Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4921/22.1JAPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOANA GRÁCIO
Descritores: DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
CRIME CONTRA A LIBERDADE E AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL
VÍTIMA ESPECIALMENTE VULNERÁVEL
Nº do Documento: RP202305104921/22.1JAPRT-A.P1
Data do Acordão: 05/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A vítima de crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual é uma vítima especialmente vulnerável.
II - Estando em causa vítima de tal tipo de crimes que padece de deficit cognitivo ligeiro, tendo sido declarada inabilitada e nomeado seu tutor o arguido, e estando indiciado que aquela não tem recursos financeiros ou outros apoios, vivendo na dependência do tutor, que o ameaça de expulsar de casa caso não satisfaça os seus desejos sexuais, verbalizando a vítima que não aguenta mais e que quer pôs fim à vida, não sendo obrigatória a tomada de declarações para memória futura à vítima, por não se tratar de menor (artigo 271.º, n.º 2, do Código de Processo Penal), mostra-se altamente recomendável a realização dessa diligência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 4921/22.1JAPRT-A.P1
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Criminal da Maia – Juiz 2

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
No âmbito do Inquérito n.º 4921/22.1JAPRT, a correr termos na 2.ª Secção do DIAP de Maia, por despacho de 24-11-2022, a Digna Magistrada do Ministério Público que conduzia o inquérito, após ordenar outras diligências, determinou o seguinte (transcrição):
«III. A factualidade em investigação, abstratamente considerada, é suscetível de integrar a prática, pelo arguido AA, de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, punido pelo art.º 165.º, n.º1 e n.º2, do Código Penai, tendo por vítima BB, declarado inabilitado por sentença de 20 de setembro de 2012, proferida no processo n.º º1685/10.5T2AGD, do Juízo de Competência Genérica de Anadia:
Dispõe o artigo 271.º, n.º 1 e n.º2, do Código de Processo Penal, sob a epígrafe «Declarações para memória futura», que:
“Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
No caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior”.
Dado que a vítima apresenta défice cognitivo ligeiro e foi declarada inabilitada, impõe-se, pois, atenuar a sua exposição em termos processuais e judiciais e acautelar, desde já, a possibilidade de o respetivo depoimento ser valorado em sede de julgamento.
Assim, ao abrigo do que vai disposto no artigo 271.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, promove-se que seja designada data para a tomada de declarações para memória futura a BB, melhor ido a fls. 7
Promove-se, ainda, a nomeação de um técnico habilitado para o acompanhamento do inabilitado na referida inquirição, a indicar pela DGRSP, nos termos do artigo 271.º, n.º 4, do Código de Processo Penal.
Conclua ao Mm.o Juiz para apreciação e decisão

Concluídos os autos à Senhora Juiz do Juízo Local Criminal da Maia (Juiz 2), pela mesma foi proferida, em 06-12-2022, a seguinte decisão (transcrição):
«Promove a Digna Magistrada do Ministério Público a tomada de declarações para memória futura a BB, nascido em .../.../1978, porquanto se investigam nos autos factos susceptíveis de integrar a prática de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, p. e p. pelo artigo 165º do C. Penal.
Alega para tanto e em síntese, que a vítima foi declarada inabilitada por sentença de 20 de Setembro de 2012, apresentando défice cognitivo ligeiro.
Ora, nos termos do artigo 271º, n.º 1 do C. Penal a “doença grave” a que aí se alude reporta-se a situações de “(…) natureza física ou psíquica, incluindo portanto, as perturbações psíquicas graves derivadas de estados obsessivos-compulsivos, estados de pânico ou fobias, estados doloroso crónicos, doenças nervosas e depressivas, esquizofrenia, toxicodependência, alcoolismo e senilidade (…) A doença tem de ser “grave”, mesmo que não seja adequada a considerar a pessoa como inimputável para efeitos civis ou nem mesmo como inimputável para efeitos criminais. A gravidade mede-se pelo efeito inibidor da doença na pessoa, isto é, pelo efeito de inibição de um depoimento plenamente livre e consciente, no uso de todas as faculdades mentais da testemunha.
