Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
20596/21.2T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA VIEIRA
Descritores: AÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO NEGATIVA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA
ABUSO DO DIREITO
Nº do Documento: RP2024020820596/21.2T8PRT.P1
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - As ações declarativas de simples apreciação são aquelas em que o autor, reagindo contra uma situação de incerteza objetiva, visa obter unicamente a declaração da existência (apreciação positiva) ou de inexistência (apreciação negativa) de um direito ou de um facto.
II - Nas ações de simples apreciação negativa, não cabe ao autor alegar e provar, pela negativa, que o direito ou facto não existe, competindo ao réu o ónus da prova da existência desse direito ou facto.
III - O abuso do direito art.º 334.º do CC , na modalidade da supressio, verifica-se com o decurso de um período de tempo significativo suscetível de criar na contraparte a expectativa legítima de que o direito não mais será exercido.
IV - Nesta modalidade de abuso do direito, exige-se não só o decurso de um período de tempo razoável sem exercício do direito, mas também a verificação de indícios objetivos que gerem a confiança na contraparte de que esse direito não irá ser exercido.
V - Prolongado, uma situação de confiança daí derivada, uma justificação para essa confiança, um investimento de confiança e a imputação da confiança ao não-exercente.
VI - Não atua em abuso do direito, o credor que só após o encerramento de um processo de insolvência, que durou vários anos, em que é requerida uma sociedade devedora, e permanecendo valores em dívida, demanda ulteriormente, as garantes dessa sociedade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 20596/21.2T8PRT.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Porto - JC Cível - Juiz 6

Relatora: Ana Vieira
1º Adjunto Desembargadora Dr.ª Isabel Silva
2º Adjunto Desembargador Dr. António Paulo Esteves Aguiar de Vasconcelos

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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I - RELATÓRIO

AA, e BB,  intentaram contra   Banco 1..., S.A, e contra A..., DAC, NIPC ...57, AÇÃO DECLARATIVA COMUM DE SIMPLES APRECIAÇÃO NEGATIVA peticionando: Deve a presente ação ser julgada procedente e, em consequência, ser declarada a inexistência da dívida no valor de €1.555.712,55 (um milhão, quinhentos e cinquenta e cinco mil, setecentos e doze euros e cinquenta e cinco cêntimos) das Autoras à 1ª Ré, consequentemente, à 2ª Ré., e em consequência serem as Rés condenadas no pagamento integral das custas judiciais e demais encargos com o processo.

Alegam, em síntese que as autoras eram sócias da sociedade comercial por quotas com a firma B... LDª e que a sociedade, de que as Autoras eram sócias, adquiriu dois lotes com vista à construção apoiada em financiamentos da 1ª Ré.

Designadamente através de um contrato de promoção imobiliária nº ...75, sobre o Lote 17 no valor inicial de 2.200.000,00 euros, celebrado entre a sociedade pertencente às Autoras e a 1ª Ré, a 17 de março de 2008. Tendo, além do mais, exigido garantias pessoais das sócias, aqui Autoras.

Em sede de insolvência foram apreendidos 10 (dez) imóveis e 2 (dois) veículos.

E foram reconhecidos créditos à 1ª Ré no valor de €3.090.588,68 (três milhões noventa mil quinhentos e oitenta e oito euros e sessenta e oito cêntimos).

Relativamente ao Contrato de empréstimo nº ...75, ora colocado em crise, foi declarado o incumprimento no valor de €2.196.624,38 (dois milhões cento e noventa e seis mil seiscentos e vinte e quatro euros e trinte e oito cêntimos).

Em sede de liquidação, no apenso E do processo de insolvência, foram adjudicados à 1ª Ré diversos imóveis, entre os quais, o imóvel que esteve na base do contrato de empréstimo.

Que foi adjudicado à 1ª Ré pelo valor de €1.281,900,00 (um milhão duzentos e oitenta e um mil e novecentos euros).

Sobre este prédio a 1ª Ré veio posteriormente a celebrar um contrato de locação financeira com C... Unipessoal, Lda., NIPC ...99, negócio registado na Conservatória do Registo Predial de Celorico de Basto pela AP ...60 de 2020/09/16.

A 2ª Ré celebrou um contrato de cessão de créditos com a 1ª Ré, aos 25 de junho de 2021 no qual se inclui os eventuais créditos sobre as aqui AA., contrato nº ....

A 1º R. com o contrato de locação financeira lucrou um avultado valor pecuniário.

Além disso foi accionado pela 1ª R. os penhores constituídos para garantia das dívidas da sociedade insolvente.

Em fase de liquidação da insolvência a 1ª R. recebeu também o valor de €226.629,91.

Assim, encontra-se o crédito da 1ª R. integralmente satisfeito.

Concluem, pela procedência da acção.

Citadas as RR. para contestar pugnaram pela improcedência da acção.

Proferiu-se despacho saneador no qual se julgou o Tribunal competente, o processo isento de nulidades, a personalidade, capacidade e legitimidade das partes, e a inexistência de outras excepções do conhecimento oficioso.

Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento com observância do atinente formalismo legal.


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Na sentença recorrida foi decidido: « … Pelo exposto, profere-se a seguinte:

D / DECISÃO.

Julga-se improcedente a presente acção intentada pelas AA. AA e BB, absolvendo-se as RR., Banco 1..., S.A e A..., DAC do pedido.

Custas pelas AA..

Registe. Notifique…».


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Inconformadas com tal decisão, vieram as autoras interpor o presente recurso, o qual foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo.

As autoras com o requerimento de interposição do recurso apresentaram as alegações, formulando, a final, as seguintes conclusões:«… d–conclusões

i. Inconformadas com o teor da decisão proferida pelo Juízo Central Cível do Porto, Juiz 6, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, no âmbito do processo n.º 20596/21.2T8PRT, as Recorrentes vêm, por este meio, interpor o competente recurso de apelação, pelas razões, que de seguida, melhor se explicarão.

ii. De uma primeira leitura da douta sentença recorrida, as Recorrentes consideram, desde logo, que a decisão judicial enferma de um vício de nulidade, por omissão de pronúncia, uma vez que o Tribunal a quo não se pronunciou quanto ao instituto de abuso de direito, amplamente discutido pelas partes nos seus articulados e, bem assim, em sede de alegações finais, tratando-se, por conseguinte, de uma questão de particular relevância para a decisão de mérito ,que não foi apreciada, nem alvo de qualquer menção ou reparo por parte da douta sentença recorrida. Dessarte, e depois de as partes terem invocado o referido instituto, debelando-se e procurando rebater as posições contrárias, dando particular importância à sua (in)existência ou (in)aplicabilidade ao caso concreto, afigura-se-nos particularmente imperativa a pronúncia quanto aos mesmos, pelo que deverá, por esta razão, ser revogada a douta sentença recorrida.

-vd. Artigos 608.º, n.º2, 1.ªparte, 615.º, n.º1, alínea d) 1.ªparte e 5.º,n.º 3,do CPC -vd.artigo 334.º do CC

iii. Da análise da decisão judicial proferida pelo Tribunal a quo extrai-se, igualmente, um vício de nulidade por falta de fundamentação, pois que não enuncia a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos de credibilidade dos depoimentos, o valor dos documentos que privilegiou na formação da sua convicção, inexistindo uma verdadeira análise crítica da prova.

A este respeito, acrescente-se, igualmente, que o Tribunal a quo, muito embora tenha feito menção, em vários factos provados, aos documentos em que fundou a sua decisão, não especifica, no entanto, de onde resultam esses documentos, por quem foram juntos e em que momento, pelo que, com todo o devido respeito, a indicação dos meios de prova nem sequer é clara, relegando-nos a tarefa ingrata de procurar compreender com base em que documentos foram tais factos dados como provados.

Por tudo isto, deverá ser revogada a douta sentença recorrida. -vd. artigos 154.º, n. º1, 607.º, n.º4, 615.º, n.º1, alínea b) do CPC -vd. artigos 24.º,n.º1,da LOSJ e 205.º,n.º1,da CRP vd. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 18.01.2007, proc. n.º 10256/2006-9.

v. Verifica-se, por fim, e salvo melhor entendimento, um vício de nulidade, por condenação em quantidade superior ao peticionado, porquanto o Tribunal a quo declarou que a dívida seria de €1.582.058,77 (um milhão, quinhentos e oitenta e dois e cinquenta e oito euros e setenta e sete cêntimos) e não de 1.555.712,55 (um milhão, quinhentos e cinquenta e cinco mil, setecentos e doze euros e cinquenta e cinco cêntimos), pelo que deverá, uma vez mais, ser revogada a douta sentença recorrida.

- vd. artigo 615.º, n.º1, alínea e),do CPC

v. Caso assim não se entenda, o que se equaciona somente por mera cautela de patrocínio, as Recorrentes consideram que o Tribunal a quo não esteve bem na valoração que realizou da prova, em particular, da prova documental e testemunhal, e creem que uma valoração diferente teria implicações a respeito da matéria de facto dada por provada e não provada e, em consequência, na decisão da matéria de direito.

vi. As Recorrentes discordam do ponto 14) dos factos provados, considerando que deveria ter sido dado como provado que: “Em sede de liquidação, no apenso E do processo de insolvência, foram adjudicados à 1.ª Ré diversos bens imóveis e dois veículos automóveis, no valor total de €1.635.004,91 (um milhão, seiscentos e trinta e cinco mil e quatro euros e noventa e um cêntimos)”

- cfr.doc.n.º6 junto com a petição inicial

- vd. depoimento da Autora BB, prestado em 08-02-2023, entre as 17:04:30 e as 17:12:34, minutos 04:16 a 04:50 e 06:52 a 07:10; e depoimento da testemunha CC, prestado em08-02-2023, entre as 16:24:06 e as 16:52:03, minutos 11:48 a 12:25

- vd. ponto 11) dos factos provados

vii. As Recorrentes discordam do ponto 26) dos factos provados, considerando que deveria ter sido dado como provado que:“Em virtude da execução dos penhores, foi imputado à 1.ª Ré o montante total de €1.029.480,45 (um milhão, vinte e nove mil, quatrocentos e oitenta euros e quarenta e cinco cêntimos)”.

- cfr. doc. n.º 10 junto com a petição inicial

viii. As Recorrentes consideram que, face à prova produzida e à factualidade dada como provada, deveria, igualmente, ter sido dado como provado que “Inclusive, a 1.ª Ré, na pessoa do então diretor do balcão do ..., em Lisboa, Dr. DD, deslocou-se com a Autora AA até ao Algarve, onde a acompanhou e lhe apresentou o negócio das moradias na Quinta ..., incluindo o lote 17.” e que “No âmbito dessa viagem, o Dr. DD, diretor do balcão do ..., da 1.ª Ré, apresentou a Autora AA ao Dr. EE”.

-vd. pontos 17) e 19) dos factos provados

- vd. depoimento da Autora AA, prestado em 08-02-2023, entre as 16:52:04 e as 17:04:28, minutos 06:06 a 07:38; depoimento da testemunha FF, prestado em 08-02-2023, entre as 15:22:35 e as 15:44:23, minutos 06:00 a 06:42; e depoimento da testemunha DD, prestado em 08-02-2023, entre as 15:44:25 e as 16:00:20, minutos 11:45 a 12:58.

ix. As Recorrentes consideram que, face à prova produzida, deveria ter sido dado como provado que “As propriedades da Quinta ..., no Algarve, à data da insolvência da sociedade “B..., Lda.”, não sofreram uma redução significativa do preço, conseguindo aguentar o mercado”

- vd. depoimento da testemunha GG, consultor imobiliário, prestado em 08-02-2023, entre as 15:04:24 e as 15:15:11, minutos 06:12 a 08:04

x. As Recorrentes consideram que, face à prova produzida, deveria ter sido dado como provado que “A sociedade “B..., Lda.” era uma empresa familiar, que se focava apenas na aquisição, construção e venda de edifícios direcionada para a classe média, na zona de Lisboa, utilizando e (re)investindo o capital próprio da empresa, com recurso pontual a capital externo”.

