Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
557/21.2T8OAZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO CEDIDO AO FIDUCIÁRIO
SALÁRIO MÍNIMO NACIONAL
Nº do Documento: RP20210920557/21.2T8OAZ.P1
Data do Acordão: 09/20/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A parte do rendimento do insolvente que fica excluída da obrigação de entrega ao fiduciário deve ser determinada através de uma justa e equilibrada ponderação, por um lado, do interesse do devedor, salvaguardando, com este fim, o valor que seja razoavelmente necessário ao sustento minimamente digno do mesmo e do seu agregado familiar e, por outro, dos interesses dos credores, garantindo, com este fim, a estes últimos a recuperação, ainda que parcial, dos seus créditos.
II - Como assim, a fixação desse valor não pode deixar de importar para o insolvente uma alteração da sua situação económica anterior à declaração de insolvência, com a consequente moderação das suas despesas correntes e inevitável sacrifício, sob pena de acabar por se transformar numa injustificada extinção das suas dívidas que o conduziram à situação de insolvência e em detrimento dos seus credores.
III - O juiz pode, a título excepcional, fixar como rendimento excluído da cessão um valor superior a três salários mínimos nacionais quando circunstâncias particulares o justifiquem, nomeadamente quando ambos os membros do casal foram declarados insolventes e os mesmos têm a seu cargo quatro filhos menores, com idades compreendidas entre os seis e os doze anos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 557/21.2.T8OAZ.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo de Comércio de Oliveira de Azeméis – J1.
Juiz Relator: Jorge Seabra
1º Juiz Adjunto: Desembargador Pedro Damião da Cunha
2º Juiz Adjunto: Desembargadora Maria de Fátima Andrade
*
Sumário (elaborado pelo Relator):
………………………………
………………………………
………………………………
*
I. RELATÓRIO:
1. Por sentença proferida e já transitada em julgado foram declarados insolventes B… e esposa C…, ambos melhor identificados nos autos.
*
2. Por despacho proferido a 5.05.2021 e atinente ao pedido de exoneração do passivo restante oportunamente formulado pelos insolventes foi decidido, em termos finais, o seguinte:
Tendo em conta que o salário mínimo nacional deve ser tido como o rendimento indispensável à sobrevivência de qualquer pessoa, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 239º do CIRE, determina-se que o rendimento dos devedores que ultrapasse, em cada um dos doze meses do ano, o equivalente a três salários mínimos nacionais, seja cedido ao Exmo. AI que neste acto se nomeia para exercer as funções de fiduciário.
*
3. Inconformados com tal decisão, vieram os insolventes interpor recurso de apelação, no qual oferecerem alegações e aduzem, a final, as seguintes
CONCLUSÕES
DA NULIDADE DA DECISÃO POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
1ª – O presente recurso vem interposto do despacho proferido em 05.05.2021, com a referência citius 115967011, através do qual o tribunal a quo admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e determinou “que o rendimento dos devedores que ultrapasse, em cada um dos doze meses do ano, o equivalente a três salários mínimos nacionais, seja cedido ao Exmo. AI (…).
2ª - A decisão recorrida padece de flagrante nulidade por falta de fundamentação, porquanto, de forma inadmissivelmente absoluta, (i) não justificou o montante fixado para o rendimento indisponível do aqui recorrente e (ii) não explica os motivos pelos quais são de desconsiderar todos os demais factos alegados pelo recorrente, essenciais à ponderação do montante do rendimento indisponível [A decisão em crise assentou, em apenas 3 factos - (i) agregado familiar não possuir qualquer bem, (ii) ser composto por 6 pessoas e (iii) somente contar com o vencimento da devedora para sobreviver -, quando muitos foram os factos essenciais e relevantes alegados pelos recorrentes e ilegalmente desconsiderados pelo Tribunal, tendentes à demonstração da sua situação financeira atual, tais como: a) o agregado familiar dos recorrentes ser composto por 6 pessoas, 4 delas ainda menores de idade e com idades compreendidas entre os 6 e os 12 anos, b) os pesados encargos que mensalmente incorrem com os seus 4 filhos menores, desde despesas escolares a despesas médicas e medicamentosas e que tenderão a aumentar e c) a insolvente mulher ser também prestadora de serviços e, por esse motivo, titular de rendimentos da categoria B de IRS, incorrendo, trimestralmente, em pesados encargos fiscais.].
3ª – Nos termos do disposto no art. 239º, n.º 3 do CIRE, a fixação do rendimento indisponível requer uma avaliação complexa e um especial dever de fundamentação.
4ª - Na medida em que os recorrentes não conseguiram apreender o iter cognoscitivo que presidiu à decisão do Tribunal a quo na fixação do rendimento indisponível, o Tribunal não cumpriu o ónus de fundamentação que sobre si impendia e a decisão em crise padece de nulidade por falta de fundamentação – 615º n.º 1 al. g) do Código de Processo Civil.
DOS FACTOS COM RELEVÂNCIA PARA A DECISÃO DA CAUSA
5ª – Nos arts. 51º a 69º do requerimento inicial os Insolventes alegaram factos principais, integradores do direito e das consequências jurídicas que peticionaram junto do Tribunal e justificadores do montante que a final peticionaram fosse fixado a título de rendimento indisponível a cada um dos insolventes.
6ª – Para prova dos factos alegados juntaram aos autos os documentos numerados de 1 a 34.
7ª - Tais factos e provas são essenciais para que o Tribunal conheça as circunstâncias concretas e específicas de cada situação e disponha de todos os elementos fácticos necessários à decisão da questão jurídica relevante: fixação do rendimento indisponível a atribuir a cada um dos insolventes.
8ª - Tendo ignorado a matéria de facto relevante, alegada pelos insolventes nos arts. 51º a 69º do requerimento inicial e provada pelos documentos juntos aos autos, incorreu a decisão recorrida em manifesto erro de julgamento.
DA FIXAÇÃO DO RENDIMENTO INDISPONÍVEL
9ª - A exoneração do passivo restante é uma medida que visa a reintegração do devedor insolvente na vida económica, possibilitando-lhe um fresh start, que corresponde à recuperação da sua liberdade económica e das condições para a realização do seu direito ao desenvolvimento da personalidade.
