Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1653/12.2JAPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: COMBATE À CRIMINALIDADE ORGANIZADA E ECONÓMICO-FINANCEIRA
PERDA DE BENS
INCIDENTE DE LIQUIDAÇÃO
PRESUNÇÃO JURIS TANTUM
Nº do Documento: RP201406111653/12.2JAPRT-A.P1
Data do Acordão: 06/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A perda de bens determinada pelo art. 7.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2012, de 11 de janeiro, não incide propriamente sobre bens determinados, mas sobre o valor correspondente à diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.
II – O Ministério Público deve proceder à liquidação do património incongruente (“o montante apurado como devendo ser perdido a favor do Estado” – art. 8.º, n.º 1), em incidente de liquidação enxertado no processo penal, e promover a sua perda a favor do Estado.
III – Para decidir a liquidação, o tribunal tem em consideração toda a prova produzida no processo.
IV – A base de partida é o património do arguido, todo ele, pois o conceito é utilizado no art. 7.º numa perspetiva omnicompreensiva, de forma a abranger não só os bens de que o arguido seja formalmente titular (do direito de propriedade ou de outro direito real), mas também aqueles de que ele tenha o domínio de facto e de que seja beneficiário (é dizer, os bens sobre os quais exerça os poderes próprios do proprietário), à data da constituição como arguido ou posteriormente.
V - Para este efeito, incluem-se, no património do arguido, os bens transferidos para terceiros de forma gratuita ou através de uma contraprestação simbólica nos cinco anos anteriores à constituição de arguido e os por ele recebidos no mesmo período.
VI – Apurado o valor do património, há que confrontá-lo com os rendimentos de proveniência comprovadamente lícita, auferidos pelo arguido naquele período. Se desse confronto resultar um “valor incongruente”, não justificado, incompatível com os rendimentos lícitos, é esse montante da incongruência patrimonial que poderá ser declarado perdido a favor do Estado.
VII – Para garantir a efetiva perda desse valor incongruente, pode o Ministério Público requerer ao juiz que decrete o arresto de bens do arguido.
VIII – O arresto pode incidir sobre bens de que formalmente é titular um terceiro.
IX – O titular de direitos afetados pela decisão pode, tal como o arguido, ilidir a presunção do art. 7.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2002, nomeadamente provando (através da demonstração inteligível dos fluxos económico-financeiros na origem das aquisições em causa) que os bens foram adquiridos com proventos de atividade lícita.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1653/12.2 JAPRT-A.P1
Recurso penal
Relator: Neto de Moura

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto

I – Relatório

Nos autos de processo comum que, sob o n.º 1653/12.2 JAPRT, correm termos na 4.ª Vara Criminal da Comarca do Porto, o Ministério Público apresentou requerimento de liquidação para perda ampliada de bens a favor do Estado e, a final, requereu:
- a perda a favor do Estado do valor de € 80.214,62, correspondente ao “valor do património incongruente com o rendimento lícito e, consequentemente, o arguido B… condenado a pagar ao Estado esse montante”;
- a perda a favor do Estado do valor de € 315.559,09, correspondente ao “valor do património incongruente com o rendimento lícito e, consequentemente, o arguido C… condenado a pagar ao Estado esse montante”;
- o arresto “de todos e quaisquer bens que sejam encontrados em poder dos arguidos B… e C… …que sejam suficientes para garantir o pagamento dessa quantia, designadamente as viaturas apreendidas à ordem do presente processo bem como os imóveis supra referidos”.
Apreciando tal requerimento, o Sr. Juiz titular do processo proferiu o despacho que consta a fls. 1261-1263 dos autos (fls. 29 a 32 destes autos de recurso), decidindo:
“Pelo exposto e ao abrigo do disposto nos artigos 10º, n.°s 3 e 4 da Lei nº 5/2002, de 11 de janeiro e 228º do Código de Processo Penal, decreta-se o arresto preventivo:
a)- de todos e quaisquer bens que sejam encontrados em poder do arguido B…, a ele pertencentes, que sejam suficientes para garantir o pagamento da quantia de € 80.214,62, designadamente as viaturas apreendidas à ordem do presente processo.
b)- de todos e quaisquer bens que sejam encontrados em poder do arguido C…, a ele pertencentes, que sejam suficientes para garantir o pagamento da quantia de € 315.559,09, designadamente, as viaturas apreendidas à ordem do presente processo bem como os imóveis referidos no requerimento de liquidação de fls. 1240 e segs.”.
Contra esta decisão veio reagir E…, interpondo o presente recurso para este Tribunal da Relação, com os fundamentos que explanou na respectiva motivação e que “condensou” nas seguintes “conclusões” (em transcrição integral):
“A) A aqui Recorrente não é parte nos autos de processo criminal, sendo terceira, sendo certo que não tendo ocorrido a notificação da Recorrente, esta enquanto titular de direitos legais sempre poderá, querendo, defender-se exercendo o contraditório sob pena de, salvo o devido respeito, serem violados os princípios da certeza e segurança jurídicos.