- vd. depoimento da testemunha FF, prestado em 08.02.2023, entre as 15:22:35 e as 15:44:23, minutos 03:13 a 08:05 e 15:38 a 16:55; depoimento da testemunha CC, prestado em 08-02-2023, entre as 16:24:06 e as 16:52:03, minutos 03:00 a 03:43 e 19:17 a 22:24; depoimento da testemunha GG, prestado em 08-02-2023, entre as 15:04:24 e as 15:15:11,minutos 01:14 a 02:01;depoimento da testemunha DD, prestado em 08-02-2023, entre as 15:44:25 e as 16:00:20, minutos 14:30 a 14:50.

xi. Por fim, as Recorridas consideram ainda que, face à prova produzida, deveria ter sido dado como provado que “Às Autoras foi assegurado pela 1.ª Ré, em particular, pelo Dr. DD, que a aquisição das moradias na Quinta ... se trataria de um bom negócio e que o mesmo seria vantajoso, porquanto se inseria numa zona de luxo, ao que as Autoras confiaram, devido à relação de confiança que tinham com a 1.ª Ré”.

- vd. depoimento da Autora BB, prestado em 08-02-2023, entre as 17:04:30 e as 17:12:34, minutos 01:13 a 02:13 e 03:19 a 03:42; depoimento da testemunha CC, prestado em 08-02-2023, entre as 16:24:06 - 16:52:03, minutos 03:48 a 07:10; depoimento da Autora AA, prestado em 08-02-2023, entre as 16:52:04 e as 17:04:28, minutos 06:21 a 08:15

xii. Em relação à aplicação da matéria de direito ao caso sub iudice, entendemos não ter sido correta, porquanto o Tribunal a quo não se pronunciou sobre a (in)existência de abuso de direito no caso em apreço, que consideramos ser crucial para a boa decisão da causa.

xiii. Ora, o incentivo, por parte da 1.ª Ré, para que a sociedade insolvente, da qual eram sócias as Autoras, aqui Recorrentes, modificasse o mercado alvo para o qual habitualmente laborava e investisse na aquisição de moradias de luxo, na Quinta ..., no Algarve, totalmente fora do seu escopo normal de atuação, a sua deslocação com a Autora até ao Algarve e apresentação do negócio, o financiamento da mencionada aquisição, a posterior adjudicação do imóvel por valor consideravelmente inferior ao seu valor real, a adjudicação de vários outros imóveis e viaturas, o valor percebido em fase de liquidação, a execução de penhores desconsiderados em sede de insolvência, a celebração de um contrato de locação financeira, os lucros auferidos com esse contrato, a cessão de créditos da 1.ª Ré à 2.ª Ré e o aproveitamento da especial vulnerabilidade das Autoras/Recorrentes tudo isto, em conjunto, se assevera manifestamente reprovável e configura uma situação de abuso de direito, atendendo às circunstâncias especiais do caso em concreto e à forma abusiva com que a 1.ª Ré conduziu toda a sua atuação, desde o início, mesmo antes da celebração do negócio, atuação essa que se revelou clamorosamente ofensiva da justiça, como, de resto, melhor debatemos ao longo das nossas alegações.

- vd. artigo 334.º do CC

- cfr. ponto 2), 7), 8), 13), 19), 21), 22), 23), 24), 25), 27), 28), 30), 32) dos factos provados

- vd. depoimento da Autora AA, prestado em 08-02-2023, entre as 16:52:04 e as 17:04:28, minutos 00:40 a 01:51, 03:13 a 04:22 e 06:06 a 08:15; depoimento da Autora BB, prestado em 08-02-2023, entre as 17:04:30 e as 17:12:34, minutos 01:13 a 02:13, 03:19 a 03:42 e 04:16 a 04:50; depoimento da testemunha FF, prestado em 08.02.2023, entre as 15:22:35 e as 15:44:23, minutos 03:13 a 08:05, 09:14 a 10:05 e 15:38 a 16:55; depoimento da testemunha CC, prestado em 08-02-2023, entre as16:24:06 e as 16:52:03, minutos 03:00 a 03:43, 03:48 a 07:10, 10:25 a 11:12, 11:48 a 15:33 e 19:17 a 22:24; depoimento da testemunha GG, prestado em 08-02-2023, entre as 15:04:24 e as 15:15:11, minutos 01:14 a 02:01 e 06:12 a 08:04; e depoimento da testemunha DD, prestado em 08-02-2023, entre as 15:44:25 e as 16:00:20, minutos 11:45 a 12:58 e 14:30 a14:50.

- cfr. docs.n.º1, 6 e 7 juntos com a petição inicial

- vd. douta sentença do Tribunal de Portalegre de 04.01.2012

- vd. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26.01.2021, proc. n.º 466/14.1TBVFX-B.L1.S1 e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12.12.2013, proc. n.º 23703/09.0T2SNT-B.L1-6

-vd. HÖRSTER, Heinrich e SILVA,Eva Sónia Moreira da–“A Parte Geral do Código Civil Português”. 2.ª edição. Almedina, 2019. p. 303; COELHO, Cláudia Júlia Martins - A Dação em Cumprimento como Forma de Extinção da Dívida Contraída com Base num Contrato de Crédito à Habitação. Universidade Nova de Lisboa: 2018, pp. 25-26; LEITÃO, Luís Menezes – “O impacto da crise financeira no regime do crédito à habitação”. Julgar. n.º 25. Coimbra Editora: 2015. p.55

xiv. Em relação ao aval e à condição de avalistas das aqui Recorrentes, consideramos, igualmente, que se encontra preenchida a figura de abuso de direito, na modalidade de suppresio, já que, desde a data de incumprimento da sociedade insolvente e, bem assim, da sua declaração de insolvência, em 2011, decorreu cerca de uma década, sem que a 1.ª Ré, alguma vez, tenha reclamado o que quer que fosse às Autoras, aqui Recorrentes, enquanto avalistas, não executando o aval prestado, nem colocando a livrança no circuito cambiário, criando, pois, nas Recorrentes, face a todos os valores que já haviam sido percebidos pela 1.ª Ré, a convicção legítima e a confiança de que não mais lhes viria a ser reclamado qualquer montante, assim como o criaria num homem médio, pelo que quando tiveram conhecimento da cessão de créditos à 2.ª Ré, as Recorrentes foram totalmente apanhadas de surpresa, vendo manifestamente ofendidos os ditames da boa-fé.

- cfr.doc. n.º1 junto com a petição inicial

- cfr.ponto 5), 7), 8), 18)dos factos provados

- vd. depoimento da Autora BB, prestado em 08-02-2023, entre as 17:04:30 e as 17:12:34, minutos 04:16 a 04:50; depoimento da testemunha CC, prestado em 08-02-2023, entre as 16:24:06-16:52:03, minutos 12:53 a 14:05

- vd. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14.02.2023, proc. n.º 895/21.4T8FNC-B.L1-7

xv. De resto, acrescente-se, ainda, que não se compreende a opção da douta sentença recorrida, que se revela, com todo o devido respeito, incoerente, quando ela própria reconhece e dá como provado, respetivamente, nos pontos 19) e 25) dos factos provados, que a 1.ª Ré incentivou a sociedade insolvente a adquirir e a investir na moradia de luxo, na Quinta ..., no Algarve e, bem assim, que foi auferindo diversos valores com a rentabilização do negócio, mas não reconhece ou sequer se pronuncia sobre a situação de abuso de direito, decidindo, ao invés, e sem qualquer fundamento fáctico e jurídico, por um valor em dívida superior àquele que havia sido reclamado pela própria 2.ª Ré. Como é consabido, o direito deve ser exercício honestamente, como deveria ser exercido por uma pessoa de bem, sendo que o recurso à existência de abuso de direito visará sempre obstar a uma situação de injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico comummente aceite na comunidade social, decorrente do exercício de um direito legalmente conferido, face a determinadas circunstâncias especiais do caso concreto, como o é a situação dos autos em análise. É, assim, fulcral que se reconheça que a 1.ª Ré atuou de forma abusiva, excedendo manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico do direito, por se encontrarem verificados os pressupostos do abuso de direito, para que se faça a mais elementar justiça, ou melhor, para que se evite uma situação de injustiça!

- vd. CÂMARA, Carla Inês Brás - “A Aquisição da Propriedade do Bem Hipotecado Pelo Credor e a Questão da Satisfação (Integral ou Parcial) do Crédito”, AAVV in Estudos em Homenagem ao Professor Dr.Lebre de Freitas, Vol. I. Coimbra Editora:Coimbra,2013.p.694

- vd. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/9/1993, Coletânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano I, Tomo III, pág.21

xvi. Aqui chegados, resta, pois, concluir dizendo que foram violadas as normas jurídicas dos artigos 154.º, 607.º, n.º 4, 608.º, n.º 2, 1.ª parte, 615.º, n.º 1, alíneas b), d) e) do CPC, artigo 334.º do CC, artigo24.º, n.º 1, da LOSJ e artigos 20.ºe 205.º, n.º1, da CRP.

xvii. Pelo exposto, deve ser revogada a douta sentença recorrida, reconhecendo-se a inexistência da dívida das aqui Autoras/ Recorrentes.

-vd. artigo 334.º do CC

EM CONFORMIDADE COM AS RAZÕES EXPOSTAS DEVE CONCEDER-SE PROVIMENTO À PRESENTE APELAÇÃO E, EM CONSEQUÊNCIA, REVOGAR-SE A SENTENÇA RECORRIDA E JULGAR-SE A AÇÃO PROCEDENTE

ASSIM DECIDINDO ESTE VENERANDO TRIBUNAL FARÁ JUSTIÇA!..»


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O banco réu juntou contra-alegações nas quais pugna em resumo pela manutenção da sentença recorrida e pela improcedência da acção.

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Após os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre decidir.

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II - DO MÉRITO DO RECURSO

1. Definição do objecto do recurso

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1].

Porque assim, atendendo á estrutura das conclusões das alegações apresentadas pelas apelantes, resulta que em resumo a recorrente indica os seguintes pontos a analisar:


A- Nulidade da sentença. Invocam 3 nulidades: 1- nulidade por omissão de pronuncia; 2- nulidade por falta de fundamentação e nulidade por condenação em quantidade superior ou objecto diverso do pedido.

B- Impugnação da matéria de facto.

C- Incorreto julgamento de direito.


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III - FUNDAMENTOS DE FACTO

Visando analisar o objecto do recurso, cumpre enunciar os factos provados e não provados pelo tribunal a quo, tendo-se, no entanto, em conta que essa enunciação terá uma natureza provisória, visto que o recurso versa sobre a matéria de facto pugnando pela sua alteração.

Nesse contexto, cumpre referir que a sentença recorrida consignou a seguinte matéria de facto e motivação:« … B / MATÉRIA DE FACTO.

I) Os factos.

1) As autoras eram sócias da sociedade comercial por quotas com a firma “B..., Lda.”, titular do NIPC ...38, com sede na Alameda ..., ..., freguesia ..., em Lisboa.

2) Cujo objecto social consistia na indústria de construção civil, na compra, venda e administração de prédios rústicos e urbanos, e na aquisição para revenda de bens imóveis adquiridos para esse fim.

3) Sucede que a crise instalada entre 2006 e 2011 na construção civil, obrigou a que a sociedade supra descrita alterasse o seu modus operandi, tendo sido forçada pela conjuntura económico-financeira a recorrer à banca e a capitais, tendo as sócias da sociedade, aqui AA., procuraram junto da 1ª Ré suporte financeiro para a prossecução dos objetivos da sociedade.

4) A sociedade, de que as Autoras eram sócias, adquiriu dois lotes com vista à construção apoiada em financiamentos da 1ª Ré.

5) Designadamente através de um contrato de promoção imobiliária nº ...75, sobre o Lote 17 no valor inicial de €2.200.000,00 (dois milhões de euros), celebrado entre a sociedade pertencente às Autoras e a 1ª Ré, aos 17 de março de 2008, junto sob a designação de DOC. 1.

6) Tendo, além do mais, exigido garantias pessoais das sócias, aqui Autoras.

7) As Autoras viram-se obrigadas a apresentar a sociedade aludida em 1) à insolvência, o que fizeram aos 29 de outubro de 2011.

8) A qual veio a ser decretada em 08 de novembro de 2011, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo de Comércio de Lisboa - Juiz 1, no âmbito do processo nº 1544/11.4TYLSB, conforme sentença junta sob a designação de DOC. 2.