10ª - A previsão da exoneração do passivo restante pressupõe necessariamente uma colisão entre direitos ou valores constitucionalmente protegidos: (i) de um lado, a proteção constitucional dos créditos, (ii) do outro, a proteção da liberdade económica e do direito ao desenvolvimento da personalidade, e, (iii) também o princípio, próprio do Estado Social de Direito, da proteção social dos mais fracos, importando apreciar, caso a caso, se o valor constitucional da proteção dos créditos deve ou não sobrepor-se, e constituir uma restrição legítima, ao valor constitucional da proteção da liberdade económica e do direito ao desenvolvimento da personalidade.
11ª - Na fixação do valor do rendimento indisponível o Tribunal tem necessariamente de ponderar em contraposição (i) os interesses dos credores em causa, no que respeita à sua identidade e valor e natureza dos créditos, e (ii) os direitos do insolvente, atendendo à sua concreta situação económico-social.
13ª - Para calcular o rendimento disponível do devedor, o legislador estabeleceu dois limites:
(i) um mínimo, avaliado por um critério geral e abstrato – o sustento minimamente condigno do devedor e seu agregado familiar –, a preencher pelo juiz em cada caso concreto, conforme as circunstâncias particulares do devedor; e
(ii) um limite máximo, obtido através de um critério quantificável e objetivo – o equivalente a três salários mínimos nacionais –, o qual, excecionalmente, poderá ser excedido em casos que o justifiquem.
14ª - No que concerne à determinação do que deve considerar-se por mínimo necessário ao sustento digno do devedor, a opção legislativa passou pela utilização de um conceito aberto, a que subjaz o reconhecimento do princípio da dignidade humana, necessariamente assente na noção do montante que é indispensável a uma existência condigna, a avaliar face às particularidades da situação concreta do devedor em causa, impondo-se, uma efetiva ponderação casuística no juízo a formular no que respeita à fixação do quantitativo excluído da cessão dos rendimentos.
15ª - In casu, o Tribunal a quo, para além de (i) ter ignorado as particularidades da situação económico-social concreta do devedor (já que ignorou muitos dos factos que a esse título foram alegados pelo devedor), (ii) não considerou ou avaliou os interesses dos credores em causa, no que respeita à sua identidade e valor e natureza dos créditos, não tendo feito a devida ponderação dos direitos e interesses em causa, (iii) culminando na violação do critério de atribuição ao insolvente de um rendimento indisponível que garanta o sustento minimamente condigno do devedor e seu agregado familiar.
Da ponderação dos interesses dos credores
16ª - O passivo dos recorrentes deve-se, fundamentalmente, aos créditos contraídos junto de instituições bancárias com vista ao desenvolvimento do projeto do insolvente Marido – criação uma plataforma online de reservas de restaurantes – e, bem assim, ao financiamento da sociedade que, entretanto, constituiu com a firma D…, LDA., a qual tinha como objeto social a “atividade de reserva de mesa, agência de publicidade e portais web, edição de revistas e de outras edições periódicas”.
17ª - A maioria dos créditos reconhecidos nos autos, apesar de se tratarem de créditos pessoais, decorrem não de operações de crédito realizadas diretamente e em beneficio pessoal dos devedores ora insolventes, mas antes de obrigações que, apesar de assumidas pelos mesmos, nunca das mesmas beneficiaram porquanto todo esse endividamento foi canalizado para o despoletar do projeto e criação da plataforma online de reservas de restaurantes e, bem assim, para a constituição da sociedade D…, LDA.
18ª - Durante todo o período do projeto e existência da sociedade nunca os insolventes daí retiraram qualquer lucro ou benefício, tendo o endividamento dos insolventes apenas “beneficiado” um terceiro - a sociedade D…, LDA..
Da ponderação dos interesses do Devedor
19ª - Em sede de petição inicial, alegou o insolvente suportar despesas fixas e básicas do agregado familiar no valor mensal de 2.900,00€.
20ª - Em sede de Relatório a que alude o art. 155º do CIRE o Sr. Administrador de Insolvência declarou nada ter a opor ao pedido de exoneração, não tendo, em momento, algum se pronunciado sobre as despesas tida como básicas dos insolventes e seu agregado.
21ª - As despesas apresentadas pelos insolventes e seu agregado familiar constituem, de facto, as despesas básicas e essenciais do mesmo, as quais se mostram fixadas dentro dos limites médios e constituem os montantes indispensáveis para o sustento minimamente digno do agregado familiar do casal insolvente (naturalmente que as despesas correntes e normais do recorrente e do seu agregado fixam-se em montante superior ao indicando, comportando despesas que, para efeitos de fixação do rendimento indisponível, se afigura não dever ser consideradas).
22ª -O Tribunal a quo não podia ter ignorado que, deduzidas as despesas necessárias à prestação do trabalho da insolvente mulher, de acordo com a decisão em crise, os mesmos disporiam para a sua vida (que se quer condigna) pouco mais que um salário mínimo nacional por cada insolvente.
23ª - Atentas as despesas do casal insolvente e seu agregado familiar, o valor fixado a título de rendimento indisponível em primeira instância fica muito aquém do necessário para este manter as suas despesas básicas correntes (défice de 901,67€) e que, consequentemente afetará a sua dignidade humana.
24ª - As despesas apresentadas configuram despesas básicas que em nada compreendem hábitos de ostentação ou luxo, e, nessa medida, não se alvitram quaisquer motivos para que o tribunal imponha a sua redução ou exclusão.
25ª - Qualquer decisão que, para efeitos de fixação do rendimento indisponível, fixe como valor mínimo necessário para assegurar as necessidades, subsistência com o mínimo de dignidade de um filho menor um valor inferior a metade do salário mínimo nacional é inconstitucional, por violação dos Arts. 1º, 13º e 26º da CRP.
26ª - Atenta a composição do agregado familiar dos insolventes – 2 adultos e 4 crianças com idades compreendidas entre os 6 e os 12 anos - e as despesas correntes pelo mesmo suportadas existem fundamentos e razões justificadas para se fixar, quer ao insolvente Marido, quer à insolvente Mulher, um rendimento indisponível no valor máximo permitido por lei a cada um (três vezes o salário mínimo nacional, por cada insolvente), ou seja, 3.990,00€. Caso assim não se entenda, atenta a necessidade de acautelar o princípio da salvaguarda e garantia da dignidade humana, afigura-se aos recorrentes não pode ser fixado um rendimento indisponível inferior a 2.660,00€.
