Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
93/16.9T8AMT.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO VENADE
Descritores: FACTOS NÃO ESSENCIAIS
EXPROPRIAÇÃO DE FACTO
PRINCÍPIO DA INTANGILIBIDADE DA OBRA PÚBLICA
ABUSO DE DIREITO
RESTITUIÇÃO EM ESPÉCIE
Nº do Documento: RP2021071493/16.9T8AMT.P2
Data do Acordão: 07/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O tribunal pode dar como provados factos não essenciais não alegados se os mesmos se enquadrarem naqueles referidos no artigo 5.º, n.º 2, do C. P. C., entre os quais os instrumentais, complementares, e concretizadores.
II - Um facto não alegado (acordo para cedência de parcela de imóvel dado pelo marido) numa ação de reivindicação de propriedade não se enquadra em nenhuma daquelas categorias quando que está em causa o consentimento alegadamente prestado por outras pessoas que não o indicado marido.
III - Uma expropriação de facto de uma parcela de terreno por parte de um município, sem cumprimento de qualquer regra legal e sem consentimento dos titulares, não deve beneficiar do princípio da intangibilidade da obra pública.
IV - A diminuta importância da área da parcela ocupada, o seu pequeno valor e o facto das obras que foram realizadas pelo município permitirem uma melhor e mais segura circulação automóvel e de peões, impede o direito à restituição in natura da parcela por haver abuso de direito.
V - Nessa situação, tendo o Réu município alegado a impossibilidade de restituição natural e oferecendo um valor em reconvenção para sua aquisição, pode interpretar-se juridicamente esse pedido também como querendo proceder à restituição em espécie.
VI - Fornecendo os autos informação suficiente para tal restituição em espécie (valor da parcela atendendo à sua área e preço por m2), pode condenar-se o Réu município a restituir em espécie, pagando esse valor.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 93/16.9T8AMT.P2.
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1). Relatório.
B…, residente na Avenida …, n.º …, C… propôs contra Município C…, com sede na Alameda …, C…. Freguesia de …, representada pela Junta de Freguesia de …, com sede na rua …, n.º … …, C…, pedindo que:
se declare que o prédio descrito no artigo 3.º integra a herança aberta por óbito de D… e E…;
se declare que a faixa de terreno descrita no artigo 27.º faz parte integrante do prédio referido na alínea precedente;
as Rés sejam condenadas a reconhecer o referido nas alíneas precedentes e a restituir à herança a referida faixa de terreno;
as Rés sejam ainda condenadas a repor tal faixa no estado anterior à ocupação, a saber, à colocação de vides novas e à recolocação dos esteios referidos no seu local primitivo, à remoção da berma e à reposição natural do terreno sobre o qual assenta, à demolição do muro e à reconstrução de rampa;
se condenem as Rés a absterem-se de ocupar ou fazer uso por qualquer forma da indicada faixa de terreno.
Requereu ainda a intervenção principal ativa de demais herdeiros como seus associados.
O sustento dos pedidos assenta, em termos sintéticos, na alegação de que:
no terreno em causa, a 1.ª Ré propôs-se alargar a Estrada … tendo a Autora sido contactada pela 2.ª Ré no sentido de saber se consentia na cedência de uma faixa de do mesmo, sita na extremidade sul confinante com a referida estrada municipal, numa extensão de 3,5 metros;
a Autora negou esse consentimento a não ser que todos os herdeiros do falecido D… nisso consentissem, o que não sucedeu;
a 1.ª Ré fez a obra, sem o seu consentimento, ocupando mais área do que a previamente comunicada, tendo ainda, procedido à destruição das vides, remoção dos esteios de cimento que suportavam a ramada com vinha aí existentes numa extensão de 60 metros a contar da estrema sul, à construção e pavimentação de uma berma em cubos longo de toda a linha de confinância com a estrada, à construção de um muro de delimitação do aludido prédio, com o tapamento de três entradas que o mesmo tinha a nascente e, por fim, o alteamento de uma rampa de acesso.
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Citados Réus, apresentaram contestação, pugnando pela improcedência da ação nos termos que se resumem:
Município C… -:
em setembro de 2007 foi dado consentimento verbal à ocupação da faixa por Autora e restantes herdeiros;
a partir dessa altura Réu passou a ocupar a faixa como proprietário;
existe abuso de direito por parte da Autora;
o princípio da intangibilidade da obra pública impede a restituição da faixa como se encontrava anteriormente;
o valor da faixa de terreno será de 550,80 EUR quando as obras de reposição seriam na ordem dos 50.000 EUR.
Formula ainda pedido reconvencional pedindo que:
se declare que é dono da faixa de terreno em causa e que a Autora e herança o reconheçam;
se for necessário pagar pela aquisição de propriedade, deve o preço ser fixado em 550,80 EUR.
Freguesia de …:
o tribunal é incompetente em razão da matéria, sendo competente o tribunal administrativo;
e´parte ilegítima por não ter praticado qualquer ato de ocupação da faixa de terreno;
a empreitada foi realizada com o acordo e no interesse dos interessados;
há abuso de direito dos Autores atento o tempo já decorrido de realização das obras (dez anos);
deve a obra manter-se por força de o interesse público da obra se sobrepor ao interesse privado da Autora e associados.
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A Autora apresentou réplica, negando a pretensão do Réu Município.
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Em 30/05/2016 o tribunal julgou-se incompetente em razão da matéria, decisão revogada por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07/12/2016.
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Em 17/05/2017 foi admitida a requerida intervenção principal provocada ativa.
Verificou-se que um dos intervenientes tinha falecido (F…), tendo-se procedido à sua habilitação.
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Em 08/01/2020 foi realizada audiência prévia, onde se admitiu o pedido reconvencional, se proferiu despacho saneador julgando improcedente a arguida exceção de ilegitimidade e fixou-se o objeto do litígio, elencando-se os temas de prova do seguinte modo, respetivamente:
Averiguação da propriedade de uma faixa de terreno e sua delimitação, seu reconhecimento e eventual restituição da mesma, bem como com eventual abuso de direito por parte das Autoras B… e G….
das características do prédio identificado em 3º da petição inicial (…);
da integração da faixa de terreno em apreço nos autos no referido prédio;
acordo entre Autores e Réus quanto à ocupação e cedência de faixa de terreno em apreço nos autos;
ocupação da faixa de terreno e prática de atos materiais por parte do Réu «Município…»;
conduta das Autoras B… e G… em contradição com o anteriormente acordado;
prejuízo para o interesse público na remoção das obras realizadas na faixa de terreno;
alegação, por parte das mesmas Autoras de factos que sabem não corresponder à verdade.
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Realizou-se audiência de julgamento, já com intervenção do M.º P.º, tendo sido proferida a seguinte decisão:
«1. Declaro que o prédio rústico composto por cultura, videiras de enforcado e dependências agrícolas, com a área de 8570 m2, sito no lugar de …, da freguesia de …, do concelho de C…, a confrontar de norte com carreiro da …, de sul com H…, de nascente com caminho e de poente com I…, inscrito na matriz sob o artigo 227 e descrito na Conservatória do Registo de Registos Civil, Predial, Comercial de C… sob o n.º 165 pertence à herança aberta por óbito de D… e E…;
2. Condeno os Réus a reconhecerem o aludido em 1;
3. Absolvo dos demais pedidos formulados.
Mais julgo procedente a reconvenção deduzida pelo Réu Munício C… e, em consequência:
1. Declaro que a faixa de terreno com uma largura de 1,70 metros e comprimento de 81 metros, numa área total de 137,70 m2, que outrora integrou o prédio inscrito na matriz sob o artigo 227 e descrito na Conservatória do Registo de Registos Civil, Predial, Comercial C… sob o n.º 165, confinante com a E.M. …, pertence ao Município C…, tendo sido na aludida E.M. … integrada.
2. Condeno a Autora e os chamados a reconhecerem tal direito.».
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Recorre a Autora da decisão, formulando as seguintes conclusões:
«– DO FACTO PROVADO N.º 41:
A) DA SUA ESSENCIALIDADE / INSTRUMENTALIDADE:
A) O Tribunal a quo fez constar dos factos dados como provados o ponto 41, por entender que, pese embora não tenha sido alegado por qualquer das partes, resultou da instrução da causa e, qualificando-o como facto instrumental, teve-o em consideração ao abrigo do disposto o artigo 5º n.º 2 do CPC.
B) Ora, o facto em análise é essencial e não instrumental, devendo nesse caso ter sido alegado pelas partes para poder ter sido tomado em consideração, em obediência ao princípio do dispositivo, que se traduz no ónus de alegação dos factos essenciais pelas partes, reflectido no art. 5.º n.º 1 do CPC.
C) São factos essenciais aqueles que integram o facto jurídico de que procede a pretensão do autor e que constituem a causa de pedir, bem como os que servem de base às excepções do réu.
D) A acção dos presentes autos configura uma acção de reivindicação, nos termos do disposto no art. 1311.º n.º 1 do CC, pelo que cabia à autora alegar e provar factos demonstrativos do facto jurídico concreto que gerou o alegado direito de propriedade e factos demonstrativos da ocupação abusiva de uma faixa de terreno do prédio por parte do(s) réu(s).
E) E assim fez a autora, tendo o Tribunal a quo considerado provado, por um lado, a propriedade do prédio a favor da herança (como decorre dos factos considerados provados sob os pontos 1 a 10) e por outro, que o 1.º réu fez a obra sem o consentimento da autora (tal qual consta do facto dado como provado sob o ponto 20), o que nos permite concluir que a ocupação do prédio foi abusiva.
F) Porém, o Tribunal a quo assim não concluiu, ao considerar como provado o ponto 41, subsumiu que a ocupação não era abusiva.
G) Na verdade, cabia aos réus ou aos chamados que aderiram à tese dos réus e sobre quem o Tribunal a quo se apoiou para considerar tal facto, mormente, sobre o depoimento do chamado J…, alegar o referido facto.
H) Ora, nas suas contestações, os réus e chamados limitaram-se a alegar que todos os herdeiros tinham prestado o seu consentimento para a feitura da obra; em tempo algum alegaram que esse consentimento já tinha sido prestado pelos pais da autora e dos chamados, então proprietários.
I) De todo o modo, constitui facto essencial apurar-se a existência de consentimento por parte do proprietário, pois tal constitui um elemento concreto e específico que ditará a viabilidade da restituição ou não restituição da coisa, sendo absolutamente indispensável ao preenchimento das situações jurídicas afirmadas pelas partes, num sentido ou noutro.
J) Como tal, o Tribunal a quo não poderia ter qualificado o facto dado como provado sob o ponto 41 como facto instrumental, sendo instrumentais os factos que exercem uma função instrumental permitindo, através da sua prova, a indiciação da existência dos factos essenciais, não integrando, pois, a causa de pedir ou a matéria da excepção, pelo que não substanciam ou preenchem as pretensões jurídico-materiais do autor ou réu.
K) Ao fazê-lo, o Tribunal a quo, oficiosamente, carreou para o processo factualidade que incumbia aos réus carrear, violando assim o princípio do dispositivo, nos termos do disposto no art. 5.º n.º 1 do CPC.
L) Destarte, deve ter-se por não escrito o facto dado como provado sob o ponto 41, daí se concluindo que a apropriação da faixa de terreno por parte dos réus é ilegítima, uma vez que a autora não prestou o seu consentimento à obra, conforme decorre do ponto 20 dos factos provados.
SEM PRESCINDIR,
B) DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
M) A recorrente não se conforma com o facto dado como provado sob o ponto n.º 41, pelo que vai tal matéria impugnada.
N) Os depoimentos de J… e de K…, sobre os quais o Tribunal a quo se baseou, não foram concordantes entre si, tendo o primeiro referido que o seu pai foi abordado pelo K…, mas como o seu pai não se dava muito bem com este último, pediu ao J… para ser ele a falar com o pai, como consta de minutos 00:03:02 a 00:03:10 da faixa da gravação do seu depoimento de parte – cfr. acta de audiência de julgamento de 09/09/2020, e tendo aquele K…, num primeiro depoimento prestado em 09/09/2020, ocultado qualquer pedido de cedência de terreno feito aos pais de J…, para num segundo depoimento referir que nunca falou com o pai do J…, limitando-se a falar com o filho destes acerca da cedência, como consta de minutos 00:02:30 a 00:02:35 da faixa da gravação do seu depoimento de parte – cfr. acta de audiência de julgamento de 07/10/2020.
O) Tal contradição é flagrante e de suma importância para se apurar da existência da cedência da faixa de terreno, a qual era imperioso que fosse feita por quem de direito e não por intermédio de quem quer que seja, podendo daí concluir que não houve uma cedência expressa e directa junto de quem de direito, pelo que deve ser dado como não provado o ponto n.º 41.
P) Dando-se como não provado o ponto 41, a apropriação da faixa de terreno por parte dos réus é ilegítima, uma vez que a autora não prestou o seu consentimento à obra, conforme decorre do ponto 20 dos factos provados.
Sem prescindir,
Q) Caso se entenda que se deve dar como provado o ponto 41, não se pode considerar provado que E…, mãe do J…, também cedeu a faixa de terreno em questão, uma vez que resulta do depoimento deste último que a cedência da faixa de terreno nem sequer foi falada com a mãe, porque partiu do pressuposto que a mãe concordava com tudo o que o pai decidisse, como consta de minutos 00:03:20 a 00:04:05 da faixa da gravação do seu depoimento de parte – cfr. acta de audiência de julgamento de 09/09/2020. O mesmo se podendo aferir do depoimento de K… como consta de minutos 00:02:30 a 00:02:35 da faixa da gravação do seu depoimento de parte – cfr. acta de audiência de julgamento de 07/10/2020.
Sem prescindir ainda,
R) Tem de se considerar como provado que a cedência foi feita mais de um ano antes do óbito de D…, ocorrido a 29/04/2006 (ponto 2 dos factos provados), como consta de minutos 00:03:12 a 00:03:15 da faixa da gravação do depoimento de parte de J… – cfr. acta de audiência de julgamento de 09/09/2020.
S) Assim, apenas terá de se dar como provado que: “Foi por D…, pelo menos em Abril de 2005, cedida uma faixa de terreno do terreno identificado em 1 para efeito de alargamento da estrada EM …”.
SEM PRESCINDIR,
C) DA (IN)VALIDADE DA CEDÊNCIA DA FAIXA DE TERRENO PARA A COISA PÚBLICA:
T) A dar-se como validamente considerado o facto dado como provado sob o ponto 41, a cedência da faixa de terreno pelos então proprietários do prédio carece de validade.
U) Em primeiro lugar, foi dado como provado que tal cedência foi dada em data não concretamente apurada.
V) Em segundo lugar, como bem refere o Tribunal a quo, apurou-se que não foi sequer prevista a dimensão de tal cedência.
W) Ora, temos naturalmente por certo que a cedência da faixa de terreno teria naturalmente de ser dada antes de 29 de Abril de 2006, data do óbito do então proprietário (ponto 2 dos factos provados).
X) Ora, o projecto da obra em questão nestes autos foi aprovado em 19 de Março de 2007 (conforme resulta do ponto 12 dos factos provados) e da deliberação junta aos autos por requerimento de 07/10/2020, com a referência Citius 6595212, com a menção de que não existe qualquer projecto anterior a 2007 para aquela obra.
Y) Significa isto que a cedência da faixa de terreno se deu em data em que não existia sequer projecto da obra, não estava prevista, pois, a área de terreno a ceder, nem se sabia em que termos essa cedência iria ser feita, como bem concluiu o Tribunal a quo.
Z) Assim, a declaração negocial enquadra-se na fase da negociação pré-contratual, integrando assim um acordo pré-contratual, o qual seria naturalmente concretizado com a definição da área e localização da concreta parcela a ceder,
AA) acordo esse que não configura um verdadeiro contrato, uma vez que não ficaram delineados os elementos essenciais do negócio, mormente, a concreta área a ceder aos réus, não tendo, pois, eficácia contratual específica, sendo o único efeito produzido o do dever de contratar e a violação deste dever, se injustificado, envolve tão-só responsabilidade civil pré-contratual, nos termos do disposto no art. 227.º do CC.
Sem prescindir,
BB) Caso se entenda que a cedência reflectida no ponto 41 dos factos dados como provados constitui um verdadeiro contrato, a doação da faixa de terreno é nula, por ser o seu objecto indeterminável, nos termos do disposto no art. 280.º n.º 1 do CC.
CC) Não mais faltava que, uma vez feito e aprovado o projecto, daí resultasse que era necessária a cedência de uma faixa de terreno equivalente a metade do prédio e os proprietários ficassem vinculados a uma doação prévia à elaboração do projecto!
DD) Diz o Tribunal a quo que a faixa de terreno foi afecta à utilidade pública, reconhecendo-lhe por isso dominialidade pública, e nessa medida não aplica o regulado no Código Civil para a validade das transmissões de bens imóveis para o domínio público, considerando perfeitamente válida a cedência meramente verbal da faixa de terreno por parte dos seus então proprietários.
EE) Porém, tal entendimento não é pacífico na doutrina e jurisprudência, entendendo-se que para o reconhecimento da dominialidade pública não basta a afectação ao uso público, sendo necessária uma apropriação legítima por parte da entidade administrativa, pressupondo um regular processo expropriativo ou a celebração de um válido negócio jurídico de direito privado.
FF) In casu, inexistiu um regular processo expropriativo, e a doação da faixa de terreno foi meramente verbal, pelo que sempre seria nula, por inobservância de forma, nos termos do disposto nos arts. 947.º n.º 1 e 220.º do CC, configurando a actuação dos reús uma apropriação ilegítima da faixa de terreno.
GG) Pelo até agora exposto, por uma ou outra via – quer dando-se como não escrito o ponto 41 dos factos provados, quer considerando-se nula a cedência aí descrita -, a apropriação da faixa de terreno por parte dos réus deve ser considerada ilegítima, e como tal, restituída à herança no estado anterior à ocupação, nos termos do disposto no art. 1311.º n.º 1 do CC.
II – DO FACTO PROVADO N.º 39:
HH) A recorrente não se conforma com o facto dado como provado no ponto n.º 39, pelo que vai tal matéria impugnada.
II) Deve dar-se como provado que “Para a reposição da situação existente em momento anterior à execução da obra de alargamento da Estrada Municipal … seria necessário despender cerca de € 6.350,00, acrescidos de IVA.”, e não os € 7.250,00, acrescidos de IVA, que o Tribunal deu como provado, e que constam do relatório pericial, porquanto este abrange trabalhos de reposição que o Tribunal a quo deu como não provados no ponto 6, no valor de €900,00, acrescidos de IVA, e que, nessa medida, têm de se subtrair àquele valor de €7.250,00.
III – DO PRINCÍPIO DA INTANGIBILIDADE DA OBRA PÚBLICA:
JJ) Diz o Tribunal a quo que, ainda que se considere ilegítima a apropriação da faixa, sempre o pedido de restituição da mesma deveria improceder, por respeito ao princípio da intangibilidade da obra pública, que se traduz na manutenção da posse por parte da administração, apesar desta assentar em título ilegal, desde que não represente um atentado grosseiro ao direito de propriedade, por forma a não resultarem danos graves para o interesse público.
KK) Ora, tal princípio não está expressamente consagrado na lei, nem é pacífica a sua admissibilidade no nosso ordenamento jurídico.
LL) Na verdade, tal princípio é importado da doutrina e jurisprudência francesas, que o aplicam unicamente para as situações de expropriação indirecta, ou seja, para os casos de ilegalidade simples e leve, que são, por exemplo, aqueles em que se dá a ocupação de mais área do que aquela que foi objecto de expropriação; aqueles em que tendo havido declaração de utilidade pública, não se seguiu um processo expropriativo; aqueles em que a declaração de utilidade pública foi anulada por vício formal, etc.
MM) A jurisprudência e a doutrina francesas não aplicam o referido princípio às situações de via de facto, ou seja, em casos de ilegalidade grave e patente da ocupação, que são aqueles em que a ocupação se dá sem qualquer título, e sem qualquer iter procedimental de declaração de utilidade pública, casos em que se reconhece ao proprietário lesado o direito à restituição do seu prédio.
NN) E a verdade é que tais figuras jurídicas têm vindo a ser questionadas, por traduzirem uma ofensa inadmissível ao direito de propriedade, quer pela L…, em França, quer pelo TEDH.
OO) Em Portugal, a doutrina rejeita a aplicação daquelas figuras jurídicas estrangeiras no nosso direito, à luz dos princípios constitucionais e legais da expropriação, devendo as questões ser decididas com base na ponderação causídica dos interesses envolvidos.
PP) A jurisprudência - parte dela – rejeita a aplicação do princípio da intangibilidade da obra pública às supra referidas situações de ilegalidade grave e patente da ocupação, aplicando a regra a que obedece a acção de reivindicação, a saber, da restituição do bem ilegalmente ocupado, sendo este o caso dos autos, uma vez que não houve qualquer processo expropriativo, tendo os réus ocupado o prédio pertença da herança sem qualquer título legitimo.
QQ) Na verdade, a jurisprudência limita o princípio da intangibilidade da obra pública aos casos de ilegalidade simples e leve, não sendo este o caso dos autos.
RR) Diz o Tribunal a quo que o custo de reposição do status quo anterior à execução das obras se revelaria absolutamente desproporcional tendo em consideração, por um lado, o valor da faixa de terreno ocupada e, por outro, o custo de reposição aliado à perda de benefício público que, com a execução da obra se logrou.
SS) Tendo em atenção a impugnação do ponto 39 dos factos dados como provados, e mesmo que assim não fosse, o custo da reposição não se revela excessivo para uma entidade como o 1.º réu, pelo que, não se verificando também por aqui os pressupostos de aplicação do princípio da intangibilidade da obra pública, deve a faixa de terreno ser restituída à herança no estado anterior à ocupação.
Sem prescindir,
TT) Ainda que se entenda aplicar o princípio da intangibilidade da obra pública, diz o Tribunal a quo que, atento o princípio do pedido plasmado no artigo 609º n.º1 do CPC e uma vez que não foi deduzido qualquer pedido subsidiário para o caso de improcedência dos pedidos principais, não há lugar à atribuição de qualquer indemnização pela ocupação da faixa de terreno em questão.
UU) Ora, ao proprietário de parcela ilicitamente ocupada, apenas lhe é reconhecido o direito de exigir a sua restituição, a qual apenas será recusada nos casos previstos na lei, nos termos do disposto no art. 1311.º do CC, não lhe sendo conferido o direito de optar pela dedução de um pedido de condenação no pagamento de uma quantia correspondente ao valor expropriativo da parcela. Correspondentemente, seria ilegítima a invocação pelo proprietário do mecanismo de substituição previsto no art. 566.º n.º 1 do CC.
VV) Pois, o princípio da intangibilidade da obra pública apenas pode ser invocado pelos réus como meio de impedir os efeitos da pretensão reivindicatória formulada contra eles.
WW) E assim fizeram, tendo o 1.º réu deduzido pedido reconvencional no sentido de ser declarada a faixa de terreno pertença do Município, pedido esse declarado procedente.
XX) Note-se que o reconhecimento do direito de propriedade da parcela atribuído ao 1.º réu, por aplicação do princípio da intangibilidade da obra pública, implica necessariamente o pagamento do seu valor aos seus legítimos proprietários, ora autora e chamados.
YY) E certo é que o 1.º réu deduziu o correspondente pedido reconvencional sob a alínea c) da sua reconvenção, pedido esse que deve ser julgado procedente, e ser o réu condenado no pagamento da correspondente indemnização.
ZZ) Pelo exposto, ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 5.º n.º 1 do CPC, e bem assim nos artigos 1311.º n.º 1, 227.º, 280.º n.º 1, 947.º e 220º do CC.».
Termina pedindo provimento ao recurso.
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Contra-alegou o município C… pugnando pela manutenção do decidido.
O M.º P.º apresentou resposta também manifestando que a decisão recorrida se deve manter.
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As questões a decidir são:
possibilidade de o tribunal dar como provado o facto 41, no todo ou em parte, com sustentação em estarem em causa factos não essenciais;
alteração do facto provado 39 (valor de obras a realizar);
propriedade de parcela de terreno onde houve realização de obras pelo Réu município;
restituição dessa parcela à titularidade da herança e os respetivos termos.
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2). Fundamentação.
2.1). Foram julgados provados os seguintes factos:
«1. Encontra-se inscrito a favor de D… e de E… prédio rústico composto por cultura, videiras de enforcado e dependências agrícolas, com a área de 8570 m2, sito no lugar de …, da freguesia de …, do concelho C…, a confrontar de norte com carreiro da …, de sul com H…, de nascente com caminho e de poente com I…, inscrito na matriz sob o artigo 227 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 165.
2. D… faleceu a 29 de Abril de 2006.
3. E… faleceu a 14 de Dezembro de 2013.
4. Sucederam a D… e a E…: F…, J…, D…, M…, N…, O…,
5. Apenas que, desde data não concretamente apurada, os herdeiros de D… e a E…, e antes de si os seus pais, estiveram na posse, uso e fruição do prédio identificado em 1.
6. nele erguendo ramadas, plantando e conservando a vinha, podando-a, sulfatando-a, colhendo os seus frutos, fertilizando o solo, nele plantando, semeando e colhendo produtos agrícolas, realizando a colheita das culturas, roçando a vegetação que nele cresce, nele guardando produtos e alfaias agrícolas, nele fazendo obras de conservação e melhoramento,
7. cuidando da sua manutenção, procedendo à sua limpeza e rega, e dele retirando todas as demais utilidades,
8. à vista e com o conhecimento de toda a gente,
9. sem oposição de ninguém,
10. na firme convicção de que estavam no exercício pleno do seu direito de propriedade e posse sobre o supra descrito prédio, e de que não lesavam os direitos de outrem.
11. Apenas que, o prédio identificado em 1 dos factos provados confina com a Estrada Municipal ….
12. Em 19 de Março de 2007, o 1.º Réu aprovou, em reunião ordinária da Câmara Municipal, deliberou, designadamente, aprovar a “obra de “beneficiação da E.M. … e E.M. … entre … – …”.
13. Para a execução da obra tornava-se necessária a utilização de uma faixa de terreno do terreno identificado em 1, com a área de 137,70m2 (81x1.70m).
14. Quer porque ao tempo integrava o gabinete do Presidente da Câmara, quer porque o acumulava com a presidência da Junta de Freguesia, que se quadrava com a cooperação institucional entre os municípios e freguesias na prossecução do interesse público, nomeadamente devido ao grau de proximidade das freguesias com os munícipes, o Município C… solicitou a K… que diligenciasse pela aquisição dos terrenos necessários à realização da obra para o município, designadamente a referida parcela.
15. Em 23 de Julho de 2007, a 1.ª Ré adjudicou à “P…, lda” tal empreitada, denominada “Beneficiação da EM … e EM … entre … – …”.
16. E em 23 de Agosto de 2007, a 1.ª Ré celebrou o contrato de empreitada com a referida P… tendo-se aí previsto o início da obra em 11 de Setembro de 2007.
17. Apenas que, em data não concretamente apurada, a 2.ª Ré, na pessoa do presidente da junta de freguesia – K… – contactou a Autora no sentido de saber se esta consentia na cedência de uma faixa de terreno do prédio identificado em 1 dos factos provados, sita na extremidade sul confinante com a referida estrada municipal, numa extensão de 3,5 metros, porquanto a Ré pretendia proceder ao alargamento da curva existente a sul do daquele.
18. Apenas que, o presidente da junta de freguesia agendou uma reunião entre si e os referidos herdeiros, a fim de obter o consentimento expresso na ocupação da faixa de terreno em apreço
19. A qual, em data não concretamente apurada, mas em meados de Setembro de 2007, veio a ocorrer.
20. O 1.º Réu fez a obra sem o consentimento da Autora.
21. Apenas que, em Setembro de 2007, o 1º Réu ocupou o prédio supra identificado não só na extremidade sul confinante com a estrada, mas ao longo de toda a linha de confinância com a referida estrada, ocupando assim uma faixa de terreno com uma largura de 1,70 metros e comprimento de 81 metros, o que perfaz a área de 137,70 m2, para alargamento da estrada.
22. O que fez de forma consecutiva e ininterrupta, como se de verdadeiro proprietário se tratasse, à vista de todos, nela executando passeios, que são diariamente utilizados pelas generalidade dos cidadãos.
23. A aludida faixa de terreno cria segurança e mobilidade de peões naquela zona.
24. Em tal faixa de terreno, e ao longo de toda a linha de confinância com a estrada, o 1.º Réu procedeu à construção e pavimentação de uma berma em cubos.
25. Apenas que, outrossim, em tal faixa e ao longo de toda a linha de confinância com a estrada, o 1.º Réu procedeu à construção de um muro de delimitação do prédio em apreço com a referida estrada, feito de pedra, com o comprimento de 81 metros e espessura de aproximadamente 25 cm, com várias alturas que acompanham o desnível do aludido terreno a acompanhar a cota da estrada.
26. E, apenas que, alteou uma rampa de acesso existente na estrema norte e procedeu à colocação de umas escadas com três degraus.
27. Apenas que as obras aludidas em 25 e 26 foram realizadas em proveito do prédio identificado em 1 dos factos provados.
28. Apenas que a faixa de terreno aludida em 21 dos factos provados incorporava o prédio descrito em 1.
29. O 1.º Réu recepcionou provisoriamente a obra em 09 de Fevereiro de 2009.
30. Apenas que, em data não concretamente apurada, a Autora agendou uma reunião com o presidente da Câmara Municipal C….
31. Em 24 de Fevereiro de 2014, a Autora apresentou uma reclamação escrita ao 1.º Réu sobre a área ocupada do prédio para alargamento da Estrada Municipal ….
32. A Autora enviou carta registada com aviso de recepção, em 08 de Abril de 2014, com o seguinte teor: “Foi ainda construído um muro, junto à Estrada Municipal, com a consequente retirada de uma faixa de terreno ao longo de todo o terreno das leiras que ficam imediatamente acima da curva, prédio esse também é pertença dos herdeiros de E…, inscrito na matriz sob o artigo 227.
Ora sucede que, tais obras não foram autorizadas por todos os herdeiros. Contudo e apesar de ter manifestado junto do Presidente da Junta de Freguesia de … o meu desagrado perante as questões supra mencionadas, até à presente data não obtive qualquer resposta no sentido de resolvermos estas questões.
Pelo exposto, solicito a V.ªs Ex.ªs que […]me remetam uma cópia do documento assinado por todos os herdeiros, contendo a autorização para a construção do muro no prédio rústico supra mencionado”.
33. A Autora enviou requerimento, apresentado nos serviços da Câmara Municipal C… em 31 de Julho de 2014, com o seguinte teor: “Foi ainda construído um muro, junto à Estrada Municipal, com a consequente retirada de uma faixa de terreno ao longo de todo o terreno das leiras que ficam imediatamente acima da curva, prédio esse também é pertença dos herdeiros de E…, inscrito na matriz sob o artigo 227. Ora sucede que, tais obras não foram autorizadas por todos os herdeiros. Contudo e apesar de ter manifestado junto do Presidente da Junta de Freguesia de … o meu desagrado perante as questões supra mencionadas, até à presente data não obtive qualquer resposta no sentido de resolvermos estas questões. Também tentei, junto do anterior Presidente da Câmara Municipal, Dr. Q…, resolver esta questão, que depois de várias insistências me agendou uma reunião em que referiu “que as obras iriam prosseguir e se quisesse poderia recorrer a tribunal”.”
34. Apenas que, em data não concretamente apurada, a Autora apresentou reclamação verbal na assembleia de freguesia de ….
35. Do 1.º Réu, em 27 de Maio de 2014, a A. obteve a seguinte resposta: “1) O alargamento da EM .., aqui reclamado, foi efectuado aquando da execução da empreitada de “Beneficiação da EM … e EM … entre …”. Cumpriu com o previsto em projecto e foi à data negociado com os proprietários e a Junta de Freguesia.
2) Durante o decurso da empreitada foram cumpridas as exigências dos proprietários, incluindo a limpeza e regularização dos terrenos afectados pelas obras.
3) A sua recepção provisória ocorreu a 09/09/2009, não tendo sido formalizadas ou conhecidas quaisquer reclamações dos proprietários. Não se compreende por isso, à data, a reclamação anexa. Trata-se de uma exigência que, salvo melhor opinião, estará fora de tempo, devendo a reclamante esclarecer junto dos restantes herdeiros e da Junta de Freguesia os termos da cedência dos terrenos aqui em causa.”
36. Da 2.ª Ré, em 12 de Maio de 2014, a Autora obteve a seguinte resposta:
“1) Não executou esta Junta de Freguesia qualquer tipo de muro, junto à Estrada Municipal.
2) Desconhecendo, por isso, a que obras se refere a carta.
3) As únicas realizadas, que decorreram naquele local, foram executadas pela Empresa “P…” e decorreram no ano de 2007.
4) Nunca esta Junta teve conhecimento de algum impedimento à execução das mesmas.”
37. O valor do m2 do prédio identificado em 1 dos factos provados cifra-se em €5,00.
38. A remoção da obra executada na faixa de terreno em apreço impediria os peões de prosseguirem no passeio, tendo que utilizar a faixa de rodagem para o efeito.
39. Para reposição da situação existente em momento anterior à execução da obra de alargamento da Estrada Municipal … seria necessário despender cerca de €7.250,00, acrescidos de IVA.
40. Apenas que vários dos chamados residiam nas proximidades do prédio sub judice.
41. Foi, por D… e a E…, em data não concretamente apurada, cedida uma faixa do terreno identificado em 1 dos factos provados para efeito de alargamento da estrada EM ….
*
E foram julgados não provados:
«1. No seguimento do contacto aludido em 17 dos factos provados, a Autora tenha informado o presidente da junta de freguesia que não prestava o seu consentimento à cedência da faixa de terreno, só autorizando tal cedência se todos os herdeiros do falecido D… nisso consentissem, por escrito e com reconhecimento notarial da assinatura de todos.
2. No âmbito da reunião aludida em 18 e 19 dos factos provados, a Autora tenha reiterado que só autorizaria tal cedência se todos os herdeiros do falecido D… nisso consentissem, por escrito e com reconhecimento notarial da assinatura de todos.
3. Face à recusa da Autora em prestar o consentimento, o presidente de junta de freguesia tenha informado os presentes que o 1.º Réu iria então lançar mão da expropriação por utilidade pública do aludido prédio.
4. Na reunião aludida em 18 e 19 dos factos provados todos os presentes (Autora e irmãos) tenham dado o seu expresso consentimento para o Município ocupasse a faixa de terreno em questão,
5. Sem que tivessem solicitado outras diligências, nomeadamente qualquer contrapartida de natureza financeira.
6. O 1.º Réu tenha procedido à destruição das vides e à remoção dos esteios de cimento que suportavam a ramada com vinha, aí existentes numa extensão de 60 metros a contar da estrema sul.
7. Com a construção do muro identificado em 25 dos factos provados, o 1.º Réu tenha tapado três entradas que o prédio supra aludido tinha a nascente, situando-se a primeira junto à estrema sul, com a largura de cerca de dois metros, a segunda entrada a uma distância de 2,50 metros para sul da abertura referida em 30.º supra, com a largura de cerca de dois metros e a terceira uma distância de 1 metro para norte da abertura referida em 30.º supra, com a largura de cerca de 1 metro.
8. À época, a Autora vivesse com o seu marido em S. João da Madeira, só se deslocando a C… aos fins-de-semana.
9. Só em 10 de Novembro de 2007, quando a Autora se deslocou ao prédio descrito em 1 dos factos provados, é que se tenha apercebido das obras que estavam a ser levadas a cabo pela 1.ª Ré.
10. A obra tenha estado parada de 10 de Dezembro de 2007 a 06 de Fevereiro de 2008.
11. De imediato, naquele mês de Novembro de 2007, a Autora tenha reclamado quer junto do 1.º Réu, quer junto da 2.ª Ré, alegando a ocupação indevida da faixa de terreno que ora nos ocupa, porquanto a Autora não tinha dado autorização para tal.
12. Por diversas vezes, ao longo dos meses e anos que se seguiram, quer verbalmente quer por escrito, a Autora tenha reclamado junto dos Réus a reposição da parcela no estado em que anteriormente se encontrava.».
*
2.2). Do mérito do recurso.
A). Da inserção do facto provado 41.
Este facto tem o seguinte teor: Foi, por D… e a E…, em data não concretamente apurada, cedida uma faixa do terreno identificado em 1 dos factos provados para efeito de alargamento da estrada EM ….
D… e E… são os pais da Autora e intervenientes que faleceram respetivamente em 29/04/2006 e 14/12/2013 – factos provados 2 e 3 -.
O teor literal deste facto relaciona-se com a cedência efetuada pelos falecidos pais da Autora de uma faixa de terreno do imóvel referido no facto provado. Não se menciona a favor de quem foi efetuada tal cedência; mas pelo teor dos autos e do que está em discussão, pensamos que se pode entender que o tribunal dá como provado que essa cedência ocorreu a favor do domínio público, eventualmente a favor do Réu município que foi quem aprovou a realização da obra.
Na justificação para a prova desse facto, o tribunal recorrido menciona que «quanto ao facto que resultou provado em 41, trata-se de facto instrumental decorrente da instrução da causa e que, nessa medida, o Tribunal teve em consideração ao abrigo do disposto do artigo 5º, n.º2 do Código de Processo Civil. Teve, quanto a tal facto, o Tribunal em consideração essencialmente o depoimento de J… e nos termos que antecedem.».
Ou seja, classificando o facto como instrumental, o tribunal entendeu que, face à prova produzida, poderia dá-lo como provado, assim o acrescentando à restante matéria factual.
Vejamos então o que foi alegado em termos essenciais para depois, em primeiro lugar, aferir-se se podia o tribunal dá-lo como provado por ser instrumental ou, no máximo, não essencial e se, em segundo lugar, podendo assim ser acrescentado, a prova produzida permite tal decisão.
A Autora, nesta matéria, alegou que:
o Réu município, em 19/03/2007 propôs-se proceder ao alargamento da Estrada Municipal … conforme ata 10/2007, de 19/03 (artigo 17.º, da petição inicial e documento n.º 6);
em 10/09/2007, a 2.ª Ré contactou a Autora no sentido de saber se consentia na cedência de uma faixa de terreno do prédio em causa, numa extensão de 3,5 metros para se proceder ao alargamento da curva existente a sul do prédio (artigo 20.º, da petição inicial);
a Autora não consentiu nessa cedência, só o fazendo com a declaração de consentimento por todos os herdeiros do então falecido pai, em documento notarial (artigo 21.º, da petição inicial);
foi agendada pelo 2.º Réu uma reunião para 15/09/2007, tendo a Autora mantido a sua discordância, referindo aquele Réu que se iria recorrer à expropriação por utilidade pública (artigos 24.º e 25.º, da petição inicial);
porém, não só a 1.ª Ré realizou a obra sem consentimento como ocupou mais área do que a que tinha sido comunicada (artigo 26.º, da petição inicial).
O 1.º Réu, Município de C…, alega que:
o presidente da freguesia, 2.ª Ré, a pedido do 1.º Réu, diligenciou junto da Autora e irmãos para que se obtivesse o expresso consentimento na ocupação da indicada faixa de terreno (artigos 8.º e 9.º, da contestação);
essa reunião correu em setembro de 2007, tendo todos, incluindo a Autora, prestado o consentimento à ocupação, sem qualquer contrapartida (artigos 10.º e 11.º, da contestação);
a partir de setembro de 2007, o município passou a ocupar a parcela (artigo 13.º, da contestação).
A 2.º Ré, Freguesia de …, alega que:
logo que o projeto foi concluído, pediu à mãe da Autora as necessárias autorizações para a construção em causa, tendo sido sugerida a realização de uma reunião com todos os interessados (artigos 57.º a 60.º, da contestação);
antes do início da execução da empreitada, ocorreu tal reunião com todos os herdeiros incluindo a mãe da Autora, todos tendo acordado na cedência (artigos 62.º e 63.º, da contestação).
*
Em primeiro lugar, há uma diferença entre cedência de terreno e acordo para cedência do mesmo pois ali está em causa a efetiva transmissão da propriedade ou pelo menos do seu uso para o município e aqui está a fase prévia a tal cedência. No entanto, entende-se que o que está sempre em causa é saber se foi efetivamente cedida tal parcela de terreno ao município para este poder realizar as obras que entendia como sendo de interesse público.
Daí que das reuniões onde houvesse o consenso para tal cedência seguir-se-ia a ocupação da parcela com a sua alteração para uma estrada municipal.
Ora, como se denota das alegações da Ré Freguesia de …, foi mencionado na contestação que a mãe da Autora deu o seu consentimento a tal ocupação; assim, ao dar-se como provado que aquela (mãe da Autora) cedeu a parcela, está também a dar-se como assente que prestou esse consentimento, analisando-se assim um facto que foi alegado e que é essencial da defesa desta Ré: houve autorização para se realizar a ocupação do imóvel (com a dita autorização de cedência e posterior cedência) de uma das co-titulares do direito de propriedade.
Daí que, em relação à alegada atuação da mãe da Autora não há violação do ónus de alegação tal como previsto no artigo 5.º, n.º 1, do C. P. C..
O tribunal entendeu dar como provado que também o pai da Autora deu essa autorização de ocupação. Ora, como vimos, nenhuma das partes alega que aquele tenha prestado tal autorização.
Assim, só se efetivamente estiver em causa um facto instrumental ou complementar ou ainda concretizador dos alegados é que o mesmo pode ser atendido pelo tribunal.
Os factos instrumentais podem ser definidos como aqueles cuja função é apenas probatória; não substanciam ou preenchem as pretensões jurídico-materiais do autor, mas da sua prova pode inferir-se a prova dos factos principais[1] ou aqueles que permitem a afirmação, por indução, de factos de cuja prova depende o reconhecimento do direito ou da exceção[2].
Ora, a prova de que o pai da Autora consentiu na cessão da parcela de terreno (ou cedeu-a), na nossa opinião, não é um facto instrumental de qualquer facto essencial alegado pelos Réus. Estes, para contrariarem a alegada ocupação ilícita do imóvel, excecionam que essa ocupação foi consentida por essa parcela lhes ter sido colocada na sua disponibilidade; mas esse consentimento/cedência é alegado como tendo ocorrido ou pelos filhos ou pelos filhos e mãe e nunca também pelo pai. Se este tivesse tido essa atuação, não se consegue retirar da prova de tal consentimento que a sua mulher também tinha dado consentimento e muito menos que os seus filhos o tivessem dado já que, nesse caso, nem seria necessário.
Ou seja, as partes não alegaram que o pai da Autora tivesse prestado tal consentimento ou cedido o terreno, o que até se torna coerente pois alegando que o projeto se iniciou em 2007, nessa altura o pai da Autora já tinha falecido.
Não está em causa então um facto instrumental.
Quanto aos factos complementares e concretizadores, temos que:
os factos complementares são os que completam a causa de pedir (ou uma exceção) complexa, ou seja, uma causa de pedir (ou uma exceção) aglutinadora de diversos elementos, uns constitutivos do seu núcleo primordial;
os concretizadores têm por função pormenorizar a questão fáctica exposta sendo exatamente essa pormenorização dos factos anteriormente alegados que se torna fundamental para a procedência da ação (ou da exceção).[3]
Ora, não vislumbramos que a exceção de ter existido consentimento ou cedência da parcela do imóvel tenha sido alegada de modo incompleto ou pouco pormenorizado de forma que necessitasse de se acrescentar o consentimento dado pelo pai da Autora.
Os Réus alegaram que houve consentimento/cedência para ocupação da parcela, quem o deu (Autora e intervenientes; Autora/intervenientes/mãe da Autora) e quando (setembro de 2007; antes da execução da obra).
Mesmo que a Ré Freguesia de … não tenha alegado pormenorizadamente a data em que ocorreu aquele consentimento, não é pela prova que o pai da Autora o prestou que se pormenoriza aquela falta.
Assim, o facto relativamente ao consentimento dado pelo pai à ocupação da parcela ou a sua própria cedência não pode ser aditado pelo tribunal por violação do princípio do ónus de alegação já referido pelo que se elimina essa parte do facto 41.
*
B). Da prova do consentimento dado pela mãe da Autora.
Estando definido que esta questão podia ser aditada pelo tribunal por estar em causa um facto essencial alegado pela Ré freguesia de …, importa então aferir se houve prova para se concluir que assim era, atenta a formalmente correta impugnação da matéria de facto feita pela recorrente.
O tribunal recorrido sustenta a prova deste facto no depoimento de J…, canalizador, chamado e irmão da Autora, especialmente com base em conversa que mencionou ter com o presidente da junta de freguesia e seus pais onde estes teriam prestado o referido consentimento.
Vejamos então.
Ouvida toda a prova, também pensamos que não pode ser dado como provado que a mãe da Autora deu consentimento à realização de obras pelo município em questão sem qualquer contrapartida.
Desde logo, o dar esse consentimento tem de ter duas épocas distintas como referência:
ou ocorreu antes de 29/04/2006 (data de falecimento do pai da Autora);
ou ocorreu em setembro de 2007 (data em que ocorreu reunião entre herdeiros do pai da Autora e o presidente da junta de freguesia de …, a testemunha K…).
Foram essas as duas épocas que foram referidas como tendo sido aquelas em que se colocou a questão do apontado consentimento.
Ora, na primeira situação, foi referido por K…, na audiência de 09/09/2020, que cerca de um ano antes de o pai da Autora falecer, falou com ele, através do seu filho J… (falou com a testemunha para esta falar com os pais). E mencionou então o presidente da junta de freguesia que se iria fazer o projeto, ver o que seria para ceder, tendo então sido-lhe dito pelo filho, refletindo a posição do pai, para fazer o projeto, o muro, sem qualquer contrapartida. Quanto à mãe, não disse que era para avançar.
Num julgamento que se realiza em 2020, referir-se que alguém (pai da Autora) disse em 2005 que tinha tomado posição sobre uma determinada situação é algo que tem de ser ponderado com bastante cautela pois a pessoa que alegadamente o teria dito já não pode confirmá-lo.
Daí que, a menção pelo irmão da Autora de que o seu pai tinha aceite a cedência de terreno, e a confirmação por K… dessa situação tinha que resultar demonstrada por outros factos que conferissem segurança a essa alegação.
Em 2005 (ou mesmo 2006) não estava elaborado o projeto da estrada (assim o referiu K… na sessão de 07/10/2020) pelo que qualquer aceitação que pudesse ter existido era totalmente vaga pois um proprietário consciente só aceita ceder parte do seu terreno sabendo os limites do que se propõe ceder.
E é este sentido genérico que pressentimos que pode ter ocorrido nessa conversa de 2005, ou seja, andava a estudar-se se o local por onde a estrada iria ser reformulada tinha proprietários dispostos a diminuir os custos dessa atuação.
Para nós, muito possivelmente teria de existir outra conversa, com dados mais objetivos, para que se pudesse ter uma resposta clara e segura de tal cedência por parte do pai da Autora.
Daí que, se a resposta de 2005, a ter existido, por parte do pai da Autora não pode ter sido definitiva, muito menos se pode considerar que a ausência de afirmação da mãe da Autora possa traduzir-se num consentimento para a ocupação.
Mesmo que se aceite que a mãe da Autora não teria outra vontade senão que a do seu marido, no máximo, teria havido aquela primeira posição de assentimento sujeita a uma posterior concretização.
E tanto assim será que os próprios intervenientes perceberam que, com o falecimento do pai da Autora (em 29/04/2006), seria necessário, em 2007 (altura em que já havia um projeto e se podia iniciar a obra) concretizar o acordo, definindo-se o que tinha de ser cedido e o que iria a edilidade municipal realizar.
Todos os herdeiros aceitaram participar nessa reunião e o município, através do indicado K… também entendeu necessária a realização de tal reunião; daí que aquele hipotético acordo do pai da Autora (que não foi alegado) ou o silencioso acordo da mãe da Autora em 2005 não podem ser dados como provados – aquele pelos motivos acima indicados e este por falta de prova -.
Quanto à indicada reunião de setembro 2007, pensamos que, sob qualquer perspetiva, é seguro afirmar que não há prova do consentimento da mãe da Autora. Na verdade, tenha a mesma estado na reunião por uns momentos, ou não tenha estado por ter ficado em casa, ninguém referiu claramente que houve aquele consentimento.
Nem o presidente da junta de freguesia o afirmou, mencionando, no máximo que soube indiretamente, depois da reunião, que aquela concordava (sessão de 07/10/2020). O que referiu foi que falou antes da reunião com a mãe da Autora e que ela assentia mas, mais uma vez, não é possível confirmar de viva voz essa afirmação pois a mãe da Autora faleceu em 14/12/2013. Acresce que K… referiu que a mãe da Autora estava bem e percebia tudo (só via mal) mas foi referido por S… que a mãe nessa altura já não estaria bem (o facto de não ter estado na reunião ou na sua totalidade pode levar a pensar que já não teria capacidade para se envolver neste tipo de situação).
Mesmo o filho J… não menciona que a mãe deu o acordo na reunião, referindo que saiu para se sentar no muro da …; e apesar de alegadamente já ter dado o seu assentimento antes, há dúvidas sobre se, a ter existido, se mantinha – O… disse que a mãe não queria as obras -.
Não há bom relacionamento entre os irmãos, com divisões entre si (ou grupos).
Da reunião não resulta qualquer tipo de expressão de um acordo da mãe pelo que não há prova suficiente para o mesmo ser dado como provado.
Assim, apesar de porventura esta questão poder não ter relevância já que ficou não provado que tenha sido dado consentimento pelos herdeiros/irmãos – facto não provado 4 - (sendo insuficiente o acordo da mãe para vincular a herança), conclui-se que o facto 41, na parte não eliminada, deve ser julgado não provado nos seguintes termos:
13). Em data não concretamente apurada, E…, tenha cedido uma faixa do terreno identificado em 1 dos factos provados assim consentindo que o alargamento da estrada EM … se efetuasse pela mesma faixa.
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C). Facto provado 39.
Este facto tem o seguinte teor:
Para reposição da situação existente em momento anterior à execução da obra de alargamento da Estrada Municipal … seria necessário despender cerca de 7.250 EUR, acrescidos de I. V. A..
A recorrente alega, no fundo, um erro de julgamento deste valor pois, apesar do mesmo constar de relatório pericial, neste contabiliza-se a colocação de vides novas e recolocação de esteios (900 EUR), matéria factual (respetiva destruição de vides e remoção dos esteios) que não se provou – facto não provado 6 -.
Deve assim ser subtraído aquele valor de 900 EUR.
Ora, efetivamente, afigura-se-nos que tem razão a recorrente pois, não se questionando o valor total necessário para realização das obras, o certo é que o tribunal não se convenceu (definitivamente por essa matéria não ter sido impugnada) de que parte delas tenha de ser realizada (desconhece-se foram retiradas as videiras e os esteios).
Assim, não se pode dar como provado que para repor a situação anterior à construção da estrada se tenha de despender dinheiro com a recolocação de bens que não se apura que tenham sido retirados.
Deste modo, o facto provado 39 passa a ter a seguinte redação:
Para reposição da situação existente em momento anterior à execução da obra de alargamento da Estrada Municipal … seria necessário despender cerca de 6.350 EUR, acrescidos de I. V. A..
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D). Da defesa do direito de propriedade.
Assentes os factos que sustentam o litígio, pensamos que se pode concluir que o Réu município invadiu o terreno pertencente à herança aberta por óbito de D… e a E… (pais da Autora) com o intuito de realizar obras de beneficiação de uma estrada (factos provados 12 e 13).
Para o poder fazer, ou celebrava algum tipo de negócio que sustentasse essa ocupação (compra e venda, doação, …) que lhe permitisse adquirir a propriedade do terreno (ou parte dele) ou então teria de recorrer à requisição ou expropriação da parcela que julgasse necessária (artigo 62.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa).
Não se prova qualquer tipo de negócio celebrado entre o indicado Réu e os co-titulares do direito de propriedade, nem com os primitivos donos do imóvel (pais da Autora); e também não há prova de nenhum ato expropriativo, por mais ténue que pudesse ter sido.
Daí que ocorreu uma invasão da propriedade privada sem estar coberta por qualquer manto de licitude. No fundo, o Réu município praticou atos sobre uma propriedade privada para lograr atingir os seus intentos, sem deter qualquer título que o legitimasse a tal, a saber, aquisição da propriedade da parcela em causa, senão a título negocial, pelo menos com a necessária prévia declaração de utilidade pública que permitisse a expropriação (artigo 13.º, do Código das Expropriações).
O ato de efetuar obras na parcela em causa constitui uma expropriação de facto no sentido de que a Administração pratica um ato ablativo de um imóvel através de operações materiais destituídas de base jurídica válida, como por exemplo, a existência da referida prévia declaração de utilidade pública[4].
Daí que, atuando desse modo, no fundo como qualquer particular que invade propriedade alheia, o lesado pode lançar mão de uma ação de reivindicação de propriedade, sem ter necessidade de recorrer a fundamentos que atinjam atos administrativos, como se menciona no Acórdão da R. P. de 07/12/2016, desta mesma secção (relatado por Judite Pires), que consta nos autos, proferido a respeito da competência material do tribunal.
Foi o que a Autora (a que se associaram os intervenientes) fez, reclamando a co-titularidade da propriedade do imóvel e a sua restituição, ao abrigo do artigo 1311.º, do C. C..
Não se questiona no recurso que a parcela onde foram realizadas as obras fazia parte de imóvel pertencente aos herdeiros daquelas duas pessoas acima referidas, o que foi declarado na sentença.[5]
O que se coloca em causa é a restituição in natura dessa parcela, ou melhor, a decisão de que não é possível essa restituição, restando a possibilidade de uma restituição sucedânea.
O tribunal recorrido apelou, subsidiariamente (já que entendeu que tinha existido uma cedência da parcela ao Estado, algo que afastamos) ao princípio da intangibilidade da obra pública referindo, citando jurisprudência, que neste caso a afetação da parcela ao fim público tem de se sobrepor à circunstância de o processo que incorporou a parcela de terreno na Administração ser uma «via de facto», o que tem por consequência a intangibilidade da obra pública em causa.
Este princípio não está previsto na lei mas, como se menciona no Ac. do S. T. J. de 15/04/2015, www.dgsi.pt, «em determinadas circunstâncias que se pautam pela verificação de culpa leve ou mesmo pela ausência de culpa, a aplicação dos efeitos típicos da ação de reivindicação poderia revelar-se excessiva, designadamente quando, na sequência da ocupação ou apropriação, a entidade pública aplicou o imóvel a fins de utilidade pública ou à realização de obra pública, envolvendo vultuosos investimentos.
Em tais situações, o reconhecimento puro e simples do direito de propriedade, com a consequente condenação da entidade ocupante na restituição do prédio nas condições em que o mesmo se encontrava pode revelar-se desproporcionado e gravemente lesivo dos interesses de ordem pública, tendo em consideração os investimentos ou as despesas entretanto realizadas.
Para situações como esta tem sido desenvolvida uma tese intermediada pelos tribunais em face dos casos concretos que legitima uma limitação ao exercício do direito de reivindicação, substituindo-o pela atribuição de uma indemnização correspondente ao valor expropriativo do prédio, ponderando o princípio da intangibilidade da obra pública que mais não é do que uma versão administrativista das figuras do abuso de direito ou da colisão de direitos previstas nos arts. 334º e 335º do CC. Princípio que conquanto não esteja expressamente consagrado pode encontrar sustentação no disposto nos arts. 159º e segs. do CPTA, normas que permitem afastar a execução de julgado em casos em que esta provoque grave lesão do interesse público.».
Assim, se houve uma aparência de direito na apropriação do imóvel por parte da administração pública ou se houve o uso da legalidade mas com falhas na sua execução, poderia estar a punir-se o interesse público em favor da reposição natural a favor do particular.
No caso concreto, pensamos que não se deve aplicar este princípio pois a administração local agiu sem cumprir o mínimo de legalidade no que concerne à ocupação da parcela do imóvel, não tendo adquirido, de qualquer modo, a sua propriedade.
Se é certo que terá tentado obter consenso nessa atribuição, também o é que não provou que o tenha conseguido (o que lhe competia provar – artigo 342.º, n.º 2, do C. C.) pelo que quando realiza as obras não tem cobertura legal para as poder realizar no terreno provado em causa.
Não está assim em causa uma culpa leve ou ausência de culpa da administração pois atuou sem estar munida dos básicos e essenciais instrumentos legais que lhe permitiriam poder agir sobre propriedade alheia.
Neste caso, impedir a restituição in natura, mesmo ocorrendo violação grave dos interesses dos particulares, por existir uma obra que serve os interesses públicos, seria, além de uma violação da Constituição da República Portuguesa como acima referido, premiar um ato ilícito da mesma administração e criar a ideia de que, sempre que atuasse, nada mais restaria ao particular do que se ver desapossado materialmente do que lhe pertencia.
Tal como referido pelo Ac. do S. T. J. de 05/02/2015, www.dgsi.pt:
IV - a figura da «via de facto» – oriunda da teoria geral do direito administrativo – caracteriza-se pelo ataque grosseiro à propriedade de um particular, por meio de factos, à margem de qualquer processo legal; por seu turno, a «apropriação irregular e/ou expropriação indirecta» caracteriza-se pela tomada de posse, por parte da administração, de um bem imóvel de um particular, com base num título que enferma de uma ilegalidade, não de uma ilegalidade grave e grosseira, mas de uma ilegalidade simples e leve.
V - Foi da consideração do interesse público, ponderado e valorado na expropriação indirecta, que a jurisprudência francesa criou o «princípio da intangibilidade da obra pública» – princípio geral do direito das expropriações –, e que traduz a ideia de manutenção da posse por parte da administração, apesar desta assentar num título ilegal, e desde que não represente um atentado grosseiro ao direito de propriedade, por forma a não resultarem danos graves para o interesse público.
VI - Uma coisa é o Município ocupar uma parcela de terreno com vista à execução no mesmo de obras públicas, por si previstas para o local, em satisfação do interesse público e actuando de boa fé; outra, completamente distinta, é o Município proceder à ocupação do solo, sem o proprietário ser «tido ou achado», em actuação marginal ao dever de cumprimento da legalidade.
VII - Nos casos, como o dos autos, em que haja uma usurpação grosseira, um atentado à propriedade imbuído de ilegalidade flagrante, não tem sentido convocar o denominado «princípio da intangibilidade da obra pública», justificando-se o reconhecimento do direito de propriedade e a manutenção e/ou restituição da posse da parcela de terreno ocupada.».
Nem se pode atender a uma possível colisão de direitos, tal como previsto no artigo 335.º, do C. C. pois só há um direito que está em causa (propriedade) e esse pertence aos herdeiros em questão (veja-se Ac. S. T. J. de 29/04/1999, no mesmo sítio, numa situação semelhante, nesta parte).
Mesmo a questão suscitada pelo Réu Município, em sede de reconvenção, de pagar o valor que a parcela teria antes da realização das obras não pode ser judicialmente determinado tal como pedido e nesta vertente. Na verdade, o que está em causa, numa primeira abordagem, é o recurso à acessão industrial imobiliária, prevista no artigo 1340.º, n.º 1, do C. C. (se alguém, de boa fé, construir obra em terreno alheio, …, e o valor que as obras, …tiverem trazido à totalidade do prédio for maior do que o valor que este tinha antes, o autor da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o valor que o prédio tinha antes das obras, ….).
Aqui exige-se a boa-fé do autor da obra a qual consiste ou no desconhecimento, por parte do autor da obra, de que o terreno era alheio ou a atuação com base na autorização do dono do terreno – nºs. 1 e 4, do mesmo artigo -.
Ora, claramente que o Réu Município sabia que o terreno era alheio e não houve consentimento nem dos donos nem dos seus herdeiros (aqui conforme artigo 2091.º, n.º 1, do C. C.) pelo que não se preenche o requisito da boa-fé, sendo impedido o recurso à indicada acessão.
Por último (atendendo ao que foi suscitado nos autos), a questão do abuso de direito - artigo 334.º, do C. C. (é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.).
Se se atentar unicamente ao decurso do tempo que ocorreu desde a receção provisória da obra (facto provado 29 – 09/02/2009 -), temos que se apura que a Autora, em data não concretamente apurada, agendou uma reunião com o presidente da Câmara Municipal C… (facto provado 30), e que, em 24/02/2014, a mesma Autora apresentou uma reclamação escrita ao 1.º Réu sobre a área ocupada do prédio para alargamento da Estrada Municipal ….
O ónus probatório da alegação desta exceção pertencia a quem a alegou, ou seja, aos Réus que assim, no que respeita à tempestividade da reclamação, teriam que alegar que só em 2014 é que a Autora teria reclamado quando a obra já estava finda há cerca de cinco anos ou qualquer outra alegação de onde resultasse uma inércia ou atuação que demonstrasse que já não seria de esperar por qualquer oposição (abuso de direito na modalidade de supressio).
Essa prova não ocorreu pois, apesar de se ter apurado que houve uma reclamação em 2014, não se prova que só nessa data é que surgiu essa oposição; podem ter existido outras (e a que consta numa missiva da Autora de 31/01/2008 junta pela Ré Freguesia na contestação – documento n.º 1 – pode ser vista como uma oposição pois aí refere a Autora que não deu a autorização para a ocupação que se concretizou; e apesar de aí também referir que deu autorização para a junta de freguesia entrar no terreno, o certo é que o tribunal recorrido deu como provado que não houve esse consentimento pelo que é, nesta fase, inócua essa menção na referida carta).
Por outro lado, o mero decurso do tempo não é, por regra suficiente para se poder concluir que, por inércia do exercício do direito, o seu uso tardio é abusivo; ou está em causa um período temporal bastante longo - por exemplo, dez anos – ou então o decurso do tempo é acompanhado por atos que podem razoavelmente fazer crer que a parte já não vai exercer o direito (reuniões com a pessoa que tratou das negociações por parte da edilidade sem se fazer menção ao problema, alteração do trato do terreno em conformidade com as novas características do mesmo terreno, …) -.
Deste modo, o decurso do tempo é insuficiente para se concluir que há exercício abusivo do direito em reivindicar o uso da parcela, sendo que está em causa um direito (restituição de propriedade) imprescritível (artigo 1313.º, do C. C.) pelo que não vemos que se possa concluir que o passar do tempo, por si só, signifique que a parte contrária possa confiar no não exercício desse direito.
Mas pode acrescentar-se outra análise à situação para se aferir se há abuso de direito.
Na realidade, foi expropriada de facto uma área de 137,70 m2 de um total de 8 570 m2 – factos provados 1, 13 e 21 -, ou seja, menos de 2% da totalidade do imóvel, e não se demonstra que os titulares do direito de propriedade tenham ficado impedidos de exercerem, total ou parcialmente ou de modo mais difícil, qualquer tipo de atividade que desenvolvessem no terreno, mormente agrícola.
Ou seja, a violação do Réu Município ao direito da Autora e outros herdeiros acaba por se revelar com uma escassa relevância para os mesmos, não só atenta a diminuta pouca área que foi abrangida como ainda por não estar provada qualquer consequência para o trato do terreno, acabando por a única consequência ser a perda daquela pequena área no património dos mesmos herdeiros.
Ora, se há tão pouca relevância do pedido em termos de consequências efetivas para os herdeiros em questão, pensamos que não será possível impedir que a coletividade de pessoas, peões ou automobilistas, transitem no local de modo mais seguro, unicamente para que se satisfaça in natura o direito à restituição daquela parcela.
As obras que foram realizadas permitem uma melhor circulação quer dos peões (foram criados passeios para poderem caminharem ao longo da estrada) quer dos automóveis pois também se visou alargar a curva, assim se obtendo uma maior segurança coletiva para pessoas e bens.
Com a reposição do terreno como se encontrava antes da realização das obras, os peões ficariam impedidos de prosseguirem no passeio, tendo que utilizar a faixa de rodagem para o efeito (facto provado 38).
O benefício para a colectividade, com as obras realizadas, na nossa visão, supera em muito o prejuízo causado ao particular com a não restituição in natura da parcela de terreno.
Pensamos que o comum dos cidadãos não entenderia que para ressarcir o prejuízo sofrido com a atuação da edilidade municipal, consubstanciado em menos de 2% do total do imóvel e sem uso provado dessa parte, se destruísse uma obra que tem utilidade pública notória, assim se prejudicando a colectividade, sem se perceber o efetivo ganho dos donos da parcela.
Note-se que a parcela, tendo por base o preço por m2 que se provou (5 EUR – facto 37), terá o valor de 688,50 EUR, enquanto que, para se destruir o caminho e muro que o ladeia, se teriam de despender 6 350 EUR, ou seja, o valor da parcela revela ser cerca de 10,8% do valor das obras a efetuar, o que, para nós, reforça a ideia de que não se deve permitir que, para tão dispares valores, se permita a efetivação daquele que tem escassa importância.
O direito dos herdeiros ficará igualmente ressarcido se a restituição for por sucedâneo, evitando prejuízos monetários e mantendo a segurança de todos os que passam naquele local.
Daí que entendamos que, atenta a escassa importância do que é pedido em comparação com as consequências que resultariam da restituição natural, é abusivo o exercício desse direito de restituição in natura por exceder os limites da boa-fé e o fim económico desse direito.
Assim, temos que a parcela em questão não foi adquirida de qualquer modo pelo Réu município, pelo que a sua propriedade se mantém na herança aberta por óbito das duas pessoas acima referidas.
E a sua restituição pela ocupação ilegal por parte do mesmo Réu tem de ser efetuada em espécie, ou seja, pelo respetivo valor.
A Autora não formulou este pedido, nem a título subsidiário pelo que se poderia pensar que não se podia condenar o mesmo Réu a pagar qualquer valor – artigo 609.º, n.º 1, do C. P. C. -.
Vejamos.
Em primeiro lugar, o Réu alegou que não era possível restituir a parcela por existirem diversos óbices, incluindo abuso de direito (artigos 22.º e seguintes da contestação) e alegou inclusivamente a excessiva onerosidade da restituição natural (artigo 52.º a 55.º e 58.º, da mesma peça processual).
O que nós, em sede desta decisão entendemos, é que há abuso de direito na atuação da Autora, também atendendo à desproporção de valores existente entre valor da parcela e obras a realizar (e não por o custo das obras ser demasiado oneroso para o Réu); mas o certo é que se concluiu pela impossibilidade de restituição in natura e o Réu pede que se atenda a essa impossibilidade, propondo-se pagar um valor equivalente a tal restituição.
E, em segundo lugar, para nós, estão preenchidas as condições necessárias para se poder, nestes autos, decidir da restituição em espécie nos termos do artigo 566.º, n.º 1, do C. C. pois:
por prova da alegação do Réu, concluiu-se que não era possível a restituição natural;
há pedido formulado pelo Réu no sentido de pagar o valor sucedâneo, assim se podendo converter a obrigação de restituição natural.
É certo que pode não ter sido esta a concreta finalidade jurídica pretendida pelo Réu/reconvinte, que visaria a aquisição da propriedade com o pagamento de uma quantia; mas também é certo que o pedido contém a manifestação de se querer pagar um valor atribuído à parcela pelo que, juridicamente, esse intento também pode ser analisado sob um prisma ligeiramente diferente – em vez de adquirir a propriedade, o pagamento encerra a possibilidade de restituição do imóvel in natura que também é o que o Réu pretende, como já mencionamos -, procedendo em parte esse pedido.
Daí que a condenação do Réu a pagar um valor pela restituição da parcela não viola o princípio do pedido, não sendo uma decisão oficiosa do tribunal; a Autora pediu a restituição e a parte contrária demonstrou que não era possível e pede que se atribua um valor equivalente a essa restituição só que, em vez de o adquirir, «só» consegue pagar o respetivo valor sem o adquirir.[6]
Se os autos fornecerem os elementos necessários para, face ao alegado, se decidir pela restituição em espécie, pode o tribunal apreciar essa questão. E, na nossa opinião, face ao que foi carreado para o processo, pode decidir-se por essa restituição em espécie.
A Autora alegou o tipo de intervenção que tinha sido efetuada na parcela de terreno no sentido do que tinha sido ocupado e destruído e logrou-se provar qual a área que foi ocupada, sendo que não se provou que determinado tipo de bens tinham sido destruídos (vides e esteios).
Sabemos o valor por m2 do terreno (5 EUR) e a Autora, que já pedia a restituição natural, aceita a restituição em espécie por esse valor tal como pede no recurso (e certo é que o 1.º réu deduziu o correspondente pedido reconvencional sob a alínea c) da sua reconvenção, pedido esse que deve ser julgado procedente, e ser o réu condenado no pagamento da correspondente indemnização – alegação na parte final do recurso e conclusão yy ) -.
Mas mesmo que não soubéssemos que a Autora/recorrente aceita expressamente o pagamento em sucedâneo, este podia ser decidido, como já mencionamos.
Face aos elementos factuais de que se dispõe nos autos, pode restituir-se em espécie a parcela à herança condenando o Réu município a pagar-lhe a quantia de 688,50 EUR (não se pode condenar no pagamento de juros por não serem pedidos mas essa situação não invalida que os mesmos sejam devidos após a prolação da sentença, conforme resulta do artigo 703.º, n.º 2, do C. P. C. e do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 9/15, de 14/05/2015, D. R. n.º 121/2015, I, de 24/06/2015 [7]).
Conclui-se assim que a decisão recorrida deve ser alterada nos seguintes termos:
1). Mantém-se a declaração da propriedade do prédio rústico na herança aberta por óbito de D… e E…;
2). Condena-se o Réu Município a restituir à Autora e intervenientes a parcela de terreno supra identificada, em espécie, com o pagamento de 688,50 EUR.
3). Absolve-se a Autora e intervenientes da parte restante do pedido reconvencional.
*
3). Decisão.
Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso e, em consequência:
1). Mantém-se a declaração da propriedade do prédio rústico na herança aberta por óbito de D… e E…;
2). Condena-se o Réu Município a restituir à Autora e intervenientes a parcela de terreno supra identificada, em espécie, com o pagamento de 688,50 EUR.
2.1). Absolve-se a Ré freguesia de … dos pedidos.
Custas do recurso a cargo de Autora/intervenientes e Réu Município, na proporção de 1/2, para cada um.
3). Absolve-se a Autora e intervenientes da parte restante do pedido reconvencional.
Custas do recurso a cargo de Réu/reconvinte e Autora/reconvinda, na proporção de 1/2, para cada um.
Registe e notifique.

Porto, 14 de julho de 2021.
João Venade
Paulo Duarte Teixeira
Deolinda Varão
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[1] A matéria de facto no processo civil, (da petição ao julgamento), então Desembargador Henrique Araújo, ,http://carlospintodeabreu.com/public/files/materia_facto_processo_civil.pdf.
[2] António Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I, página 29.
[3] Paulo Pimenta, Os temas da prova, ebook C. E. J., http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/Texto_comunicacao_Paulo_Pimenta.pdf.
[4] José Osvaldo Gomes, Expropriações por utilidade pública, página 43.
[5] Em sentido que se nos afigura algo contraditório pois por um lado decide-se que o imóvel com área de 8.570 m2 pertence à herança e depois que uma parcela do mesmo, com 137,70 m2 pertence ao Réu município.
[6] Sobre esta questão da oficiosidade, ainda que relativo só à alegação da excessiva onerosidade, menciona o Ac. da R. E. de 03/04/2008, processo n.º 2659/07-2, que «… não o podia fazer, sem que tivesse sido o devedor a requerer a conversão da obrigação de restauração ou reconstrução, em obrigação pecuniária, através da alegação e prova de elementos que objetivamente consubstanciem uma situação de desproporção (…). Tem-se reconhecido que a excessiva onerosidade deve ser entendida no sentido de que não pode ser feita oficiosamente, devendo a obrigação de restauração natural ser convertida em obrigação pecuniária, apenas, nos casos em que a requerimento do devedor, este alegue a verificação de tal onerosidade excessiva.
[7] Se o autor não formula na petição inicial, nem em ulterior ampliação, pedido de juros de mora, o tribunal não pode condenar o réu no pagamento desses juros.