Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3273/15.0T8PNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI PENHA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
INSTÂNCIA
REABERTURA
CASO JULGADO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RP201804113273/15.0T8PNF.P1
Data do Acordão: 04/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÕES EM PROCESSO COMUM E ESPECIAL (2013)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL) (LIVRO DE REGISTOS Nº 274, FLS 44-51)
Área Temática: .
Sumário: I - A instância civil por acidente de trabalho pode ser reaberta para conhecimento de direitos que, por qualquer razão, não tenham sido apreciados até à decisão final sobre os quais não haja formação de caso julgado.
II - Age em abuso de direito a seguradora que nada diz relativamente a facturas de despesas que recebera antes da tentativa de conciliação na fase conciliatória de processo por acidente de trabalho, vindo a recusar o respectivo pagamento muito depois de transitada a decisão final na fase contenciosa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 3273/15.0T8PNF.P1

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto

Foram instaurados os presentes autos de acidente de trabalho em que é sinistrado B..., residente na ..., ..., Amarante, litigando com protecção judicial na modalidade de nomeação de patrono oficioso e isenção do pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, e entidade responsável C... – Companhia de Seguros, S.A., com sede na Rua ..., .., Lisboa.
Na fase conciliatória, foi consignado em acta de “não conciliação”, datada de 11/07/16, o seguinte:
“SINISTRADA foi dito: - Que no dia 28 de Abril de dois mil e quinze, cerca das 10:00horas, em Amarante, foi vítima de um acidente de trabalho quando exercia as funções de comerciante por conta própria, mediante a retribuição anual de 505,00€ x 14 (total anual de 7.070,00€) cuja responsabilidade se encontrava integralmente transferida para a Seguradora.
“O acidente ocorreu quando se encontrava em cima de uma escada a colocar objetos numa estante, desequilibrou-se e caiu, o que resultou traumatismo da mão e punho esquerdo. Submetida a exame médico no gabinete médico-legal de Penafiel foi-lhe atribuído o grau de incapacidade de 6,8317% e fixada a data da alta em 04 de Dezembro de dois mil e quinze, cujo resultado declara aceitar.
“Foram-lhe pagas todas as indemnizações e demais despesas acessórias que eram devidas até à data da alta. Reclama o capital de remição da pensão anual de 338,10€ devida a partir de 05 de Dezembro de dois mil e quinze, calculada com base na retribuição anual de 7.070,00€ x 70% x IPP de 6,8317%, nos termos do disposto no art. 48º, nº 3, alínea c) e 75º, nº 1, da Lei 98/2009, de 4 de Setembro, bem como a quantia de 24,00€ relativa a despesas de deslocações obrigatórias ao gabinete médico-legal de Penafiel e a este Tribunal.
“Pelo legal representante da Companhia de Seguros foi dito: Aceita a existência e caracterização do acidente como de trabalho, o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente, a retribuição de 505,00€ x 14 e a quantia reclamada a título de transportes. Não concordando, porém com o grau de desvalorização que foi atribuído à sinistrada pelo Perito Médico do Tribunal, uma vez que os serviços clínicos da sua representada atribuíram-lhe uma desvalorização de 4,92%, pelo que não se concilia.
“PELO MAGISTRADO DO MINISTÉRIO PÚBLICO, FOI DITO:- Dada a posição assumida pela seguradora, dava as partes por não conciliadas e ordenava a notificação da mesma para os efeitos do disposto no art. 117º, nº 1, al. b) do C.P.T..”
Realizou-se exame da sinistrada por junta médica, tendo sido a final proferida sentença a 10 de Outubro de 2016, com o seguinte teor:
“Pelo exposto, aplicando os citados normativos à matéria de facto apurada, nos termos do disposto no art.140º, nº 1, do C.P.T., observando-se o disposto no nº 3 do artigo 73º do mesmo Código, julgo a ação procedente e em consequência:
“A) Decido que a sinistrada B..., no dia 28 de Abril de 2015 sofreu um acidente de trabalho, em consequência do qual sofreu uma desvalorização permanente parcial para o trabalho de 5,87% (IPP de 5,87%).
“B) Condeno a responsável “C..., Companhia de Seguros, S.A.” a pagar à sinistrada o capital de remição correspondente à pensão anual de €290,51, devida desde 05 de Dezembro de 2015, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a referida data de vencimento até integral e efectivo pagamento;
“C) Condeno a responsável “C..., Companhia de Seguros, S.A.” a pagar à sinistrada a quantia de €24,00, a título de despesas com deslocações a Tribunal e ao Gabinete Médico-Legal de Penafiel, acrescida de juros de mora á taxa legal desde 22-03-2016 até integral e efectivo pagamento.”
Fixou-se à causa o valor de € 4.169,58.