27ª - Na medida em que a decisão em crise (i) não atendeu às particularidades da concreta situação económica e social do insolvente, (ii) não avaliou convenientemente as despesas essenciais e indispensáveis, (iii) não identificou as despesas que possam ser consideradas dispensáveis e não essenciais, padece de flagrante ilegalidade, violando o princípio da dignidade humana.
28ª - Ponderados os interesses em contraposição e a estrutura das despesas básicas e essenciais do insolvente e seu agregado familiar, o rendimento indisponível mensal sempre deverá ser fixado entre:
- o valor máximo correspondente a 3 salários mínimos nacionais (1995,00€), a cada um dos insolventes, num total de 3.990,00€
e
- o valor mínimo correspondente a 1 salário mínimo nacional (665,00€), a cada um dos insolventes e ½ salário mínimo nacional (332,50€), por cada um dos seus filhos menores, num total de 2.660,00€.
- A decisão em crise viola as disposições conjugadas dos arts. 235º e 239º do CIRE, arts. 608º e 615º n.º 1 al. b) do Código de Processo Civil e arts.1º, 2º e 18º da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que deve o presente recurso ser admitido e, em consequência, ser o despacho recorrido revogado.
*
4. Não foram oferecidas contra-alegações.
*
5. Foram observados os vistos legais.
Cumpre decidir.
*
II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:
Considerando que são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto e o âmbito da actividade jurisdicional do Tribunal hierarquicamente superior, as questões que importa dirimir e decidir são as seguintes:
I. Nulidade da decisão por falta de fundamentação.
II. Impugnação da decisão de facto.
III. Montante do rendimento indisponível (excluído da cessão ao Sr. Fiduciário).
*
III. FUNDAMENTAÇÃO de FACTO:
No despacho recorrido julgaram-se provados os seguintes factos:
1 – Os requerentes foram declarados insolventes por sentença proferida no dia 17/02/2021.
2 – Os requerentes têm um passivo que ascende a 39.973, 26€ mas não têm quaisquer bens;
3 – O devedor está desempregado e a devedora aufere 500,00€ mensais.
4 – Têm quatro filhos menores e vivem em casa arrendada pela qual pagam 700,00€ mensais.
5 – Nunca foram condenados pela prática de qualquer crime.
*
III. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
III.I. Nulidade da decisão por falta de fundamentação (artigo 615º, n.º 1, alínea b), do CPC):
Como resulta das conclusões do recurso a primeira questão que importa dirimir refere-se à alegada nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação.
Para sustento de tal vício invocam os recorrentes, em termos essenciais, por um lado, que o Tribunal a quo desconsiderou na sua fundamentação um vasto conjunto de factos por si alegados e relevantes à decisão e, por outro, que não lhes é possível discernir na fundamentação invocada no despacho recorrido as razões ou o iter cognoscitivo que presidiu à fixação do rendimento indisponível no montante equivalente a três salários mínimos nacionais para o conjunto do agregado familiar dos insolventes/recorrentes.
Dir-se-á, à partida, que nenhum dos referidos argumentos invocados pelos recorrentes consubstancia a nulidade formal que os mesmos assacam à decisão recorrida.
Se não, vejamos.
Segundo o preceituado no artigo 615º, n.º 1, alínea b), do CPC “É nula a sentença quando: Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.”
Nesta matéria, como é consabido, prevê o próprio artigo 205º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa que “[a]s decisões dos Tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.”
Na decorrência deste princípio da lei fundamental, prevê a lei processual civil (artigo 607º, n.ºs 2 e 3 do CPC) que “[A] sentença começa por identificar as partes e o objecto do litígio, enunciando, de seguida, as questões que ao tribunal cumpre solucionar”, seguindo-se, depois, “[o]s fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.”
A propósito da relevância da fundamentação do acto decisório, e ainda com plena aplicação, referia o Prof. ALBERTO dos REIS que “[A]s partes precisam de ser elucidadas a respeito dos motivos da decisão. Sobretudo a parte vencida tem o direito de saber por que razão lhe foi desfavorável a sentença; e tem mesmo necessidade de o saber, quando a sentença admita recurso, para poder impugnar o fundamento ou fundamentos perante o tribunal superior. Este carece também de conhecer as razões determinantes da decisão, para as poder apreciar no julgamento do recurso.
Não basta, pois, que o juiz decida a questão posta; é indispensável que produza as razões que apoiam o seu veredicto. A sentença, como peça jurídica, vale o que valerem os seus fundamentos.” [1]
Também a propósito da fundamentação da decisão, em sentido que nos merece inteira adesão, ensinava o Prof. ANSELMO de CASTRO, que a fundamentação “está ligada ao princípio da livre convicção do juiz, entendido tal princípio não como uma pura convicção intima e imotivada, mas antes como uma convicção motivada, lógica e racional. Livre convicção não significa desrespeito de toda a lógica, de todo o motivo discursivo.
De outra forma, a livre convicção era susceptível de redundar em puro arbítrio, pois o juiz, sabendo-se desligado da obrigação de motivar as suas decisões, seria naturalmente conduzido a deixar de auto controlar-se.” [2] E prossegue, ainda, este Ilustre Professor “Há ainda que ter em conta os destinatários da sentença que, aliás, não são só as partes, mas a própria sociedade. Para que umas e outras entendam as decisões judiciais, e não as sintam como um acto autoritário, importa que as sentenças e as decisões se articulem de forma lógica. Uma decisão vale, sob o ponto de vista doutrinal, o que valerem os seus fundamentos. E, embora a força obrigatória da sentença ou despacho esteja na decisão, sempre a força se deve apoiar na justiça. Ora os fundamentos destinam-se precisamente a formar a convicção de que a decisão é conforme à justiça.”
Dito isto, e tendo, pois, por indiscutida a exigência de fundamentação da sentença ou de qualquer outro acto decisório (que não seja de mero expediente), não é, no entanto, qualquer eventual vício ao nível da fundamentação de facto e/ou de direito que conduz ao efeito radical da nulidade do acto decisório.