B) A Recorrente é proprietária dos bens arrestados nos autos, constando como titular dos mesmos, a saber:
- Um prédio urbano, destinado a habitação, sito na Rua …, casa ., Porto, freguesia …, descrito na conservatória do registo predial do Porto sob o n.º 5535 e inscrito na matriz sob o artigo 4825;
- Uma fracção autónoma, designada pelas letras DD, correspondentes a um estabelecimento comercial, sito na Rua … n.º …. r/c, Porto, descrita na conservatória do registo predial do Porto sob o n.º 1181 freguesia … e inscrita na matriz sob o art. 3437 DD;
- Um veículo automóvel da marca Audi, modelo .., matrícula ..-MH-...
C) Nos termos do Artº 401º n.º 1 al d) do C.P.P
“1 - Têm legitimidade para recorrer:
( ).
d) Aqueles que tiverem sido condenados ao pagamento de quaisquer importâncias, nos termos deste Código, ou tiverem a defender um direito afectado pela decisão. ( )”
E o n.º 2 do mesmo comando legal,
“2- Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir. ”
D) Não tendo sido judicialmente interpelada, interpelação essa que, no entender da Recorrente impunha-se que tivesse ocorrido, uma vez que é a proprietária dos bens arrestados, constando como titular inscrita facto que o Tribunal tem perfeito conhecimento, como de resto resulta, dos próprios autos de arresto, o prazo para a interposição do presente recurso, corre desde a data do conhecimento do facto que afectou os seus direitos.
E) Sendo conhecedora da violação do seu direito na visita de 16/01/2014, imediatamente posterior, a concretização dos Autos de Arresto, ou seja, 13/01/2014, e apenas porque o arguido a informou, o presente Recurso é tempestivo, sob pena de se violar o princípio constitucional previsto no Artº 20º nº 5 da C.R.P. e a segurança e certeza jurídica que é o princípio basilar de um Estado de Direito, que age de boa fé.
F) O arresto preventivo encontra-se previsto no art.228º do C.P.P, existindo pressupostos legais que têm que ser verificados para que o mesmo possa ser decretado.
Assim, prescreve o n.º 1 do respetivo comando legal:
“1 - A requerimento do Ministério Público ou do lesado, pode o juiz decretar o arresto, nos termos da lei do processo civil; se tiver sido previamente fixada e não prestada caução económica, fica o requerente dispensado da prova do fundado receio de perda de garantia patrimonial”.
Perante a redacção do actual n.º 1 do art. 228.º, do CPP, introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25/08, pode o arresto ser decretado, independentemente de caução económica, desde que verificados todos os pressupostos definidos na lei processual civil.()
(in, Ac. da Relação de Lisboa de 22.05.2007, proc. n.º 3767/2007-5) G) Daqui resulta que, mesmo em processo penal, para que o arresto possa ser decretado é necessário que se verifiquem os requisitos da lei processual civil. São eles,
- o fumus bonus iuris ou seja, é preciso que o requerente invoque a probabilidade séria de existência de um direito e que essa “aparência de direito” se verifique;
- Existência do periculum in mora. O requerente tem de invocar um fundado receio de que a demora na resolução da demanda lhe causará prejuízo irreparável, ou de muito difícil reparação.
H) Não pondo em questão a não fixação prévia da caução económica ao Arguido C…, não estava o Ministério Público, dispensado de proceder à demonstração do fundado receio da perda de garantia patrimonial” o que aliás resulta, do próprio art. 228º n.º 1 do CPP, “a contrario”.
I) Ora, o “justo receio” tem que ser apreciado objetivamente e não subjetivamente não sendo suficiente, a acusação do Ministério Publico.
J) O que significa que o arresto dos bens da ora Recorrente mostra-se desde logo inadmissível por ilegal, face à inobservância dos pressupostos legais concretamente, a prova do justo receio que teria deter sido feita pelo Ministério Publico, e não foi.
K) O arresto só pode incidir sobre bens do “devedor”, pois são estes que, garantem o cumprimento da obrigação, conforme resulta do próprio art. 601º, do Código Civil.
L) Como regra, todos os bens do devedor, isto é, todos os que constituem o seu património, respondem pelo cumprimento da obrigação, mas só estes!
M) Ora, conforme resulta da certidão predial junta, o primeiro bem, prédio urbano correspondente a casa de habitação encontra-se registado a favor da Recorrente, sendo esta, a sua única proprietária.
N) Sendo a Recorrente atualmente, de facto e de direito, bem como, à data em que foram arrestados os bens, a única proprietária e possuidora do referido imóvel, vivendo neste com o seu filho menor.