O estado de doente tem de ser actual, ou seja, tem de se verificar à data da decretação do acto processual e da sua realização, mas a doença pode ser uma doença de efeito intermitente.
A doença tem de previsivelmente impedir a testemunha de ser ouvida em julgamento. Isto acontece quer no caso de doença física permanente, quer no caso de doença psíquica crónica ou degenerativa, quer no caso de doença de efeito intermitente em que haja risco considerável de ocorrência de um novo episódio da doença” – [cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 2ª ed., pág. 702].
Tecidos tais considerandos, e tendo presente que a situação plasmada nos autos não integra qualquer das situações prevenidas no dispositivo legal vindo de enunciar, tanto mais que a vítima prestou já declarações a fls. 158-161, não evidenciando qualquer impedimento em ser ouvida em julgamento, indefere-se ao requerido
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Inconformado com este despacho, veio o Ministério Público junto da 2.ª Secção do DIAP da Maia do mesmo interpor recurso, solicitando que seja revogada tal decisão e que seja substituída por outra que determine a tomada de declarações para memória futura à vítima BB, nos termos do preceituado no art. 271.º, n.º 1, do CPPenal.
Apresenta nesse sentido as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
«1.No âmbito dos presentes autos, o arguido AA encontra-se indiciado da prática do crime de “abuso sexual de pessoa incapaz de resistência”, punido pelo art.º 165.º, n.º e n.º2, do Código Penal, encontrando-se ainda a ser investigado pela prática do crime de “tráfico de pessoas”, punido pelo art.º 160.º, n.º1, al. d), do Código Penal, sendo vítima BB, declarado inabilitado por sentença de 20 de setembro de 2012.
2. Por despacho de 24 de novembro de 2022, o Ministério Público promoveu a tomada de declarações para memória futura a BB, sustentando-o no facto de este ser vítima de crime contra a liberdade sexual, de padecer de défice cognitivo ligeiro, na sequência do que foi declarado inabilitado, e, ainda, com vista a atenuar a sua exposição em termos processuais e acautelar a possibilidade de o respetivo depoimento ser valorado em sede de audiência de julgamento.
3. Apreciando a promoção em crise, a Mm.a Juiz, em despacho datado de 6 de dezembro de 2022, indeferiu o promovido, referindo que “a situação plasmada nos autos não integra qualquer das situações prevenidas no dispositivo legal vindo de enunciar, tanto mais que a vítima prestou já declarações a fls. 158-161, não evidenciando qualquer impedimento em ser ouvida em julgamento”.
4. Salvo o devido respeito por entendimento diverso, consideramos que a Mm.a Juiz se pronunciou sobre fundamento diverso do invocado pelo Ministério Público, deixando, por seu turno, por apreciar o fundamento invocado, além do que não atentou nas especificidades da situação investigada nestes autos.
5. Prevê o artigo 271 ° do Código de Processo Penal o instituto das declarações para memória futura, comummente caracterizado como uma antecipação parcial da audiência de julgamento, envolta numa concordância prática de interesses que se materializam no interesse público da descoberta da verdade material, na conservação da prova e, por fim, na proteção da vítima.
6. O recurso às declarações para memória futura está, atualmente, previsto, para a impossibilidade de comparência à audiência de discussão e julgamento originada por doença grave ou deslocação para o estrangeiro e, por outro lado, nas situações de especial vulnerabilidade das vítimas em determinados tipos de crime, em particular, o crime de tráfico de pessoas e os crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual.
7. O processo penal moderno e democrático procura punir os agentes da prática de factos tipificados como crime, permitindo em simultâneo que as vítimas participem ativamente na estruturação do processo, para assim satisfazer as legítimas exigências de reparação dos danos que o ato criminoso lhes causou.