Com efeito, de forma recorrente as partes confundem a discordância quanto aos fundamentos de facto e de direito do acto decisório ou a desconsideração de factos ou de argumentos ou linhas de raciocínio jurídico, enquanto verdadeiro erro de julgamento, com o vício de nulidade do acto decisório, o qual, em conformidade com o citado artigo 615º, n.º 1, alínea b), do CPC, só ocorre quando o acto decisório é totalmente falho de fundamentação de facto e/ou de direito.
Neste sentido, como salientavam ALBERTO dos REIS e A. VARELA, cuja doutrina se mantém aplicável, não é bastante para que exista falta de fundamentação de facto e/ou de direito que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta ou não convincente; é preciso mais - é preciso que haja falta absoluta ou total de fundamentação, seja de facto, seja de direito. [3]
Com efeito, como se alcança do texto da alínea b) do n.º 1 do citado artigo 615º a sentença (ou o despacho) é nula apenas quando no acto decisório não se especifiquem os fundamentos de facto e de direito que servem de base à decisão, o que é diametralmente distinto da situação em que essa fundamentação existe, ainda que possa ser considerada/avaliada pela parte vencida como errónea, deficiente ou incompleta, para efeitos de acolhimento da pretensão por si deduzida em juízo.
Ora, tendo presente este excurso, é ostensivo que a decisão recorrida não é destituída de fundamentação, seja de facto, seja de direito, pois que dela consta expressamente o quadro factual tido por relevante à decisão da questão do valor do rendimento indisponível (acima elencado), assim como a respectiva subsunção e integração jurídica dos normativos aplicáveis ao caso dos autos, nomeadamente do artigo 239º, n.º 3, alínea b), i., do CIRE, segundo a leitura, interpretação e subsunção perfilhada pelo Tribunal de 1ª instância.
É certo que, como já se acentuou, a despeito disso, os insolventes/recorrentes podem, naturalmente, entender que a fundamentação de facto e/ou de direito é insuficiente, incompleta, deficiente ou errónea, no sentido de que, a ser diversa, nomeadamente pela consideração de todos os factos por si alegados e demonstrados, deveria ter conduzido a uma decisão de mérito distinta da que foi acolhida no despacho recorrido, em conformidade com a pretensão por si deduzida em juízo.
Todavia, insiste-se, nenhum destes eventuais «vícios» do acto decisório tem que ver com a nulidade por falta de fundamentação de facto e de direito, mas com uma verdadeira divergência quanto ao mérito da decisão proferida imputável a um eventual erro de julgamento do decisor em 1ª instância, seja ao nível da decisão de facto (por desconsideração em tal segmento da decisão de outros factos para além dos que dela já constam), seja, ainda, ao nível da subsunção jurídica que, na perspectiva dos recorrentes, deveria ter lugar perante aquele distinto quadro factual, com a consequente alteração do sentido decisório acolhido pelo Tribunal de 1ª instância.
Portanto, em nosso ver, a questão suscitada pelos recorrentes não releva para efeitos de nulidade do acto decisório, que manifestamente não se verifica, mas para o valor doutrinário da decisão proferida, ou seja, para o seu mérito, seja a nível factual e/ou jurídico, podendo, por isso, importar apenas a alteração do decidido em termos factuais e da consequente alteração/revogação do sentido decisório quanto à questão da fixação do rendimento indisponível a atribuir/fixar no caso dos autos e no sentido defendido pelos insolventes/recorrentes.
Improcede, assim, em nosso julgamento, a arguição de nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação e à luz do preceituado no artigo 615º, n.º 1, alínea b), do CPC. (conclusões 1ª a 4ª).
*
III.II. Impugnação da decisão de facto:
Dirimida a questão anterior, importa conhecer da impugnação da decisão de facto contida no despacho recorrido, pois que, como emerge das conclusões 5ª a 8ª da apelação, dissentem os recorrentes do julgamento do Tribunal a quo quanto à desconsideração da factualidade por si alegada nos artigos 51º a 69º do seu requerimento inicial (de apresentação à insolvência), factualidade que reputam como essencial à boa decisão da questão atinente à fixação do rendimento mensal indisponível e que, segundo advogam, resulta demonstrada à luz dos documentos por si juntos aos autos sob os n.ºs 1 a 34.
Nesta matéria, tendo por indiscutido, em primeiro lugar, que os insolventes deram suficiente cumprimento às regras de impugnação da decisão de facto consignadas no artigo 640º, do CPC quanto à factualidade em causa, dando, em segundo lugar, por assente que os factos em apreço são, à luz das várias soluções plausíveis da questão de direito atinente à fixação do rendimento indisponível nos termos do artigo 239º, n.º 3, al. b), i., do CIRE, abstractamente relevantes para a apreciação daquela questão e, ainda, em terceiro lugar, que esses factos se mostram assentes face aos documentos juntos ao processo e à sua não impugnação, é de julgar como manifestamente procedente a impugnação deduzida.
Com efeito, tendo em vista a exigível apreciação casuística e equitativa da situação dos insolventes e do seu agregado familiar à luz da regra do citado artigo 239º, n.º 3, al. b), i, do CIRE, tais factos assumem-se, à partida, como genericamente relevantes à boa decisão da questão ora em apreço e, portanto, deveriam, em nosso ver, ter sido considerados na decisão a proferida pelo Tribunal de 1ª instância, a qual, em termos de fundamentação de facto deve ser, até por imperativo constitucional/legal, tão exaustiva quanto possível, dentro do quadro factual alegado pelas partes.
Por conseguinte, além dos factos já constantes do elenco dos factos provados, deverão ainda ser julgados como provados, tendo por base probatória os documentos juntos aos autos pelos recorrentes sob os n.ºs 1 a 34, os seguintes factos:
6 - Os Requerentes são casados em separação de bens.
7 - O Requerente Marido encontra-se, à presente data, desempregado, auferindo a título de subsídio de desemprego a quantia líquida mensal de 1.034,00€.
8 - A Requerente Mulher é professora contratada pelo E…, Lda., com sede na …, n.º .., 3º andar, Maia, auferindo mensalmente a quantia de 500,00€ (ilíquida), acrescida de subsídio de alimentação no valor diário de 4,77€.