Tal sentença foi notificada às partes com a mesma data.
Por requerimento entrado em 4 de Abril de 2017, dirigido ao Procurador da República do Tribunal do Trabalho de Penafiel, a sinistrada veio solicitar o pagamento de despesas de deslocação em táxi, no montante global de € 1.821,00.
As facturas têm datas de 07/05/2015 a 04/12/2015 e a carta de devolução das mesma encontra-se datada de 23/03/2017.
A seguradora respondeu por requerimento de 12 de Maio de 2017, no qual alega:
“A sinistrada nunca solicitou táxi, durante todo o período em que esteve em tratamento, nem tinha autorização por parte do médico assistente para o seu uso como meio de transporte.
“Remeteu diversas facturas de transporte de táxi, acompanhada de declaração da junta de freguesia, que se junta fotocópia, na qual é referido que “não existe transporte nesta freguesia, excepto em época escolar”.
“Em face disso, foi liquidado a título de transportes de táxi a quantia de 1.472,00€ relativamente às facturas de táxi apresentadas no período de 11/06/2015 a 14/09/2015 (período de férias escolar) inclusive, conforme recibo que junta fotocópia.
“Posteriormente é apresentada nova declaração da junta de freguesia, que se junta fotocópia, na qual apenas refere que não tem transporte público.
“Face à divergência nas declarações apresentadas, foi informada que deveria reclamar em Tribunal, o que não fez, dado o teor do auto de não conciliação de 11/07/16, tendo-o feito apenas agora após a devolução das facturas que não foram liquidadas.
“Face ao exposto é entendimento da requerente que as facturas reclamadas no valor de 1.821,00€ não são de liquidar.”
A sinistrada respondeu por requerimento de 29 de Maio de 2017, com o seguinte teor:
“A sinistrada foi seguida em consultas nos serviços clínicos da seguradora e por ordem da mesma fez tratamento de fisioterapia em Penafiel, na D....
“Nunca os serviços administrativos ou clínicos da seguradora me informaram pelos serviços administrativos ou clínicos da seguradora que não podia utilizar táxi nas deslocações para consultas e tratamentos.
“E podiam tê-lo feito pois quando já havia utilizado tal meio de transporte, durante vários dias pretendi entregar nos serviços da seguradora sitos na cidade de Penafiel as várias facturas que então já possuía e a funcionária da mesma seguradora comunicou-me que as entregasse apenas no final dos tratamentos.
“O que, respeitando tal informação, fiz no final dos tratamentos de fisioterapia, entregando as facturas de táxi no balcão de Penafiel da seguradora.
“A sinistrada esteve sempre convencida que tais facturas iriam ser pagas pela seguradora e, por isso, é que quando foi realizada a tentativa de conciliação nos autos, embora tenha chamado a atenção para a falta de pagamento de tais facturas, foi-lhe comunicado pelo representante da seguradora que não tinha instruções para o seu pagamento e pelo Exmo. Senhor Procurado foi dito à sinistrada que reclamasse o seu pagamento junto da seguradora e que esta seguramente iria pagar tais factura pois era uma pessoa de bem e informou a sinistrada que fosse à seguradora reclamar o seu pagamento e que se o mesmo não viesse a ocorrer no prazo de um mês ou mês e meio que se dirigisse de novo a este Tribunal reclamando o pagamento das facturas, o que a sinistrada veio a fazer, seguindo as instruções dadas pelo Exmo. Senhor Magistrado.
“Quanto ao facto alegado pela seguradora para não pagar as facturas do período coincidente com o período escolar, informa-se que o transporte público que existe na localidade da sinistrada é apenas o que é implementado para efeitos escolares (sendo que também é permitido ao público utilizar tal transporte desde que haja lugar disponível no autocarro, tendo, no entanto, prioridade os alunos).
“Por isso é que a Junta de Freguesia corrigiu a declaração inicialmente emitida, reconhecendo que a sinistrada não tem transporte público na localidade onde reside.
“Porém, tal transporte escolar, para além de não garantir o transporte do público (e ser certo para o público) existe apenas no início e no final do dia, não sendo, por isso, compatível com os horários de tratamento de fisioterapia que a sinistrada fez e tinha que fazer, ou seja, diariamente, pelas 13 horas, na cidade de Penafiel.
“Por isso, teve a sinistrada de utilizar transporte de táxi para poder deslocar-se para as consultas e tratamentos a que foi submetida em consequência do acidente de trabalho que sofreu e, salienta mais uma vez, que jamais lhe foi comunicado pela seguradora que não podia utilizar tal transporte.
“Entende, assim, a sinistrada que tem direito a receber também as restantes facturas de táxi que teve de utilizar para se fazer transportar para as consultas e tratamentos das lesões sofridas no acidente.”
