Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3300/16.4T8LOU-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO COMUM
OPERAÇÕES DE CRÉDITO
JUROS DE MORA
REGIME LEGAL
REGIME APLICÁVEL
FIANÇA
Nº do Documento: RP201907103300/16.4T8LOU-A.P1
Data do Acordão: 07/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 179, FLS 256-265)
Área Temática: .
Sumário: I - A força probatória plena não é força probatória indestrutível, podendo ser contrariada por meio de prova que mostre que o facto não é verdadeiro ou que o documento dotado de força probatória plena é falso.
II - O Decreto-Lei n.º 58/2013, de 8 de Maio, contem um regime legal imperativo sobre os juros de mora nas operações de crédito que substituiu ope legis as cláusulas dos contratos anteriormente celebrados sobre tal matéria.
III - A mora do credor só existe se lhe ocorre se ele tiver recusado sem motivo justificado a oferta da prestação que era devida.
IV - Tendo renunciado ao benefício da excussão prévia, os fiadores tornam-se devedores solidários pelo que a exigência da totalidade da dívida por parte do credor não constitui um abuso do direito ainda que o credor não haja instaurado antecipadamente execução hipotecária contra o afiançado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2019:3300.16.4T8LOU.A.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
Por apenso à acção executiva para pagamento de quantia certa que a B…, S.A. move contra eles e outros, vieram os executados C… e D…, deduzir oposição mediante embargos de executado que terminam pedindo que seja declarada a nulidade da clausula 6ª do documento complementar, considerado que a quantia exequenda é ilíquida e há abuso de direito no comportamento da exequente para com os fiadores aqui oponentes, absolvendo-se estes ainda que parcialmente.
Alegaram para o efeito que durante vários anos as prestações do empréstimo foram sendo pagas pelo devedor principal de que são fiadores, ignorando os embargante os valores que estão em dívida e se o imóvel hipotecado é suficiente para liquidar o empréstimo; que é ilegítimo por abuso do direito o comportamento do exequente de reclamar juros de mora quando após o incumprimento, logo seguido de subsequentes incumprimentos, nada fez para cobrar o crédito e deixou crescer o montante em dívida; que a exequente incorreu em mora, uma vez que não forneceu aos executados informação detalhada do valor em dívida, nem adoptou qualquer conduta para ser rapidamente ressarcida do seu crédito instaurando a execução e evitando a desvalorização do imóvel, apesar das solicitações nesse sentido dos embargantes; que a exequente concedeu crédito ao executado principal em condições desadequadas face à débil situação financeira do mesmo, mutuando-lhe muito mais do que a sua capacidade e taxa de esforço lhe permitiam; que a exequente não explicou aos fiadores os documentos complementares às escrituras de mútuo, os quais contêm cláusulas pré-elaboradas pela exequente e inalteráveis; que a cláusula ínsita no artigo 6º do documento complementar é proibida/nula por violação da boa fé e da proporcionalidade; que apesar dos pedidos dos embargantes a exequente demorou três anos a instaurar a execução, assim contribuindo para o agravamento da posição dos fiadores/embargantes.
A exequente contestou os embargos, relatando a forma como foram celebrados os contratos de mútuo e prestadas as fianças e impugnando os factos alegados pelos embargantes, sustentando que prestou as informações devidas e actuou de boa fé.
Após julgamento, foi proferida sentença, julgando os embargos improcedentes e determinando o prosseguimento da execução.
Do assim decidido, os embargantes interpuseram recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
I. O Juiz do Tribunal a quo na sua fundamentação de direito desconsiderou completamente a alegada falta de explicação do conteúdo do anexo aos intervenientes, mais referindo que foi por estes dispensada a sua leitura, alicerceando a sua decisão e convicção apenas e só o constante na escritura, ou seja, o documento constante nos autos.
II. Não resultou de qualquer prova efectuada em audiência de julgamento que permitisse ao Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo decidir da forma como decidiu. Aliás,
III. Como resulta da motivação constante na sentença de que se recorre, o subgerente da B… que alega ter estado presente na escritura pública, referiu que a dispensa de leitura do anexo ao contrato de mútuo é uma “prática habitual“ nas escrituras dos contratos de crédito bancário.
IV. Sendo esta a prática habitual, conforme foi referido, ou seja o modus operandi das escrituras de crédito mutuo, o que se esperava do Tribunal a quo é que fosse tomado em consideração esta alegação dos embargantes, por provada, retirando daí as consequências jurídicas necessárias de forma que, com justiça, a sentença viesse a revelar uma decisão diferente daquela que obteve.
V. Discordam ainda os embargantes da fundamentação referida pelo Tribunal a quo quando se refere que a documentação esteve na posse dos embargantes, podendo pedir esclarecimentos, se dúvidas tivessem, porém, em rigor, todos estes documentos foram apresentados aos apelantes apenas e só no ato da escritura pública, não tendo aí tempo para a sua leitura, não lhe tendo sido explicado devidamente o seu conteúdo, e muito menos, as implicações que esse documento poderia implicar nas suas esferas jurídicas.
VI. Quanto a este ponto andou mal o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, devendo, ao invés, ter reflectido na sentença, de forma clara e objectiva, o prejuízo causado aos embargantes pelo facto de desconhecerem por completo o constante do ponto 6. do documento anexo, e,
VII. Por conseguinte, quanto a este aspecto resultar a procedência da oposição deduzida.
VIII. A embargada demorou cerca de 3 anos e meio, após o alegado incumprimento do devedor principal, para interpor a presente execução, o que, no caso dos presentes autos configura uma efectiva mora do credor.
