dois anos anteriores, sendo este período, em nosso entendimento a medida de tal “escassez”;
19ª O que, aliás, bem se compreende face à dinâmica do mundo moderno, em constante ebulição, principalmente a nível político, económico e legal.
20ª Por tudo o exposto, deverá a sentença proferida ser revogada na parte em que qualificou o crédito da ora Recorrente como subordinado, por incorrecta aplicação do direito aos factos provados e incorrecta interpretação do disposto nos artigos 48º, al. a), 1ª parte, e art.49º, nº1 al. b) do CIRE; devendo a mesma ser substituída por outra que qualifique tal crédito como privilegiado, face às hipotecas de que beneficia, e, assim, ser pago pelo produto das vendas dos respectivos imóveis.

A Apelada Massa Insolvente apresentou contra-alegações, nas quais sustenta a confirmação da sentença recorrida.
Factos Provados
a) Por sentença proferida em 05.01.2015, transitada em julgado, foi declarada a insolvência de B… e D…, com os demais sinais identificadores constantes dos autos, após aqueles se terem apresentado à insolvência através de requerimento que deu entrada em juízo em 26 de Dezembro de 2014;
b) No âmbito do apenso de apreensão de bens, foram apreendidos a favor da massa insolvente três prédios, a saber, um prédio urbano, sito em Matosinhos, e dois rústicos sitos em Vila Nova de Cerveira, ali melhor identificados a fls. 4 daquele apenso, cujo teor aqui se dá por reproduzido;
c) Sobre tais prédios constam registadas hipotecas voluntárias a favor de G… e H…, em 27.10.2009, para garantia de empréstimo, sendo que apenas por referência ao prédio urbano consta registada hipoteca anterior a favor do Banco I…., conforme decorre das certidões registrais juntas a fls. 9 a 16 do apenso A, que aqui se dão por reproduzidas;
d) Por documento intitulado “Hipoteca Unilateral” realizado em 27.10.2009, na Primeira Conservatória do Registo Predial da Maia, D…, declarou, por si e na qualidade de procuradora de seu marido B…, ser dona, juntamente com seu marido, dos três prédios referidos em c), e que, nesse acto, constitui hipoteca sobre os aludidos imóveis a favor de H… e mulher G…, hipoteca que é constituída para garantir um empréstimo no montante de “duzentos mil euros” já concedido à declarante e seu marido, por documento particular, e que o prazo de amortização da referida quantia terminaria em 30.09.2013, mantendo-se a hipoteca enquanto durar qualquer responsabilidade emergente, tudo conforme documento junto a fls. 25 verso a fls. 27 deste apenso, que aqui se dá por inteiramente reproduzido;
e) O valor mencionado em d) resultou da concessão de vários empréstimos por banda dos ora impugnantes aos aqui insolventes, ao longo de vários anos, entre 1994 e 2006;
f) Tais empréstimos foram objecto de registo num livro de “deve-haver” pertença e em posse dos credores impugnantes, do qual resultam as datas e os valores que foram sendo mutuados, tudo conforme ressalta da cópia do documento junto a fls. 32 verso a 33 deste apenso, cujo teor se dá aqui por reproduzido;
g) Tal documento é da autoria da impugnante G… e encontra-se rubricado pelo insolvente C… no canto inferior direito;
h) A Sr.ª AI nomeada nos autos, aquando da prolação da sentença declaratória da insolvência, Dr.ª J…, apresentou a lista a que alude o art.º 129.º do CIRE, sendo que da lista dos credores não reconhecidos foi feito constar a identificação dos credores G… e H…, e o valor do crédito não reconhecido como sendo de €200.000,00, mais constando a razão de tal “não reconhecimento” como tendo tido fundamento na nulidade do contrato de mútuo por vício de forma (art.º 1143.º do Código Civil), já que conforme documento de constituição de hipoteca, esta se terá destinado a garantir um empréstimo de 200.000,00 concedido por documento particular, tudo como flui do teor de fls. 10 deste apenso, que aqui se dá por reproduzido;
i) C… é filho de H… e de G…, e a escritura referida em d) resultou de acto de vontade por parte dos insolventes, face à circunstância de o marido insolvente ter pretendido salvaguardar a satisfação das quantias mutuadas, atenta a existência de outros filhos daqueles H… e G….