8. Para evitar a duplicação de atos de produção de prova pessoal e, deste modo, acautelar o fenómeno da vitimização secundária, a proposta do processo penal reside, entre outros, nas declarações para memória futura.
9. Na situação dos autos, a decisão da Mm.a Juiz rejeitou a tomada de declarações para memória futura estribando-se, tão só, na alegação da inexistência de doença grave que impedisse a futura inquirição do ofendido, omitindo, desse modo, qualquer apreciação acerca dos fundamentos invocados pelo Ministério Público.
10. Com efeito, o Ministério Público promoveu tal ato processual ao abrigo da segunda parte do n.º 1 do art.º 271.º do Código de Processo Penal, ou seja, considerando o tipo de crime em imputado ao arguido – de natureza sexual –, a que acresce a especial vulnerabilidade da vítima decorrente da sua deficiência mental.
11. A decisão de que se recorre não considerou a natureza dos crimes investigados – contra a liberdade sexual e de tráfico de pessoas, nem efetuou ponderação do caso concreto, considerando especialmente a proteção da vítima e a necessidade de preservar a boa administração da justiça.
12. A vulnerabilidade de BB resulta evidente do teor de vários elementos de prova que os autos já contêm, designadamente do auto de notícia e das inquirições efetuadas no âmbito da investigação desenvolvida pela Polícia Judiciária.
13. Assim, quer a participante dos factos, CC, Coordenadora da Associação para o Planeamento da Família, quer as testemunhas inquiridas, referem que a vítima verbaliza que tem muito medo do poder do arguido.
14. O arguido ainda é o tutor legal da vítima, o que, de igual modo, é suscetível de interferir com a prestação do seu depoimento.
15. BB é, pois, uma pessoa especialmente vulnerável, por um lado como decorrência da sua deficiência psíquica, da sua desintegração familiar e do seu isolamento social, e, por outro lado, em face do estatuto que o arguido ocupa na sociedade, derivado da profissão que exerce e que lhe granjeia necessariamente credibilidade e influência sociais, o que o ofendido já demonstrou ser fator que o preocupa e que interfere com a sua confiança e capacidade para transmitir, às autoridades, os atos de que foi vítima.
16. Ainda no que se refere à deficiência psíquica, esta poderá, de igual modo, potenciar a dificuldade associada a um relato tardio dos acontecimentos, no que se refere à capacidade de evocação dos detalhes periféricos do acontecimento ou à manipulação entretanto efetuada por parte de terceiro.
17. Em suma, entendemos que está, por demais, evidenciado nos autos que importa evitar os danos psicológicos implicados na evocação sucessiva pela vitima da sua dolorosa experiência e a sua exposição em julgamento público, assim como fixar os elementos probatórios relevantes a partir do relato presumivelmente mais próximo e espontâneo, evitando o perigo de contaminação da prova.
18. O facto de a vítima ter já sido inquirida por órgão de polícia criminal em nada colide com as necessidades referidas, uma vez que tal inquirição sumária teve lugar após a detenção do arguido para sujeição a medidas de coação, tendo-se afigurado imprescindível, num primeiro momento, para aferir da existência de crime e como modo de recolha de prova com vista a delimitar os factos e a investigação, não dispensando uma posterior inquirição.
19. Pelo exposto, deverá ser revogada a decisão recorrida, substituindo-se por outra que determine a tomada de declarações para memória futura à vítima BB, nos termos do preceituado no art.º 271.º, n.º1, do Código de Processo Penal.»
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Notificado, o arguido não apresentou resposta.
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Neste Tribunal da Relação do Porto, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do provimento do recurso, sufragando a posição do recorrente.
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Notificado nos termos do disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, o arguido não apresentou resposta.
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Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do recurso.
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II. Apreciando e decidindo:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso.
A única questão que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso é a de saber se a decisão recorrida errou ao indeferir o pedido de prestação de declarações para memória futura por BB.
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Mostram-se já transcritos os despachos do Ministério Público, em que é requerida a diligência de declarações para memória futura, e da Senhora Juiz, que indeferiu essa pretensão.