IX. A comunicação de incumprimento ocorreu por parte da embargada aos embargantes, quando já 5 prestações se encontravam vencidas e não pagas.
X. Os apelantes reagiram de imediato, endereçando missiva à exequente, a 17 de Junho de 2013, requerendo que fosse dado início de imediato ao processo de execução, para que fosse de forma célere promovida a venda do imóvel que, ao tempo, até poderia ser suficiente para o cumprimento da obrigação.
XI. Na douta sentença de que se recorre, este facto teve acolhimento, conforme melhor se verifica no n.º 5 dos factos provados.
XII. No dia 17 de Junho de 2013, os Apelantes ofereceram ao credor, nos termos legais, a prestação em dívida (que só poderia ser liquidada após o apuramento do resultado da venda do imóvel), mas o credor, sem motivo justificado, não aceitou o cumprimento da obrigação – Art.º 813.º do C. Civil.
XIII. Estranhamente, o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo até transcreve o supra referenciado preceito e ilustra com uma citação doutrinal: “A mora dá-se quando não presta a cooperação necessária ao cumprimento, mantendo atitude de abstenção (P. Jorge, Ensaio, 115)”.
XIV. O que não faz sentido, e aí andou muito mal o Decisor, ao retirar uma conclusão despropositada e inversa ao requerido pelos embargantes, aqui apelantes, quando expressa “A embargada não criou obstáculo, o modo de cessar a mora existente seria a de proceder ao respectivo pagamento.”
XV. Não faz sentido esta conclusão, quando na mesma sentença o Meritíssimo Juiz deixa claro que o pagamento extingue a obrigação, pelo cumprimento, quando a mora do credor, no caso em apreço, surge pela abstenção em agir, pela omissão, sem que para tal tenha existido motivo justificado.
XVI. Ao credor foi requerida pelos devedores, aqui apelantes, acção imediata a 17 de Junho de 2013 tendo como motivação tanto a sua boa-fé como a sua boa-vontade em resolver a situação de incumprimento, ou seja, oferecer ao credor uma forma eficaz de sanar a situação de incumprimento existente.
XVII. O credor não agiu.
XVIII. Os embargantes responderam sempre, que lhe eram enviadas notificações pela embargada, reiterando o pedido da entrada da acção executiva em juízo.
XIX. Só em agosto de 2016, a embargada move a execução contra os executados embargantes, aqui apelantes, que com uma espera temporal enorme, mostrou-se absolutamente desnecessária e prejudicial para os embargantes.
XX. A embargada bem podia ter evitado que todos estes anos se passassem, sem que a acção executiva fosse movida, e consequentemente, ter evitado que se acumulassem juros absolutamente desnecessários, tendo em consideração os insistentes apelos para o credor agir, deixando assim claro a inacção do credor, sem motivo justificado.
XXI. Assim, há uma efectiva mora do credor.
XXII. A mora por inacção no accionamento executivo e consequente atraso na resolução do litígio em causa, foi provocada apenas e só pela inércia da embargada, que nada fez tendo em conta as comunicações que lhe foram feitas de forma sucessiva nada mais podendo os embargantes/apelantes fazer para evitar encargos de juros contabilizados na acção, que oneram, e muito os apelantes, cuja responsabilidade, deve recair sobre o credor, por inacção.
XXIII. A postura adoptada pela embargada, prejudicou economicamente, o património dos aqui apelantes, que tudo fizeram para impedir esta situação.
XXIV. A embargada agiu, apenas quando melhor lhe conveio, sem olhar ao facto de estar a agravar a situação da contraparte e fazendo-o sobretudo de uma forma consciente e voluntária, porque reiteradamente proposta a solução para o cumprimento pelos Apelantes, sempre se alheou.
XXV. Não compreendem os embargantes, a decisão tomada pelo Tribunal a quo constante na douta sentença, deixando a noção de que ou o Meritíssimo Juiz se equivocou na decisão quanto ao mérito deste ponto, ou não se terá apercebido das provas que acabam por dar corpo à sua fundamentação de direito.
Termos em que se deve dar total provimento ao presente recurso e às suas conclusões, revogando-se a douta decisão de que se recorre substituindo-a por outra que, reapreciando toda a alegação aqui trazida, decida de forma diversa por provada, e que julgue totalmente improcedente a acção com base na falta de informação devida. Caso assim se não entenda, deve ser concedido provimento parcial ao presente recurso, no que se reporta à mora do credor, absolvendo os recorrentes em parte do pedido, tudo com as necessárias consequências legais e como é de inteira e sã justiça!
O recorrido respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i) Se deve ser alterada a decisão de julgar provado o ponto 6 da matéria de facto;
ii) Se a cláusula 6.ª do contrato é inválida e isso repercute-se no crédito do exequente;
iii) Se houve mora do credor e qual a respectiva consequência;
iv) Se o exequente actua em abuso do direito.