9) Neste âmbito, foi nomeado Administrador da Insolvência o Exmº Sr. Dr. HH, portador do NIF ...69, com domicílio na Avenida ..., ..., Lisboa, ... Lisboa.

10) Tendo, a final, a sociedade sido declarada extinta, conforme sentença e anúncio de encerramento que ora se juntam sob a designação de DOC. 3 e DOC.4, respetivamente.

11) Nessa sede, foram apreendidos 10 (dez) imóveis e 2 (dois) veículos, conforme auto de apreensão que ora se junta sob a designação de DOC. 5.

12) E foram reconhecidos créditos à 1ª Ré no valor de €3.090.588,68 (três milhões noventa mil quinhentos e oitenta e oito euros e sessenta e oito cêntimos).

13) Relativamente ao Contrato de empréstimo nº ...75, ora colocado em crise, foi declarado o incumprimento no valor de €2.196.624,38 (dois milhões cento e noventa e seis mil seiscentos e vinte e quatro euros e trinte e oito cêntimos).

14) Em sede de liquidação, no apenso E do processo de insolvência, foram adjudicados à 1ª Ré diversos imóveis, conforme mapa de rateio que ora se junta sob a designação de DOC.6.

15) Entre os quais, o imóvel que esteve na base do contrato de empréstimo, o prédio urbano sito na Rua ... - ..., Quinta .../... descrito sob o nº ...31 da freguesia ..., e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...10..., composto por casa de habitação de cave, rés-do-chão e andar, e logradouro com piscina.

16) Após duas tentativas de venda, promovidas pelo administrador de insolvência, uma por venda particular através de propostas em carta fechada e outra por leilão em carta fechada, que não lograram alcançar a venda por as propostas apresentadas serem de valores inferiores ao valor anunciado, foi o prédio adjudicado à 1ª Ré pelo valor de €1.281,900,00 (um milhão duzentos e oitenta e um mil e novecentos euros), conforme escritura de compra e venda datada de 25 de julho de 2014, que ora se junta sob a designação de DOC. 7.

17) Sobre este prédio a 1ª Ré veio posteriormente a celebrar um contrato de locação financeira com C... Unipessoal, Lda., NIPC ...99, negócio registado na Conservatória do Registo Predial de Celorico de Basto pela AP ...60 de 2020/09/16, conforme se pode constatar pela Certidão Predial Permanente ora junta sob a designação de DOC. 8.

18) A 2ª Ré celebrou um contrato de cessão de créditos com a 1ª Ré, aos 25 de junho de 2021 no qual se inclui os eventuais créditos sobre as aqui AA., contrato nº ..., conforme doc. 1 contestação 2ª R..

19) A sociedade das AA. incentivada pela própria instituição bancária, aqui 1ª Ré, através do então Diretor do balcão do ..., em Lisboa, para modificar o seu mercado alvo e investir, assim, na aquisição de dois lotes para construção de moradias de luxo independentes na Quinta ..., em ..., no Algarve, o que efetivamente veio a suceder no ano de 2007.

20) Neste sentido, a sociedade, das quais as Autoras eram sócias, adquiriu dois lotes com vista à construção apoiada em financiamentos da 1ª Ré.

21) Para a contratação deste avultado negócio bancário a 1ª Ré baseou a sua análise de risco no vasto património imobiliário da Requerente, avaliado à data em montante superior a €4.000.000,00 (quatro milhões de euros),

22) Tendo, além do mais, exigido garantias pessoais das sócias, aqui Autoras, garantias estas prestadas em montante superior a €1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil euros) contratualizadas em maio de 2007 através de quatro penhores de várias apólices e aplicações que estas detinham junto do Banco 1..., bem como para reforço da garantia hipotecária que prestaram, avalizaram a obrigação da mutuária apondo as suas assinaturas no verso de uma livrança subscrita pela mutuária por debaixo dos dizeres “Por aval à firma subscritora”, assinando então documento a autorizar o pr, bem como para reforço da garantia hipotecária que prestaram, avalizaram a obrigação da mutuária apondo as suas assinaturas no verso de uma livrança subscrita pela mutuária por debaixo dos dizeres “Por aval à firma subscritora”, assinando então documento a autorizar o preenchimento da livrança caso viesse a ser necessário oferecê-la à execução para reembolso coercivo do capital mutuado.

23) Pese embora os inúmeros esforços encetados com vista à promoção e venda do imóvel em causa, a verdade é a sociedade não conseguiu a realização da venda.

24) Actualmente, uma moradia de luxo na Quinta ..., com as mesmas características que as do imóvel em referência não lhe é atribuído um valor de mercado inferior a €3.000.000,00 (três milhões de euros), este propósito, veja-se o relatório de análise comparativa, que ora se junta sob a designação de DOC. 9.

25) Além da adjudicação do imóvel e dos valores percebidos pela 1ª Ré com a rentabilização daquele negócio, ainda durante o processo de insolvência, foram parcialmente acionados pela 1ª Ré e objeto de resgate os penhores constituídos para garantia das dívidas da sociedade insolvente.

26) Nomeadamente, foi imputado o valor de €48.510,84 (quarenta e oito mil quinhentos e dez euros e oitenta e quatro cêntimos), em 07 de dezembro de 2011, o qual na data da apresentação da reclamação de créditos pelo Banco à Insolvência da empresa devedora (14.12.2011) já se encontrava debitado face ao valor reclamado, vide DOC.10.

27) Na sede de processo de insolvência, nomeadamente na fase de liquidação, a 1ª Ré recebeu também o valor de €226.629,91 (duzentos e vinte e seis mil seiscentos e vinte e nove euros e noventa e um cêntimos), conforme comprovativo que ora se junta sob a designação de DOC. 11.

28) E, no encerramento do processo, após o pagamento de todos os credores e o pagamento da remuneração do Administrador de Insolvência, sobraram valores da liquidação que foram declaradas perdidas a favor do I.G.F.E.J., conforme despacho e documento comprovativos que ora se junta sob a designação de DOC. 12 e DOC. 13.

29) Entre os meses de Julho e Outubro de 2021 as Autoras foram contactadas pela aqui 2ª Ré, com vista à cobrança de uma dívida emergente de um Crédito Imobiliário.

30) Mais recentemente é que a 2ª Ré veio informar que a alegada dívida se cifrava no valor de €1.555.712,55 (um milhão, quinhentos e cinquenta e cinco mil, setecentos e doze euros e cinquenta e cinco cêntimos) e que o referido valor em dívida emergia do incumprimento da operação de crédito referido em 18).

31) Para justificar a titularidade da alegada dívida, a 2ª Ré alegou ter celebrado um contrato de cessão de créditos com a 1ª Ré, aos 25 de junho de 2021, tendo as AA. e a B..., Ld.ª sido notificadas de tal cessão por carta registada de 19 de Julho de 2021, conforme documentos juntos aos autos na contestação pela 2ª R..

32) De seguida, após terem sido realizados os pagamentos aos credores e de ter sido paga a remuneração do Sr. Administrador de Insolvência, surgem sobras da liquidação no processo de Insolvência que são declaradas perdidas a favor do I.G.F.E.J..


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Factos não provados:

a) Na data em que se encontrava em fase de conclusão, o imóvel supra referido tinha um presumível valor transacionável de €2.900.000,00 (dois milhões e novecentos mil euros).

b) Contrato que em momento algum foi comunicado à comissão de credores, ao Administrador de Insolvência ou a qualquer outra entidade conexa com o processo de insolvência onde a dívida originária havia sido reclamada pela 1ª Ré (e paga).


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Não se provaram quaisquer outros factos alegados pelas partes, quer por se considerarem irrelevantes, quer por serem conclusivos ou expressões de direito.

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A convicção do Tribunal:

Os factos 1) a 18) já se encontravam dados por assentes no despacho saneador.

Ponderou-se ainda toda a prova documental, designadamente a referida em cada um dos factos provados.

A restante resposta à matéria de facto assentou, desde logo, nos depoimentos testemunhais:

A testemunha GG, consultor imobiliário.

Conhece a empresa das AA..

O prédio dos autos é de uma gama mais alta.

Teve o prédio em venda, fanal de 2009 início de 2013, e nunca se conseguiu vender, mesmo por €3.600.000,00 do lote 17.

Em 2010 deu-se a insolvência da empresa e os bens foram para o Banco.

FF, amiga há 40 anos dos AA.

A empresa passou da construção média para a gama alta, tendo as AA. dito que tal sucedeu por incentivo do Banco, por isso o investimento na Quinta ....

A empresa trabalhava habitualmente com capitais próprios, só aqui na Quinta ... é que trabalhou com capitais do banco.

Edificaram as duas casas, tentaram vender as casas mesmo no estrangeiro durante 2 anos mas não conseguiram e viram-se foçados a entrar no processo de insolvência, tendo sido tudo entregue ao banco, património pessoal e das AA.

A AA tinha muita experiência imobiliária, pois acompanhou pai desde 1980, em 2030 já possuía 30 anos de experiência imobiliária.

CC, marido da A. BB.

Acompanhou o negócio muito pouco, apenas por conversas da família.

O negócio apresentou-se pelo Banco como viável, pois o Banco tinha avaliado o património, a obra era de cerca de €4.000,000,00.

Tentou-se vender os imóveis o que não se conseguiu.

O Banco ficou com todos os bens da empresa e das AA.

As garantias pessoais executadas eram de mais de 1 milhão de euros.

Os AA. sempre acompanharam o pai na construção, o que faziam desde a década de 1980.

Construíam prédios de 10/12 andares que depois vendiam.

DD, bancário desde 1992 no Banco 1....

A empresa das AA. dedicava-se à construção de imóveis, sendo a A. AA que aparecia no Banco.

Foi por intermédio do Banco que a empresa dos AA. teve conhecimento dos lotes.

Só veio a saber depois que a AA veio a pedir o crédito, não tendo intervindo na promoção e venda dos lotes à empresa das AA.

A AA era uma empresária com muito sucesso.

II, funcionário bancário há 32 anos no Banco 1..., trabalhou na recuperação de créditos entre 2011 e 2019.

Acompanhou o processo de insolvência da empresa das AA.

O imóvel foi a leilão por carta fechada, por 50% do valor mínimo de venda, tendo ficado deserto.

Ninguém se opôs à adjudicação ao Banco.

Além de €1.281.900,00 executaram os penhores financeiros.

Confirma o mapa de rateio junto como doc 6 dap.i..


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Ponderou-se ainda o depoimento de parte da R. nos termos que se encontra plasmado na assentada.

Ponderou-se ainda as declarações de parte das AA..

A A. AA referiu a realização do contrato com o Banco 1... para a construção na Qta ... e que depois foi impossível cumprir o mesmo por não ser possível vender.

Deu todo o património financeiro de garantia ao Banco, o qual até executou os penhores de €1.500.000,00 e €224.000,00 na insolvência.

O gerente do Banco 1... do ... levou-a ao Algarve para apresentar o negócio, tendo a testemunha considerado que era um bom negócio e o risco diminuto.

Trabalha nesta área desde há 30 anos.

A A. BB referiu que o Banco disse que era uma boa opção de construção, tendo comprado os lotes e efectuado a construção da moradia com dinheiro do Banco.

Tentaram vender a moradia durante cerca de 3 anos o que não conseguiram.

Todo o património foi dado ao Banco.

Análise crítica da prova.

Algumas considerações cabem ser feitas sobre a prova produzida e matéria de facto provada e não provada.

Relativamente às circunstâncias em que ocorreu o financiamento para a construção na Quinta ... (19 a 21), bem como as dificuldades na venda posterior do prédio, vide as declarações das AA., bem como das testemunhas FF e CC.

Além disso, temos os documentos juntos aos autos inerentes ao financiamento do negócio.

Sobre a questão do valor do imóvel actualmente (ponto 24) vide o doc. 9 referido nos factos.

Sobre os valores em dívida e pagos à 1ª R. (pontos 12, 13, 16, 27, 28), vide os documentos juntos aos autos e referidos nos factos em causa, bem como o depoimento de II.

No que concerne aos factos não provados não foi feita prova suficiente que sustentasse tal factualidade….»(sic).