Fundamentos
Em função da esquematização das doutas alegações de recurso, a única questão a apreciar será a do acerto da qualificação do crédito da Impugnante, na douta sentença recorrida, como subordinado.
Vejamos pois.
I
Não há dúvida, e é consensual no processo, que os créditos sobre a insolvência, com relevo na respectiva graduação, assumem a natureza de “garantidos”, “privilegiados” e “subordinados”, pela definição que a tais créditos é dada pelo disposto no artº 47º nº4 CIRE. Os créditos “comuns” são os restantes.
Nos termos do artº 48º al.a) CIRE, consideram-se subordinados, sendo graduados depois dos restantes créditos sobre a insolvência, os créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, desde que a relação especial existisse já aquando da respectiva aquisição (…). Estes créditos graduam-se abaixo dos créditos comuns.
O artº 49º CIRE estabelece o elenco daqueles a quem a lei considera como “pessoas especialmente relacionadas com o devedor”.
Para o que nos interessa, o nº1 do artº 49º CIRE define como pessoas especialmente relacionadas com o devedor “pessoa singular” o respectivo cônjuge, ou até ex-cônjuge divorciado nos dois anos anteriores ao processo de insolvência, ascendentes, descendentes ou irmãos, do devedor, do seu cônjuge ou ex-cônjuge, e os cônjuges desses ascendentes, descendentes ou irmãos, e pessoas que com o devedor tenham vivido em economia comum.
É indiscutido nos autos que os Impugnantes são os pais do Insolvente marido.
Diz a doutrina que “a simples constatação do vínculo ou da situação de que é feita depender a qualificação como pessoa especialmente relacionada com o devedor basta para que ela opere e desencadeie os seus efeitos; por assim ser, não pode, em circunstância alguma, o atingido afastá-los com a alegação e prova de que esse vínculo ou situação em nada determinou ou condicionou o relacionamento com o devedor ou mesmo com a demonstração que desse relacionamento resultaram – ou até resultaram só – benefícios para o devedor” (assim, Prof. Carvalho Fernandes e Dr. João Labareda, Código Anotado, vol.I, 2005, pg. 234).
No mesmo sentido vai o preâmbulo do D-L nº 53/2004 de 18/3 (CIRE), o qual indica a teleologia da classificação dos créditos como subordinados: o aproveitamento, por parte do devedor, de relações de parentesco e especial proximidade, em conjunto com a situação de superioridade informativa das pessoas indicadas face à situação do devedor, relativamente aos demais credores, ou até o conhecimento mais provável que têm quanto à situação de insolvência do devedor.
As hipóteses de “pessoas especialmente relacionadas com o devedor”, do artº 49º CIRE, constituem assim presunções inilidíveis ou juris et de jure (no mesmo sentido, Prof. Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 2ª ed., pg. 104, e Drª Maria do Rosário Epifânio, Manual, 3ª ed., pg. 211).
O alcance desta presunção foi afirmado no acórdão deste mesmo Colectivo da Relação do Porto, pº 1445/12.9TBPFR-A.P1, bem como no Ac.R.P. 3/5/2016, pº 1223/13.8TBPFR-C.P1, relatado pelo Des. Luís Cravo, e em que o aqui relator foi ali 2º adjunto.
Entendeu-se neste último:
“(…) Em nada importa ao caso, a data da constituição do crédito em causa, já que o legislador não previu qualquer exceção ao disposto no art. 48º, al. a), com base na antiguidade do crédito reclamado.”
“Se assim é, talqualmente já foi sublinhado, “a simples constatação do vínculo ou da situação de que é feita depender a qualificação como pessoa especialmente relacionada com o devedor basta para que ela opere e desencadeie os seus efeitos; por assim ser, não pode, em circunstância alguma, o atingido afastá-los com a alegação e prova de que esse vínculo ou situação em nada determinou ou condicionou o relacionamento com o devedor ou mesmo com a demonstração que desse relacionamento resultaram – ou até resultaram só – benefícios para o devedor”.
A presunção inilidível ou iuris et de iure da existência de uma relação especial com o devedor terá assim o alcance, no entendimento do acórdão (e em citação da Drª Mª do Rosário Epifânio, op. e loc. cits.), de «o mero preenchimento de qualquer das alíneas conduzir inelutavelmente à constatação da existência de uma especial relação, que não pode ser afastada com a alegação da boa fé da pessoa especialmente relacionada com o devedor. Esta solução fundou-se na suspeição que estes créditos suscitam, procurando-se, como afirma o ponto 25 do Preâmbulo, o “combate a uma fonte frequente de frustração das finalidades do processo de insolvência, qual seja a de aproveitamento, por parte do devedor, de relações orgânicas ou de grupo, de parentesco (…) para praticar actos prejudiciais aos credores”».