O) O mesmo se diga quanto ao terceiro bem, veículo automóvel - Audi .., pertence apenas à Recorrente, conforme documento que se anexou e, consta da promoção da liquidação promovida pelo Ministério Público.
P) Ora, a Recorrente não se encontra acusada da prática de qualquer crime, nem teve qualquer intervenção nestes autos criminais, nem tão pouco foi para os mesmos citada e/ou notificada, sendo totalmente alheia a estes pelo que, nunca podiam ter sido arrestados os referidos bens, por serem da sua propriedade e não, do Arguido C….
Q) Aliás o próprio despacho do M° Juiz a quo é percetível e compreensível, quando afirma in fine “…decreta-se o arresto...
De todos e quaisquer bens que sejam encontrados em poder do arguido C…, a ele pertencentes...”
R) Causando a apreensão prejuízo à Recorrente pela privação do uso do veículo, pela deterioração resultante da sua paralisação e pela desvalorização com a passagem do tempo.
S) Quanto à fracção “DD”, também ela arrestada, foi adquirida pela Recorrente em compropriedade com o arguido C…, conforme consta do registo predial, da promoção da liquidação promovida pelo Ministério Público e dos autos do arresto.
T) Só podem ser arrestados bens suscetíveis de penhora, conforme resulta do art. 391 n.º 2 do CPC que prevê:
“O arresto consiste numa apreensão judicial de bens, à qual são aplicáveis as disposições relativas à penhora ( )”
Por sua vez, preceitua o art. 743º do CPC:
“( )na execução movida apenas contra algum ou alguns dos contitulares de património autónomo ou bem indiviso, não podem ser penhorados os bens compreendidos no património comum ou uma fracção de qualquer deles, nem uma parte especificada do bem indiviso.”
U) Assim, pese embora a referida fracção se encontrar registada em nome da Recorrente e do Arguido C… na medida em que se trata de um bem indiviso e a Recorrente, reitera-se não ser parte nos autos principais, não podia ter sido objeto de arresto.
V) Ao ter sido concretizado o arresto sobre a referida fracção, viola o direito de propriedade da Recorrente que como supra se disse não é parte nos presentes autos.
X) Salvo o devido respeito, mal andou o Tribunal ao decidir pelo decretamento do arresto preventivo relativamente aos bens da ora Recorrente violando designadamente o disposto nos artigos 441º n.º 1 al. a), 228º n.º 1 ambos do CPP, 601º n.º 1 do CC, 391º n.º 2 e 743º ambos do C.P.C.”.
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Admitido o recurso (despacho a fls. 1611, reproduzido a fls. 120 destes autos), o Ministério Público no tribunal recorrido respondeu à respectiva motivação, concluindo que não merece provimento e por isso deve ser confirmada a decisão recorrida.
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Já nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção prevista no artigo 416.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, emitiu douto parecer em que se pronuncia pela improcedência do recurso.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, mas não houve resposta da recorrente.
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Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II - Fundamentação
É geralmente aceite que são as conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 412.º, n.º 1, e 417.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj)[1] e, portanto, delimitam o objecto do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso.
Face às conclusões formuladas pela recorrente, as questões a apreciar e decidir podem ser assim enunciadas:
- se era legalmente inadmissível o arresto por não estar demonstrado o justo receio de perda da garantia patrimonial;
- sobre que bens poderia incidir o arresto;
- sendo a recorrente “terceira” (porque estranha ao processo, onde não é arguida), por que meios podia reagir contra o arresto que incidiu sobre bens a ela pertencentes.
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Importa, antes de mais, conhecer, na íntegra, o teor do despacho em crise[2].
«No final do seu requerimento de liquidação para perda ampliada de bens a favor do Estado de fls. 1240 e segs., veio o Ministério Público requerer seja decretado o arresto de todos os bens que sejam encontrados em poder dos arguidos B… e C…, deles pertença, que sejam suficientes para garantir 0 pagamento das quantias liquidadas, designadamente, as viaturas apreendidas a ordem do presente processo bem como os iméveis supra referidos.
Cumpre apreciar e decidir.
Dispõe o artigo 10° da Lei 5/2002, de 11.01, o seguinte:
“1 - Para garantia do pagamento do valor determinado nos termos do n.º 1 do artigo 7.º, é decretado o arresto de bens do arguido.
2 - A todo o tempo, o Ministério Público requer o arresto de bens do arguido no valor correspondente ao apurado como constituindo vantagem de actividade criminosa.
3 - O arresto é decretado pelo juiz, independentemente da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do artigo 227.º do Código de Processo Penal, se existirem fortes indícios da prática do crime.
4 - Em tudo o que não contrariar o disposto na presente lei é aplicável ao arresto o regime do arresto preventivo previsto no Código de Processo Penal”.

