Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
749/15.3T8MAI-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: LIVRANÇA
RELAÇÕES IMEDIATAS
AVAL
ERRO DE ESCRITA
Nº do Documento: RP20151028749/15.3t8mai-A.P1
Data do Acordão: 10/28/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - No domínio das relações imediatas, o título de crédito ainda não entrou em circulação, não havendo, por isso, interesses de terceiros a proteger e daí que seja posição dominante na doutrina e na jurisprudência que o carácter literal e autónomo da letra e da livrança só produz efeito quando o título entra em circulação e se encontra em poder se terceiros de boa fé.
II - Por essa razão, destinando-se o rigor do formalismo cambiário essencialmente a proteger os interesses de terceiro, não há em regra, justificação para que as circunstâncias extracartulares não sejam consideradas nas relações "inter partes" para interpretar o título e corrigir o formalismo de acordo com a boa fé.
III - Daí que aposição do carimbo da sociedade subscritora, junto à assinatura do dador do aval no verso da livrança, terá de ser considerado erro ostensivo de escrita cuja rectificação é permitida ao abrigo do preceituado no artigo 249.º do Código Civil, quando aquele avalista interveio na convenção extracartuluar e a assinou nessa qualidade, tomando-a por certa nos termos da declaração que subscreveu em cláusula aí inserta, tendo assim de se considerar ter ele avalizado o referido título e não aquela sociedade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 749/15.3t8mai-A.P1-Apelação
Origem: Comarca do Porto-Maia-Inst. Central-2ª Secção de Execução-J2
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Rita Romeira
2º Adjunto Des. Caimoto Jácome
Sumário:
I- No domínio das relações imediatas, o título de crédito ainda não entrou em circulação, não havendo, por isso, interesses de terceiros a proteger e daí que seja posição dominante na doutrina e na jurisprudência que o carácter literal e autónomo da letra e da livrança só produz efeito quando o título entra em circulação e se encontra em poder se terceiros de boa fé.
II- Por essa razão, destinando-se o rigor do formalismo cambiário essencialmente a proteger os interesses de terceiro, não há em regra, justificação para que as circunstâncias extracartulares não sejam consideradas nas relações "inter partes" para interpretar o título e corrigir o formalismo de acordo com a boa fé.
III- Daí que aposição do carimbo da sociedade subscritora, junto à assinatura do dador do aval no verso da livrança, terá de ser considerado erro ostensivo de escrita cuja rectificação é permitida ao abrigo do preceituado no artigo 249.º do Código Civil, quando aquele avalista interveio na convenção extracartuluar e a assinou nessa qualidade, tomando-a por certa nos termos da declaração que subscreveu em cláusula aí inserta, tendo assim de se considerar ter ele avalizado o referido título e não aquela sociedade.
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I-RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
B…, S.A. com sede na Rua …, n.º . - ...º, Lisboa instaurou a presente execução para pagamento de quantia contra C… e D… ambos residentes na Rua …, n.º …, Maia, apresentando como título executivo uma livrança emitida aos 19.03.2013, com data de vencimento em 09.04.2013, tendo como quantia inscrita €: 5.970,80.
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Por requerimento apresentado em 19/02/2005 veio a exequente dizer que, por manifesto lapso, na livrança dada à execução junto a assinatura dos avalistas foi aposto o carimbo da empresa subscritora, sendo que eles se obrigaram perante si na sua qualidade de avalistas, tendo sido nessa qualidade que aí apuseram as suas assinaturas.
Pede por isso que seja relevado o lapso e que, portanto, a execução prossiga contra os executados na qualidade de avalistas no título cartular dado à execução.
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A Srª juiz do processo em 25/02/2015 lavrou despacho indeferindo liminar e parcialmente o título executivo em relação ao executado D… por ter entendido, no essencial, que ao apor a sua assinatura sobre o carimbo de uma empresa isso traduziu a formalização da responsabilidade cambiária da própria empresa e não dele, inexistindo, assim, título executivo que autorize o prosseguimento da execução contra ele.