Dado o teor das alegações ir-se-á igualmente e por ser necessário para a decisão do recurso transcrever a parte da sentença quanto á decisão de mérito (na parte relevante para a decisão do recurso): «… C / ANÁLISE JURÍDICA.

As AA. peticionam que seja declarada a inexistência da dívida no valor de €1.555.712,55 …das Autoras à 1ª Ré, consequentemente, à 2ª Ré.

Invocam que o crédito da 1ª R. foi integralmente cumprido, tendo a mesma lucrado com os negócios que foi celebrando ao longo do tempo.

O contrato de mútuo é aquele pelo qual uma das partes – o mutuante – empresta à outra – o mutuário – dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a última a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade (artº 1142 do Código Civil).

O mútuo tem sido considerado um contrato real quoad constitutionem, portanto como um contrato cuja verificação depende da tradição da coisa que constitui o seu objecto mediato.

Celebrado o mútuo e entregue a coisa ao mutuário, este torna-se proprietário dela, ficando em contrapartida adstrito ao dever de pagar a retribuição – juros - quando a ela haja lugar, e a restituir o tantundem, isto é, a coisa do mesmo género, quantidade e qualidade.

Decorre da factualidade provada:

- Foi celebrado um Contrato de Promoção Imobiliária entre a empresa B... Lda. e o Banco 1..., S.A., em 14.03.2008, , tendo sido mutuado o valor de €2.200.000,00 (dois milhões e duzentos mil euros), tendo as suas sócias, ora Autoras prestado garantias do seu bom e pontual cumprimento.

- Na sequência do incumprimento do contrato pela B... empresa incumpriu com os pagamentos a que estava obrigada junto do Banco e posteriormente foi declarada insolvente.

- Aquando da declaração da insolvência foi reconhecido à 1ª R. créditos no valor de €3.090.588,68 (três milhões noventa mil quinhentos e oitenta e oito euros e sessenta e oito cêntimos).

- Relativamente ao Contrato de empréstimo nº ...75, foi declarado o incumprimento no valor de €2.196.624,38 (dois milhões cento e noventa e seis mil seiscentos e vinte e quatro euros e trinte e oito cêntimos).

- Em sede de liquidação, no apenso E do processo de insolvência, foram adjudicados à 1ª Ré diversos imóveis, entre os quais, o imóvel que esteve na base do contrato de empréstimo, o prédio urbano sito na Rua ... - ..., Quinta .../... descrito sob o nº ...31 da freguesia ..., e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...10..., composto por casa de habitação de cave, rés-do-chão e andar, e logradouro com piscina.

- Após duas tentativas de venda, promovidas pelo administrador de insolvência, uma por venda particular através de propostas em carta fechada e outra por leilão em carta fechada, que não lograram alcançar a venda por as propostas apresentadas serem de valores inferiores ao valor anunciado, foi o prédio adjudicado à 1ª Ré pelo valor de €1.281,900,00 (um milhão duzentos e oitenta e um mil e novecentos euros).

- Na sede de processo de insolvência, nomeadamente na fase de liquidação, a 1ª Ré recebeu também o valor de €226.629,91 (duzentos e vinte e seis mil seiscentos e vinte e nove euros e noventa e um cêntimos).

Ora, conjugada toda a factualidade atrás não restam dúvidas que tendo sido reconhecido em sede de reclamação de créditos à 1ª R. o valor de €3.090.588,68, tendo sido pagos através de da adjudicação do prédio €1.281.900,00 + €226.629,91 estará em dívida o valor de €1.582.058,77.

Tendo as AA. prestado aval para o pagamento das obrigações da sociedade insolvente estão as mesmas obrigadas ao pagamento do mesmo.

O Aval é uma garantia e a sua função específica é assegurar ou caucionar a obrigação de certo subscritor cambiário.

A responsabilidade do avalista não é subsidiária da do avalizado. É solidária, embora assuma subsidiariamente a obrigação deste.

O facto da 1ª R. ter efectuado posteriormente à adjudicação do prédio um contrato de locação financeira com C... Unipessoal, Lda, bem como bem como, actualmente, uma moradia de luxo na Quinta ..., com as mesmas características que as do imóvel em referência não lhe é atribuído um valor de mercado inferior a €3.000.000,00 (três milhões de euros), é de todo irrelevante para eximir as AA. da obrigação que assumiram pelo aval prestado.

Com efeito, o bem já era da titularidade da 1ª R. que podia dispor do mesmo como muito bem entendesse, conforme artº 1305º do CC, podendo rentabilizá-lo ou não, passando tal situação a ser completamente alheia para as AA., porquanto o bem já tinha saído da esfera jurídica da sociedade B..., Ldª e as AA. já não tinham o poder e o condão de condicionar o destino de tal bem.

Atente-se que o imóvel foi adjudicado à 1ª R. após duas tentativas de venda, promovidas pelo administrador de insolvência, uma por venda particular através de propostas em carta fechada e outra por leilão em carta fechada, que não lograram alcançar a venda por as propostas apresentadas serem de valores inferiores ao valor anunciado, foi o prédio adjudicado à 1ª Ré pelo valor de €1.281,900,00 (um milhão duzentos e oitenta e um mil e novecentos euros).

Acresce que as AA., pese embora os inúmeros esforços encetados com vista à promoção e venda do imóvel em causa, a verdade é que a sociedade não conseguiu a realização da venda.

Em suma, existe a dívida, tendo havido a cessão de créditos da 1ª à 2ª R., são as AA., atento o aval que prestaram, responsáveis pela dívida perante o aqui 2º R.

Assim sendo, terá de improceder a acção…»(sic).


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IV - FUNDAMENTOS DE DIREITO


A - Nulidades

1- Nulidade por omissão de pronuncia

Invocam a existência desta nulidade porque as apelantes, invocaram, entre o mais, na petição inicial, o exercício abusivo do direito por parte da 1.ª Ré, ora Recorrida, sendo que referem que apesar de não fazerem menção  expressa à designação “abuso de direito”, as Recorrentes reproduzem, na íntegra, no artigo 104.º da petição inicial, a redação do artigo 334.º do Código Civil e, por conseguinte, a definição e os respetivos pressupostos da figura do abuso de direito. Referem que alegaram que a 1.ª Ré estaria a exercer abusivamente um direito que já não titulava, excedendo manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e fim económico desse direito.

Mais referem que nas suas alegações finais voltam a mencionar a má-fé por parte do 1 réu e que o instituto do abuso do direito foi invocado pelo 1 réu na sua contestação e alegações finais.

Referem que a sentença não faz menção a este instituto, já que foi amplamente discutido pelas partes, sendo uma questão de particular relevância para a decisão de mérito.

Consideram que o Tribunal a quo, ainda que não esteja adstrito a pronunciar-se quanto a todos e mais alguns argumentos e/ou fundamentos aduzidos pelas partes, se deveria ter pronunciado quanto ao instituto do abuso de direito, analisando o preenchimento dos seus pressupostos no caso em apreço. Não o tendo sido e não se tendo o Tribunal a quo pronunciado quanto à existência de abuso de direito, nem a ele feito qualquer espécie de menção ou reparo, entendemos, pois, estarmos perante um vício de nulidade da sentença por omissão de pronúncia, pelo que deverá a mesma ser revogada.

Nos termos do artigo 615 do CPcivil, a sentença é nula, quando:

a) Não contenha a assinatura do juiz;

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

Para outros desenvolvimentos, vide o Ac da RC de  06-11-2012 , disponível ma base de dados da DGSI:« Sumário: I – Os vícios determinantes da nulidade da sentença correspondem a casos de irregularidades que afectam formalmente a sentença a provocam dúvidas sobre a sua autenticidade, como é a falta de assinatura do juiz, ou ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduz, logicamente, a resultado oposto do adoptado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender conhecer questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões de que deveria conhecer (omissão de pronúncia)..”.

No caso, em resumo as apelantes invocaram a nulidade da sentença proferida por omissão de pronúncia quanto á questão do abuso de direito.

No que respeita à nulidade da sentença por omissão de pronúncia dispõe a al. d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC. que é nula a sentença quando «o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento».

Esta nulidade decorre do incumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 608.º do mesmo Código, nos termos do qual «o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras», prevendo ainda aquele dispositivo que o juiz não «pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».

Importa salientar, contudo, que, conforme dispõe o art.º 5.º, n.º 3, do CPC., o Juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação e aplicação das regras de direito, mas apenas tem de se pronunciar “sobre questões que devesse apreciar” e “conhecer de questões de que não podia deixar de tomar conhecimento”.

Quer isto dizer que ao Tribunal cabe o dever de conhecer do objecto do processo, definido pelo pedido deduzido e respectiva causa de pedir.

Resumindo, o Tribunal tem de apreciar e decidir as questões processuais trazidas aos autos pelas partes – pedidos formulados e excepções deduzidas - e todos os factos em que assentam, mas não está obrigado a pronunciar-se sobre todos os argumentos esgrimidos pelas partes nos autos, nem tão pouco está obrigado a complementar o acervo fáctico trazido pelas partes aos autos.

Em regra só existe omissão de pronúncia nos termos do art. 615º, nº 1, alínea d), do CPC., quando o Tribunal deixa de apreciar questões submetidas pelas partes à sua apreciação.

A nulidade da decisão com fundamento na omissão de pronúncia apenas se verifica quando uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não ter tido aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão, sem que a sua resolução tenha sido prejudicada pela solução, eventualmente, dada a outras.

Já, porém, não ocorrerá a dita nulidade da sentença por omissão de pronúncia quando nela não se conhece de questão cuja decisão se mostra prejudicada pela solução dada anteriormente a outra.

Verifica-se que de facto, que na sentença recorrida, não houve qualquer pronuncia ou decisão do tribunal sobre o instituto do abuso do direito (o qual foi invocado, e sempre seria de conhecimento oficioso).

E assim sendo, infringiu o disposto no artigo 608.º-3, do CPC 2013, infracção esta produtora da nulidade da decisão sob recurso, nos termos do disposto nos artigos 613.º-3 e 615.º-1-d), do mesmo diploma legal.

Consideramos que atento o estatuído no artigo 615, nº 1, alínea d), do C.P.C., a sentença recorrida se encontra afectada por vício que origina a sua nulidade, com fundamento em omissão de pronúncia, dado não existir nenhuma decisão na sentença sobre o abuso do direito.

De acordo com o disposto no nº1, do art. 665 do C.P.Civil, a declaração de nulidade da decisão proferida na 1ª instância, determina que este tribunal conheça do objecto do recurso, substituindo-se ao tribunal recorrido no julgamento omitido - (regra da substituição ao tribunal recorrido).

Procedendo a nulidade arguida pelas recorrentes, nada obsta a que este Tribunal de recurso, substituindo-se ao tribunal recorrido (art. 665º do CPC), se pronuncie sobre a pretensão em apreço, sendo certo que as partes tiveram já oportunidade de exercer o direito ao contraditório em sede de alegações de recurso.

Consigna-se que a final, fixada a matéria de facto, será decidida a questão que foi omitida, analisando-se o instituto do abuso de direito.


*

2- nulidade da sentença por falta de fundamentação

Neste segmento as apelantes alegam em resumo que as decisões dos tribunais, que não sejam de mero expediente, têm de ser devidamente fundamentadas, o que decorre ,aliás, de uma imposição constitucional e que caso não seja dado cumprimento a este dever de fundamentação, a sentença enferma de um vício de nulidade, porquanto, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC, não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

Referem que o  Tribunal a quo, pese embora tenha indicado qual a prova que motivou a sua opção em dar determinados factos como provados, não fez, no entanto, qualquer referência ao porquê de ter valorado essa mesma prova, às razões que relevaram para a formação da sua convicção, nem ao porquê de lhe ter dado relevância em detrimento de outra, credibilidade dos depoimentos, o valor dos documentos que privilegiou na formação da sua convicção, em ordem a que as partes (e um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) ficassem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo Tribunal e das razões da sua convicção.

Acresce que alegam que no que toca que à prova documental, que não obstante o Tribunal a quo ter feito menção, em vários factos provados, aos documentos em que fundou a sua decisão, designadamente utilizando as expressões “vide doc. 10” ou “que ora se juntam sob a designação de DOC. 3 e DOC. 4” não especifica, no entanto, de onde resultam esses documentos, por quem foram juntos e em que momento.

