Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0724967
Nº Convencional: JTRP00040877
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
PENHORA DE EXPECTATIVA DE AQUISIÇÃO
Nº do Documento: RP200712040724967
Data do Acordão: 12/04/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 258 - FLS 214.
Área Temática: .
Sumário: Penhorada a expectativa de aquisição de um veículo, objecto de contrato de locação financeira, a entidade locadora não pode, com fundamento no seu direito de propriedade, embargar de terceiro, por tal penhora não ser incompatível com este direito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

1.

Por apenso à execução intentada por B………. contra C………., Ldª, D………., SA, deduziu embargos de terceiro.

Alegou para tanto e em síntese ser legítima proprietária do mesmo, por o haver adquirido no âmbito da sua actividade de locadora financeira mobiliária, ofendendo a penhora do aludido bem o seu direito de propriedade.
Que, porém, no âmbito de um contrato de locação financeira, entregou tal veículo à referida C………., Ldª, a qual, com a sua autorização, entretanto cedeu a sua posição em tal contrato a E………. .
Que no aludido processo executivo foi ordenada a penhora de tal veículo.
Requereu fosse ordenado o levantamento da penhora sobre o veículo automóvel de matrícula ..-..-RQ com base na ofensa do seu direito de propriedade.

2.

Foi proferido despacho liminar que, por manifesta improcedência indeferiu liminarmente os embargos.

Para o efeito e em síntese, entendeu o Sr. Juiz que:
«…a penhora recaiu sobre uma expectativa de aquisição do executado respeitante ao veículo alegadamente propriedade do embargante.
Ora, tal como preceitua o nº3, do supra citado artº860-A do C.P.Civil só após a consumação da aquisição a penhora passa a incidir sobre o próprio bem transmitido, pelo que apesar da penhora efectuada a propriedade do mesmo se mantém intocada.
O embargante alega tão só a propriedade do veículo e não a respectiva posse, o que se coaduna com a qualificação da relação jurídica que alega ter com o executado, e tal propriedade revela-se compatível com a penhora da expectativa de aquisição daquele pertencente ao executado…»

3.

Inconformada recorreu a embargante.

Rematando as suas alegações com a seguintes conclusões:

I
A Recorrente é dona e legitima proprietária da viatura Mitsubishi ………., de matrícula ..-..-RQ.
II
Por Contrato de Cessão de Posição Contratual de 05/08/03, a posição de locatária da sociedade C………., Ldª, passou de plena para E………., sendo este que paga as respectivas rendas mensais e terá direito a adquirir a viatura no final do contrato.
III
A sociedade C………., Ldª, é completamente alheia ao contrato de locação financeira em causa, nada tendo a ver com a Recorrente.
IV
Não existe, por isso, expectativa de aquisição da viatura, já que não existe qualquer contrato com a executada.
V
A penhora, com apreensão da viatura ofende a posse e a propriedade da Embargante, estando a acarretar-lhe prejuízos.
VI
Pelo que deverá ser revogada a sentença recorrida, e decretado de imediato o cancelamento da penhora.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 684º e 690º do CPC - de que o presente caso não constitui excepção - o teor das conclusões define o objecto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

(im)possibilidade de dedução de embargos de terceiro, por (não) afectação do direito de propriedade do locador nos casos em que o bem penhorado é apenas a expectativa de aquisição de tal bem pelo executado.

5.

Os factos a considerar são os resultantes do relatório supra.

6.
Apreciando.

Estatui o artº 1285º do CC:
O possuidor cuja posse for ofendida por diligência ordenada judicialmente pode defender a sua posse mediante embargos de terceiro, nos termos definidos na lei de processo”.
E prescreve o artº 351º, nº1, do CPC na redacção que lhe foi conferida pelo 38/2003, de 8 de Março que:
Se a penhora, ou qualquer acto judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro.
Da interpretação concatenada destes preceitos resulta, que não obstante o alargamento do âmbito dos embargos de terceiro operada pela reforma processual civil de 1995, resulta que, não obstante esse meio poder hoje também defender qualquer outro direito incompatível com a diligência judicial, a defesa da posse ainda é o fundamento nuclear dos embargos de terceiro. – cfr- Ac. do STJ de 19.06.2007, dgsi.pt,p.07A1624.
Tanto assim que, para bem compreender os embargos de terceiro é útil partir da sua configuração tradicional – Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 4ª ed. p.282.
Posto é que o direito invocado pelo terceiro embargante seja ofendido pela penhora.
No caso vertente, como se alcança do teor do requerimento inicial e contrariamente ao expendido pelo recorrente em sede de alegações, ele efectivamente apenas funda os embargos no seu direito de propriedade.
O que nem podia ser de outro modo, na medida em que ele admite e está assente que o veículo locado foi entregue aos sucessivos locatários os quais, assim, sobre ele exercem a posse efectiva e material.
Caímos, destarte, no conceito de direito incompatível.
A incompatibilidade do direito de terceiro afere-se pela virtualidade que ele possa ter para impedir a efectivação da normal função da penhora, qual seja a ulterior venda executiva forçada.
Tal força ou virtualidade tem de ser aferida atento o âmbito ou amplitude com que a penhora é feita, o que passa, desde logo, pela determinação da natureza e efeitos jurídicos do direito do executado que é penhorado – cfr. Autor e Ob. Cits. p.288 e Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, 1998, p.302.