9 - A Requerente Mulher presta ainda pontualmente serviços (sem qualquer carácter de permanência e continuidade) como tradutora e professora às sociedades F…, Lda., com sede na Rua …, n.º …, loja ., …, Porto e G…, Lda., com sede na Rua …, n.º .., ….
10 - Cujo rendimento não é, por isso, certo – no ano de 2019 correspondeu a 13.785,00€ e no ano de 2020 correspondeu a 6.037.15€.
11 - O casal tem quatros filhos menores: (i) H…, (ii) I…, (iii) J… e (iv) a K….
12 - Em material escolar, actividades extra-escolares, actividades desportivas e refeições escolares aos filhos menores, os insolventes despendem um valor médio mensal de 350,00€.
13 - Para além das despesas escolares suportam, ainda, todas as despesas decorrentes de consultas médicas e medicamentos, bem como com seguros de saúde, que se cifram numa média mensal de 150,00€.
14 - O agregado familiar reside temporária e provisoriamente numa habitação propriedade dos pais do Requerente Marido, com os quais celebraram um contrato de comodato.
15 - No entanto, tendo o referido contrato de comodato a duração de 24 meses, e, por conseguinte, o seu términus a 31/10/2021, os requerentes já diligenciaram por encontrar casa para arrendar na área do Porto, região do país onde a Requerente Mulher exerce actividade profissional e onde o Requerente Marido já se encontra, activamente, a procurar emprego.
16 - Tendo celebrado contrato de promessa de arrendamento de um apartamento sito na Rua …, nº …, 3º esquerdo, …, Porto, com inicio a 01.05.2021, sujeito ao pagamento de uma renda mensal de 700,00€.
17 - Para além da renda mensal, no valor de 700,00€, que a partir de maio de 2021 passará a suportar, o agregado familiar suporta, hoje em dia, as despesas correntes com a habitação, designadamente, com água, luz, gás, televisão e telefone, que se fixam numa média mensal de 250,00€.
18 - E ainda as despesas com a alimentação, limpeza, higiene pessoal e vestuário do agregado familiar composto por 6 pessoas, o valor médio de 1.000,00€.
19 - Arcam ainda os Requerentes com despesas de combustível e via verde, que importam uma despesa mensal de cerca de 200,00€.
20 - A estes valores acrescem ainda as despesas trimestrais em que incorre a Requerente Mulher com o pagamento do IVA e Segurança Social, em virtude dos rendimentos de Categoria B que aufere, os quais se cifram, em média, no valor de 540,00€ (180,00€, mês).
21 - Bem como as despesas dos veículos automóveis que os pais do Requerente marido lhes comodataram para poderem fazer as suas deslocações, na condição destes se responsabilizarem pelas respectivas despesas: - seguros anuais (a pagar no mês de Dezembro), inspecções obrigatórias dos veículos e respectivo imposto único de circulação, os quais se cifram na quantia de 800,00€, correspondente a 66,67€, por mês.
Destarte, face ao antes exposto, procede a impugnação da decisão de facto deduzida pelos recorrentes e nos termos sobreditos (conclusões 5ª a 8ª).
*
III.III. Do valor do rendimento mensal indisponível (excluído da cessão ao Fiduciário) – artigo 239º, n.º 3, alínea b), i., do CIRE.
Definido o quadro factual relevante, cumpre decidir da questão nuclear do recurso, qual seja a fixação do montante do rendimento indisponível e/ou da sua alteração, nos termos sustentados pelos recorrentes/insolventes.
Nesta temática, o Tribunal de 1ª instância fixou como valor mensal indisponível (excluído da cessão) o equivalente a três SMN (3x 665 €), no total de € 1.995,00, levando em consideração a composição do agregado familiar, qual seja os dois adultos – casal/insolventes - e, ainda, os 4 filhos menores do casal.
Por seu turno, os recorrentes insurgem-se contra esse montante, defendendo, em primeira linha, que, face às despesas mensais do agregado familiar (que rondam os € 2.900,00), esse montante deveria ascender a três SMN por cada um dos adultos (no total de 6 x SMN, ou seja, € 3.990,00) ou, a assim não se entender, sempre esse montante deveria ascender a € 2.660,00, correspondente a 1 SMN por cada um dos adultos (2) e ½ daquele SMN por cada uma das crianças (665,00 + 665,00 + [332,50 x 4).
Em sustento de tal pretensão recursiva (principal e subsidiária) invocam os insolventes/recorrentes o princípio da dignidade humana e a prevalência deste princípio face ao princípio da satisfação (dentro do possível) dos interesses económicos dos credores.
Decidindo.
Como é consabido, o actual CIRE instituiu medidas excepcionais de protecção do devedor pessoal singular, sendo uma das mais relevantes a exoneração do passivo restante.
Através deste instituto, após o património do devedor pessoa singular ter sido liquidado para pagamento aos credores, ou decorridos cinco anos após o encerramento do processo de insolvência, as obrigações que, apesar dessa liquidação ou após o decurso do dito prazo, não puderem ser satisfeitas, em lugar de subsistirem, são tidas como extintas (artigo 235º do CIRE).
De facto, sendo o devedor pessoa singular, pretendeu o legislador conceder-lhe a possibilidade de exoneração (extinção) das suas obrigações perante os credores da insolvência, que não puderam ser liquidadas no decurso do processo ou nos cinco anos subsequentes ao seu encerramento, em ordem a evitar que fique vinculado ao pagamento de tais obrigações até ao limite do prazo ordinário de prescrição, prazo este que, nosso ordenamento jurídico, pode atingir vinte anos - artigo 309º do Cód. Civil.