Concluem, assim que consideram a fundamentação da matéria de facto, bastante parca, com a ausência de uma verdadeira análise crítica, pelo que a sentença recorrida padece de um vício de nulidade por falta de fundamentação.

Por tudo isto, deverá ser revogada a douta sentença recorrida, porquanto é manifesta a existência de um vício de falta de fundamentação.

Segundo o art. 205º nº 1 da CRP, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.

Não se trata de mera exigência formal, já que a fundamentação cumpre uma dupla função: de carácter objectivo - pacificação social, legitimidade e autocontrole das decisões; e de carácter subjectivo - garantia do direito ao recurso e controlo da correcção material e formal das decisões pelos seus destinatários.

Essa fundamentação tem de ser expressa, clara e coerente e suficiente, não se devendo deixar às partes o ónus de descobrir as razões da decisão.

Este dever de fundamentação para as decisões judiciais em geral encontra-se previsto e fundamentado no art. 154º do CPC, onde se prescreve:

1. As decisões judiciais sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas. 2. A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento, salvo se for despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.

Segundo Fernando Manuel Pinto de Almeida (Juiz Desembargador Acção de formação do CEJ para Juízes Estagiários realizada na sala de audiências do Tribunal da Relação do Porto, disponível emhttp://www.trp.pt/ficheiros/estudos/pintoalmeida_fundamentacaosentencacivel.pdf):«.. A fundamentação da sentença, como a de qualquer outra decisão judicial, sendo exigência muito antiga, tem actualmente assento constitucional.

Nos termos do art. 607º do CPCivil:

1. A sentença começa por identificar as partes e o objecto do litígio, fixando as questões que ao tribunal cumpre solucionar.

2. Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e quais os que julga não provados analisando criticamente as provas, e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.

3. Na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, fazendo o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer.

Como decorre deste normativo, a sentença assenta numa dupla fundamentação: de facto e de direito.

Em primeiro lugar, importa precisar toda a realidade fáctica que se encontra provada.

Depois há que submeter todos esses factos a tratamento jurídico adequado: identificação das regras de direito aplicáveis, interpretação dessas regras e determinação dos correspondentes efeitos jurídicos.

Como é sabido na fixação dos factos da causa, determina o art. 607º nº 4 que: - o juiz tomará em consideração:

- os factos admitidos por acordo (cfr. arts. 490º e 505º); - os factos provados por documento (cfr. arts. 523º e 524º); - os factos provados por confissão reduzida a escrito (cfr. arts. 356º e 358º do CC); ; e a estes acrescem: - os factos que resultem de presunção legal ou judicial (cfr. arts. 349 a 351º do CC); os factos notórios (cfr. art. 514º nº 1); - os factos de conhecimento oficioso; e procede ao exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer.

Nos termos do artigo 615, a sentença é nula, além do mais, quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (al. b).

A nulidade da falta de fundamentação de facto e de direito está relacionada com o comando do artº 607º, nº 3 e 4, que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera provados e não provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes.

Conforme ensina A. Geraldes in Temas da Reforma do Processo Civil, II Volume, pág 243, quer relativamente aos factos provados quer quanto aos factos não provados, deve o tribunal justificar ou motivos da sua decisão.

Como é entendimento pacífico da doutrina, só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade prevista na al. b) do nº 1 do citado artigo 615º.
A fundamentação deficiente, medíocre ou errada afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade..

O juiz  deve justificar os motivos da sua decisão (quer quanto aos factos provados quer quanto aos não provados) individualizando os meios de prova atinentes e esclarecendo os motivos de dar mais credibilidade a uma dada testemunha ou valorar ou não um dado documento ou outro meio de prova (depoimento de parte, declarações de parte, prova pericial).


Todavia, no caso dos autos resulta que o tribunal declarou os factos que considerou provados e não provados relevantes para a decisão da causa, e indicou os meios de prova atinentes e fez um resumo dos depoimentos das testemunhas e a sua análise critica e nessa medida não existe nenhuma falta de fundamentação ou fundamentação deficiente.
Acresce que indicou devidamente os documentos tidos em conta, sendo que é manifesto que ao indicar os documentos sem a menção de quem os juntou que os mesmos foram juntos pelas autoras, dado que só as autoras juntaram documentos e a 2 ré juntou documentos atinentes á cessão  de créditos.

Assim, juga-se improcedente a invocada nulidade.


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3.–nulidade por condenação em quantidade superior ou objeto diverso do pedido

Neste segmento as apelantes invocam que nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea e), do CPC, é nula a sentença quando o juiz condene em quantidade superior ou objeto diverso do pedido.

 Referem que as aqui Recorrentes, peticionaram o reconhecimento de inexistência da dívida no valor de €1.555.712,55 (um milhão, quinhentos e cinquenta e cinco mil, setecentos e doze euros e cinquenta e cinco cêntimos). Mas que o  Tribunal a quo veio, no entanto, reconhecer que existia dívida no valor de €1.582.058,77 (um milhão, quinhentos e oitenta e dois e cinquenta e oito euros e setenta e sete cêntimos).

Referem ainda que para além de reconhecer o montante da divida nesse valor, não o faz de forma correta e coerente porque o valor de  €3.090.588,68 (três milhões, noventa mil, quinhentos e oitenta e oito euros e sessenta e oito cêntimos) reporta-se ao valor total dos créditos reclamados pela 1.ª Ré , em sede de insolvência, e não ao valor do incumprimento contrato em análise nos presentes autos e que para aqui releva. Aliás, a própria sentença recorrida, no ponto 13) dos factos provados, reconhece que “Relativamente ao Contrato de empréstimo no...75, ora colocado em crise, foi declarado o incumprimento no valor de €2.196.624,38,  pelo que, feitas as contas, nunca seria devido o valor de €1.582.058,77 (um milhão, quinhentos e oitenta e dois e cinquenta e oito euros e setenta e sete cêntimos).

concluem, que a deve ser revogada sentença recorrida, porquanto condenou em quantidade superior à peticionada.

Todavia, é manifesto que a invocada nulidade terá de ser julgada improcedente porque a sentença recorrida versou sobre uma acção de simples apreciação e absolveu as rés do pedido, não tendo decretado nenhuma condenação (o que torna impossível existir essa nulidade perante a ausência de uma condenação).

Assim, improcede neste segmento o recurso, dado que a sentença não é nula.

Sem prejuízo de se consignar que a sentença recorrida padece de um lapso de cálculo (Relativamente ao empréstimo o incumprimento é no valor de 2.196.624,38), que irá ser rectificado e alterado a final.


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B - Modificação da matéria de facto

Nas alegações de recurso veio o apelante, requerer a reapreciação da decisão de facto, com fundamento em erro na apreciação da prova, indicando alguns pontos a alterar em termos de fundamentação de facto.

No ponto 14) dos factos provados, o Tribunal a quo deu como provado o seguinte facto: “Em sede de liquidação, no apenso E do processo de insolvência, foram adjudicados à 1.ª Ré diversos imóveis, conforme mapa de rateio que ora se junta sob a designação de DOC. 6”.

Refere que apesar de a sentença não indicar com clareza, a que doc. n.º 6 faz referência e analisando,  o doc. n.º6 junto com a petição inicial, que se reporta ao mapa de rateio, resulta desse mesmo documento que foram adjudicados à 1.ª Ré não só diversos bens imóveis, correspondentes às verbas 1, 2, 3, 6, 7, 8, 9, como ainda dois veículos automóveis, referentes às verbas 11 e 12.

E o mesmo decorre  dos depoimentos da Autora BB e da testemunha CC.

De resto, não se compreende o facto de o Tribunal a quo não o ter dado como provado, quando, precisamente, no ponto 11) dos factos provados refere que “Nessa sede, foram apreendidos 10(dez) imóveis e 2(dois) veículos, conforme auto de apreensão que ora se junta sob a designação de DOC. 5”, sendo que a opção pela matéria de facto provada e não provada se mostra, com todo o devido respeito, confusa e até mesmo contraditória.

Referem assim que, em sede de insolvência, foi adjudicado à 1.ª Ré o valor total de € 1.635.004,91 (um milhão, seiscentos e trinta e cinco mil e quatro euros e noventa e um cêntimos), que consideramos que deveria, igualmente, ter ficado consignado no facto provado e que corresponde, discriminadamente, à soma dos seguintes valores:

a. Verba 8– € 1.232.603,73 b. Verba 9–€192.885,80

c. Verbas 1, 2, 3, 6 e 7– € 201.492,29 d. Verbas 11 e 12–€ 8.023,09

- cfr. doc.n.º 6 junto coma petição inicial

Concluem, assim que no ponto 14), deveria ter sido dado como provado que “Em sede de liquidação, no apenso E do processo de insolvência, foram adjudicados à 1.ª Ré diversos bens imóveis e dois veículos automóveis, no valor total de € 1.635.004,91 (um milhão, seiscentos e trinta e cinco mil e quatro euros e noventa e um cêntimos)”.

Este segmento da alteração deste facto provado terá de se considerar improcedente porque se traduz em matéria não relevante para a decisão da presente acção, visto que não estão em causa, nesta acção, as dívidas da sociedade nem determinar o montante total que a ré obteve no processo de insolvência, sendo que nestes autos apenas está em causa o imóvel e o mútuo sobre o qual as autoras prestaram garantia (O aval).

Por outro lado, não existe nenhuma contradição entre esse facto 14 e o 11 porque um diz respeito ao auto de apreensão e o outro á adjudicação.

Acresce que se trata de matéria não relevante para a decisão da acçaõ porque o pedido e a causa de pedir destes autos é a pretensão de se obter a declaração de que um certo crédito dado á execução pelo recorrido contra as recorrentes está extinto porque consideram que que o prédio hipotecado adjudicado ao réu (apesar de ter sido adjudicado por um valor inferior ao montante exequendo), valeria mais em termos de mercado do que o valor da adjudicação. E por outro lado, invocam também que esse crédito estaria extinto porque o banco celebrou com uma sociedade terceira um contrato de locação e teria tido lucros avultados com o mesmo.


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Por outro lado, referem que a sentença no ponto 26), deu como provado o seguinte facto: “Nomeadamente, foi imputado o valor de €48.510,84 (quarenta e oito mil quinhentos e dez euros e oitenta e quatro cêntimos), em 07 de dezembro de 2011, o qual na data da apresentação da reclamação de créditos pelo Banco à Insolvência da empresa devedora (14.12.2011) já se encontrava debitado face ao valor reclamado, vide DOC.10.”

Alegam que se é verdade que foram parcialmente acionados pela 1.ª Ré e objeto de resgate os penhores constituídos para garantia das dívidas sociedade mutuária / insolvente, conforme, aliás, se deu como provado no ponto 25), e, dessa forma, imputado à 1.ª Ré, entre o mais, o valor de €48.510,84 (quarenta e oito mil quinhentos e dez euros e oitenta e quatro cêntimos), já não poderemos concordar com a segunda parte do ponto26) dos factos provados.

As Recorrentes discordam, por conseguinte, que o referido valor de €48.510,84 (quarenta e oito mil quinhentos e dez euros e oitenta e quatro cêntimos) “na data da apresentação da reclamação de créditos pelo Banco à Insolvência da empresa devedora (14.12.2011) já se encontrava debitado face ao valor reclamado, vide DOC.10.”. Salvo o devido respeito, em momento nenhum nos autos em análise, se deu como provado que esse valor já tivesse sido subtraído ao valor em dívida, aquando da apresentação da reclamação de créditos em 14.12.2011.

Referem que a sentença recorrida limita-se, a reproduzir o disposto nos pontos 38.º e 39.º da contestação da 2.ª Ré, sem, no entanto, existir qualquer elemento probatório que comprove, verdadeira e inequivocamente, esse facto. Invocam que o tribunal a quo, procurando sustentar a sua opção em dar tal facto como provado, socorre-se somente do doc. n.º 10.

E analisando o doc. 10 da petição inicial extrai-se, tão só, que em 07.12.2011 foi imputado à1.ª Ré, entre o mais, o valor de €48.510,84  e que corretamente foi dado como provado na 1.ª parte do ponto 26) dos factos provados.