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Não se conformando com o assim decidido veio a exequente interpor o presente recurso, concluindo as suas alegações nos seguintes termos:
a) O presente recurso vem interposto de decisão que indeferiu liminar e parcialmente o requerimento executivo contra D…, ao não admitir a rectificação (v.g., exclusão) do carimbo colocado sobre a sua assinatura do campo da livrança sub judice que é destinado ao avalista;
b) Entendeu a Meritíssima Juiz a quo que a literalidade associada aos títulos cambiários não permite a aplicação do regime do erro positivado no art. 249º do Código Civil.
c) Salvo o devido respeito, discordamos deste entendimento que, em nossa opinião, não faz a correcta interpretação da Lei.
d) O regime do erro de escrita, como tal plasmado no art. 249º do Cód. Civil não é afastado nem condicionado pelas regras que imperam sobre as obrigações cartulares.
e) Assim o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 13.04.2011, proferido in processo 2093/04.2TBSTB-A L1.S1.:"O erro, para ser manifesto, há-de revelar-se no contexto da emissão da declaração negocial–art. 249º do Código Civil–não havendo qualquer regime especial por se tratar de título cambiário".
f) "I - O art.º 249 do CC é aplicável a todos os casos em que a vontade manifestada padeça de um lapso ostensivo, não só nas declarações negociais como também nas declarações produzidas pelas partes no decurso de um processo judicial II - Essencial é que o erro de cálculo ou de escrita seja ostensivo e que essa ostensibilidade resulte do próprio contexto da declaração ou advenha das circunstâncias que o acompanham" (Agravo n.º 851/01 da 1.ª Secção Supremo Tribunal de Justiça, datado de 15.05.2001).
g) A assunção da qualidade de avalista vem contextualizada no contrato de cessão de posição contratual n.º …… junto a fls. dos autos, correspondente à relação material subjacente à livrança executada.
h) D… assinou o referido contrato assumindo expressamente a qualidade de avalista: " D… contribuinte nº ……… residente em R. …- ….-…, adiante designado(s) por Avalista".
i) D… assinou a declaração de avalista com o seguinte teor: "O(s) Avalista(s) declara(m) que aceita(m) ser avalista(s) do Segundo Contraente e de ter(em) sido informado(s) por este do montante da dívida a contrair, bem como das cláusulas deste contrato e do contrato cedido, que declara(m) conhecer e aceitar, avalizando, para o efeito a Livrança de Caução em branco anexa ao contrato, podendo a Terceira Contraente, em caso de incumprimento pelo Segundo Contraente, proceder à cobrança dos montantes em dívida e à execução cambiária".
j) Precisamente porque interveio nas relações extracartulares-maxime relações imediatas-é que os princípios da literalidade, abstracção e autonomia perdem aqui aplicabilidade.
k) Pelo que, o valor probatório das declarações vazadas no documento complementar impõe-se como plenamente válido e eficaz para efeitos do art. 376º do Cód. Civil.
l) Por outro lado, analisada a livrança dada à execução resulta que a assinatura de D…, colocada no campo destinado à prestação aval é precedida do dizer "Bom por aval ao subscritor", junto à anotação "Sr. D…".
m) Além do mais, aqui se reproduz a ressalva da Meritíssima Juiz a quo quando reconhece inexistir razoabilidade para a empresa subscritora ser simultaneamente avalista, argumento este válido para efeitos de contextualização da declaração/assinatura de D….
n) Na verdade, com o documento complementar "Contrato de Cessão de Posição Contratual n.º …… fica ilidida a presunção de que D…, assinou o campo destinado ao avalista para vincular a empresa subscritora também nessa qualidade: fê-lo antes para se vincular a título pessoal.
o) Destarte, a aposição do carimbo junto à assinatura de D…, no verso da livrança e após o dizer "Bom por aval ao subscritor" resulta de um manifesto e ostensivo lapso, cuja rectificação-v. g., eliminação-é permitida ao abrigo do preceituado no art. 249º do Código Civil.
p) Pelo que, a procedência do presente recurso é manifesta, em face da violação do art. 249º do Cód. Civ. e dos arts. 32º e 77º da L.U.L.L.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Após os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso- cfr. cfr. arts. 635.º, nº 3, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação é apenas uma a questão a decidir:
a)- saber se a livrança dada à execução constituiu, ou não, título executivo em relação ao executado D….