Com data de 16 de Outubro de 2017, foi proferido despacho com o seguinte teor:
“1. Após, a fls.50 a 55, ter sido proferida sentença onde, designadamente, foi condenada a seguradora responsável a pagar à sinistrada as despesas com deslocações a Tribunal e ao Gabinete Médico-Legal de Penafiel, e depois da entrega do capital de remição, da quantia de reembolso das despesas de transporte e dos juros, a fls. 65, veio a sinistrada requerer, a fls.71 a 96, o pagamento de facturas de táxi, no valor de €1.821, emitidas entre 07/05/2015 e 04/12/2015, referentes a transportes de ida e volta de ... à D... e de ... até ao Hospital E..., que até essa altura, a sinistrada nunca havia reclamado nestes autos, designadamente na tentativa de conciliação.
“2. Tendo sido tais comprovativos enviados à seguradora, a mesma devolveu tais documentos à sinistrada, com o fundamento de não ser da responsabilidade dessa seguradora a liquidação das respectivas facturas, (cfr. fls.97).
“3. Tendo sido notificada a seguradora para se pronunciar sobre o requerido pela sinistrada, aquela veio aos autos, a fls.100 e 101, referir que a sinistrada nunca solicitou táxi durante todo o período em que esteve em tratamentos, nem tinha autorização por parte do médico assistente para o seu uso como meio de transporte, tendo remetido diversas facturas de transporte de táxi acompanhadas da declaração da Junta de Freguesia de fls.102 de que “não existe transporte público nesta freguesia, exceto em época escolar”, tendo sido liquidado a título de transportes de táxi a quantia de €1.473,00 relativamente às facturas de táxi apresentadas no período de 11/06/2015 a 14/09/2015 (período de férias escolares), inclusive, conforme recibo de que juntou cópia a fls.103.
“Posteriormente foi apresentada nova declaração da junta de freguesia, junta a fls.104, na qual apenas refere que não tem transporte público, tendo sido a sinistrada informada de que, face à divergência nas declarações apresentadas, deveria reclamar em Tribunal, o que não fez, conforme se constata pelo auto de não conciliação de 11/07/2016, apenas o tendo feito agora após a devolução das facturas que não foram liquidadas, concluindo a seguradora que “face ao exposto é entendimento da requerente que as facturas reclamadas no valor de 1.821,00€ não são de liquidar”, (sic- fls.101).
“4. Notificada a sinistrada da posição que antecede, assumida pela seguradora, a sinistrada veio então, a fls.107 e 108, referir que foi seguida em consultas nos serviços clínicos da seguradora e por ordem da mesma fez tratamento de fisioterapia em Penafiel, na D..., não lhe tendo sido informado pelos serviços administrativos ou clínicos da seguradora que não podia utilizar táxi nas deslocações para consultas e tratamentos, tendo a sinistrada sido informada pelos serviços da seguradora sitos em Penafiel, para entregar as várias facturas que então já possuía apenas no final dos tratamentos, o que a sinistrada fez no final dos tratamentos de fisioterapia, entregando as facturas de táxi no balcão de Penafiel da seguradora, tendo a sinistrada ficado convencida de que tais facturas iriam ser pagas pela seguradora, não tendo sido reclamadas na tentativa de conciliação pelos motivos indicados a fls.107.
“Mais referiu a sinistrada que o transporte público que existe na localidade da sinistrada é o que é implementado para efeitos escolares (sendo que também é permitido ao público utilizar tal transporte desde que haja ligar disponível no autocarro, tendo, no entanto, prioridade os alunos, tendo sido, por isso, que a Junta de Freguesia corrigiu a declaração inicialmente emitida, reconhecendo que a sinistrada não tem transporte público na localidade onde reside; que “tal transporte escolar, para além de não garantir o transporte do público (e ser certo para o público) existe apenas no início e no final do dia, não sendo, por isso, compatível com os horários de tratamento de fisioterapia que a sinistrada fez e tinha que fazer, ou seja, diariamente, pelas 13 horas, na cidade de Penafiel”, (sic) tendo, por isso, a sinistrada de utilizar transporte de táxi para poder deslocar-se para as consultas e tratamentos a que foi submetida em consequência do acidente de trabalho que sofreu e, salienta mais uma vez, que jamais lhe foi comunicado pela seguradora que não podia utilizar tal transporte.
“Conclui a sinistrada que “tem direito a receber também as restantes facturas de táxi que teve de utilizar para se fazer transportar para as consultas e tratamentos das lesões sofridas no acidente”, (sic- fls.108).
“5. Notificada, novamente, a seguradora para se pronunciar aquela veio, a fls.112, informar que mantém a posição anteriormente transmitida de que as facturas reclamadas no valor de €1.821,00 não são de liquidar.