Concluem, que quanto ao demais, não resulta, por forma alguma, do referido documento ou de qualquer outro, que o valor tenha sido subtraído – ou debitado – ao valor em dívida, no momento da apresentação da reclamação de créditos.

Invocam que a sentença recorrida retira, sem mais, tal ilação simplesmente, seguindo o argumento falacioso das datas de que se socorre a 2.ª Ré, ou seja, de que a execução do penhor data de 07.12.2011, que a reclamação de créditos foi apresentada a 14.12.2011 e que, apenas devido a essa ordem cronológica, o referido valor já estaria imputado.

Por tal efeito, não deverá tal facto ser dado como provado, uma vez que não existem no processo elementos probatórios que o permitam comprovar.

A acrescentar, ainda, a este propósito, sempre se refira, de igual modo, que deveria ter sido dado como provado, na senda dos pontos 25) e 26) dos factos provados, o valor em concreto que foi imputado à 1.ª Ré, a título de execução dos contratos de penhor, o que não se fez.

Concluem, assim as autoras que conforme resulta, de forma inequívoca, do doc. n.º 10 junto com a petição inicial, foi imputado à 1.ª Ré, com a execução dos penhores, o valor total de€ 1.029.480,45 (um milhão, vinte e nove mil, quatrocentos e oitenta euros e quarenta e cinco cêntimos), correspondente à quantia de:

i. €24.000,44, em 30.11.2011, referente à conta corrente caucionada n.º ...55 ii. € 409.779,40 em26.01.2012, referente à conta corrente caucionada n.º ...55, iii. € 50.330,05 em 29.11.2011, referente ao contrato de locação financeira imobiliário n.º ...27 iv. € 154.829,46 em 07.12.2011, referente ao contrato de locação financeira imobiliário n.º ...27 v. € 339.575,88em 07.12.2011, referente ao contrato de empréstimo (CLS) n.º ...11 vi. €2.454,38 em 29.12.2011,referente ao contrato de empréstimo (CLS) n.º ...11 vii. €48.510,84 em 07.12.2011, referente ao contrato de promoção imobiliária n.º...75

Ou seja, para além do valor de €48.510,84 (quarenta e oito mil quinhentos e dez euros e oitenta e quatro cêntimos) que consta do ponto 26) dos factos provados, e como muito bem refere a douta sentença recorrida quando utiliza a expressão “nomeadamente”, foi, ainda, imputado, em virtude da execução dos penhores por parte da 1.ª Ré, o valor de € 980.969,10 (novecentos e oitenta mil, novecentos e sessenta e nove euros e dez cêntimos) que a ele se soma, perfazendo a quantia total de€ 1.029.480,45 (um milhão, vinte nove mil, quatrocentos e oitenta euros e quarenta e cinco cêntimos).

Consideram assim que, por essa razão, deverá ser dado como provado, apenas e tão só, que “Em virtude da execução dos penhores, foi imputado à 1.ª Ré o montante total de €1.029.480,45 (um milhão, vinte e nove mil, quatrocentos e oitenta euros e quarenta e cinco cêntimos)”.

Improcede este ponto de impugnação da matéria de facto dado que resulta do teor desse doc. 10 junto com a petição que a 7/12/2011 esse valor foi debitado na data da reclamação de créditos que foi a 14/12/2011.

Por outro lado, improcede igualmente o aditamento peticionado de que em virtude da execução dos penhores foi imputado á 1ª ré o valor total de 1029480,45 Euros porque não constam nos autos nenhum meio de prova que demonstre essa factualidade. 

De resto as autoras na sua petição inicial alegam quanto aos valores objecto dos resgate dos penhores constituídos para garantia das dividas da sociedade que foi imputado o valor de 48.510,84 euros em 7-12-2011, e invocam que em sede de insolvência, na fase da liquidação a 1 ré recebeu o valor de 226.629,91 euros (que consta do doc. 11 junto com a petição inicial)- cfr. Pontos 51 a 54, 84 da petição inicial.

O que resulta dos autos e igualmente foi dado como provado no ponto 27 da sentença é que o banco réu recebeu por rateio no processo de insolvência o valor de 226.629,91 Euros (de resto tal matéria foi confessada pela ré no ponto 41 da contestação onde alega que esse valor já foi transferido pelo cedente para a 2 ré por referência ao valor em dívida pelas autoras).


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No ponto 19) dos factos provados, o Tribunal a quo bem andou em dar como provado que “A sociedade das AA. incentivada pela própria instituição bancária, aqui 1.ª Ré, através do então Diretor do balcão do ..., em Lisboa, para modificar o seu mercado alvo e investir, assim, na aquisição de dois lotes para construção de moradias de luxo independentes na Quinta ..., em ..., no Algarve, o que efetivamente veio a suceder no ano de 2007.”

No ponto 17) dos factos provados, a douta sentença recorrida deu, igualmente, como provado que “Sobre este prédio a 1ª Ré veio posteriormente a celebrar um contrato de locação financeira com C... Unipessoal, Lda., NIPC ...99, negócio registado na Conservatória do Registo Predial de Celorico de Basto pela AP ...60 de 2020/09/16, conforme se pode constatar pela Certidão Predial Permanente ora junta sob a designação de DOC. 8.”

Referem que estes factos estão devidamente dados como provados, mas que na senda da prova produzida dever-se-ia dar como provado que o Dr. DD foi, inclusive, com a Recorrente AA ao Algarve, onde lhe apresentou o negócio e, bem assim, já nessa altura, a apresentou ao referido Dr. EE.

Referem que tal resulta do depoimento da autora AA e do depoimento da testemunha FF, sendo que a testemunha DD se limita a referir  convenientemente, que até pode ter ido ao Algarve com a Autora / Recorrente AA, mas que não se recorda o que consideram contraditório.

Concluem, assim que no seguimento do ponto 19) dos factos provados, se deveria, igualmente, ter dado como provado os seguintes factos: - “Inclusive, a 1.ª Ré, na pessoa do então diretor do balcão do ..., em Lisboa, Dr. DD, deslocou-se com a Autora AA até ao Algarve, onde a acompanhou e lhe apresentou negócio das moradias na Quinta ..., incluindo o lote 17.”

- “No âmbito dessa viagem, o Dr. DD, diretor do balcão do ..., da 1.ª Ré, apresentou a Autora AA ao Dr. EE.”

Este segmento da impugnação da matéria de facto igualmente se deverá considera improcedente não se aditando esses factos, porque do depoimento da testemunha DD não resultou essa factualidade, sendo que o seu depoimento não foi colocado em causa pelas declarações de parte da própria autora AA , nem pelo depoimento da testemunha FF amiga da autora há vários anos, visto que a mesma não tem conhecimento directo desses factos (apenas indicou o que a autora lhe terá mencionado há muitos anos).


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Por outro lado as apelantes consideram que se deverá dar como provado que: “As propriedades da Quinta ..., no Algarve, à data da insolvência da sociedade “B..., Lda.”, não sofreram uma redução significativa do preço, conseguindo aguentar o mercado”.

Referem que esse facto sobre o valor real do lote 17 e, bem assim, das restantes moradias de luxo sitas na Quinta ..., no Algarve, resulta do depoimento da testemunha GG, consultor imobiliário, que foi credível, e tem conhecimentos nessa área.

Improcede este segmento da impugnação, não se adicionando tal facto, porque por um lado se traduz em matéria meramente conclusiva e por outro lado não foi alegada no autos e é irrelevante para a decisão da causa visto estra em causa a declaração de inexistência de uma divida não contendendo com o valor atual do lote.


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Invocam por outro lado as apelantes que face à prova que foi produzida em sede de audiência de julgamento, que deveria ter ficado consignado nos factos provados o mercado alvo a que se dirigia a sociedade “B..., Lda.”, in casu, o de  construção de edifícios para a classe média, em particular, na zona de Lisboa, destinados à classe média, (re)investindo o capital próprio da empresa, com recurso pontual a capital externo.

Referindo que tal resulta do depoimento da testemunha FF,  CC, GG e até mesmo o da testemunha DD. E que decorre igualmente desses depoimentos que a  aquisição dos lotes de terreno 17 e 18 e construção das moradias de luxo no Algarve, na Quinta ..., saiu fora do escopo da atividade normal da sociedade insolvente e que constituiu um grande passo / investimento para a sociedade, dirigindo-se a um mercado alvo distinto daquele a que, naturalmente, estaria habituada – o que, de resto, já foi dado como provado no ponto 19) dos factos provados.

Ter-se-+a de julgar improcedente o aditamento desta factualidade porque por um lado o objecto social já consta dos factos provados e por outro lado  o ponto 19 refere-se á matéria alegada, sendo que o predito aditamento ultrapassa a matéria alegada nos autos e nessa medida não pode ser aditada.


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Por fim, e quanto ao segmento da alteração da matéria de facto, invocam as apelantes que ficou provado dos depoimentos melhor identificados infra (declarações da autora das autoras e de CC)  de que às Autoras /Recorrentes foi assegurado pela 1.ª Ré, em particular, na pessoa do Dr. DD, que se trataria de um bom negócio e que o mesmo seria vantajoso, por se inserir numa zona de luxo (Às Autoras foi assegurado pela 1.ª Ré, em particular, pelo Dr. DD, que a aquisição das moradias na Quinta ... se trataria de um bom negócio e que o mesmo seria vantajoso, porquanto se inseria numa zona de luxo, ao que as Autoras confiaram, devido à relação de confiança que tinham com a 1.ªRé”.

Improcede igualmente o aditamento desta matéria á factualidade provada dado que por um lado a testemunha CC não revelou essa factualidade nem teve conhecimento directo dos contactos entre as autoras e DD e por outro lado, as declarações das autoras por si só não tem a virtualidade de demonstrar tal factualidade.


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Pelo exposto, e considerando os meios de prova que foram produzidos relativamente á factualidade objecto da impugnação versada nas alegações, não existe nenhuma razão para se realizar qualquer alteração á matéria de facto fixada na sentença recorrida.

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C- Alteração da decisão de Mérito.

Nesta fase cumpre analisar o mérito da sentença, na vertente da fundamentação de direito, analisando em resumo se a acção deveria ser considerado procedente conforme pugnam as apelantes.

No que respeita à reapreciação do direito quanto ao alegado pelas recorrentes, no que respeita á procedência do pedido, as alegações das apelante pressupõem e apoiam-se, nas alterações da decisão proferida relativamente à matéria de facto por si defendidas, pretensão que as apelantes não logram atingir, pelo que, nesse segmento a apelação sempre teria de improceder, sem prejuízo de se ir analisar a decisão de mérito, nomeadamente quanto ao abuso de direito.

Assim e concretizando ainda a impugnação de direito, neste segmento, invocam ainda as apelantes o instituto do abuso de direito referindo que a sociedade insolvente “B..., Lda.”, de que eram sócias as aqui Recorrentes, era uma sociedade cujo objeto social incidia sobre a indústria de construção civil, na compra, venda e administração de prédios rústicos e urbanos e na aquisição para revenda de bens imóveis adquiridos para esse fim. Tratava-se, de uma empresa pequena e familiar, que se focava apenas na construção de edifícios direcionada para a classe média, na zona de Lisboa, e que tinha, como modus operandi, a aquisição de lotes de terreno, construção e a posterior venda, utilizando e (re)investindo o capital próprio da empresa, com recurso pontual a capital externo.

Mais referem que todo este contexto teve uma grande reviravolta, sendo que resulta do  ponto 19) dos factos provados, que a sociedade das AA. [foi] incentivada pela própria instituição bancária, aqui 1.ª Ré, através do então Diretor do balcão do ..., em Lisboa, para modificar o seu mercado alvo e investir, assim, na aquisição de dois lotes para construção de moradias de luxo independentes na Quinta ..., em ..., no Algarve, o que efetivamente veio a suceder no ano de 2007.

Mais referem que não podemos , pois, fechar os olhos e olvidar as diferenças notórias dos segmentos de mercado, ou seja, pese embora ambos se insiram dentro da vasta área da construção, a verdade é que visam mercados bastante distintos, com um tipo de edificação completamente diferente, de condições socioeconómicas díspares, de uma localização geográfica e de um público-alvo que as Autoras/Recorrentes não conheciam, não se sentiam confortáveis e em relação aos quais nunca tinham trabalhado.