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A matéria de facto a ter em conta para apreciação do presente recurso é que resulta do relatório supra e ainda a seguinte:
1º)-O campo destinado ao subscritor foi preenchido com a identificação (nome e sede) da empresa E…, Lda, onde consta a assinatura do gerente com o respectivo carimbo aposto sobre a mesma;
2º)- No verso do título, no campo destinado aos avalistas, constam duas assinaturas: junto à indicação "Sra. C…" e após a expressão "Bom por aval ao subscritor" surge a assinatura de C…; junto à indicação "Sr. D…" e após o dizer "Bom por aval ao subscritor" surge a outra assinatura de D…, mas com o carimbo da empresa subscritora também aposto;
3º)- Foi junto aos autos cópia de um contrato intitulado “Contrato de Cessão de Posição Contratual n.º ……";
4º)- No referido contrato vêm identificados os obrigados cartulares e enunciada a natureza da respectiva responsabilidade cartular pelo modo seguinte:
"(...) E…, Lda, Contribuinte nº ……… com sede em Rua …, …, . dto frt ….-… Maia, adiante designado(s) por segundo contraente; e C… contribuinte nº ……… residente em r. …-… maia ….-… e D… contribuinte nº ……… residente em Rua …-… Maia ….-…, adiante designado(s) por avalista; e B…, SA, com sede na Rua …, .-..º em lisboa, pessoa colectiva nº ………, matriculada na conservatória do registo comercial com o nº 3053, presentemente com um capital social de 25.000.000,00euro, adiante designada por Terceiro Contraente, (...)";
5º)-Nesse contra consta, além de outras, a cláusula 5ª do seguinte teor:
"O(s) Avalista(s) declara(m) que aceita(m) ser avalista(s) do Segundo Contraente e de ter(em) sido informado(s) por este do montante da dívida a contrair, bem como das cláusulas deste contrato e do contrato cedido, que declara(m) conhecer e aceitar, avalizando, para o efeito a Livrança de Caução em branco anexa ao contrato, podendo a Terceira Contraente, em caso de incumprimento pelo Segundo Contraente, proceder à cobrança dos montantes em dívida e à execução cambiária";
6º)-No referido contrato de cessão de posição contratual consta a assinatura de D… como avalista.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu é apenas uma a questão a decidir no presente recurso e que se prende com:
a)- saber se a livrança dada à execução constituiu, ou não, título executivo em relação ao executado D….
O tribunal recorrido exarou a este propósito o seguinte:
“A aposição da assinatura sobre um carimbo de uma empresa presume-se efectuada na qualidade de representante da gerência de uma determinada sociedade, correspondente à sociedade subscritora, não podendo constituir uma obrigação cambiária assumida em nome próprio para aquele que apõe a assinatura, antes traduzindo a formalização da responsabilização cambiária da própria empresa através da assinatura de um seu representante.
No caso concreto em apreço e definindo os limites da acção executiva com base no título cambiário junto aos autos pela exequente, poderemos atribuir a qualidade de credor de uma obrigação à exequente, mas não poderemos atribuir ao segundo executado a qualidade de devedor.
Assim, mais do que um lapso passível de rectificação, em respeito pela literalidade associada aos títulos cambiários, impõe-se concluir inexiste título que autorize o prosseguimento da execução em relação ao executado D….
Se é certo que não há qualquer razoabilidade na circunstância de a empresa subscritora ser simultaneamente avalista, existindo documento complementar que permite inferir a vontade de responsabilização de D… como garante da obrigação da empresa subscritora, a verdade é que a acção executiva não constitui campo de similar apreciação probatória, sendo certo que o documento particular (contrato) não constitui título executivo e que, conforme já referido, os limites da acção executiva são os que resultam do título apresentado à execução".
Salvo o devido respeito, não podemos sufragar este entendimento.
A decisão recorrida, para justificar a inexistência de título em relação ao executado D…, parte da presunção de que a aposição da assinatura sobre um carimbo de uma empresa é efectuada na qualidade na qualidade de representante da gerência dessa empresa.
É certo que a via presuntiva pode ser relevante quando se quer ou pretende a vinculação dessa sociedade, seja como subscritora seja como avalista do respectivo título cambiário.
Nos termos dos artigos 252.° n° 1 e 260.° n° 1 do Código das Sociedades Comerciais[1], “a sociedade é administrada e representada por um ou mais gerentes”, cujos actos, praticados “em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-nos para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato social ou resultantes das deliberações dos sócios”.
Daqui resulta, portanto, que a gerência é um dos órgãos essenciais das sociedades por quotas, sendo que, os efeitos jurídicos dos actos praticados pelos gerentes nascem directamente na esfera jurídica da sociedade e não na esfera pessoal dos gerentes.