Vejamos então a questão suscitada.
Analisado o requerimento para prestação de declarações para memória futura e o despacho recorrido, temos de reconhecer inteira razão ao recorrente.
Em primeiro lugar, porque o Tribunal a quo se focou em justificar que a doença da vítima não se inseria no conceito de doença referido na primeira parte do art. 271.º, n.º 1, do CPPenal, quando esse não tinha sido em absoluto o fundamento do requerimento, nada referindo, por outro lado, a propósito da argumentação que sustentou a pretensão apresentada.
Em segundo lugar, porque as razões avançadas pelo recorrente para que seja realizada a diligência de tomada de declarações para memória futura merecem provimento.
Com efeito, estabelece o art. 271.º do CPPenal nos seus n.ºs 1 e 2 que, em fase de inquérito:
«1 - Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2 - No caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.»

Os fundamentos enunciados no n.º 1 do preceito, e que permitem a tomada de declarações para memória futura, estão organizados em dois grupos distintos, por um lado, temos as circunstâncias que podem objectivamente obstar à audição de uma testemunha (qualquer testemunha) em julgamento, onde se insere a verificação de uma doença grave – é o caso, por exemplo, de doenças que podem levar à morte da testemunha a curto prazo ou a uma incapacidade física ou psíquica para estar presente em julgamento ou, mesmo estando presente, para prestar um depoimento – ou de deslocação para o estrangeiro – que poderá impedir a presença da testemunha em julgamento, ou mesmo, em algumas situações, a sua audição à distância – e, por outro, temos as vítimas de crimes de catálogo – tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual (art. 271.º do CPPenal), às quais devem acrescer as vítimas de violência doméstica (arts. 23.º e 33.º da Lei 112/2009, de 16-09) ou as vítimas especialmente vulneráveis (ao abrigo dos arts. 1.º e 26.º a 28.º da Lei de Protecção de Testemunhas – Lei 93/99, de 14-07 – e dos arts. 21.º e 24.º da Lei 130/2015 (Estatuto de Vítima), de 04-12, em conjugação com o art. 67.º-A, n.ºs 1, al. b), e 3, do CPPenal).
A vítima dos presentes autos é claramente uma vítima especialmente vulnerável, por força do disposto nos arts. 1.º, al. j), e 67.º-A, n.ºs 1, al. b), e 3, do CPPenal, já que o arguido está indiciado pela prática de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, p. e p. pelo art. 165.º, n.ºs 1 e 2, do CPenal, enquadrável no conceito de criminalidade violenta (art.º 1.º, al. j), do CPPenal), encontrando-se ainda em investigação a eventual prática de crime de tráfico de pessoas, p. e p. pelo art. 160.º, n.º 1, al. d), do CPenal, sendo vítima em qualquer dos casos o identificado BB.
Para além disso, resulta dos autos que a vítima padece de deficit cognitivo ligeiro, tendo sido declarada inabilitada por decisão transitada em julgado em 05-04-2013, e nomeado seu tutor AA, o aqui arguido, padre da paróquia de ....
Resulta indiciado de elementos de prova recolhidos, conforme se enuncia no recurso, que a vítima não tem recursos financeiros ou outros apoios, vivendo na dependência do tutor, que o ameaça de expulsar de casa caso não satisfaça os seus desejos sexuais, verbalizando a vítima que não aguenta mais e que quer pôs fim à vida.
A conjugação destas circunstâncias evidencia a precaridade da situação da vítima e a sua especial vulnerabilidade pelas condições psíquicas e económicas referidas, que a tornam totalmente dependente do arguido, patenteando ainda o perigo de deterioração ou mesma perda do testemunho da vítima, seja porque com o passar do tempo podem perde-se dados importantes, seja porque pode haver interferência do tutor na integridade do depoimento da vítima, seja porque o desespero subjacente a uma declaração de que se pretende pôr fim à vida não deve ser escamotado, principalmente quando há indícios de que as condições invocadas podem existir.