III. Os factos:
Na decisão recorrida foram julgados provados os seguintes factos:
1- Em 30.11.2010, a exequente, no exercício da sua actividade creditícia, concedeu ao executado E… dois empréstimos, nos montantes de 60.000,00€ e 20.000,00€, de que ele se confessou devedor, que se encontram juntos nos autos principais a fls. 5 a 23, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
2- Essas importâncias foram entregues ao referido executado, que as recebeu e se obrigou a restituir à exequente no prazo de 45 anos, em 540 prestações mensais de capitais e juros, vencendo-se as primeiras no dia 30.12.2010 e as restantes em igual dia dos meses subsequentes.
3- Em garantia do pagamento dos capitais mutuados, dos juros respectivos e das despesas, o referido executado constituiu hipotecas a favor da exequente sobre o imóvel indicado à penhora.
4- Os executados/embargante C… e D… responsabilizaram-se solidariamente como fiadores e principais pagadores por tudo quanto seja devido à exequente em consequência dos aludidos empréstimos, tendo dado o seu acordo a quaisquer modificações de taxa de juro, prazo ou moratórias e renunciaram expressamente ao benefício da excussão prévia.
5- Por missiva datada de 17 de Junho de 2013, foi comunicada à exequente pelos embargantes que era vontade dos fiadores que fosse dado início, de imediato, ao processo de execução, assumindo que não vão proceder ao pagamento de quaisquer prestações vincendas ou vencidas, se alguma houver.
6- O contrato de mútuo e respectivos anexos, antes de serem assinados, foram entregues aos intervenientes perante uma notária. Dos contratos de mútuo é mencionado que o título foi lido e o seu conteúdo explicado aos intervenientes. A leitura do anexo cujo conteúdo foi explicado aos intervenientes, foi por estes dispensada.
7- Consta a fls. 55 v., cujo teor se dá por integralmente reproduzido, uma declaração – compromisso por partes dos embargantes como fiadores.

IV. O mérito do recurso:
B] da decisão sobre a matéria de facto.
O recorrente começa as suas alegações mostrando não concordar com a decisão do tribunal de julgar provado o facto do ponto 6 da matéria de facto.
Segundo o recorrente, o tribunal decidiu assim formando a sua convicção apenas com base no «constante na escritura», não foi produzida «qualquer prova … que permitisse ao juiz … decidir da forma como decidiu» e o representante do banco mutuário que esteve presente na escritura afirmou mesmo que «a dispensa de leitura do anexo ao contrato de mútuo é uma “prática habitual“ nas escrituras dos contratos de crédito bancário».
Deve começar por se assinalar que o recorrente querendo impugnar a decisão sobre a matéria de facto tem de cumprir os requisitos do artigo 640.º do Código de Processo Civil entre os quais se contam a indicação concreta da decisão que o recorrente entende que deve ser proferida sobre os pontos objecto da impugnação e, baseando-se o recurso em prova gravada, a indicação das passagens da gravação onde se encontra registado o conteúdo dos depoimentos que invoca para defender a modificação da decisão.
Estes requisitos não se mostram cumpridos no caso, nem no corpo das alegações nem nas respectivas conclusões, pelo que nesta parte o recurso podia sem mais ser rejeitado.
Como quer que seja, a improcedência desta questão suscitada no recurso justifica-se com facilidade.
O ponto 6 da matéria de facto revela que «o contrato de mútuo e respectivos anexos, antes de serem assinados, foram entregues aos intervenientes perante uma notária. Dos contratos de mútuo é mencionado que o título foi lido e o seu conteúdo explicado aos intervenientes. A leitura do anexo cujo conteúdo foi explicado aos intervenientes, foi por estes dispensada».
O Mmo. Juiz a quo motivou a sua convicção sobre esta matéria dizendo que «a factualidade vertida em 1. a 6. resultou da análise da documentação junta aos autos, de fls. 5 a 23 e de fls. 55 v. Cumpre salientar que F… - sub gerente da B… – referiu que esteve presente na escritura pública referindo que é prática habitual o constante no ponto 6».
De facto, encontra-se junta aos autos o título dos contratos de compra e venda e de mútuo elaborado por Notária. Neste título consta a dado trecho que «o empréstimo rege-se pela indicada legislação, bem como pelos termos, cláusulas e condições constantes do documento complementar que constitui o anexo que integra o presente título e cujo teor as partes conhecem e aceitam expressamente». Mais abaixo consta o seguinte: «O título foi lido e o seu conteúdo explicado aos intervenientes. A leitura do anexo cujo conteúdo foi explicado aos intervenientes, foi por estes dispensada» (sublinhados nossos).
Os títulos contratuais lavrados por Notário são documentos autênticos (cf. artigo 369.º). Nos termos do artigo 371.º do Código Civil, os documentos autênticos cuja falsidade não tenha sido arguida e demonstrada (cf. artigo 372.º), como aqui não sucedeu, fazem prova plena dos factos que referem como praticados pelo notário e dos que nelas são atestados com base nas percepções deste, ou seja, fazem prova plena de que o notário fez o que afirmou ter feito e os outorgantes da escritura fizeram as declarações que o notário ouviu e registou no título.
A força probatória plena não é força probatória invencível ou indestrutível. Nos termos do artigo 347.º do Código Civil, a prova legal plena pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto, sem prejuízo de outras restrições especialmente previstas. Por outras palavras, não obstante um facto estar afirmado num documento que constitui prova legal plena, o interessado pode provar que o facto não é afinal verdadeiro.