São pressupostos do decretamento do arresto para garantia da perda alargada de bens a favor do Estado:
- a existência de fortes indícios da prática de um dos crimes do catálogo consagrado no artigo 1° da Lei n° 5/2002, de 11 de Janeiro;
- fortes indícios da desconformidade do património do arguido, ou seja, o património apurado tem de ser incongruente com o rendimento lícito;
À semelhança das restantes medidas de garantia patrimonial, também o arresto para garantia da perda alargada está sujeito aos princípios da necessidade, adequação, subsidiariedade, precariedade e proporcionalidade. O único requisito que o Ministério Público está dispensado de demonstrar é um periculum in mora substancial- artigo 10°, n.ºs 3 e 4 da Lei n° 5/2002, de 11 de janeiro (cfr. sobre toda esta matéria, João Conde Correia, Da Proibição do Confisco à Perda Alargada, pág.186 e segs.).
Vejamos então.
Aos arguidos B… e C… é imputado na acusação o cometimento de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21° do Decret0-Lei n.º 15/93, de 20.1., vindo os mesmos acusados de se dedicarem ao dito ilícito desde Agosto de 2011, sendo que se encontra indiciado que arguidos não possuíam qualquer actividade profissional para além da actividade de tráfico de estupefaciente de onde lhe vinham todos os proventos. Por outro lado, resulta indiciado dos autos apensos de investigação patrimonial e financeira que o património do arguido C… não é compatível com os rendimentos lícitos por si auferidos, apurando-se um excesso ou incongruência no valor de € 315.559,09, e que o património do arguido B… não é compatível com os rendimentos lícitos por si auferidos, apurando-se um excesso ou incongruência no valor de € 80.214,62.
Tudo considerado, mostram-se preenchidos os pressupostos de que depende o decretamento do arresto preventivo requerido pelo Ministério Público.
Pelo exposto e ao abrigo do disposto nos artigos 10°, n.°s 3 e 4 da Lei n° 5/2002, de 11 de janeiro e 228° do Código de Processo Penal, decreta-se o arresto preventivo
a)- de todos e quaisquer bens que sejam encontrados em poder do arguido B…, a ele pertencentes, que sejam suficientes para garantir o pagamento da quantia de € 80.214,62, designadamente as viaturas apreendidas à ordem do presente processo.
b)- de todos e quaisquer bens que sejam encontrados em poder do arguido C…, a ele pertencentes, que sejam suficientes para garantir o pagamento da quantia de € 315.559,09, designadamente, as viaturas apreendidas à ordem do presente processo bem como os imóveis referidos no requerimento de liquidação de fls. 1240 e segs.
D.N., remetendo o apenso de liquidação, a título devolutivo, ao GRA a fim de este proceder ao arresto dos bens”.
Todo o acto decisório deve ser fundamentado, dever que é inerente ao conceito de Estado de direito democrático.
O n.º 5 do artigo 97.º do Cód. Proc. Penal esclarece que na fundamentação devem ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
Como revela a leitura do despacho transcrito, nele não estão devidamente especificados os motivos de facto da decisão, embora se mencione a acusação pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punível pelo artigo 21.º do Decret0-Lei n.º 15/93, de 20 de Janeiro, e a falta de actividade profissional lícita por parte de ambos os arguidos.
É, manifestamente, insuficiente a fundamentação de facto.
As exigências do cumprimento desse dever e as consequências da falta ou insuficiência da fundamentação não são as mesmas para todos os actos decisórios: existe um regime geral (definido nos artigos 97.º e 118.º a 123.º do Cód. Proc. Penal) e regimes específicos para as sentenças (artigos 374.º e 379.º) e para os despachos que aplicam medidas de coacção (artigo 194.º do mesmo compêndio normativo).
O regime geral das invalidades em processo penal é dominado pelo princípio da legalidade ou tipicidade das nulidades: só se consideram nulos os actos que, sendo praticados com violação ou inobservância da lei, esta expressamente comine essa consequência (artigo 118.º, n.º 1).
Fora desses casos, se for cometida alguma ilegalidade susceptível de afectar o valor do acto praticado, estaremos perante uma irregularidade (n.º 2 do citado artigo 118.º).
A decisão que decreta o arresto de bens não é uma sentença (definida no artigo 97.º do Cód. Proc. Penal como o acto decisório que conhece a final do objecto do processo) nem o arresto é uma medida de coacção (como decorre do artigo 228.º do Cód. Proc. Penal, trata-se de uma medida de garantia patrimonial).
Uma vez que nenhuma disposição legal comina a nulidade para a insuficiência da fundamentação, aquela decisão estará afectada de mera irregularidade.
O regime da irregularidade é, no essencial, idêntico ao da nulidade sanável, importando destacar os seguintes pontos:
● para ser conhecida, tem de ser arguida pelo interessado;
● o interessado pode renunciar, expressa ou tacitamente, à sua arguição;
● em regra, deve ser arguida no próprio acto, estando o interessado e/ou o seu advogado presentes.