Como ensina o Prof. Raul Ventura, o acto é da própria sociedade, é esta que o pratica, é esta que recebe os seus efeitos.[2]
No entanto, para que este efeito representativo, consubstanciado na gerência, possa funcionar plenamente, obrigatório se torna que os actos dos gerentes sejam susceptíveis de vincular validamente a sociedade.
Ora, tratando-se de actos escritos, incluindo os títulos de crédito, há quem entenda derivar do disposto no artigo 260.º, nº 4 do Código das Sociedades Comerciais, que a sociedade só fica vinculada se os gerentes fizerem acompanhar a aposição da respectiva assinatura com a menção dessa mesma qualidade. A vinculação só se verifica desde que ocorra a reunião dos dois elementos acima referidos-assinatura pessoal do gerente e menção da respectiva qualidade. Faltando essa indicação, a sociedade não se vincularia e a obrigação respectiva recairia apenas sobre aquele que tivesse assinado o escrito.[3]
Outros, porém, fundados essencialmente na finalidade lógica que entendem ser de atribuir à mencionada norma que visa, fundamentalmente, proteger os interesses daqueles que contratam com a sociedade, no sentido de poderem os mesmos estar seguros de que quem contratou foi a sociedade e que será na esfera jurídica dela, e não na dos gerentes, que radicam os direitos e obrigações assumidos, defendem uma interpretação menos literal.
Para estes, ponderando que interpretação diversa desprotege a confiança no tráfico jurídico e compromete a boa-fé dos que negoceiam com a sociedade, torna-se dispensável a dita menção da qualidade de gerente, desde que tal possa ser deduzido do teor do escrito ou de factos que, com toda a probabilidade o revelem.[4]
De acordo com esta posição, no seguimento da doutrina defendida por J. Pinto Furtado segundo a qual a vinculação da sociedade resulta de o acto ser praticado “em nome da sociedade”, não se exige palavras sacramentais ou, sequer, a assinatura com a própria sociedade.
A sociedade fica, assim, obrigada pela mera assinatura pessoal do gerente “em nome” da sociedade–nome que não tem de ser invocado de forma expressa, podendo igualmente resultar das circunstâncias em que a assinatura pessoal foi subscrita ou o acto foi praticado.[5]
A este propósito o S.T.J., por acórdão de 6.12.2001, veio uniformizar a jurisprudência, nos termos seguintes: “A indicação da qualidade de gerente prescrita no nº. 4 do art. 260º do Código das Sociedades Comerciais, pode ser deduzida, nos termos do art. 217º do Código Civil, de factos que, com toda a probabilidade, a revelem".[6]
Refere o citado acórdão que o “pensamento objectivado no texto legal em questão tem suficiente suporte verbal para permitir que o intérprete conclua que a indicação da qualidade de gerente pode ser expressa ou tácita–art. 9º, nº 2, do C. Civil, ex-adversu” e que ”constituindo a literal idade dos títulos de crédito uma regra de protecção do trafico jurídico, não vale com o sentido excessivo de impor a interpretação literal do texto”, razão pela qual são de aplicar aos títulos de crédito os princípios da interpretação da declaração negocial estabelecidos nos artigos 236.º e 238.º do C. Civil.
Aliás, quanto à impressão do destinatário, constata-se que facilmente se harmoniza com o princípio da aparência jurídica e a tutela da confiança, basilares no direito cambiário.
Mas será que no caso em apreço as circunstâncias que rodearam a emissão da livrança apontam no sentido que a subscritora também o terá querido avalizar?
In casu, a sociedade E…, Lda é a subscritora da livrança dada à execução, onde consta a assinatura do gerente com o respectivo carimbo aposto sobre a mesma.
Ora, sendo a subscritora do título cambiário não se nos afigura que, em termos de normalidade, também o tenha avalizado.
Dúvidas não existem de que no presente caso estamos no domínio das relações imediatas, pois que, a livrança não entrou em circulação.
A distinção das relações imediatas das relações mediatas efectua-se para determinar precisamente o campo de aplicação do artigo 17.º da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças, pois que por força deste normativo, no âmbito das relações mediatas, as excepções pessoais[7] não são oponíveis ao portador mediato, a não ser que se demonstre que tal portador, ao adquirir o título cambiário, procedeu conscientemente em detrimento do devedor. A teleologia desta previsão legal é a de proteger o portador mediato do título, pondo-o ao abrigo de vícios ocorridos em relações a que é estranho, assim se fomentando a circulação cambiária.