Assim, não sendo obrigatória a tomada de declarações para memória futura à vítima destes autos, já que, apesar de estar em causa crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, não se trata de menor (art. 271.º, n.º 2, do CPPenal), mostra-se altamente recomendável a realização dessa diligência – como resulta da conjugação do disposto nos já aludidos arts. 1.º, al. j), e 67.º-A, n.ºs 1, al. b), e 3.º do CPPenal, 21.º e 24.º do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei 130/2015, de 04-12, e 26.º a 28.º da Lei de Protecção de Testemunhas, aprovada pela Lei 93/99, de 14-07 –, não só para salvaguardar a vítima de futura exposição em julgamento, atento o tipo de crime em causa e as fragilidades enunciadas, sendo que quanto mais frágil ou fragilizada a vítima – e a proximidade ao agressor é um factor de agravamento deste parâmetro – mais se justifica a tomada de declarações para memória futura, mas também para preservação da integridade da prova.
É com estas preocupações que a Lei 93/99, de 14-07, Lei da Protecção de Testemunhas, tentou criar medidas que se destinam a obter, nas melhores condições possíveis, depoimentos ou declarações de pessoas especialmente vulneráveis, nomeadamente em razão da diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência (arts. 1.º, n.º 3, e 26.º, n.º 2).
Por isso, prevê a indicada Lei que «[d]urante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime» e que «[s]empre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal» - art. 28.º.
A apontada característica de fragilidade é recorrente nos casos de tráfico de pessoas, maus-tratos, violência doméstica ou crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, como será o dos autos, e, por isso, nesses processos a inquirição das vítimas é muitas vezes realizada apenas em inquérito e mediante as condições necessárias para que as declarações possam ser aproveitadas para memória futura, evitando-se uma desnecessária exposição em julgamento, principalmente nos casos em que a vítima é especialmente vulnerável.
É certo que a mesma Lei 93/99, de 14-07, não deixa de salientar que «[a]s medidas previstas na presente lei têm natureza excepcional e só podem ser aplicadas se, em concreto, se mostrarem necessárias e adequadas à protecção das pessoas e à realização das finalidades do processo», sendo em qualquer caso «assegurada a realização do contraditório que garanta o justo equilíbrio entre as necessidades de combate ao crime e o direito de defesa» - art.º 1.º, n.ºs 4 e 5.
A ressalva que consta deste diploma vai ao encontro do que resulta já dos demais diplomas referidos.
A prestação de declarações para memória futura continua a ser uma diligência excepcional e quando não é obrigatória nos termos do disposto no art. 271.º, n.º 2, do CPPenal impõe um concreto juízo de ponderação entre os interesses de protecção da vítima e da integridade da prova e o da realização da justiça com pleno exercício da imediação e do contraditório.
Pelas razões indicadas, no caso concreto, que congrega vários factores que permitem considerar a vítima especialmente vulnerável, mostrando-se, para além do mais, elevado o perigo de perda da genuinidade da prova, deve prevalecer o superior interesse da realização da diligência em detrimento do cumprimento pleno da imediação e do contraditório em julgamento[1].
Deve, assim, ser concedido provimento ao recurso.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogam o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que determine a tomada de declarações para memória futura à vítima BB, ao abrigo do disposto no art. 271.º, n.º 1, do CPPenal, prosseguindo os autos com vista à sua realização.
Sem tributação (art. 522.º, n.º 1, do CPPenal).
Notifique.

Porto, 10 de Maio de 2023
Maria Joana Grácio
Paulo Costa
Nuno Pires Salpico

(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
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[1] No sentido da decisão proferida, defendendo-se até limites menos restritos para realização da diligência aqui em causa, veja-se o acórdão do TRP de 24-09-2020, relatado por João Pedro Nunes Maldonado no âmbito do Proc. n.º 2225/20.3JAPRT-A.P1, acessível in www.dgsi.pt.