As principais diferenças situam-se no prazo de arguição quando o interessado ou o seu advogado não assistam ao acto pretensamente irregular (três dias a contar daquele em que um ou outro tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou tiverem intervindo em algum acto nele praticado) e na circunstância de, em alguns casos, ser de conhecimento oficioso.
A recorrente não arguiu a irregularidade do despacho em crise, pelo que o vício ficou sanado.
Vejamos, então, que factos, com interesse para a decisão, podemos considerar fortemente indiciados, tendo em conta os elementos que estes autos nos fornecem:
a) Desde data não apurada, mas, pelo menos, desde finais de Agosto de 2011 e até Maio de 2013, B… e C…, agindo de comum acordo e conjugando meios e esforços, dedicaram-se à actividade de compra e venda de avultadas quantidades de produtos estupefacientes, designadamente heroína e cocaína, fornecendo, mediante contrapartida pecuniária, tais substâncias a outros indivíduos que, para tanto, os contactavam, quer para consumo próprio destes, quer para revenda.
b) B… e C… foram detidos, constituídos arguidos e sujeitos à medida coactiva de prisão preventiva em 15.05.2013.
c) Contra os referidos arguidos (além de dois outros), foi deduzida acusação, imputando-lhes o Ministério Público a prática, em co-autoria, de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punível pelo artigo 21.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
d) O arguido B…, antes de preso, não exercia actividade profissional lícita de que obtivesse qualquer rendimento e viveu em união de facto com D…, com ela partilhando cama, mesa e habitação, pelo menos, desde 1999 e até Março de 2010, data em que, entre si, contraíram matrimónio.
e) O arguido C.., antes de preso e desde, pelo menos, 2009, vivia em união de facto com E…, com ela partilhando cama, mesa e habitação, e explorava, pelo menos, desde Fevereiro de 2013, um estabelecimento comercial de artigos de desporto instalado num imóvel sito na Rua …, n.º …, da cidade do Porto.
f) Pela AP. 2044 de 2013/11/19, está registada a favor da recorrente E… a aquisição, por compra a C…, do prédio urbano sito em …, na Rua …, n.º …, composto de casa de rés-do-chão e quintal, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º 35530 e inscrito na respectiva matriz sob o n.º 4825.

Importa, ainda, ter em consideração as seguintes ocorrências processuais:
1. A acusação deduzida contra os arguidos foi recebida, tendo sido designado o dia 26.02.2014 para o início da audiência de julgamento;
2. Em 05.12.2013, o Ministério Público apresentou requerimento nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 7.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro.
3. Nesse requerimento, o Ministério Público procedeu à liquidação do património total do arguido B…, tendo apurado o valor de € 104.646,85, e o rendimento lícito de € 24.434,23, correspondente ao valor total do rendimento social de inserção de que ele e a esposa foram beneficiários no período compreendido entre Janeiro de 2008 e Julho de 2012, assim obtendo o montante de € 80.214,62 como valor a ser declarado perdido a favor do Estado.
4. No mesmo requerimento, o Ministério Público procedeu à liquidação do património total do arguido C… e da sua companheira E…, aqui recorrente, tendo apurado o valor de € 322.559,09, e o rendimento lícito de € 7.000,00, correspondente ao valor total dos rendimentos que declarou perante a Administração Tributária nos anos de 2010 e 2011, assim obtendo o montante de € 315.559,09 como valor a ser declarado perdido a favor do Estado.
5. Em 13.01.2014, no âmbito deste processo n.º 1653/12.2 JAPRT, procedeu-se ao arresto do prédio identificado na alínea f) supra.
6. Na mesma data, procedeu-se ao arresto da fracção autónoma designada pelas letras DD, correspondente ao rés-do-chão do prédio urbano sito na Rua … n.º …., da cidade do Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º 1181 e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 3658, com inscrição da aquisição da respectiva propriedade a favor de E… e de C….
7. Ainda na mesma data, procedeu-se ao arresto do veículo automóvel da marca “Audi”, matrícula ..-MH-.., cuja propriedade está registada a favor de E…, pela Apresentação 00411, de 13/10/2011.
*
Como bem resulta da motivação do seu recurso e está espelhado nas conclusões B) a J), toda a argumentação da recorrente tendente a demonstrar a ilegalidade do arresto decretado assenta no pressuposto de que o decretamento de tal providência cautelar está sujeito, por remissão do artigo 228.º do Cód. Proc. Penal, às normas do processo civil (actualmente, artigos 397.º e segs. do Código de Processo Civil), exigindo que o requerente demonstre:
a) a existência, a seu favor, de um direito de crédito sobre o requerido ou, pelo menos, a probabilidade da existência de um crédito (o chamado fumus bonus iuris);
b) o perigo de insatisfação desse crédito aparente (o chamado periculum in mora).
No entanto, no despacho em crise, está expressamente referido que o arresto é decretado ao abrigo do disposto no artigo 10.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, o que parece ter sido ignorado pela recorrente.