O interessado pode assim invocar a falsidade do documento autêntico, conforme previsto no artigo 372.º do Código Civil, ou tentar demonstração a inveracidade do facto conforme previsto no artigo 347.º do mesmo diploma, sendo que para este efeito se defronta com limitações quanto ao tipo de meio de prova que pode usar para esse efeito, estando-lhe nomeadamente vedado o uso da prova testemunhal (cf. artigo 393.º).
Nestes termos, o documento autêntico junto aos autos faz prova plena daquilo que o Notário diz ter praticado, isto é, que leu o título e explicou o seu conteúdo aos intervenientes e que em relação ao anexo – anexo que as partes declararam conhecer e aceitar – foi explicado o seu conteúdo aos intervenientes e que estes dispensaram a sua leitura.
Estipula o artigo 4º, nº 1, do Código do Notariado que «compete, em geral, ao notário redigir o instrumento público conforme a vontade das partes, a qual deve indagar, interpretar e adequar ao ordenamento jurídico, esclarecendo-as do seu valor e alcance».
A alínea l) do n.º 1 do artigo 46º do mesmo código, sobre as formalidades comuns dos instrumentos notariais, estipula que o instrumento notarial deve conter «a menção de haver sido feita a leitura do instrumento lavrado, ou de ter sido dispensada a leitura pelos intervenientes, bem como a menção da explicação do seu conteúdo». Acrescenta o artigo 50º do mesmo diploma que a leitura «pode ser dispensada se todos os intervenientes declararem que a dispensam, por já o terem lido ou por conhecerem o seu conteúdo, e se o notário não vir inconveniente» (nº 2) e que «a explicação do conteúdo dos instrumentos e das suas consequências legais é feita pelo notário, antes da assinatura, em forma resumida, mas de modo que os outorgantes fiquem a conhecer, com precisão, o significado e os efeitos do acto». (nº 3).
Por fim, refira-se que nos termos dos n.ºs 2 a 4 do artigo 64.º do mesmo diploma, relativo aos documentos complementares, «as cláusulas contratuais dos actos em que sejam interessadas as instituições de crédito ou em que a extensão do clausulado o justifique podem ser lavrados em documento separado», os quais «devem ser lidos juntamente com o instrumento e rubricados e assinados pelos outorgantes a quem directamente respeitem», podendo «a leitura» desses documentos ser «dispensada se os outorgantes declararem que já os leram ou que conhecem perfeitamente o seu conteúdo, o que deve ser consignado no texto do instrumento».
Conforme já foi referido, os recorrentes não arguiram a falsidade deste documento. E também não produziram qualquer meio de prova válido que pudesse ser aceite para demonstrar que o facto em questão – que o teor do anexo não foi explicado – não era afinal verdadeiro. Aliás, o depoimento – prova testemunhal que lhe estava vedado produzir para esse efeito – que invocam para sustentar o contrário não permite sequer a ilação que pretendem porque o que está em causa não é a leitura do anexo, é a explicação do respectivo teor – para o declaratário conhecer e compreender as respectivas disposições – e a pessoa em causa o que afirmou foi que não é costume ler o anexo, circunstância que ao invés de contrariar o título o confirma expressamente.
É assim manifesto que ao reproduzir o que consta do título dos contratos celebrado por Notário o ponto 6 da matéria de facto só pode mesmo ser confirmado.

C] da matéria de direito:
A primeira questão que o recorrente suscita encontra-se implícita na impugnação da decisão sobre o ponto 6 da matéria de facto e consiste na invalidade da cláusula 6ª do documento anexo ao título, relativa à taxa de juros moratórios devida em caso de incumprimento do contrato de mútuo, por alegadamente a mesma não ter sido explicada aos embargantes e tal constituir uma violação do disposto no regime das cláusulas contratuais gerais do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25-10.
Tendo-se mantido a redacção daquele ponto da matéria de facto a questão encontra-se naturalmente prejudicada na medida em que o mesmo revela que o teor do anexo foi explicado aos intervenientes, entre os quais se contavam os fiadores ora embargantes e recorrentes.
Como quer que seja, a verdade é que a questão era totalmente irrelevante do ponto de vista jurídico.
Conforme logo assinalou a exequente na sua contestação, a cláusula 6ª do referido anexo foi inutilizada pelo disposto no Decreto-Lei n.º 58/2013, de 8 de Maio, que estabeleceu as normas aplicáveis à classificação e contagem do prazo das operações de crédito, aos juros remuneratórios, à capitalização de juros e à mora do devedor.
Da exposição de motivos deste diploma consta o seguinte: «no que se refere à penalização aplicável em caso de mora, considera-se necessário simplificar o regime previsto no Decreto-Lei n.º 344/78, de 17 de Novembro, alterado pelos Decretos-Leis n.os 429/79, de 25 de Outubro, 83/86, de 6 de Maio, e 204/87, de 16 de maio, ao abrigo do qual era permitida a aplicação de juros moratórios ou, por convenção das partes, de uma cláusula penal, que apenas diferiam entre si na sobretaxa aplicável. Assim, consagra-se um regime uniforme, mais claro e transparente, sendo apenas aplicáveis, em caso de mora do cliente bancário, juros moratórios. Afasta-se, dessa forma, a fixação de cláusulas penais moratórias, o que não invalida, naturalmente, que as partes possam, nos termos gerais de direito, convencionar entre si a existência de cláusulas penais indemnizatórias, aplicáveis pelo incumprimento definitivo do contrato. Em contrapartida, são revistos os limites máximos aplicáveis à sobretaxa de juros moratórios, clarificando-se também que a taxa de juro de base à qual acresce a sobretaxa de juros moratórios corresponde à taxa de juros remuneratórios contratualmente fixada».