Assim, após a liquidação do seu património no processo de insolvência ou após o decurso de cinco anos após o encerramento do processo, o devedor tem a possibilidade de um «fresh start» e de recomeçar uma nova vida/actividade económica, sem o peso da insolvência anterior e, sobretudo, sem o peso das obrigações que permaneçam por solver. [4]
Esta solução teve por inspiração, como também tem sido salientado pela doutrina e jurisprudência, a legislação insolvencial dos Estados Unidos (discharge do Bakruptcy Code) e da Alemanha (Rechstschuldbrefeiung da Insolvenzordnung), permitindo ao devedor, sob certas condições e em função do seu comportamento no período da cessão, “a possibilidade de não viver o resto da vida (ou, pelo menos, até ao decurso do prazo de prescrição) sob o peso de dívidas que tornariam impossível o retomar de uma vida financeiramente equilibrada.” [5]
A exoneração do passivo restante resulta, necessariamente, de dois despachos, sendo o primeiro, denominado despacho inicial, que determina a obrigação de cessão do rendimento disponível pelo período de cinco anos após o encerramento do processo (artigo 237º, al. b) do CIRE), e o segundo, denominado de despacho de exoneração, que determina, a final, a definitiva concessão da exoneração, decorrido o mencionado prazo de cinco anos e verificando-se o cumprimento das obrigações constantes do despacho inicial (artigos 237º, al. b), 244º e 245º, n.º 1 do CIRE). [6]
A cessão é estabelecida, como se referiu, no despacho inicial, despacho que é proferido na assembleia de apreciação do relatório do administrador, ou nos dez dias subsequentes (artigo 239º, n.º 1 do CIRE).
Esse despacho determina, pois, que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, designado por período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera imediatamente cedido ao fiduciário.
Nesta matéria, a lei, ponderando os interesses conflituantes do insolvente (de, findo o período da cessão, ficar liberto das suas dívidas), mas também os interesses legítimos dos credores (quanto à satisfação, dentro do possível, dos seus créditos), ao mesmo tempo que dá ao insolvente um benefício [exoneração do passivo não satisfeito], impõe-lhe um conjunto estrito de requisitos e cria um regime particularmente garantístico para os credores, retirando ao devedor não apenas a possibilidade de dispor do seu património, o que resultaria das regras gerais, mas também a sua titularidade. Digamos que, como refere A. CRISTAS, op. cit., pág. 169-174, “[A] transmissão dos créditos para o fiduciário é o “preço” que o devedor paga para obter a futura exoneração.”

No que se refere à determinação, ainda que por via indirecta ou reflexa, do montante do rendimento indisponível (ou seja do montante excluído da cessão ao fiduciário), preceitua, no que ora importa, a alínea b), i., do n.º 3 do artigo 239º do CIRE, que o mesmo integra “… [o] que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional.”
Nesta sede, como é consabido, não obstante alguma divergência inicial, constitui hoje jurisprudência pacífica que o previsto valor de três salários mínimos nacionais corresponde ao limite máximo a fixar pelo juiz, limite este que só pode ser ultrapassado em casos particulares/excepcionais que o justifiquem, o que supõe, naturalmente, uma mais exigente e aprofundada fundamentação casuística do juiz quando ultrapasse este valor. [7]
Partindo deste valor máximo, importa, todavia, definir o que seja o mínimo de tal valor a fixar pelo juiz, isto é, o que seja o valor que, à partida, garante o necessário a um sustento minimamente condigno do devedor e do seu agregado familiar, sendo certo que o legislador não indexou esse conceito a um valor pecuniário fixo – por referência ao salário mínimo ou a uma prestação social pré-determinada, v.g., rendimento social de inserção ou outro -, antes o remeteu para o aludido conceito indeterminado ou aberto, qual seja o dito “sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.”
Nesta matéria, a ideia fundamental será a de que a exclusão, no rendimento disponível, do necessário para o sustento minimamente digno do devedor e dos membros do seu agregado familiar se fundamenta na salvaguarda da pessoa humana e da sua dignidade pessoal, princípio que tem, não só, acolhimento universal (artigo 1º da Declaração dos Direitos Humanos), como, ainda, acolhimento na nossa própria Lei Fundamental - artigo 59º da Constituição da República Portuguesa.
Neste sentido, como salienta LUÍS MARTINS o aludido princípio consubstancia, enquanto alicerce da existência digna das pessoas, “[o] equilíbrio entre os conflituantes interesses legítimos do credor e os interesses do devedor, recuando o interesse do credor sempre que esteja em causa este princípio.” [8]
Neste sentido, ainda, como se salienta no Acórdão desta Relação de 12.06.2012, “o conceito de sustento minimamente digno do devedor é um conceito aberto, a objectivar face à singularidade que reveste a situação concreta de cada devedor/insolvente e que tem como subjacente o reconhecimento do princípio da dignidade humana.” [9]
Este princípio, aliás, tem vindo a ser reiteradamente afirmado pelo Tribunal Constitucional em conexão com a temática da fixação legislativa do salário mínimo nacional, tendo aquele Tribunal defendido no AC n.º 177/2002, in DR, 1ª série A de 2.07.2004 que “… [c]omo resulta da análise dos sucessivos diplomas relativos à criação e às diversas actualizações introduzidas no respectivo montante, ao fixar o regime do salário mínimo nacional o legislador teve presente a intenção de garantir a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador.» [10]
Em síntese, conforme vem sendo afirmado pela jurisprudência, designadamente a antes citada, poder-se-á dizer que o legislador estabeleceu na norma em apreço (artigo 239º, n.º 3 al. b), i., do CIRE), um limite mínimo, definido por um conceito ou critério aberto - o sustento minimamente condigno do devedor e do seu agregado familiar -, critério este a densificar e a aplicar casuisticamente pelo juiz em função do caso concreto e das circunstâncias do insolvente e do respectivo agregado familiar, e um limite máximo definido por um critério quantificável e objectivo - o equivalente a três salários mínimos nacionais -, limite este que, como já referido, apenas poderá ser ultrapassado quando circunstâncias excepcionais o justifiquem.
Nestes termos, sendo certo que, à luz da jurisprudência constitucional, a fixação do salário mínimo nacional tem subjacente a condição económica do nosso país, mas representa, também, nesse contexto e segundo o próprio legislador, o “estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador”, legítimo será concluir que, pelo menos enquanto referência ou por princípio orientador, o valor que assegura a subsistência, com o mínimo de dignidade, do trabalhador, será o valor correspondente a (1) um salário mínimo nacional.