Com efeito, no âmbito do combate à criminalidade organizada e económico-financeira, aquele diploma legal estabeleceu regimes especiais em matérias como a recolha de prova, a quebra do sigilo fiscal e bancário e a perda de bens a favor do Estado[3].
O artigo 1.º da Lei n.º 5/2002 estabelece um “catálogo” de crimes que se caracterizam, não só pelo grau de sofisticação e organização com que são praticados, mas também, e sobretudo, pela sua capacidade de gerar avultados proventos para os seus agentes, como é o caso do tráfico de drogas. Daí a instituição de mecanismos especiais que visam facilitar a investigação e a recolha de prova e de um mecanismo sancionatório, repressivo que garanta a perda das vantagens obtidas com a actividade criminosa, tomando por base a presunção de obtenção de vantagens patrimoniais ilícitas através dessa actividade.
Por isso, ao caso sub iuditio, aplica-se, em primeira linha, o regime da perda alargada de bens previsto nos artigos 7.º a 12.º daquele diploma legal.
Tal regime não exclui a aplicação simultânea dos mecanismos ablativos consagrados nos artigos 35.º a 38.º do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, que também contêm regulamentação específica no que concerne à perda dos instrumenta e dos producta sceleris e, bem assim, das vantagens e direitos obtidos com a actividade de tráfico de estupefacientes[4].
Como direito subsidiário, temos as normas dos artigos 109.º a 112.º do Código Penal, os artigos 227.º e 228.º do Código de Processo Penal e, ainda, as normas que regulam o arresto em processo civil.
Como já se aludiu, no regime instituído pela Lei n.º 5/2002, a declaração de perda ampliada não incide propriamente sobre bens determinados, mas sobre um valor, que, nos termos do artigo 7.º, n.º 1, daquele diploma legal, é o correspondente à “diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito”.
Por isso, é imprescindível que o Ministério Público proceda à liquidação do património incongruente (“o montante apurado como devendo ser perdido a favor do Estado”, nos termos do n.º 1 do artigo 8.º daquela Lei) e promova a sua perda a favor do Estado.
Tal liquidação é um incidente enxertado no processo penal, pois, em princípio, deve ser feita na própria acusação ou, não sendo possível, até 30 dias antes da data designada para a realização da audiência de julgamento (n.º 2 do artigo 8.º). Incidente e processo crime correm em simultâneo, podendo o tribunal ter em consideração toda a prova produzida no processo para decidir a liquidação.
A base de partida é o património do arguido, todo ele, pois o conceito é utilizado no artigo 7.º numa perspectiva omnicompreensiva[5], de forma a abranger, não só os bens de que ele seja formalmente titular (do direito de propriedade ou de outro direito real), mas também aqueles de que ele tenha o domínio de facto e de que seja beneficiário (é dizer, os bens sobre os quais exerça os poderes próprios do proprietário), à data da constituição como arguido ou posteriormente.
Esta amplitude com que a lei define o património do arguido para este efeito tem um fito: o de minimizar a possibilidade de ocorrência de fraude, de ocultação do seu verdadeiro titular. Por isso, como assinala Jorge Godinho[6], “visam-se aqui os bens detidos formalmente por outra pessoa, singular ou colectiva, tratando-se de provar que em todo o caso os bens pertencem à esfera jurídica do arguido”, cabendo ao Ministério Público a prova de que “apesar de a titularidade pertencer a outrem, o respectivo domínio e benefício – conceitos claramente usados em sentido económico-factual, com vista a expandir o âmbito de aplicação do confisco e a evitar o que seriam fáceis fugas ao mesmo – pertencem ao arguido”.
Para este efeito, incluem-se, ainda, no património do arguido os bens transferidos para terceiros de forma gratuita ou através de uma contraprestação simbólica nos cinco anos anteriores à constituição de arguido e os por ele recebidos no mesmo período.
Apurado o valor do património, há que confrontá-lo com os rendimentos de proveniência comprovadamente lícita auferidos pelo arguido naquele período.
Se desse confronto resultar um “valor incongruente”, não justificado, incompatível com os rendimentos lícitos, é esse montante da incongruência patrimonial que poderá ser declarado perdido a favor do Estado, uma vez que, condenado o arguido, por sentença transitada em julgado, pela prática de um crime do catálogo, opera a presunção (juris tantum) de origem ilícita desse valor[7].
Para garantir a efectiva perda desse valor incongruente, pode o Ministério Público requerer ao juiz que decrete o arresto de bens do arguido (sem que caiba qualquer discussão sobre a sua origem lícita ou ilícita), podendo o arresto ser decretado “independentemente da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do artigo 227.º do Código de Processo Penal” (n.º 3 do artigo 10.º da Lei n.º 5/2002), o que é dizer que o decretamento do arresto não depende da verificação do periculum in mora, do fundado receio de perda ou diminuição substancial das garantias de pagamento do montante incongruente (assim, Jorge Godinho, loc. cit., 1346 e Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, UCE, 2.ª edição actualizada, p. 627).
Falece razão à recorrente quando qualifica como “inadmissível por ilegal” (conclusão J)) o arresto decretado, por não verificação de requisito de justo receio de perda da garantia patrimonial.
O que se exige é a existência de fortes indícios da prática de crime do catálogo (trecho final do citado n.º 3 do artigo 10.º).
Ora, tendo sido deduzida acusação contra o arguido C… pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, acusação essa recebida pelo juiz de julgamento que designou data para a audiência, forçoso é concluir que verificado está esse requisito legal.
*
Poderia o arresto ter incidido sobre bens de que, pelo menos formalmente, é titular a recorrente?
Recorde-se que, além de outros, foram arrestados:
- um prédio urbano sito em …, na Rua …, n.º …, composto de casa de rés-do-chão e quintal;
- a fracção autónoma correspondente ao rés-do-chão do prédio urbano sito na Rua … n.º …., da cidade do Porto;
- o veículo automóvel da marca “Audi”, matrícula ..-MH-...
Foi contra o arresto desses bens que a recorrente reagiu pela via do recurso.
É indiscutível que o arresto tem de recair sobre bens do arguido.
No entanto, não é demais voltar a realçar o carácter omnicompreensivo do conceito de “património do arguido” que, para o efeito de perda ampliada de bens, o artigo 7.º, n.º 2, da Lei n.º 5/2002 consagra, de tal modo que nele cabem bens de que, formalmente, é titular outra pessoa.
É o caso do prédio urbano sito em Paranhos.
Estando a aquisição do direito de propriedade sobre esse prédio definitivamente registada na competente conservatória do registo predial a favor da recorrente E…, esta beneficia da presunção derivada do registo: que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define (artigo 7.º do Código de Registo Predial).
Esta não é, porém, uma presunção forte, juris et jure, ou seja, pode ser ilidida mediante prova em contrário.
Acontece que a recorrente adquiriu a propriedade do prédio ao arguido C… que, por coincidência, era seu companheiro, pois com ele vivia em união de facto, precisamente, no prédio adquirido. Mais: a aquisição registada ocorreu já depois de o alienante, o C…, ter sido detido e constituído arguido.
Quanto ao veículo automóvel, o Ministério Público alega que foi adquirido pelo arguido C… com dinheiro proveniente do tráfico de droga. A ser assim, provando-se que realmente foi comprado com os proventos que o arguido C… obteve com essa actividade criminosa, constitui productum sceleris e pode ser declarado perdido a favor do Estado nos termos do artigo 111.º, n.º 2, do Código Penal.
Além disso, pode dizer-se que o verdadeiro dono do veículo automóvel, quem tem (tinha) o domínio e benefício do bem era o arguido C….
Estamos perante dois casos nítidos de bens que integram o património do arguido, embora formalmente pertençam a terceiro (a recorrente), pelo que poderão ser abrangidos pela presunção que o artigo 7.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2002 estabelece e, logo, pelo mecanismo sancionatório da perda alargada.
Isto, claro está, sem prejuízo de prova em contrário, a fazer na audiência de julgamento.
Quanto à fracção predial autónoma, aí está(va) instalada uma loja de artigos de desporto que, segundo a acusação, mais não servia ao arguido C… que para camuflar a actividade criminosa de tráfico de estupefacientes.
Por isso, e porque o arguido era seu comproprietário, estava na sua esfera de disponibilidade fáctica e jurídica, pelo que não pode deixar de ser considerada como integrando o seu património, de harmonia com a alínea b) do n.º 2 do artigo 7.º da Lei n.º 5/2002.
Além disso, se também este imóvel foi adquirido com dinheiro proveniente da actividade de tráfico de estupefacientes, como alega o Ministério Público, a recorrente E… não poderá ser considerada terceiro de boa fé.
Em conclusão, qualquer destes três bens podia ter sido, como foi, objecto de arresto.
É inútil a discussão sobre qual seria o meio mais adequado de a recorrente reagir contra o arresto daqueles bens.
O que importa é que a lei lhe reconhece legitimidade para recorrer (artigo 401.º, n.º 1, al. d), trecho final, do Cód. Proc. Penal) e foi o que fez.
No entanto, tal como no arresto em processo civil, o requerido que opte, no exercício do contraditório, por recorrer da decisão que decreta o arresto não pode, em sede de recurso, pretender alegar factos e/ou produzir meios de prova susceptíveis de infirmar os fundamentos da decisão de que recorre, também aqui, no processo penal, não seria em sede recursiva que a recorrente poderia alegar e provar que foi com as economias do seu trabalho no “F…” e na “G…” e como empregada de limpeza e, ainda, com a ajuda da sua avó que comprou aqueles dois imóveis e o “Audi ..”.