Em conformidade com este desígnio, o artigo 8.º do diploma dispõe o seguinte sobre a mora:
«1- Em caso de mora do devedor e enquanto a mesma se mantiver, as instituições podem cobrar juros moratórios, mediante a aplicação de uma sobretaxa anual máxima de 3%, a acrescer à taxa de juros remuneratórios aplicável à operação, considerando-se, na parte em que a exceda, reduzida a esse limite máximo.
2- A taxa de juros moratórios a que se refere o número anterior incide sobre o capital vencido e não pago, podendo incluir-se neste os juros remuneratórios capitalizados, nos termos do artigo anterior.»
Este preceito do diploma entrou em vigor em 24 de Agosto de 2013, e, nos termos do n.º 2 do artigo 13.º aplica-se «às situações de mora relativas a contratos de crédito em curso e que se verifiquem após a entrada em vigor das referidas normas, ainda que, nesses contratos, tenha sido estipulada cláusula penal moratória».
Estamos assim perante um regime legal imperativo que nos contratos de crédito anteriormente celebrados veio substituir ex lege as cláusulas contratuais relativas ao regime da mora e dos juros moratórios.
Ora, no caso em apreço, a exequente reclamou no requerimento executivo o pagamento de juros moratórios «às taxas contratuais de, respectivamente, 2,570% e 3,570%, ao ano, acrescidas da sobretaxa de 3% a titulo de cláusula penal de harmonia com o artigo 8º do DL 58/2013, de 8 de Maio». Aplicou, portanto, o regime legal imperativo citado, razão pela qual, independentemente da validade da cláusula do contrato, uma vez que sempre seria este o regime aplicável, a defesa do embargante é juridicamente indiferente ou irrelevante.
Defendem a seguir os embargantes que no caso houve mora da própria credora uma vez que quando souberam que já havia cinco prestações por pagar instaram a exequente a iniciar, de imediato, a execução do imóvel hipotecado pelo devedor, que, ao tempo, até poderia ser suficiente para o cumprimento da obrigação, e a credora não o fez permitindo o avolumar do incumprimento e dos juros moratórios.
É manifesta a improcedência desta argumentação.
Os embargantes confundem o cumprimento da obrigação que pressupõe uma actuação livre e voluntária do devedor e consiste na execução da prestação a que o devedor se encontra vinculado (artigo 762.º do Código Civil) e a execução coerciva da prestação que pressupõe a inacção do devedor e a sua substituição pela força pública para impor um determinado resultado e consiste na execução do património do devedor para se obter um produto que possa ser afecto ao cumprimento da prestação devida e (artigo 817.º do Código Civil).
Em resultado da celebração de um contrato de mútuo, o mutuário obriga-se a pagar ao mutuante determinadas quantias pecuniários destinadas ao reembolso do capital mutuado e ao pagamento dos juros remuneratórios contratuais. O seu dever de prestação consiste nesses pagamentos, pelo que existirá cumprimento da obrigação se e quando ele realizar os pagamentos estipulados no contrato, sendo certo que para o efeito se invocam as regras da pontualidade (o devedor deve realizar precisamente aquilo que se obrigou), da integralidade (a prestação deve ser efectuada por inteiro) e da boa fé. É o que refere o artigo 762.º do Código Civil: o devedor cumpre a prestação quando realiza a prestação a que está vinculado.
O fiador do mutuário garante a satisfação do direito de crédito do mutuante (artigo 627.º do Código Civil). A sua obrigação tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou da culpa do devedor (artigo 634.º do Código Civil).
O fiador responde pessoalmente pela dívida do devedor principal, mas a obrigação do fiador é distinta da obrigação do devedor principal: a obrigação deste é a de realizar uma certa prestação, a do fiador é a assegurar que a obrigação principal seja cumprida. No fundo, o fiador promete ao credor o resultado de que a obrigação principal será cumprida, cumprindo, ao mesmo tempo, a sua própria obrigação. O fiador não promete pagar se o devedor principal não o fizer ou pagar pelo devedor principal. O fiador paga a sua própria dívida, ainda que dessa forma, ao fazê-lo, pague também a do devedor.
Por conseguinte, o dever de prestação do afiançado consiste em pagar as prestações estipuladas no contrato de mútuo. Esse dever não se encontra dependente da prévia execução coerciva do imóvel hipotecado porque os fiadores renunciaram ao benefício da excussão prévia e se assumiram como principais pagadores (artigo 640.º do Código Civil).
Perante o incumprimento da parte contrária no contrato, o credor pode lançar mão dos mecanismos legais para a realização coactiva da prestação, designadamente a execução do património do devedor. Mas isso é somente uma faculdade que o regime legal vigente lhe atribui atenta a sua qualidade de titular de um direito jurídico obrigacional. Não se trata nem de uma obrigação, nem de um dever jurídico cuja não actuação elimine os efeitos do incumprimento do devedor. O credor pode optar perfeitamente por não instaurar a execução, correndo o risco do agravamento da dívida e do eventual desaparecimento do património que permita obter a realização coactiva da prestação. O limite à sua actuação é, como nas demais situações, a boa fé.