II
A questão do alcance da presunção inilidível foi porém questionada no Ac.S.T.J. 6/12/2016, relatado pelo Consº Manso Raínho, prolatado que foi no mesmo processo, com a referência 1223/13.8TBPFR-C.P1.S1, admitindo a interpretação restritiva das normas dos artºs 48º al.a) e 49º nº1 al.a) CIRE (a mesma doutrina é defendida no Ac.R.C. 21/1/2014, pº 1365/13.0TBLRA.C1, relatado pelo Des. Jacinto Meca, em processo de revitalização).
Lidou o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça com a hipótese de um mútuo de €124 699,47, constituído em 28/6/2012, a restituir em prestações mensais, iguais e sucessivas, até ao mês de Abril de 2012.
A decisão desconsiderou porém a garantia hipotecária desse crédito, por constituída em 28/9/2012, na iminência da insolvência decretada em 10/1/2014, face a um processo iniciado no ano de 2013.
Pronunciou-se o douto acórdão nos seguintes termos:
“Interessa ter presente, no que respeita á razão de ser (elemento racional ou teleológico da interpretação) …, o que consta do preâmbulo do DL nº 53/2004, diploma que aprovou o CIRE. Retira-se daí (ponto 25), … que a filosofia subjacente à classificação como subordinados dos créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor deve-se «”à situação de superioridade informativa sobre a situação do devedor relativamente aos demais credores”, por um lado, e, por outro, ao aproveitamento dessas relações especiais feito pelo próprio devedor para frustrar as finalidades do processo de insolvência».
“Sendo esta a razão de ser inerente à estatuição legal, logo se imporá interpretar os citados normativos de modo a abranger na sua previsão apenas (interpretação restritiva) os casos em que se possa estabelecer logica e razoavelmente um nexo temporal que de alguma forma coenvolva ou comprometa a suposta superioridade informativa (ou o aproveitamento feito pelo devedor) com uma futura condição insolvencial. O que é dizer, noutra formulação, só fará sentido considerar para o efeito um “período vizinho da abertura do processo de insolvência” (na expressão dos supra citados autores), e não já um qualquer período sem limite algum. A lei procura subalternizar os créditos daqueles de quem admite que possam ter agido de má-fé ou com ligeireza (estariam em condições de conhecer a situação em que se encontrava o devedor, logo é justo que vejam os seus créditos receberem um tratamento menos favorável) com reporte a uma atual ou futura situação económica deficitária do devedor, e isto só se concebe, com um mínimo de razoabilidade, quando, precisamente, exista alguma proximidade entre uma coisa e outra. A própria lei, no caso previsto na última parte da alínea a) do art. 48º, mostra-se sensível à necessidade de haver limites temporais (dois anos anteriores ao início do processo de insolvência), opção esta que, mutatis mutandis, bem pode aqui ser usada para reforçar a bondade da ideia de que também em caso como o vertente haverá que atender a algum tipo de limite temporal. (O mesmo se poderia dizer a partir das hipóteses da alínea a), 2ª parte e d) do art. 49º).”
“Podemos assim concluir que não têm aplicação a alínea a) do art. 48º e a alínea b) do nº 1 do art. 49º quando se mostra que a constituição do crédito está de tal forma afastada no tempo do início do processo de insolvência que, dentro da normalidade das coisas, se trata de dois acontecimentos totalmente independentes, isto é, sem qualquer correlação, afinidade ou implicação entre si. Em um tal caso, a especial relação entre credor e devedor apresenta-se, para os fins ora em discussão, como indiferente ou irrelevante no que tange à constituição do crédito que virá depois a ser reclamado na insolvência. E isto afigura-se-nos ademais de realçar quando o crédito é reportado a momento tão distante que vai cair numa altura em que a figura dos créditos subordinados nem sequer existia ainda no plano legal, hipótese em que não seria exigível ao credor especialmente relacionado com o devedor que representasse a possibilidade de subalternização do seu crédito em caso de uma eventual insolvência do devedor …”.
“(…) É verdade que foi convencionada coevamente à formação do crédito a constituição de uma hipoteca sobre bem do Devedor.”