Invocam que,  por ter sido incentivada pela 1.º Ré, na pessoa do Dr. DD, e devido à relação de confiança que mantinha com ela, em virtude de todos os anos em que foi sua cliente, é que a sociedade insolvente, da qual eram sócias as Autoras/Recorrentes, ingressou no referido negócio, que fugia, por completo, à sua habitual forma de atuação no mercado imobiliário. Inclusive, invocam que o próprio diretor do balcão da 1.ª Ré, no ..., deslocou-se, na sua viatura, com a Autora / Recorrente AA até ao Algarve, onde a apresentou aos vendedores do lote 17, em análise nos autos, e, bem assim, ao Dr. EE, atual locatário financeiro desse mesmo lote.

Referem que,  tudo isto sai da esfera de atuação comum de uma instituição bancária, que chega ao extremo de fazer uma viagem de longas horas com um cliente para lhe apresentar um negócio, para o qual aparenta e refere não ter qualquer interesse e que a o 1.ª Ré esteve sempre imiscuída no negócio, desde o início, apresentando as Autoras/Recorrentes aos vendedores, promovendo o financiamento e, a final, sendo-lhe adjudicado o imóvel em causa.

Mais referem que decorreu da prova que as Recorrentes tinham a convicção de que se trataria de um negócio de risco diminuto, com um ratio de rentabilidade ótimo, tendo-lhes sido assegurado pela 1.ª Ré que se trataria de um bom negócio, bastante vantajoso, por se inserir numa zona de luxo.

Concluem, assim as apelantes que se o 1º réu não tivesse incentivado as Autoras / Recorrentes para a aquisição do referido lote e assegurado que se tratava de um bom negócio, se não se tivesse, desde o primeiro momento, imiscuído na sua celebração, as Autoras, aqui Recorrentes, e bem assim a sociedade insolvente, não se teriam deparado com o infortúnio que as assolou após a celebração do negócio, do lote 17 na Quinta ..., aventurando-se num segmento de mercado, em relação ao qual não tinham experiência e com a qual entravam em contacto pela primeira vez.

Invocam ainda que, até então a sociedade insolvente sempre havia sido uma sociedade cumpridora e fiel aos seus compromissos e que tinha um vasto património.

Mais referem que, aquando da contratação deste avultado negócio bancário, foram, ainda, exigidas garantias pessoais das Autoras/Recorrentes, garantias estas prestadas em montante superior a €1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil euros), contratualizadas através de vários penhores de apólices e aplicações financeiras que as Autoras/Recorrentes detinham junto da 1.ª Ré. E que  as Autoras / Recorrentes tentaram, por todos os meios, proceder à venda, sem no entanto terem obtido êxito.

Alegam que concomitantemente, da mesma forma que insistiu e incentivou as Autoras / Recorrentes a proceder à aquisição do referido lote 17, na Quinta ..., no Algarve, a 1.ª Ré não tardou em vir cobrar a quantia mutuada, reclamando, relativamente este negócio, o valor total de €2.196.624,38 , razão pela qual a sociedade “B..., Lda.” se viu forçada a apresentar à insolvência em 29.10.2011 (cfr. ponto 7) dos factos provados), pois, pela primeira vez, desde a data da sua constituição, deparou-se com uma situação de incumprimento, com a qual não compactuava que tentou de todas as formas obviar.

Mais refere que no âmbito da insolvência, foram adjudicados à1.ª Ré vários bens imóveis e duas viaturas, no valor total de €1.635.004,91 (um milhão, seiscentos mil e trinta e cinco mil e quatro euros e noventa e um cêntimos), tendo sido adjudicada à 1.ª Ré a moradia de luxo construída no lote 17, na Quinta ..., pelo valor de € 1.281.900,00 (um milhão, duzentos e oitenta e um mil e novecentos euros). E que além da adjudicação do imóvel e dos valores percebidos pela 1.ª Ré com a rentabilização daquele negócio, ainda durante o processo de insolvência, foram parcialmente acionados pela 1.ª Ré e objeto de resgate os penhores constituídos para garantia das dívidas da sociedade insolvente ( foram executados vários penhores relativos a aplicações financeiras no valor total de € 1.029.480,45 (um milhão, vinte e nove mil, quatrocentos e oitenta euros e quarenta e cinco cêntimos), conforme referido emb.2. destas alegações de recurso. E que a  1.ª Ré recebeu, igualmente, em sede de liquidação, o valor total de €226.629,91.

Concluem, que se tratou de um negócio absolutamente ruinoso para a sociedade insolvente e para as aqui Recorrentes, que viram delapidado todo o seu património, quer da empresa, quer pessoal e que o 1 réu aproveitou-se da vulnerabilidade da sociedade insolvente e das Autoras / Recorrentes.

Concluem, que apesar da cessão de créditos que o crédito da 1.ª Ré já se encontrava integralmente satisfeito e, por essa razão, nada mais havia a reclamar ou a ceder a quem quer que fosse.

Porque, para além dos bens imóveis e das viaturas adjudicadas em sede de processo insolvência, da execução dos penhores das Autoras/Recorrentes e ainda do montante percebido em fase de liquidação, não se olvide que a moradia na Quinta ... foi adjudicada à 1.ª Ré por valor inferior ao seu valor real e em relação ao qual tem vindo a retirar vários lucros, em virtude da celebração do contrato de locação financeira.

Referem que o valor actual de uma moradia similar é de  um valor de mercado não inferior a €3.000.000,00 e que o mesmo foi  adjudicado à 1.ª Ré, pelo valor de €1.281.900,00, sendo que , aquando da concessão do empréstimo, foi mutuado pela 1.ª Ré, à sociedade insolvente, o montante de € 2.200.000,00 (dois milhões e duzentos mil euros), o que permite presumir que o avaliou, no mínimo, por esse valor.

Acresce que se se considerar provado que não obstante a existência da crise no mercado imobiliário, a verdade é que, no caso em concreto das moradias (de luxo) na Quinta ... – onde se localiza, como se disse, o lote 17 em discussão nos autos em análise– não houve uma redução significativa no valor / preço, porquanto tinham capacidade para aguentar o mercado, sendo, pois, uma situação excecional à que se verificava a nível nacional.

Consideram que , é o valor real de mercado que efetivamente passou a integrar a esfera patrimonial da 1.ª Ré com a adjudicação e não o valor de €1.281.900,00 (um milhão, duzentos e oitenta e um mil e novecentos euros) e é ao valor real que deve ser dada primazia pela materialidade subjacente na tutela judicial. E que se tem de ter em conta  a confiança criada pelos devedores, pela constituição da hipoteca sobre o imóvel., e nessa medida existiria abuso de direito.

Ao propor e adquirir o imóvel por um valor que sabe ser manifestamente inferior ao que lhe atribuíra previamente, a 1.ª Ré formatou, unilateralmente, e muito além do que são os limites da boa-fé e do fim social e económico do seu direito, aquele que havia de ser o quantitativo do remanescente da dívida, com base no qual continuou a consumir o património das Autoras / Recorrentes.

Aliás, acrescente-se que o contrato de locação financeira é anterior ao contrato de cessão de créditos à 2.ª Ré, pelo que, quando a 1.ª Ré cedeu os seus créditos, já havia retirado rendimentos do imóvel.

Por fim, referem que em relação  à condição de avalistas das aqui Recorrentes, entendemos, ademais, que se encontra igualmente preenchida a figura do abuso de direito, na modalidade de supressio porque o contrato de promoção imobiliária é de 17/3/2008, a sociedade foi declarada insolvente a 8/11/2011 e o réu cedeu créditos a 25/6/2021, e nessa medida , desde a data de incumprimento da sociedade insolvente e, bem assim, da sua declaração de insolvência, em 2011, decorreram longos anos, sem que a 1.ª Ré, alguma vez, tenha reclamado que quer que fosse às Autoras, aqui Recorrentes, enquanto avalistas.

Face a este comportamento de inação prolongada e ao decurso de um período de tempo significativo, tanto mais que o direito não foi exercido durante cerca de 10 anos, as Recorrentes criaram a convicção legítima e confiaram que não mais lhes viria a ser reclamado qualquer montante.


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Estamos perante uma acção de simples apreciação negativa, a qual não pressupõe qualquer lesão ou violação de um direito, sendo meios de tutela de direitos em que não é posta em causa a sua violação, quer efectiva, quer receada, sem prejuízo de o autor, ter de demonstrar  que tem um interesse em agir, isto é, que carece da obtenção da declaração judicial da existência ou inexistência do alegado direito. A classificação de uma acção como de simples apreciação positiva ou negativa depende do pedido, ou seja da providência requerida pelo autor; na acção de simples apreciação não se exige a prestação de uma coisa ou de um facto, não podendo a acção ser título executivo quanto ao objecto da acção.

Nos termos do artigo artigo 10º, nºs 2 e 3, al. a), do CPC, as acções declarativas de simples apreciação são aquelas em que o autor, reagindo contra uma situação de incerteza objectiva, visa «obter unicamente a declaração da existência (apreciação positiva) ou de inexistência (apreciação negativa) de um direito ou de um facto».

Nas acções de simples apreciação negativa, não cabe ao autor alegar e provar, pela negativa, que o direito ou facto não existe, competindo ao réu o ónus da prova da existência desse direito ou facto.

Desde logo quanto á decisão de mérito verifica-se que as apelantes partem do pressuposto da alteração da matéria de facto em vários pontos, o que não ocorreu, e nessa medida, nesse segmento é manifesto que improcede o recuso.

Nestes autos a causa de pedir não reside nos mútuos ou todas as dívidas da sociedade, mas reside apenas nas garantias prestadas pelas Autoras atinentes ao contrato referido nos autos (prestaram aval).

Verifica-se que nos autos a 2ª ré demonstrou que a dívida cuja declaração de inexistência as autoras peticionam, continua a existir, sendo que está demonstrado que o valor relativo ao incumprimento do contrato objecto nestes autos, foi fixado no valor de  2.196.624,38 Euros, e que deduziu a esse valor o montante pelo qual o imóvel foi adjudicado ao banco e o valor de 226.629,91 Euros recebido nos autos de insolvência.

O imóvel foi adjudicado ao réu banco pelo valor de 1.281.900,00 e nessa medida ficou em dívida o valor de 914.724,38 Euros decorrente da garantia prestada pelas autoras. Acresce que a este valor se tem ainda de subtrair o valor de 226.629,91 euros que o banco recebeu nos autos de insolvência quanto a garantia das autoras e que cedeu á re cessionária.

Todavia resulta que a sentença recorrida padece de um erro de cálculo no seguinte segmento: «Ora, conjugada toda a factualidade atrás não restam dúvidas que tendo sido reconhecido em sede de reclamação de créditos à 1ª R. o valor de €3.090.588,68, tendo sido pagos através de da adjudicação do prédio €1.281.900,00+€226.629,91 estará em dívida o valor de €1.582.058,77.».

Resulta que nos autos não está em causa o valor de 3.090.588,68 Euros, mas apenas o valor relativo ao contrato objecto dos autos (contrato nº ...75) e as garantias prestadas pelas autoras (e não todas as dívidas da sociedade), o valor desse incumprimento foi fixado em 2.196.624,38 Euros.

O imóvel foi adjudicado ao réu banco pelo valor de 1.281.900,00 e nessa medida ficou em dívida o valor de 914.724,38 Euros decorrente da garantia prestada pelas autoras. Acresce que a este valor se tem ainda de subtrair o valor de 226.629,91 euros que o banco recebeu nos autos de insolvência quanto a garantia das autoras e que cedeu á re cessionária – sendo que esse valor foi recebido pelo banco réu a 18-8-2021 conforme documento junto pelas autoras na petição inicial apos o doc.10.

Assim, estaria em dívida o valor de 688.094,47 Euros, acrescido dos juros decorrentes do contrato, tendo a 2 ré feito a sua contabilização á data da contestação no valor de 1.742.134,81 euros cfr. Documento junto pela 2 ré, referido como consulta garantia ...2), mas tendo indicado ter considerado ser no valor de 1.555.712,55 Euros.