As relações imediatas diferenciam-se das relações mediatas, num primeiro entendimento, pela circunstância de o portador do título ou subscritor do título de crédito estar colocado na cadeia de transmissões que sucessivamente foram ocorrendo imediatamente a seguir ao devedor accionado ou, pelo contrário, separado dele por interpostos subscritores ou portadores, portanto, numa posição mediata em relação a tal devedor.
Num entendimento menos mecânico e mais funcional da distinção entre relações imediatas e mediatas, considerar-se-á relação imediata aquela que é anterior à transmissão da letra e, depois desta, a que se estabelecer no plano que existe entre ela e a transmissão seguinte, e assim sucessivamente: a relação imediata é a que se estabelece na mesma fase de circulação da letra.
Operando-se a circulação do título cambiário mediante endosso (artigo 11º, § 1º, da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças), é este acto que irá determinar o corte entre as sucessivas relações, tendo o mesmo valor que o endosso o acordo de transmissão ao tomador (veja-se o artigo 11º, § 2º, da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças). Em termos sintéticos, afirma-se que “os sujeitos que estão numa relação imediata são aqueles que participam numa mesma convenção executiva, ou que, por força da lei, ficam colocados juridicamente na posição de um dos participantes nessa convenção”.[8]
No domínio das relações imediatas, o título de crédito ainda não entrou em circulação, não havendo, por isso, interesses de terceiros a proteger e daí que seja posição dominante na doutrina e na jurisprudência que o carácter literal e autónomo da letra e da livrança só produz efeito quando o título entra em circulação e se encontra em poder se terceiros de boa fé. Quando ainda não entraram em circulação (ou em relação a terceiros de má fé) é sempre lícito discutir a “causa debendi”.
Portanto, nas relações imediatas tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta (embora não deixe de o ser).
É que, a disciplina jurídica das letras e livranças destina-se a assegurar a sua fácil circulação, através da protecção de terceiros de boa fé. Por isso, bem se justifica que essa mesma disciplina não funcione enquanto o título não ultrapassar o círculo das relações imediatas, ou seja, não entrar em circulação.
Quando o avalista tem intervenção no pacto de preenchimento ou participa na relação extracartular que interfere nas condições para esse mesmo preenchimento, defende-se, está posicionado nas relações imediatas, razão pela qual deixam de valer as regras da abstracção, da literalidade e da autonomia.
Como assim, porque essas características deixam de imperar no formalismo dos títulos cambiários, permite-se o debate da existência de erro e a prova da respectiva existência.
O mesmo é dizer que a axiologia subjacente à abstracção, literalidade e autonomia não está presente porque inexiste terceiro alheio à convenção extracartular que careça de protecção.
Isto dito, destinando-se o rigor do formalismo cambiário essencialmente a proteger os interesses de terceiro, não há em regra, justificação para que as circunstâncias extracartulares não sejam consideradas nas relações "inter partes" para interpretar o título e corrigir o formalismo de acordo com a boa fé.
Respigando o quadro factual atrás descrito verifica-se que:
a)-Foi junto aos autos cópia de um contrato intitulado “Contrato de Cessão de Posição Contratual n.º ……";
b)- No referido contrato vêm identificados os obrigados cartulares e enunciada a natureza da respectiva responsabilidade cartular pelo modo seguinte:
"(...) E…, Lda, Contribuinte nº ……… com sede em Rua …, …, . dto frt ….-… Maia, adiante designado(s) por segundo contraente; e C… contribuinte nº ……… residente em r. …-… maia ….-… e D… contribuinte nº ……… residente em Rua …-… Maia ….-…, adiante designado(s) por avalista; e B…, SA, com sede na Rua …, .-..º em lisboa, pessoa colectiva nº ………, matriculada na conservatória do registo comercial com o nº 3053, presentemente com um capital social de 25.000.000,00euro, adiante designada por Terceiro Contraente, (...)";
c)-Desse contrato consta, além de outras, a cláusula 5ª do seguinte teor:
"O(s) Avalista(s) declara(m) que aceita(m) ser avalista(s) do Segundo Contraente e de ter(em) sido informado(s) por este do montante da dívida a contrair, bem como das cláusulas deste contrato e do contrato cedido, que declara(m) conhecer e aceitar, avalizando, para o efeito a Livrança de Caução em branco anexa ao contrato, podendo a Terceira Contraente, em caso de incumprimento pelo Segundo Contraente, proceder à cobrança dos montantes em dívida e à execução cambiária.
Deste quadro factual resulta à evidência, que o D… assinou o referido contrato assumindo a qualidade de avalista, tomando por certa essa qualidade, nos termos da declaração que subscreve na cláusula 5ª do mesmo documento (artigo 376.º do Código Civil).
Como assim, o carácter probatório dessa mesma declaração é válido e eficaz para efeitos da análise da vinculação cartular do executado D….
A apelante invocou a existência de erro de escrita, nos termos positivados no artigo 249.º do Código Civil, no que concerne à aposição de carimbo no campo destinado ao avalista.
Como se refere no acórdão do S.T.Justiça de 13.04.2011[9], "O erro, para ser manifesto, há-de revelar-se no contexto da emissão da declaração negocial–artigo 249.º do Código Civil–não havendo qualquer regime especial por se tratar de título cambiário".
Portanto, contextualizando o nascimento do título de crédito dado à execução com recurso à relação material subjacente documentada no contrato de cessão de posição contratual, dúvidas parecem não existir que a aposição do carimbo da sociedade subscritora junto à assinatura de D… no verso da livrança e após o dizer “Bom por aval ao subscritor” resulta de um manifesto e ostensivo lapso de escrita, cuja rectificação-v. g., eliminação-é permitida ao abrigo do preceituado no artigo 249.º do Código Civil.
E, situando-nos nós, como acima se referiu, no domínio da relações imediatas, as regras da abstracção, da literalidade e da autonomia deixam de imperar no formalismo dos títulos cambiários, sendo pois, possível invocar a existência do erro e fazer a respectiva prova.
Significa, portanto, que o referido D… quis, efectivamente, prestar o seu aval à sociedade subscritora da livrança, vontade essa que se infere, sem margem para qualquer tergiversação, do referido contrato cessão da posição contratual.
Aliás, diga-se, tal como já noutro passo se referiu, não se descortina a que propósito a sociedade subscritora seria também avalista de si própria.
Neste conspecto e ainda como adjuvante do entendimento que se deixa plasmado de que o D… avalizou a livrança em causa, está a circunstância de a sua assinatura ter sido colocada junto à anotação “Sr. D…” precedida da expressão “Bom por aval ao subscritor”, talqualmente a assinatura da avalista C… está colocada junto à anotação “Sra. C…” o que evidencia que o aval era do Srº. D… e não da sociedade subscritora.
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Procedem, assim, as conclusões formuladas pela recorrente e, com elas, o respectivo recurso.
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IV-DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente por provada e, revogando a decisão recorrida, determina-se que a execução prossiga também contra o executado D….
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Custas da apelação pelo executado recorrido (artigo 527.º, nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 28 de Outubro de 2015.
Manuel Domingos Fernandes
Rita Romeira
Caimoto Jácome
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[1] No caso a subscritora é uma sociedade por quotas.
[2] Raul Ventura, Sociedades por Quotas, vol. III, pág. 170.
[3] Cfr. Prof. Raul Ventura, ob. e vol. cits. pág. 171 e, na esteira deste autor, alguma jurisprudência do STJ, sendo disso exemplo os Acórdãos de 5.11.98, BMJ nº 481, pág.498 e acórdãos publicados no BMJ nº 488, pág. 365 no BMJ nº 493, pág. 395 e na CJ/STJ, 2001, tomo 1, pág. 183.
[4] Vide acórdãos da relação de Lisboa publicados na CJ 1997, tomo V, pág. 93; CJ 1998, tomo V, pág 112; CJ 2001, tomo II, p. 119 e acórdão da Relação de Coimbra, CJ 2001, tomo II, p. 34.
[5] Cfr. Código das Sociedades Comerciais, 4ª ed., 1991, pág. 244.
[6] AUJ de 6.12.2001, www.dgsi.pt.stj.
[7] Já assim não será no caso das excepções reais, como é o caso da falsidade da assinatura cambiária, vício oponível independentemente do título se achar nas relações imediatas ou mediatas-artigo 7.º, da Lei Uniforme Relativas às Letras e Livranças.
[8] Convenção executiva é a causa próxima do negócio cambiário é o acto pelo qual se escolhe a função do negócio cambiário em face da relação subjacente, que constitui a sua causa remota, cfr. Lições de Direito Comercial, volume III, A. Ferrer Correia, com a colaboração de Paulo M. Sendim, J. M. Sampaio Cabral, António A. Caeiro e M. Ângela Coelho, Coimbra 1975, página 47.
[9] In www.dgi.pt.