“Contudo, estando a eficácia dessa hipoteca voluntária dependente do seu registo (art. 687º do CCivil), vemos que apenas em 28 de setembro de 2012 tal registo foi feito. Ou seja, o registo foi efetuado já nas proximidades da abertura do processo de insolvência e, ademais, apenas poucos dias após o proferimento do acórdão da Relação que confirmou a decisão que declarou nula, por simulação, a dação em cumprimento estabelecida entre o ora Recorrente e o Devedor e que compreendeu o bem que havia sido dado em hipoteca. Assim, da mesma forma que o crédito do Recorrente não podia ser havido como garantido se acaso tivesse sido constituído apenas em setembro de 2012 (aqui sim, cobrariam plena aplicação as supra citadas normas legais), também manda a lógica que não pode ser atendida uma hipoteca voluntária que passou a valer apenas na iminência da insolvência. A unidade do crédito e da sua garantia assim o impõe (v. a propósito a alínea b) do nº 4 do art. 47º).”
“Donde, o crédito do Recorrente deverá ser qualificado, por exclusão de partes, como comum (art. 47º nº 4 alínea c)). E não como garantido como, ao que parece, pretenderia o Recorrente. Neste segmento improcede a revista.”
III
No caso dos autos, os Impugnantes efectuaram vários mútuos aos ora Insolventes, entre os anos de 1994 e 2006, que totalizaram €200.000,00.
Posteriormente, em 27/10/2009, os ora Insolventes vêm a constituir hipoteca para garantia do referido montante, isto por acordo de vontades com os Impugnantes, que pretendiam salvaguardar a satisfação das quantias mutuadas, até pela existência de outros filhos do casal.
O prazo de amortização da quantia foi, no acto de constituição da hipoteca, estipulado em 30/9/2013.
Em 11/9/2013 foi declarada a insolvência da empresa familiar de comercialização de madeiras e derivados, cuja actividade constituía o sustento de seus sócios, os ora Insolventes.
Nos presentes autos, a insolvência foi requerida em 26/12/2014 e decretada em 5/1/2015. Desde o ano de 2012 que os ora indicados credores reclamantes tinham intentado acções executivas para cobrança dos respectivos créditos.
Entendeu, face aos factos provados, a douta sentença recorrida que “os aqui credores (pais do insolvente) terão certamente acompanhado o percurso do seu respectivo filho, e não terão deixado de percepcionar/antever que, a páginas tantas, atento o avolumar dos montantes mutuados e ausência de restituição das quantias aos mutuantes (seus pais), o cenário mais que previsível podia ser o da frustração dos seus interesses, possibilidade esta que, estamos em crer, não terá deixado de contribuir para a decisão de constituir hipoteca para garantir o reembolso daqueles valores”.
E, ponderando a possibilidade de aplicação ao caso da doutrina citada em II, dimanada do Supremo Tribunal de Justiça, mais disse:
“Sem embargo de não afastarmos liminarmente a propugnada interpretação (e subsequente eventual inaplicabilidade da norma), certo é que, salvo o devido respeito, a questão ali apreciada diverge, e muito, da situação em análise nestes autos: os aqui devedores apresentaram-se à insolvência em Dezembro de 2014; a constituição da hipoteca em causa nos autos teve lugar escassos 4 anos antes (em 2009); parte dos valores em causa foram mutuados já após o aparecimento do CIRE; a necessidade de constituição desta garantia não pode deixar de se imbricar com a percepção, a determinada altura, que os diversos intervenientes terão tido da possibilidade de um cenário em que os mutuários pudessem não reunir condições para efectivarem a acordada devolução daqueles valores, e de, perante essa realidade, tal redundar num benefício de um filho (o aqui insolvente) em detrimento dos demais.”
Este raciocínio, salvo o merecido e devido respeito, afigura-se-nos não levar em suficiente linha de conta a distinção fundamental entre crédito validamente constituído, como o reconheceu claramente a douta sentença recorrida, e garantia do crédito, fundamental apenas para a qualificação do crédito como “garantido”, a ser pago com a prioridade aludida no artº 174º CIRE, ou seja, com prevalência sobre os créditos privilegiados, os créditos comuns e os créditos subordinados, pela referida ordem (artºs 175º a 177º CIRE).