In casu o que foi penhorado foi apenas a expectativa de aquisição do veículo por parte do executado que o detém em conformidade com um contrato de locação financeira.
O que está de acordo quanto ao seu regime jurídico decorrente do estatuído no DL149/95, de 24/6 no que tange aos direitos e deveres das partes.

Na verdade e nos termos do artº 1º do referido diploma: O contrato de locação financeira é um contrato duradouro cuja finalidade consiste em proporcionar a uma das partes, o locatário, um financiamento mediante a atribuição da posse e utilização para certo fim pelo locador que, por sua vez, o adquire para esse uso, tudo mediante o pagamento de uma renda, por certo período de tempo, com a faculdade de, no respectivo termo, o locatário poder adquirir, por compra, o bem por um preço convencionado, em princípio coincidente com o valor residual do bem não recuperado pelas rendas pagas.
A locação financeira é um contrato misto que inclui elementos próprios do contrato de locação e do mútuo e da compra e venda.
Assim, o locador é o proprietário da coisa locada até ao fim do prazo contratual, mantendo reserva legal em seu benefício dessa propriedade em garantia do financiamento prestado durante a vigência da execução contratual -art. 9º do cit. DL.
Por seu turno o locatário não adquire, por efeito do contrato qualquer direito de natureza real sobre o bem, apenas integrando na sua titularidade jurídica o direito de o usar e fruir, e, findo o contrato, o direito potestativo de o adquirir, pelo preço acordado - art. 10º.
Perante esta e outras realidades jurídicas – vg. a posição do promitente comprador em contrato de transmissão ou constituição de direitos reais sobre imóveis ou móveis sujeitos a registo, com eficácia real: artºs 413º nº1 e 830º nº1 do CC; a posição do titular do direito de preferência, com eficácia real, a quem não foi dado conhecimento da venda: artºs 421º e 422º do CC; o direito de cedência ou transferência dos profissionais de futebol: artº 19º da Lei 28/98 de 26 de Junho - a lei processual, com a Reforma de 95/96, passou a consagrar a possibilidade de penhorar direitos ou expectativas de aquisição de bens determinados por parte do executado – artº 860º-A do CPC.

Ora nestes casos o que é penhorado não é o bem ou a propriedade do mesmo, mas apenas situações jurídicas activas que, afectando em termos reais um bem, permitem que o titular possa no futuro adquiri-lo para si.
Assim, uma de três situações podem ocorrer.
Se antes antes da venda executiva, ocorrer a aquisição do bem pelo executado o n.º 3 deste último preceito prevê que a penhora passe a incidir sobre o próprio bem adquirido.
O que acontece por “conversão automática «evitando qualquer vazio por desaparecimento do objecto inicial da penhora»,
Mudando assim – mas só nesta fase processual - o objecto da penhora de “posição contratual para “direito real”.
Devendo, na circunstância, o agente de execução proceder à realização da penhora correspondente – de imóveis, nos termos do art. 838º e sgs. ou de móveis, em conformidade com o previsto no art. 848º.
Se tal aquisição não ocorrer, a penhora como penhora da posição contratual - direito de crédito - e inerente expectativa de aquisição, mantém-se e é esse o direito que é levado á venda.
Se - por qualquer causa de extinção do contrato - a posição jurídica do executado se extinguir, a penhora também se extingue por desaparecimento do objecto – cfr. Ac. do STJ de 13.11.2007, dgsi.pt, p. 07A3590.

In casu está apenas apurado que penhorado foi somente a expectativa de aquisição do veículo.
O que significa que, se até à venda deste direito, a propriedade do bem não for adquirida pelo executado, o que é vendido è apenas esta expectativa e não o veículo.
Consequentemente, pelo menos neste momento e fase processual, não se pode concluir que o direito do executado penhorado prejudique ou, até, de qualquer modo constranja o direito de propriedade da embargante, o qual, no processo executivo e se tudo continuar como está, se manterá incólume.
Logo, não se pode dizer que, pelo menos neste momento, se verifique a legalmente exigível e supra mencionada incompatibilidade.
Por outro lado o facto de a embargante alegar ter sido cedida a posição contratual de locatário para um terceiro, em nada altera os dados da questão.
Porque, em primeiro lugar, invocando ela apenas – repete-se - como fundamento dos embargos, o seu direito de propriedade, este continua a não ser afectado, independentemente da qualidade e identidade do locatário, o qual permanece na posse do automóvel.
Porque, em segundo lugar, o facto de a executada já não ser locatária e possuidora do carro e, assim, não inserindo na sua esfera jurídico-patrimonial a expectativa da sua aquisição, mostra-se irrelevante em sede de embargos de terceiro, apenas podendo, eventualmente, sustentar embargos de executado.

Revelando-se, decorrentemente, inadmissíveis os embargos deduzidos.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pela recorrente.

Porto, 2007.12.04
Carlos António Paula Moreira
Maria da Graça Pereira Marques Mira
António Guerra Banha