A mora do credor só existe quando este, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação (artigo 813.º do Código Civil). A mora do credor pressupõe, portanto, uma de duas situações. O devedor oferece a prestação devida (não outra, não o seu sucedâneo, não algo diferente) e o credor recusa-a sem ter motivo que o justifique; para o devedor poder realizar a prestação devida é necessária a colaboração do credor e este recusa-a sem motivo justificativo. Num contrato de mútuo, em que o dever de prestação consiste no pagamento das prestações estipuladas, em princípio, o devedor não necessita de qualquer colaboração do credor já que lhe basta saber qual é a conta onde deve depositar os fundos destinados ao pagamento das prestações e isso foi-lhe indicado logo na celebração do contrato (se liquidou outras prestações, sabe como fazê-lo).
Ora, no caso, ao contrário do que sustentam, os embargantes fiadores não ofereceram o cumprimento da prestação. A oferta do cumprimento da prestação pressupunha que os embargantes tivessem ofertado ao credor a entrega da quantia correspondente às prestações vencidas e não pagas pelo devedor. Não foi isso que eles fizeram, eles apenas convidaram o credor a instaurar uma execução contra o devedor principal para obter o produto da venda do imóvel hipotecado. Aliás, nessa comunicação, declararam mesmo que não iriam proceder ao pagamento de quaisquer prestações vincendas ou vencidas, o que é precisamente uma recusa de cumprimento, não uma oferta de cumprimento. Por conseguinte, é manifesto que a não instauração imediata da execução contra o mutuário e/ou os respectivos fiadores não constituiu o credor em mora, improcedendo esta questão do recurso.
Por fim, os embargantes sustentam que a atitude do exequente de após o início do incumprimento demorar cerca de 4 anos a instaurar a execução, apesar dos pedidos dos fiadores para que o fizesse, constitui um abuso do direito já que determinou enorme prejuízo para os fiadores que a exequente podia ter evitado.
Ao sustentarem esta posição, os embargantes fazem por esquecer duas circunstâncias absolutamente determinantes.
A primeira é a de que renunciaram ao benefício da excussão prévia e assumiram a obrigação de principais pagadores. Esta renúncia ao benefício da excussão prévia implica a derrogação da regra da subsidiariedade da fiança e, nessa medida, a assunção da qualidade de devedor solidário.
Com efeito, normalmente a fiança é uma garantia pessoal com a característica da subsidiariedade. A subsidiariedade consiste na possibilidade de o fiador invocar o benefício da excussão, previsto no artigo 638° do Código Civil, obrigando o credor a executar previamente o património do devedor e só no caso de por essa via não ter conseguido a satisfação do seu crédito executar depois o património do fiador. Essa subsidiariedade da fiança opera mesmo existindo garantias reais constituídas por terceiro antes da fiança, já que o fiador tem igualmente o direito de exigir a execução prévia das coisas sobre que recai a garantia real (artigo 639.º do Código Civil).
Todavia, a subsidiariedade da fiança é uma característica não essencial e o fiador pode prescindir dela (artigo 640.º do Código Civil). Não gozando do benefício da excussão, porque a ele renunciou ou porque assumiu a obrigação de principal pagador, a posição do fiador equipara-se, do ponto de vista do credor, à de um verdadeiro devedor solidário, ou seja, a obrigação pode ser exigida do obrigado principal ou do fiador ou de ambos, em simultâneo, e caso lhe seja exigida pelo credor, o fiador não poderá recusar o cumprimento. Por conseguinte, é absolutamente irrelevante do ponto de vista jurídico o que o credor possa fazer nessas circunstâncias para exigir do devedor principal a satisfação da dívida porquanto ele sempre poderá exigir do fiador a sua satisfação total e este não pode impor-lhe que antes de mais tente obter do afiançado o pagamento.
A segunda circunstância que os embargantes fazem por esquecer é a de que o montante do capital a restituir estava fixado à partida, aquando da celebração do mútuo e da entrega da quantia mutuada. Acresce que ao optar por resolver o contrato e exigir de imediato a restituição do capital mutuado a exequente não pode reclamar o pagamento de juros remuneratórios incluídos no valor a restituir, segundo jurisprudência uniformizada pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2009, de 25/03/2009, publicado no Diário de República, 1.ª série, de 05/05/2009, nos termos da qual «no contrato de mútuo oneroso liquidável em prestações, o vencimento imediato destas ao abrigo de cláusula de redacção conforme ao artigo 781.º do Código Civil não implica a obrigação de pagamento dos juros remuneratórios nelas incorporadas».
Nessa medida, o agravamento da posição do fiador decorre apenas do vencimento dos juros moratórios subsequente ao não pagamento das prestações que se foram vencendo. Ora, tendo o fiador renunciado ao benefício da excussão prévia, ele estava obrigado perante o credor, a liquidar essas prestações logo que o devedor principal não fizesse o seu pagamento, razão pela qual, afinal, o agravamento da sua posição decorreu sim da sua própria opção declarada e comunicada ao exequente de que não iria pagar qualquer prestação vencida ou vincenda! Acresce que a instauração da execução não corresponde de imediato à obtenção do pagamento pelo que essa instauração não impedia que a posição do fiador se continuasse a agravar com o tempo. O que impediria esse agravamento era o fiador cumprir com a obrigação que assumiu, ou seja, concretizar o resultado do pagamento devido.