Por conseguinte, na lógica do anterior excurso, dentro do intervalo entre este valor mínimo (equivalente, por princípio, a um salário mínimo nacional) e o citado valor máximo (equivalente a três salários mínimos), a fixação concreta do que constitua o mínimo para o sustento minimamente condigno do devedor e respectivo agregado familiar, não obstante as dificuldades que encerra a prudente consideração de cada caso, “… [d]everá obedecer aos critérios interpretativos e ao princípio constitucional da «proibição do excesso» (artigo 18° n.° 2, da CRP), traduzindo-se, tanto quanto possível em «adequação», «necessidade» e «proporcionalidade» (justa medida).” [11]
No caso, a proibição do excesso não deixará de considerar, por um lado, as necessidades fundamentais para um sustento minimamente condigno dos devedores e do seu agregado familiar (levando em consideração a sua composição, a idade dos seus membros e aquilo que são as despesas essenciais em função do estágio de crescimento de cada um desses membros), mas do outro terá em mente a necessária, tanto quanto possível, satisfação dos direitos dos credores, pois que olvidado este escopo principal do processo de insolvência, facilmente a exoneração do passivo restante se transformaria num estrito perdão de dívidas, num prémio ou na cobertura a uma fraude. [12]
De facto, e como tem vindo a ser salientado “(…) ao sacrifício financeiro dos credores terá de corresponder o sacrifício do insolvente através da compressão das suas despesas” [13] ou, ainda, que “constitui dever do insolvente adaptar o seu estilo e nível de vida ao padrão social condizente com a situação em que, imprevidentemente, se colocou, tratando-se, no fundo, da contrapartida decorrente da concessão do benefício da exoneração do passivo restante.” [14]
Por conseguinte, nesta linha de pensamento, “o montante mensal que há-de ser dispensado ao insolvente no período da cessão não visa assegurar o padrão de vida que porventura teria antes da situação de insolvência mas apenas uma vivência minimamente condigna, cabendo ao visado adequar-se à especial condição em que se encontra, ajustando as despesas ou encargos ao nível de vida, em geral e na medida do possível, à nova realidade que enfrenta. Deste modo, não serão simplesmente as despesas enunciadas ou comprovadas que devem justificar o montante do rendimento indisponível, mas apenas aquelas que se justifiquem, traduzindo uma efectiva adaptação do padrão de vida do insolvente ao estatuto que lhe foi conferido.” [15] (sublinhado nosso)

Na verdade, insiste-se, na fixação do exacto montante do rendimento excluído da cessão ao fiduciário, importa que seja considerada a situação particular do insolvente e do seu agregado familiar, não podendo, pois, neste contexto, ser posto em causa aquele mínimo indispensável a uma vida condigna do mesmo e do respectivo agregado familiar (função interna do património), mas também relevam os interesses dos credores quanto à satisfação do possível dos seus créditos à custa do património do devedor (função externa do património), o que exige, em termos de concretização e compatibilização prática destes interesses conflituantes, necessariamente, do devedor/insolvente uma adaptação à sua nova situação e, em particular, uma rigorosa limitação e contenção das suas despesas, com o indispensável sacrifício, não só do mesmo, como, ainda, do seu próprio agregado familiar.
Feita esta exposição, decorre das conclusões da presente apelação que o recorrente, sem discordar dos princípios antes consignados e vertidos em letra de lei, discorda é da aplicação que o Tribunal de 1ª instância deles fez no caso concreto, pois que, ao invés do valor de três salários mínimos nacionais fixados como rendimento excluído da cessão ao fiduciário, sustenta que esse valor deveria antes ascender a três salários mínimos nacionais por cada um dos dois insolventes ou, no mínimo, a título subsidiário, deveria ascender a dois salários mínimos nacionais (um por cada adulto) e, ainda, o equivalente a ½ daquele SMN por cada filho menor, ou seja, actualmente 325 € por cada um daqueles filhos.
Vejamos.
Como é consabido, o salário mínimo nacional no ano de 2021 cifra-se em € 665,00 - DL n.º 109-A/2020 de 31.12.
Portanto, tendo por referência o valor do SMN de 2021, a decisão recorrida fixou como rendimento indisponível de cada um dos cônjuges/insolventes a quantia mensal de € 665,00, valor este que, ao contrário do que defendem os insolventes, temos, à partida, como o adequado e necessário à salvaguarda de um nível de vida minimamente condigno para cada um dos mesmos, abstraindo, por ora, dos demais membros do agregado familiar e, em particular, dos seus filhos menores.
Todavia, importa, neste contexto, levar ainda em consideração o valor da renda mensal significativa que os insolventes suportam com a sua habitação e o seu agregado familiar composto pelos seus quatro filhos menores, sendo certo que, como é consabido, na cidade do Porto (onde os mesmos têm o centro da sua vida pessoal e profissional) os valores das rendas mensais são elevados, em particular para habitações com condições para albergar uma família composta de seis elementos (2 adultos + 4 crianças)
Por conseguinte, afigura-se-nos no caso dos autos que, além daquele valor mensal equivalente ao SMN, deve acrescer, ainda, para efeitos de cobertura do diferencial daquela despesa com habitação o equivalente a ¼ do dito SMN, para cada um dos insolventes, num total de 665,00 + 166,25, ou seja, € 831,25.
Para além disto, avultam, ainda, como se referiu, enquanto membros do agregado familiar e a cargo dos insolventes, os menores seus filhos, quatro, com idades compreendidas entre os seis e os doze anos, que têm, naturalmente, despesas mensais com alimentação, vestuário, educação (material escolar) e saúde e, ainda, que não seja despiciendo considerar, neste último conspecto, que no sistema público de saúde e escolar essas específicas despesas são, regra geral e salvo casos excepcionais (que não estão em causa), significativamente reduzidas.
Como assim, ponderando estas circunstâncias e, ainda, o efeito de escala decorrente da atribuição de quatro parcelas distintas (a acrescer aos valores atribuídos a cada um dos insolventes e pais dos menores), afigura-se-nos, de um ponto de vista de normalidade, razoabilidade e equidade, que o valor mensal de € 200,00 por cada um dos menores será o bastante para salvaguardar aquele mínimo de vida condigna dos mesmos, ou seja, para garantir em termos mínimos aqueles bens ou necessidades essenciais a uma vida condigna, como seja a sua habitação, a sua educação e a sua saúde, em condições de equidade e igualdade e sem prejuízo dos sacrifícios que a actual situação do agregado familiar em que se inserem exige e impõe.