Nestes autos as apelantes peticionam que seja declarada a inexistência da dívida no valor de €1.555.712,55  das autoras ao 1ª Réu (e por inerência á 2ª ré face à cessão de créditos).

Ficou provado que foi celebrado um Contrato de Promoção Imobiliária entre a empresa B... Lda. e o Banco 1..., S.A., em 14.03.2008, , tendo sido mutuado o valor de €2.200.000,00 (dois milhões e duzentos mil euros), tendo as suas sócias, ora Autoras prestado garantias do seu bom e pontual cumprimento. Por outro lado, resultou que quanto ao Contrato de empréstimo nº ...75, foi declarado o incumprimento no valor de €2.196.624,38 e em sede de liquidação, no processo de insolvência, foram adjudicados à 1ª Ré diversos imóveis, entre os quais, o imóvel que esteve na base do contrato de empréstimo, pelo valor de  €1.281,900,00.  E foi abatido ao valor em dívida o montante de 226.629,91 Euros.

Face á factualidade provada não se pode considerar extinto o crédito porque o 1º réu não recebeu na execução o valor integral do crédito, tendo recebido apenas o valor da adjudicação do prédio hipotecado, e o valor de 226.629,91 Euros, valor que é inferior ao crédito do réu.

A circunstância de o imóvel actualmente ter um valor superior no mercado (sendo de resto um valor estimativo), ou de ter sido celebrado um contrato de locação financeira apos a adjudicação do imóvel,  não permite considerar extinto o credito, dado que o valor da adjudicação do imóvel e o valor recebido em rateio acima referido é inferior ao credito.

Na ação executiva para pagamento de quantia certa, um credor (o exequente) pretende obter o cumprimento de uma obrigação pecuniária e se o bem adjudicado tiver valor inferior ao valor do crédito nos termos do artigo 799 do CPC o credor pode prosseguir a execução para cobrança do remanescente.

Pelo exposto, logrou a parte contrária demonstrar a existência da dívida por parte das autoras.


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Por outro lado, cumpre neste momento analisar o invocado quanto ao abuso do direito e violação da boa fé.

Há abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser o exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem (para maiores desenvolvimentos, vide Fernando Augusto Cunha e Sá, Abuso Do Direito, 1973, Lisboa, pág. 164 a 188 e Ac. S.T.J de 11/5/1995, Cj 1995, t. 3, pág. 100).

O Conselheiro Jacinto Bastos (notas ao Código Civil, v. 2, pág. 103) refere que esta fórmula abrange não só o exercício de um direito sem utilidade própria e só para prejudicar outrem, mas também o exercício de qualquer direito de forma anormal, quanto à sua intensidade de modo a comprometer o gozo dos direitos dos outros e a criar uma desproporção entre a utilidade do exercício do direito e as consequências que os outros têm de suportar.

Nos ternos do artigo 334 do CCivil, o  exercício de qualquer direito está sujeito a limites e restrições, sendo é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Na categoria do abuso do direito existe o  venire contra factum proprium, (a proibição do comportamento contraditório), a supressio (a neutralização de um direito que durante muito tempo se não exerceu, tendo-se criado, pela própria conduta, uma expetativa legítima de que não iria ser exercido, a surrectio, (o surgimento de um direito por força de um comportamento contraditório qualificado pelo decurso do tempo) e desequilíbrio objectivo no exercício, comportamento abusivo cujo desvalor se objectiva na desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem (vide A. Menezes Cordeiro, in Litigância de Má Fé Abuso do Direito de Acção e Culpa “In Agendo”, Almedina, 2006, a pág. 33 e 49).

No caso da supressio, não está só em causa sancionar apenas a inércia do titular do direito, mas o objectivo é o de proteger a confiança do terceiro de que ao fim de um dilatado lapso temporal, o direito já não será exercido. O tempo necessário para que a supressio opere dependerá muito das circunstâncias do caso concreto, analisando-se se o decurso do tempo contribuiu para a formação de um estado de confiança que gere admiração pela exigência do cumprimento de um dado direito.

Os requisitos desta figura são: - um não exercício prolongado do direito; - uma situação de confiança daí derivada para a contraparte,- uma justificação para essa confiança; - um investimento de confiança; e a  imputação ao não exercente da confiança criada (vide – Menezes Cordeiro, Do abuso do direito: estado das questões e perspetivas, R. O. A., setembro 2005, II, (in portal.oa.pt/publicacoes/revista-da-ordem-dos-advogados-roa/ano-2005/ano-65-vol-ii-set-2005/artigos-doutrinais/antonio-menezes-cordeiro-do-abuso-do-direito-estado-das-questoes-e-perspectivas-star/) -.

Neste sentido e para outros desenvolvimentos, vide o Ac da RC,  4472/18.9T8VIS-A.C1, Relator: SÍLVIA PIRES,  24-11-2020, disponível na base de dados da DGSI, « Sumário: O termo suppressio é a tradução latina proposta por Menezes Cordeiro, na sua tese de doutoramento “Da boa fé no direito civil”, da figura da Verwirkung do direito alemão, a qual conheceu as suas primeiras manifestações no último quartel do século XIX, ainda em tempos anteriores à entrada em vigor do B.G.B.

Com essa designação pretende-se abarcar as hipóteses em que, devido ao titular de um direito não o ter exercido durante um lapso de tempo significativo, as circunstâncias que rodearam essa inação criaram na contraparte a confiança que o mesmo já não viria a ser exercido, merecendo essa confiança a proteção da ordem jurídica através de um impedimento a esse exercício tardio ou da atribuição à contraparte de um direito subjetivo obstaculizador (a surrectio, como tradução latina da Erwirkung alemã, e que constitui com a suppressio as duas faces da mesma moeda).

Fruto da teorização desta figura no direito português, introduzida por Menezes Cordeiro, a mesma tem vindo a ser objeto de profusa equação nos tribunais desde os últimos anos do século XX, invocando as mais diversas decisões que ponderaram a sua aplicação, em diferentes situações, o instituto do abuso de direito, consagrado no art.º 334º do C. Civil.

É opinião corrente entre nós que a suppressio abrange situações próximas ou que constituem uma modalidade da figura do venire contra factum proprio, em que o exercício de um direito se revela contraditório com um anterior comportamento de inação prolongada, que, atentas as circunstâncias que caracterizam o caso concreto, induzem o sujeito obrigado por esse direito a, legitimamente, confiar que o mesmo já não será exercido, pelo que a sua ativação ofende os ditames da boa fé.

Costumam ser enunciados como requisitos de aplicação desta figura: – um não exercício prolongado do direito; – uma situação de confiança daí derivada para a contraparte, coadjuvada por elementos circundantes que a sustentem; – uma justificação para essa confiança; – um investimento de confiança; – a imputação ao não exercente da confiança criada.

Note-se que estes pressupostos não são necessariamente cumulativos, processando-se a sua articulação dentro dos mecanismos de uma sistemática móvel, ou seja, a falta de algum ou alguns deles pode ser suprida pela especial intensidade que assumam os restantes.

Relativamente à prescrição dos direitos, a suppressio, tendo em comum o pressuposto da inércia do titular do direito durante um significativo período de tempo, afasta-se destas figuras ao depender da existência de um concreto investimento de confiança por parte do devedor para operar.».

Nestes autos as apelantes peticionam que seja declarada a inexistência da dívida no valor de €1.555.712,55  das autoras ao 1ª Réu (e por inerência á 2ª ré face à cessão de créditos), e invocam a existência do abuso do direito na modalidade da supressio, sendo que todavia, afigura-se-nos que não existiu nenhum abuso de direito por parte do réu no decurso do tempo que existiu para demandar as autoras porque resulta demonstrado que o réu procurou exercer os seus direitos de crédito (abrangendo o contrato garantido perlas autoras) num primeiro momento contra a sociedade declarada insolvente e só após o encerramento dos autos de insolvência é permanecendo em dívida o valor referido é que veio procurar reaver esse valor remanescente relativamente ás autoras na qualidade de garantes(avalistas.

É manifesto que não existe nenhum abuso de direito ou violação do principio da boa fé ou dos bons costumes porque o regime do processo executivo tutela o direito do credor de ser integralmente pago quanto ao seu crédito.

Por outro lado, o lapso temporal que decorreu quanto á exigência do pagamento ás autoras igualmente não preenche o instituto do abuso do direito, dado que por um lado esteve pendente o processo de insolvência e a liquidação, sendo que o mero decurso do tempo não permite as apelantes considerarem que não iriam ser demandadas, dado que o credor tem liberdade em demandar as autoras como garantes (tendo apenas exercido os seus direitos contra as mesmas após o encerramento dos autos de insolvência).

Consideramos que não existe nenhum abuso do direito por parte daas rés, dado que as mesmas se limitaram a demandar as autoras para serem ressarcidas da totalidade do seu crédito, após o encerramento dos autos de insolvência, uma vez que a adjudicação do bem e o valor recebido no rateio, não permitiu a extinção do crédito.

Neste sentido e para outros desenvolvimentos, vide o Ac do STJ, Processo:

7268/18.4T8LSB-A.L1.S1, Relator: FERNANDO SAMÕES, 20-04-2021, Sumário :

I. O abuso de direito, na modalilidade de suppressio, tutela a confiança do beneficiário, perante a inacção do titular do direito, devendo, para ser relevante, verificar-se um não exercício prolongado, uma situação de confiança, uma justificação para essa confiança, um investimento de confiança e a imputação da confiança ao não-exercente.

II. O mero decurso do tempo, sem que tenha sido exigido o pagamento da dívida por parte do credor, não é suscetível de criar no devedor a confiança de que não lhe vai mais ser exigido o cumprimento da obrigação que sobre ele impende.

III. Não abusa do direito a credora que instaura uma execução com base em livranças, assinadas pela subscritora e pelo avalista, que lhe foram entregues aquando da celebração de contratos de garantia bancária e que preencheu de acordo com esses contratos, apondo-lhes data de vencimento cerca de 8 anos após poder exigir o cumprimento da obrigação subjacente aos devedores.

E o Ac do STJ, 17431/19.5T8LSB.L1.S1 Relator: JORGE DIAS, 04-11-2021, disponível na base de Dados da DGSI: Sumário : I - O princípio da boa-fé exprime a relevância que a ordem jurídica confere às considerações éticas e diretrizes morais presentes numa sociedade, sendo transversal a todas as áreas do Direito, revela-se essencialmente no âmbito dos contratos.

II - Menezes Cordeiro in https://portal.oa.pt, Revista Ano 2005, vol. II, Set. 2005, define “Abuso do direito” como uma mera designação tradicional, para o que se poderia dizer “exercício disfuncional de posições jurídicas”.

III - Referindo, também, que a aplicação do abuso do direito depende de terem sido alegados e provados os competentes pressupostos — salva a hipótese de se tratar de posições indisponíveis.

IV - O abuso de direito, na modalidade “suppressio”, exige não só o decurso de um período de tempo razoável sem exercício do direito, mas também a verificação de indícios objetivos de que esse direito não irá ser exercido. Indícios objetivos esses que geram na contraparte (beneficiário do não exercício) a confiança na “inação do agente”.

V - Não se apurando o modo como o(s) pagamento(s) dos serviços prestados seria efetuado, não se pode concluir que há abuso de direito ao ser intentada ação de honorários após a conclusão dos serviços ou terminus da relação contratual, mesmo que decorrido período temporal razoável.

VI - Dos factos provados nada permitia às rés concluir que, por parte do autor, “não mais haveria exercício” do direito a receber honorários, pelo que é exercício legítimo de um direito o autor vir exigir o pagamento de honorários pelos serviços que prestou.

VII - Tendo alegado as rés na contestação que já pagaram, resulta o contrário da formação da confiança de que nada lhes seria pedido a título de honorários por aqueles serviços prestados.

Assim, e nessa medida e quanto á fundamentação jurídica, conclui-se que o presente recurso de apelação terá, por conseguinte, de improceder.


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V- DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a cargo das apelantes (art. 527º, nºs 1 e 2).

 


Porto, 8/2/2024.
Ana Vieira
Isabel Silva
António Paulo Vasconcelos
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[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.