Neste contexto parece difícil conceber que a demora do credor na instauração da execução possa representar um abuso do direito. Como quer que seja, não se pode escamotear que o decurso do tempo, ao fazer aumentar o volume dos juros moratórios, pode agravar a situação dos responsáveis pelo pagamento. Pode concluir-se desse simples facto – leia-se, do mero retardamento da instauração da execução, já que se desconhece se no ínterim houve diminuição do património do mutuário que será chamado a responder pelo pagamento (que não é apenas o bem hipotecado) e pelo eventual direito de regresso do fiador – que o credor actuou com abuso do direito?
A figura do abuso do direito consagrada no nosso ordenamento jurídico no artigo 334.º do Código Civil declara que «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».
Segundo Castanheira Neves, in Lições de Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, 1968/69, pág. 39, entende-se por exercício abusivo do direito «um comportamento que tenha a aparência de licitude jurídica - por não contrariar a estrutura formal-definidora (legal ou conceitualmente) de um direito, à qual mesmo externamente corresponde - e, no entanto, viole ou não cumpra, no seu sentido concreto-materialmente realizado, a intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado, ou de que o comportamento realizado se diz exercício».
O instituto do abuso do direito visa impedir situações em que a invocação ou exercício de um direito que, na normalidade das situações seria justo, na concreta situação da relação jurídica se revela iníquo e fere o sentido de justiça dominante – cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.12.2008, in www.dgsi.pt/jstj –. E isso é assim porque no exercício dos seus direitos toda a pessoa deve adoptar um comportamento honesto, correcto e leal, respeitando e correspondendo às legítimas expectativas que criou em outrem.
A parte que abusa do direito actua a coberto de um poder legal, formal, visando resultados que, clamorosamente, violam os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social do direito. Como refere Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, 5.ª edição, pág. 260, «o direito subjectivo é substancialmente funcional, tem um sentido de utilidade que se perde se não tiver em atenção qual o fim do titular que deve realizar – ou contribuir para realizar – com êxito, e o bem que vai ser afectado à realização desse fim. Nesta perspectiva, a substância do direito subjectivo resulta do nexo funcional existente entre uma tríade de realidades: a pessoa, o seu fim e o meio utilizado para o realizar».
“O abuso de direito pressupõe a existência da uma contradição entre o modo ou fim com que a titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito casos em que se excede os limites impostos pela boa fé.” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28.11.96, in Colectânea de Jurisprudência – AcSTJ, 1996, tomo III, pág. 117. Para o efeito, não é necessário que a parte tenha a consciência de com a sua actuação exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, basta que objectivamente esse excesso ocorra – cf. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, 7ª edição, pág. 536 –.
Existem diversas figuras típicas que encerram uma violação desse dever de actuação conforme às expectativas criadas e que reconhecidamente constituem exercícios abusivos do direito. Conta-se entre elas o chamado venire contra factum proprium que se reconduz à situação em que o titular do direito adopta um comportamento capaz de criar no outro pólo da relação jurídica a expectativa de que o direito é concebido e será exercido pelo seu titular em consonância com o significado desse comportamento, mas depois vem a actuar em contradição ou desconformidade com o comportamento anterior, frustrando aquela confiança.
Subjacente ao conceito do venire contra factum proprium está a ideia de que os riscos originados na credibilidade da conduta anterior do agente não devem ser suportados por quem, dentro da normalidade da vida da relação, acreditou na mensagem irradiada pelo significado objectivo da conduta do mesmo agente.
Para Menezes Cordeiro, in Da Boa Fé no Direito Civil, pág. 745, «o venire contra factum proprium postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro - o factum proprium - é, porém, contrariado pelo segundo». Para este autor, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 58, pág. 964, os pressupostos da protecção da confiança, ao abrigo da figura do “venire contra factum proprium” são quatro; «1.º Uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium); 2.º Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis; 3.º Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara; 4.º Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível.»
Constituem modalidades desta figura os casos chamados suppressio e surrectio. Tratam-se dos casos em que o comportamento do titular do direito ao longo do tempo criou a legítima confiança de que aquele não exercerá mais o direito ou renunciou a ele ou então que reconhece a outrem um direito ou faculdade jurídica que de outra forma não existiria ou já se encontrava extinta.
Enquanto formas de tutela da confiança concitada noutrem por um determinado comportamento, o que releva é o significado da aparência do comportamento, a ilação que o mesmo permite quanto ao comportamento da mesma pessoa – do mesmo titular do interesse juridicamente protegido – no futuro. Por isso, não importa se por não exercer o direito, o seu titular queria ou não renunciar ao mesmo, nem isso poderia ser facilmente concluído a partir de um comportamento – puramente – omissivo. Importa sim que a esse comportamento possa ser legitimamente associado um determinado significado perceptível pelo comum dos destinatários.
Para tanto, mais que o tempo e para além do tempo, tornam-se necessários indícios objectivos desse significado que permitam concluir que a confiança criada não foi iminentemente subjectiva – correspondente à vontade e desejo de outrem – mas objectivamente fundada, só assim merecendo a tutela do direito. Para tanto, esses elementos objectivos hão-de indiciar que o direito não mais será exercido ou se renunciou a ele em definitivo. O que significa afinal que as circunstâncias e o contexto em que o comportamento tem lugar podem ser decisivos para a interpretação do seu significado.