Dir-se-á, aqui chegados, que os valores assim definidos (num total actual de € 2.462,50) não cobrem a totalidade das despesas invocadas e demonstradas pelos insolventes (€ 2.900,00), nem se aproximam dos valores pretendidos a título principal (€ 3.990,00) ou a título subsidiário (€ 2.660,00), mas, com o devido respeito por opinião em contrário, o instituto/benefício da exoneração do passivo restante não tem por fito salvaguardar o anterior orçamento familiar e cobrir, assim, todas e quaisquer eventuais despesas, mas apenas, mais modestamente, garantir aquele mínimo suficiente a uma vida condigna do insolvente e do respectivo agregado familiar (com o inerente sacrifício e redução das despesas correntes) e, ademais, os insolventes não podem ter, como parecem ter, a ilegítima expectativa de manterem um nível de vida semelhante ou próximo ao que possuíam antes da situação de insolvência em que se viram (com culpa ou não) envolvidos.
E também não se trata, neste contexto, com o devido respeito, de considerar ou desconsiderar os interesses dos credores (ainda que estes não possam/devam ser ignorados, sob pena de total subversão do instituto em causa…), mas, insiste-se, apenas e só de garantir aos insolventes e seu agregado familiar aquele valor mensal susceptível de lhes assegurar uma vida minimamente condigna, o que, em nosso julgamento, se mostra, equitativa e proporcionalmente, assegurado com o valor acima referido, seja pelo valor mensal de 1 SMN + ¼ para cada um dos insolventes, seja, ainda, a acrescer, pelo valor mensal de € 200,00, para cada um dos seus filhos menores.
Por último é, ainda, de referir que se o valor assim fixado ultrapassa, de facto, o montante equivalente a três SMN fixados na decisão recorrida em termos globais para o agregado familiar em causa, em nosso ver, as especificidades do caso e, em particular, a composição do agregado familiar dos insolventes (casal), justificam, em termos excepcionais, a solução encontrada, em conformidade com o previsto no artigo 239º, n.º 3, al. b), i, do CIRE.
Destarte, em função do antes exposto, improcede a pretensão principal deduzida pelos recorrentes e procede parcialmente a pretensão subsidiária deduzida pelos mesmos, alterando-se a decisão recorrida e fixando-se o rendimento mensal indisponível (excluído da cessão) em 1 SMN e ¼ para cada um insolventes e, ainda, em € 200, 00 mensais para cada um dos seus filhos menores (4), constituindo esse total o rendimento mensal indisponível do agregado familiar em apreço.
**
IV. DECISÃO:
Em conclusão, pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação e, em consequência, alterar o despacho recorrido nos seguintes termos: - fixa-se, para efeitos do preceituado no artigo 239º, n.º 3, al. b), i., do CIRE, como rendimento mensal excluído da cessão o valor equivalente a 1 SMN e ¼ por cada um dos insolventes e, ainda, o valor de € 200, 00 mensais, por cada um dos filhos menores do casal.
**
Custas pela massa insolvente – artigo 304º, do CIRE.
**
Porto, 20.09.2021
Jorge Seabra
Pedro Damião e Cunha
Fátima Andrade

(O acórdão que antecede não segue na sua redacção o Novo Acordo Ortográfico)
_____________
[1] ALBERTO dos REIS, “CPC Anotado”, V volume, 1984, pág. 139.
[2] A. ANSELMO de CASTRO, “Direito Processual Civil Declaratório”, III volume, 1982, pág. 96-97. No mesmo sentido, vide, ainda, ANTUNES VARELA, “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, pág. 687-689.
[3] A. dos REIS, op. cit., pág. 140 e A. VARELA, op. cit., pág. 687.
[4] ASSUNÇÃO CRISTAS, “Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante”, Revista “Themis”, Edição Especial, 2005, pág. 167 e CATARINA SERRA, “O Novo Regime Português da Insolvência – Uma Introdução”, 2010, pág. 133.
[5] ALEXANDRE SOVERAL MARTINS, “Um Curso de Direito da Insolvência”, 2015, pág. 528.
[6] A. CRISTAS, op. cit., pág. 169-174.
[7] Vide, neste sentido, por todos, AC STJ de 18.10.2012, relator TAVARES de PAIVA, AC RP de 15.09.2015, relator JOSÉ IGREJA MATOS, AC RP de 12.05.2014, relator CAIMOTO JÁCOME, AC RP de 11.09.2012, relator VIEIRA e CUNHA, AC RL de 6.06.2013, relator EZAGUY MARTINS, AC RG 24.09.2015, relator JORGE TEIXEIRA, todos disponíveis in www.dgs.pt.
[8] LUIS MARTINS, “Recuperação de pessoas singulares”, I volume, 2ª edição, pág. 132.
[9] AC RP de 12.06.2012 e, ainda, de 11.09.2012, ambos relatados por VIEIRA e CUNHA, ambos disponíveis in www.dgsi.pt
[10] Além do citado AC TC n.º 177/2002, vide, ainda, AC TC n.º 349/91, de 3.07.1991, relator ALVES CORREIA, AC TC n.º 318/99, de 26.05.1999, relator VITOR NUNES de ALMEIDA, AC TC n.º 96/2004, de 11.02.2004, relator MARIA HELENA BRITO, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt.
[11] AC RP de 12.06.2012, já citado.
[12] Vide, neste sentido, AC RP de 12.06.2012, AC RL de 6.06.2013 e AC RG de 24.09.2015, todos antes citados ou, ainda, AC STJ de 9.02.2021, relator MARIA JOÃO VAZ TOMÉ, AC RL de 7.05.2019, relator RIJO FERREIRA e AC RC de 12.03.2013, relator SILVIA PIRES, todos disponíveis no mesmo sítio oficial.
[13] AC RL de 25.10.2012, relator ONDINA CARMO ALVES, disponível no sítio já citado.
[14] AC RL de 13.12.2012, relator LUIS ESPIRITO SANTO, disponível no mesmo sítio.
[15] AC RL de 9.04.2013, relator MARIA CONCEIÇÃO SAAVEDRA, disponível também no mesmo sítio.