Mas a recorrente, como eventual titular de direitos afectados pela decisão, não pode ser afastada da discussão sobre a liquidação do património incongruente com vista à decisão sobre a perda ampliada de bens.
Pode, desde logo, tal como o arguido, ilidir a presunção do artigo 7.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2002, nomeadamente, provando que os bens foram adquiridos com proventos de actividade lícita. Para tanto, como alvitra Jorge Godinho (loc. cit., 1343), “terá de justificar a proveniência substancial dos meios empregues na aquisição dos bens, documentando as respectivas afirmações”, ou seja, “a justificação deverá tornar inteligíveis os fluxos económico-financeiros na origem das aquisições em causa”.
Cabe, por último, lembrar que, quer o Supremo Tribunal de Justiça (cfr. acórdão de 12/11/2008 – Proc. n.º 08P3180), quer o Tribunal Constitucional (acórdão n.º 294/2008) já se pronunciaram no sentido de que a aludida presunção (de ilicitude da proveniência do património incongruente) não viola qualquer direito fundamental, nomeadamente o direito de propriedade, porquanto:
- opera apenas no âmbito de crimes de catálogo (enunciados no art. 1.º da Lei n.º 5/2002);
- a presunção - base da declaração de perda ampliada - supõe a condenação, com trânsito em julgado, por um daqueles crimes;
- é direccionável, apenas, às vantagens derivadas da actividade criminosa, assente num propósito de prevenção da criminalidade em globo, ligado ao velho aforismo de que o crime não compensa (não pode compensar);
- o arguido pode arredar a presunção, demonstrando, no exercício do seu pleno direito de contraditório, a proveniência lícita dos bens ou vantagens liquidados pelo Ministério Público com o rótulo de ilícitos.
Importa, ainda, deixar aqui nota de que o Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 7/87 (D.R, I, n.º 33, de 9 de Fevereiro de 1987) já considerou que as apreensões em processo penal (e o mesmo se poderá dizer do arresto que, no fundo, é uma apreensão), quando autorizadas ou ordenadas pela autoridade judiciária, não podem deixar de considerar-se um limite imanente ao direito de propriedade, daí se extraindo a completa conformidade com a garantia constitucional das normas que as prevêem.
Também no caso vertente, não se descortina que a manutenção do arresto até ao trânsito em julgado da sentença represente uma restrição ilegítima do direito de propriedade por violação do princípio da proporcionalidade, designadamente na sua dimensão de adequação aos fins visados pela lei.

IIIDispositivo
Em face do exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto por E… e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
A recorrente pagará taxa de justiça que se fixa em 4 (quatro) UC´s (artigos 513.º, n.º 1, e 514.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais).
(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).

Porto, 11-06-2014
Neto de Moura
Vítor Morgado
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[1] Cfr., ainda, o acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ n.º 7/95, de 19.10.95, DR, I-A, de 28.12.1995.
[2] O arguido C… deduziu oposição ao arresto e, por despacho de 28.02.2014 (de que está reprodução a fls. 120-125 destes autos), foi a oposição julgada improcedente e mantido o arresto decretado, incluindo sobre os bens de que a recorrente se arroga proprietária.
[3] Em bom rigor, não se trata de uma perda de bens como a prevista no Código Penal (artigos 109.º a 112.º). Apesar de ser essa a denominação utilizada na Lei n.º 5/2002, do que se trata é da perda de um valor: o valor correspondente à diferença entre o valor do património total do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito. É esse valor do património incongruente que se presume constituir vantagem de actividade criminosa e que, em caso de condenação pela prática de algum ou alguns dos crimes catalogados no artigo 1.º daquele diploma legal, será declarado perdido a favor do Estado.
[4] Como bem refere Hélio Rigor Rodrigues, “Perda de bens no crime de tráfico de estupefacientes”, in Revista do Ministério Público, 134.º, Abril/Junho de 2013, p. 223, “não sendo a aplicação do regime previsto na Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, excludente do regime previsto no Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, deverá declarar-se a perda das vantagens cuja vinculação com o facto ilícito tenha sido demonstrada, independentemente do sucesso que no caso venha a alcançar a perda alargada, nos termos do artigo 7.º daquela Lei, tal como ocorre com os instrumentos ou produtos do crime”.
[5] Cfr. Hélio R. Rodrigues, loc. cit., p. 233
[6] “Brandos Costumes? O confisco penal com base na inversão do ónus da prova”, in “Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias”, p. 1345.
[7] Para ser mais preciso, presume-se que o arguido tinha uma actividade criminosa que ia para além daquela que ficou, sem qualquer dúvida razoável, demonstrada e pela qual sofreu a condenação e que dessa actividade criminosa adveio-lhe vantagem económica (note-se que o artigo 7.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2002 refere-se a “vantagem de actividade criminosa” e não “vantagem da actividade criminosa”).