Ou seja: pese embora a eventual desconsideração da hipoteca, não poderia a douta sentença deixar de ter ponderado a eventual classificação do crédito como comum, ao igual da fundamentação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.
IV
A doutrina expendida pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça tem à partida, a nosso ver, e com o devido respeito, um grave inconveniente: o de poder colocar na iniciativa dos interessados, o Insolvente e a pessoa consigo especialmente relacionada em termos familiares, de ascendência ou descendência, a classificação do crédito.
Considerar um eventual limite temporal para a constituição do crédito subordinado dos ascendentes sobre os Insolventes, designadamente dentro dos sobreditos 2 anos referenciados a propósito de outra hipótese legal – a do artº 48º al.a) parte final CIRE, é proporcionar a apresentação à insolvência por forma a resguardar ou prevenir a “desclassificação do crédito”, passe a expressão, das “pessoas especialmente relacionadas com o devedor”, algo que o legislador manifestamente visou evitar.
Por sua vez, a não consideração de qualquer limite temporal, levando em conta apenas a grande anterioridade do crédito face à declaração de insolvência, torna a matéria em causa excessivamente dependente da ponderação (equidade/arbítrio) do julgador, algo a que é avessa a simples consideração de uma presunção iuris et de iure (presunção absoluta, inilidível por prova em contrário – artº 350º nº2 parte final CCiv, e que visa tão só facilitar a tarefa ao julgador, tornando-o mais explicitamente equidistante das matérias em discussão).
Temos por certo que a norma que institui a presunção é susceptível de interpretação, como aliás imperativamente o são todas as normas jurídicas, mas a própria natureza da presunção induz a uma interpretação declarativa da norma, no entendimento em que um dos seus sentidos literais exprime aquilo que, definitivamente, a norma pretende exprimir (cf. Prof. Oliveira Ascensão, O Direito – Introdução e Teoria Geral, 2ª ed., pg. 377).
A solução legal fundou-se na suspeição suscitada pelos créditos em causa, visando-se “o combate a uma fonte frequente de frustração das finalidades do processo de insolvência, qual seja a do aproveitamento, por parte do devedor, de relações orgânicas ou de grupo, de parentesco, para praticar actos prejudiciais aos credores” (ponto 25 do preâmbulo, já acima citado).
A prática de actos prejudiciais aos credores não tem a ver com a previsibilidade da insolvência, no momento da constituição do crédito, nem com a possibilidade de efectiva existência do crédito, mas apenas, como atrás se elucidou, com a prática de actos prejudiciais aos credores (precisamente não afastando a própria noção potencial de insolvência e abstraindo da antecipação do crédito face à situação de insolvência), em conjunto com a situação de superioridade informativa das pessoas indicadas face à situação do devedor, relativamente aos demais credores, e mesmo o conhecimento mais provável que têm quanto à situação de insolvência do devedor.
Entende-se que essas pessoas podiam ter contado com uma maior informação sobre a situação do devedor/insolvente e que, em consequência, deviam tê-lo financiado mais criteriosamente ou, noutras hipóteses, que exerceram efectiva influência sobre o devedor (o facto de os credores serem ascendentes pode favorecer situações de ulterior e indiscriminado endividamento).
É claro que, em função da forma de preenchimento fáctico da previsão legal de presunção absoluta ou inilidível, podem suscitar-se dúvidas sobre o alcance da previsão em causa, sendo lícito questionar a teleologia do preceito.
Não pode porém olvidar-se que nos encontramos no âmbito da tutela das aparências, com o valor indicativo, de forte probabilidade, de outros factos – ou seja, da concordância habitual da aparência com a realidade, concordância essa que tem valor em direito, e, em alguns casos minoritários como o dos autos, valor inilidível.
Em sentido concordante com a presente fundamentação (abstraindo da decisão ou da concreta matéria em causa) se pronunciou o acórdão deste colectivo, já supra citado, proferido no processo nº 1445/12.9TBPFR-A.P1.
Em consequência, e sem prejuízo de alguma dissonância nos fundamentos, impõe-se a confirmação do sentido decisório da douta sentença recorrida.
Resumindo a fundamentação:
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Deliberação (artº 202º nº1 CRP):
Na improcedência do recurso interposto, confirma-se a douta sentença recorrida.
Custas pela Apelante, sem prejuízo do Apoio Judiciário de que goza.

Porto, 6/III/2018
Vieira e Cunha
Maria Eiró
João Proença