A suppressio, enquanto possível expressão de abuso de direito, está ligada à inacção ou à omissão, acompanhada de outras circunstâncias colaterais, que não apenas o decurso do tempo, sob pena de atingir, sem vantagens, a natureza plena da caducidade e da prescrição.
Refere Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil, V, Parte Geral, Almedina, 2011, pág. 323 e seg., que «o factum proprium é, por definição, uma actuação positiva: não uma omissão. Além disso, os regimes deverão ser distintos: o factum proprium é de fácil determinação, através de coordenadas pessoais (o autor), materiais (o que ele fez), geográficas (onde fez) e cronológicas (quando fez); tudo isso falta na omissão conducente à suppressio. (…) teremos de compor um modelo de decisão, destinado a proteger a confiança de um beneficiário, com as proposições seguintes: um não-exercício prolongado; uma situação de confiança; uma justificação para essa confiança; um investimento de confiança; a imputação da confiança ao não-exercente». E mais à frente, «o não-exercício prolongado estará na base quer da situação de confiança, quer da justificação para ela. Ele deverá, para ser relevante, reunir elementos circundantes que permitam a uma pessoa normal, colocada na posição do beneficiário concreto, desenvolver a crença legítima de que a posição em causa não mais será exercida. O investimento de confiança traduzirá o facto de, mercê da confiança criada, o beneficiário não dever ser desamparado, sob pena de sofrer danos dificilmente reparáveis ou compensáveis. Finalmente: tudo isso será imputável ao não-exercente, no sentido de ser social e eticamente explicável pela sua inacção. Não se exige culpa: apenas uma imputação razoavelmente objectiva».
Também Nuno de Oliveira, in A Suppressio ex bona fide, Revista de Direito Civil, 2015, Almedina, pág. 171 e seg., distingue o venire contra factum proprium e a suppressio do seguinte modo: «… o venire contra factum proprium pressupõe a sobreposição de dois actos, de sentido distinto, não necessitando de um lapso temporal entre eles. O mecanismo típico de actuação da figura compreende um acto praticado por alguém que gera em outrem uma situação de confiança, que deve ser justificada, imputável ao comportamento alheio e possibilitar um investimento de confiança. Posteriormente, a mesma pessoa vem actuar em sentido contrário, violando essa confiança e causando prejuízos à contraparte. O Direito não deve permitir este tipo de actuação por ele ser abusivo e violar os ditames da boa fé. Já na suppressio, o que está pressuposto é o contrário: a inacção, prolongada no tempo, de quem, podendo agir, não o fez antes, vindo posteriormente actuar o direito. Embora estejamos igualmente perante uma situação que exige o cumprimento dos requisitos da tutela da confiança, a diferença reside aqui no mecanismo de actuação prévio. Não há qualquer acto de um credor, mas sim a total ausência do mesmo, durante um período de tempo mais ou menos prolongado. Uma vez gerada a confiança de que o direito não mais será exercido, ou um desequilíbrio no seu exercício, devido ao lapso temporal, o seu exercício será paralisado pela suppressio».
Ora não se nos afigura que o deixar decorrer cerca de quatro anos entre o início do incumprimento do mutuário e a instauração da execução signifique sem mais que a credora criou no devedor ou no fiador a legítima expectativa de que iria prescindir do seu direito de crédito ou deixar de exigir responsabilidades aos fiadores.
Desde logo, pela óbvia razão de que durante esse período de tempo o credor informou os fiadores por mais que uma vez do incumprimento do afiançado a fim de eles diligenciarem pelo pagamento (por si ou pelo afiançado). Depois porque em momento algum essa inacção foi acompanhada de qualquer outra atitude passível de gerar num declaratário normal a legítima confiança da desresponsabilização dos devedores. Ainda porque esse período de tempo ocorreu em plena crise económica mundial, com particular destaque no sector financeiro, que ocasionou uma descida generalizada e significativa do preço dos imóveis, designadamente dos comercializados de modo coercivo, de que só temos vindo a recuperar nos anos mais recentes, pelo que a não instauração da execução e o não impulso da venda coerciva do património do afiançado, pode perfeitamente ter redundado em mais benefício que prejuízo, o qual, de qualquer modo, não está demonstrado. Por fim, porque os fiadores tinham a obrigação estrita de pagar as prestações que o afiançado não pagou – se o fizessem, não se venceriam mais juros moratórios – e por isso a causa directa do eventual agravamento da sua posição foi a sua própria decisão de incumprirem as suas obrigações contratuais, sendo absolutamente estranho à ordem de valores que os fiadores se queixem da mera inércia do credor sem levarem na devida conta o seu próprio incumprimento e as consequências do mesmo na sua esfera jurídica e/ou na esfera jurídica do credor.
Nessa medida, entendemos que a exequente não actua com abuso do direito. Improcede assim também esta questão do recurso.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e confirmar a sentença recorrida.
Custas do recurso pelos recorrentes que vão condenados a pagar à recorrida as custas de parte e eventuais encargos.
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Porto, 10 de Julho de 2019.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 507)
Inês Moura
Francisca Mota Vieira

[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas]