Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0846210
Nº Convencional: JTRP00042025
Relator: JORGE JACOB
Descritores: ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REJEIÇÃO
Nº do Documento: RP200901070846210
Data do Acordão: 01/07/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 347 - FLS 258.
Área Temática: .
Sumário: Deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal da instrução, o requerimento do assistente para abertura de instrução que não descreva os elementos subjectivos do crime pelo qual pretende a pronúncia do arguido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Tribunal da Relação do Porto
4ª secção (2ª secção criminal)
Proc. nº 6210/08-4
________________________


Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:


I – RELATÓRIO:

Nos autos de inquérito nº …/07.2GAVFN, do .º Juízo Criminal de Vila Nova de Famalicão, em que são arguidas B………., C………. e D………., foi proferido despacho de arquivamento com o qual a assistente E………. não se conformou, tendo requerido a abertura de instrução em requerimento que, na parte relevante para os efeitos do recurso, tem o seguinte teor:
(…)
8. Resultam dos autos indícios seguros de que a arguida B………. praticou o crime de ameaças por que foi participada.
9. Na verdade, a arguida B……….e, numa discussão que teve com a ofendida/assistente, disse para esta “ou me pagas o que me deves ou pagas com o corpo” e depois “anda lá para fora que eu fodo-te o corpo todo”.
10. Na mesma ocasião, a arguida B………. agarrou a ofendida/assistente pela camisola e desafiando-a “para ir lá para fora”, com o propósito de a agredir;
11. E dizendo-lhe "Anda lá para fora para te dar porrada”.
12. Estes factos foram presenciados por testemunhas, que depuseram nos autos, sendo certo que embora possa não haver absoluta coincidência de depoimentos (o que sempre acontece numa refrega desta natureza), não há contradição, sendo inequívocas as ameaças dirigidas à ofendida.
13. Por outra banda, a ofendida também foi ameaçada, via telemóvel, pela arguida C………. que lhe disse “Não pares na F………., senão dou-te uma coça”.
14. Tais factos foram praticados de forma adequada a causar medo e inquietação à ofendida/assistente, como, de facto, causaram;
15. Para além de lhe prejudicarem a sua liberdade de determinação, pois, no que respeita ao telefonema recebido, a ofendida/assistente ficou e está com medo de andar na rua, concretamente nas imediações da loja “F……….”.
O DIREITO:
Salvo o devido respeito, discorda-se, em absoluto, do entendimento do digníssimo Magistrado do M.P.
Na verdade, o processo já contém indícios suficientes da prática do crime e dos seus agentes, no sentido de que deles resulta uma possibilidade razoável de aos arguidos vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena.
Pelo que o M.P. deveria ter deduzido acusação, nos termos do Art. 283°, nºs 1 e 2 do CPP.
Sendo certo que os factos praticados são susceptíveis de integrar o crime de ameaças (cfr. Art. 153° do CPenal).
NESTES TERMOS
requer a V. Exª se digne declarar aberta a Instrução, seguindo-se os ulteriores trâmites.
Novos actos de Instrução a levar a cabo, caso se tenham por necessários:
- verificação e exame técnico aos telemóveis das arguidas e da ofendida/assistente, por forma à comprovação do teor do telefonema referido acima, cujos números constam dos autos.

Apresentados os autos ao Mmº Juiz de Instrução Criminal, este proferiu despacho rejeitando o requerimento de abertura de instrução nos seguintes termos:
(…)
No tocante à questão da inadmissibilidade legal:
Compulsada que é a matéria de facto que a assistente faz verter para o respectivo requerimento de abertura de instrução, afigura-se-nos que tal requerimento apresentado não é admissível.
Na verdade, a assistente descrimina, especifica as palavras integrantes das ameaças que terão sido proferidas pelas arguidas, mas nada refere do ponto de vista subjectivo, não especificando, nem pouco mais ou menos, os factos integrantes do elemento subjectivo do respectivo tipo legal, deixando, assim, em aberto a possibilidade de prática dos factos em qualquer das modalidades do dolo ou até da negligência (não sendo esta sequer punível).
Ora, nos termos do disposto no art.º 309.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar qualquer arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos no requerimento de abertura de instrução, prevendo o art.º 303.º do mesmo código as consequências da alteração não substancial e substancial dos factos descritos no requerimento de abertura de instrução constatada no decurso desta.
A este requerimento aplica-se, nos termos preceituados pelo n.º 2 do art.º 287.º, do Código de Processo Penal, o previsto no n.º 3, al.as b) e c) do mesmo normativo.
Impõe-se, assim, à assistente requerente da abertura de instrução (obviamente em caso de arquivamento, como no caso dos autos) um especial cuidado na selecção dos factos pelos quais pretendem ver as arguidas pronunciadas, especificamente, tendo em vista a verificação dos elementos objectivos e subjectivos de um qualquer tipo legal e, em específico, do tipo legal por si alegado: ameaça.
À assistente impunha-se proceder a uma imputação de factos – qual verdadeira acusação – às arguidas, o que não fez, não podendo o tribunal substituir-se àquela requerente da abertura de instrução nessa tarefa, sob pena de nulidade da decisão instrutória que pronuncie as arguidas, conforme supra exposto - cfr. a este propósito o Ac. RE de 14-04-1995, CJ, XX, II, 280.
Face a estas deficiências, impõe-se a rejeição do requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade do mesmo (falta de objecto criminal suficiente imputado), não havendo lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento, conforme, de resto, jurisprudência quer do Tribunal Constitucional (cfr. o Ac. n.º 27/2001 – processo n.º 189/2000, D.R. – II Série de 23-03-2001, págs. 5265 e seguintes), quer das Relações – cfr. os Acs. RL de 08-10-2002, 27-05-2003 e 15-12-2004, in www.dgsi.pt/jtrl, e os Acs. da RP de 14-01-2004, 21-01-2004, 24-03-2004, 31-03-2004, 05-01-2005 e 12-01-2005, estes in www.dgsi.pt/jtrp e, de forma bem conclusiva, o Acórdão STJ n.º 7/2005, publicado no D.R. º I Série A, de 04-11-2005, páginas 6340 e seguintes.
Efectivamente, o convite ao aperfeiçoamento encontra-se previsto para o processo civil, processo de partes e interesses privados, enquanto no processo criminal nos movemos no domínio do interesse público, alicerçado numa estrutura acusatória (cfr. o n.º 5 do art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa), a qual resultaria totalmente subvertida caso se admitisse esse convite ao aperfeiçoamento, ao que acresceria uma dilação (e, logo, também aqui, subversão) do prazo para requerer a abertura de instrução.
Face à falta de alegação de factos que integrem de forma suficiente qualquer tipo legal e, designadamente, o tipo legal de ameaça, importa, pois, concluir pela inadmissibilidade legal da instrução, por falta de objecto (suficiente) da mesma.
Em conformidade com o exposto e ao abrigo das normas legais supra citadas, o tribunal decide:
Rejeitar o requerimento de abertura de instrução formulado pela assistente E………., por inadmissibilidade legal do mesmo (falta de imputação de objecto criminal suficiente).
Fixa-se a taxa de justiça em 02 (duas) UCs a cargo da assistente, a compensar com o já pago, nos termos e com o sentido do art.º 519.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e sem prejuízo da modalidade do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido.
Após trânsito remeta os autos aos serviços do Ministério Público, dando-se a competente baixa.
Notifique.

Inconformada, recorre a assistente, retirando da motivação do recurso as seguintes conclusões:
1ª - Vem o presente recurso interposto do douto despacho que, com fundamento em alegada “falta de imputação de objecto criminal suficiente” (Sic.), rejeitou o requerimento de abertura de Instrução.
2ª - Aquela conclusão é tirada do entendimento que o Meritíssimo Sr. Dr. Juiz a quo perfilha no sentido de que a Assistente não especifica os factos integrantes do elemento subjectivo do respectivo tipo legal.
3ª - O requerimento para abertura de Instrução contém os elementos necessários, concretamente a descrição dos factos materiais, para suportar a decisão de submeter a causa a julgamento (cfr. Artº 286º, nº 1, do CPP).
4ª - Sem prescindir, a pretensa falta do elemento subjectivo, que se não aceita nem admite, não determinaria a rejeição do requerimento para abertura de Instrução.
5ª - De facto, e desde logo, o que o requerimento de Instrução deve conter, para o que aqui interessa, é a súmula das razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação e a indicação dos actos de instrução que se pretende que o juiz leve a cabo.
6ª - Jamais poderia o requerimento para abertura de instrução ser rejeitado por falta (que se não aceita nem admite) do elemento subjectivo do tipo legal, pois que a verificação desse elemento sempre ser(á)ia possível de lograr em sede de Instrução, maxime, do debate instrutório .
7ª - O Meritíssimo Sr. Dr. Juiz a quo não decidiu correctamente quando rejeitou o requerimento para abertura de instrução, por contrariar flagrantemente o disposto na lei (cfr. nº 3 do Artº 287º do CPP)
8ª - O que releva é que os elementos factuais sejam descritos no requerimento de abertura de Instrução (ou na acusação), não sendo indispensável a descrição dos elementos constitutivos do dolo (volitivo e intelectual).
9ª - A comprovação de que o agente quis praticar os factos, livre e deliberadamente, querendo o resultado da sua acção, e que tinha consciência de que a sua conduta – as ameaças – constituíam crime, há-de resultar da comprovação de tais sentimentos à luz da análise que se faça aos comportamentos objectivos atribuídos ao agente, os elementos factuais descritos, analisados à luz da experiência comum e por mero recurso às presunções naturais.
10ª - Ou seja, não é indispensável alegar na acusação (ou, no caso, no requerimento de abertura de Instrução), o elemento intelectual ou emocional do dolo, se está em causa um facto que todos sabem constituir crime.
11ª - A deficiente descrição dos factos integradores do elemento subjectivo do tipo é susceptível de ser integrada, em julgamento (ou, no caso, e por maioria de razão, em instrução), por recurso à lógica, racionalidade, e normalidade dos comportamentos, donde se extraem conclusões suportadas pelas regras da experiência comum.
12ª - E, como assim, existindo tal deficiência na acusação (ou, no caso, no requerimento de abertura de instrução), esta não pode ser considerada manifestamente infundada de modo a determinar a sua rejeição, sendo a mesma susceptível de ulterior sanação.
13ª - Este entendimento tem sido sustentado pelo Tribunal da Relação do Porto, como se alcança, por todos, dos Acórdãos de 02.02.2005 e de 11.01.2008, este no processo 959/08, onde aquele é citado (cfr. Doc. 1). E também pelo Tribunal da Relação de Lisboa, como se alcança, por todos, dos Acórdãos de 26.09.2001, de 02.11.2000, e de 16.02.2005, todos citados naquele primeiro Acórdão da relação do Porto.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o douto despacho recorrido e substituindo-o por outro que, admitindo o requerimento de abertura de instrução, declare a Instrução aberta, seguindo-se os ulteriores termos.

O M.P. respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.
Também a arguida D………. respondeu,
Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer sufragando a posição assumida pelo M.P. em 1ª instância e pronunciando-se também pela improcedência do recurso.
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, a questão que essencialmente importa decidir é a de saber se, faltando a indicação dos elementos subjectivos do crime no requerimento de abertura de instrução deduzido pela assistente com vista à comprovação judicial da decisão de arquivamento, deverá aquele requerimento ser rejeitado por essa razão ou se, pelo contrário, tal omissão é irrelevante, sendo suprível em momento ulterior.
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II - FUNDAMENTAÇÃO:

Como é sabido, o requerimento de abertura de instrução, quando esta tenha por objecto a comprovação judicial da decisão de arquivar o inquérito, em ordem a submeter a causa a julgamento, (art. 286º, n.º 1, do Código de Processo Penal, diploma a que se reportam todas as demais disposições legais citadas sem menção de origem), tem que narrar, ainda que sinteticamente, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis [art. 283º, nº 3, als. b) e c), por expressa remissão do nº 2 do art. 287º]. Atenta a finalidade visada, em tal caso, pela instrução, o requerimento visando a sua abertura tem que se conformar como uma verdadeira acusação, já que é esse requerimento que fixa o objecto do processo, delimitando o âmbito da ulterior actividade investigatória a desenvolver pelo juiz de instrução, como resulta, aliás, dos artigos 303º, nº 3 e 309º, nº 1. Deve, assim, conter a descrição fáctica equivalente a uma acusação pública, com a indicação precisa e completa dos factos que a requerente entende estarem indiciados, integradores tanto dos elementos objectivos do crime, como dos seus elementos subjectivos, e que justificariam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.
Não obedecendo a este condicionalismo, o requerimento deve ser rejeitado por inadmissibilidade da instrução (art. 287º, n.º 3, parte final).
No caso vertente, o requerimento da assistente para abertura da instrução, ainda que contenha a descrição genérica dos factos consubstanciadores dos elementos objectivos do crime imputado, não contém, como devia, a descrição dos respectivos elementos subjectivos.
Ora, são precisamente os elementos subjectivos do crime, com referência ao momento intelectual (conhecimento do carácter ilícito da conduta) e ao momento volitivo (vontade de realização do tipo objectivo de ilícito), que permitem estabelecer o tipo subjectivo de ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respectiva conduta como dolosa ou negligente e dentro destas categorias, nas vertentes do dolo directo, necessário ou eventual e da negligência simples ou grosseira. Tanto assim que, como afirma Figueiredo Dias, “…também estes elementos cumprem a função de individualizar uma espécie de delito, de tal forma que, quando eles faltam, o tipo de ilícito daquela espécie de delito não se encontra verificado”[1].
Não contendo o requerimento da assistente a descrição dos elementos subjectivos dos crimes que imputa às arguidas, não poderia o juiz de instrução atender a tais elementos, ainda que viesse a considerar suficientemente indiciados os elementos materiais. Sem essa indicação não seria perfectibilizada a imputação criminosa e sendo assim, jamais poderia ser proferido despacho de pronúncia contra as arguidas, porquanto o art. 308º, nº 1, e o art. 283º, nº 3, correspondentemente aplicável, impõem a descrição, ainda que sintética, de todos os factos relevantes para fundamentar a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança. E se porventura tais factos fossem incluídos na pronúncia, mesmo não constando do requerimento de abertura de instrução, estaríamos perante uma alteração substancial dos factos descritos naquele requerimento, com a consequente nulidade da decisão instrutória (art. 309º, nº 1). Ora, como se refere no Ac. desta Relação do Porto de 11/10/2006 [2], “uma instrução que não pode legalmente conduzir à pronúncia do arguido é uma instrução que a lei não pode admitir, até porque seria inútil, e não é licito praticar no processo actos inúteis, conforme preceitua o artigo 137 do Código de Processo Civil, ex vi o artigo 4 do Código de Processo Penal”.
Em conclusão, não sendo legalmente admissível a instrução requerida pelo assistente quando este não descrever no requerimento de abertura de instrução a totalidade dos factos que consubstanciam o crime por cuja prática pretende a pronúncia do arguido, deve a instrução ser rejeitada por inadmissibilidade legal, nos termos previstos no art. 287º, nº 3.
É ponto assente, por outro lado, que não há lugar a convite ao assistente para corrigir o requerimento de abertura de instrução [3].
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III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, nega-se provimento ao recurso.
Por ter decaído integralmente no recurso que interpôs, pagará a recorrente a taxa de justiça, já reduzida a metade, de 3 UC.
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Porto, 07/01/2009
Jorge Manuel Miranda Natividade Jacob
Artur Manuel da Silva Oliveira

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[1] - “Direito Penal - Parte Geral”, tomo 1, 2ª Ed., pag. 379.
[2] - Consultável em www.dgsi.pt, processo nº 0416501, nº convencional JTRP00039552
[3] - Nesse sentido, cfr. o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, D.R., Série I-A, n.º 212, de 4 de Novembro de 2005 e o Ac. do Tribunal Constitucional nº 27/2001, de 23/03/2001, in DR, Série II, de 23/03/2001.