“6. Notificada, novamente, a sinistrada a mesma veio, a fls.116, dizer que também mantém tudo o que expôs e requereu, devendo a seguradora ser obrigada a pagar à sinistrada todas as despesas que esta suportou com as deslocações que teve de efectuar para se submeter ao tratamento das lesões causadas pelo acidente de trabalho sofrido, considerando a sinistrada que a Junta de Freguesia ... deverá ser notificada para esclarecer se existe ou não transporte público na localidade ..., onde a sinistrada reside.
“7. Notificada para tanto, a Junta de Freguesia ... veio informar que no período compreendido entre 15 de Setembro de 2015 e 4 de Dezembro de 2015 “existia transporte público em período escolar até ... e de ... até Penafiel existia carreira normal em horário estabelecido pela empresa de camionagem” (cfr. fls.125 e 128).
“8. A sinistrada foi notificada da informação que antecede, nada tendo vindo dizer aos autos.
“9. Aberta vista ao Ministério Público, foi promovido o arquivamento dos autos.
“Cumpre apreciar e decidir.
“10. Conforme se referiu na sentença proferida, a fls.53, “as prestações derivadas do acidente de trabalho têm natureza próxima dos alimentos, cujo valor deve ser mantido aquando do recebimento”.
“Daí que a circunstância de os montantes agora reclamados pela sinistrada a título de reembolso de despesas de transporte em táxi, não o terem sido aquando da tentativa de conciliação, embora tenha obstado a que os mesmos fossem conhecidos na sentença proferida, não impede o seu conhecimento no presente momento processual, assim tais valores sejam devidos à sinistrada.
“Ora, nos termos do art. 23º, al. a) da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro “o direito à reparação compreende as seguintes prestações:” “a) Em espécie – prestações de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica, hospitalar e quaisquer outras, seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e à sua recuperação para a vida activa.”
“Por sua vez, nos temos do art. 25º da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro “as prestações em espécie previstas na alínea a) do art. 23º compreendem” “os transportes para observação, tratamento ou comparência a actos judiciais”, (al.f).
“E nos termos do disposto no art. 39º (cuja epígrafe é transporte e estadia) da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro: “1 - O sinistrado tem direito ao fornecimento ou ao pagamento de transporte e estada, que devem obedecer às condições de comodidade impostas pela natureza da lesão ou da doença. 2 - O fornecimento ou o pagamento referidos no número anterior abrangem as deslocações e permanência necessárias à observação e tratamento e as exigidas pela comparência a actos judiciais, salvo, quanto a estas, se for consequência de pedido do sinistrado que venha a ser julgado improcedente. 3 - O sinistrado utiliza os transportes colectivos, salvo não os havendo ou se outro for mais indicado pela urgência do tratamento, por determinação do médico assistente ou por outras razões ponderosas atendíveis. 4 - Quando o sinistrado for menor de 16 anos ou quando a natureza da lesão ou da doença ou outras circunstâncias especiais o exigirem, o direito a transporte e estada é extensivo à pessoa que o acompanhar. 5 - As categorias e classe da estada devem ajustar-se às prescrições do médico assistente ou dos clínicos que em tribunal derem parecer. 6 - O pagamento de transporte é, igualmente, extensivo ao beneficiário legal do sinistrado sempre que for exigida a sua comparência em tribunal e em exames necessários à determinação da sua incapacidade.”
“Por sua vez, nos termos do art. 40º (cuja epígrafe é “responsabilidade pelo transporte e estada”) da referida Lei “1 - Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, a entidade responsável só é obrigada a despender o menor custo das prestações de transporte e estada que obedeçam às condições de comodidade impostas pela natureza da lesão. 2 - A entidade responsável deve assumir previamente, perante os fornecedores de transporte e estada, a responsabilidade pelo pagamento das despesas ou adiantar a sua importância.”
“Vejamos então se, em face do quadro normativo acabado de expor, a seguradora aqui responsável deve pagar à sinistrada as despesas de táxi agora apresentadas.
“11. Importa, desde logo, sublinhar que, resultando da factualidade provada nestes autos que a seguradora liquidou à sinistrada a quantia de €1473,00 “a título de transportes de táxi” “relativamente às facturas de táxi apresentadas no período de 11/06/2015 a 14/09/2015 (período de férias escolar) inclusive, em face da informação prestada pela Junta de Freguesia ... de que “não existe transporte público nesta freguesia, exceto em época escolar”, (cfr. fls.100 e 103), tal implica necessariamente concluir não só que a sinistrada não tem direito ao pagamento das facturas de táxi datadas entre 11/06/2015 e 14/09/2015 (inclusive), como a seguradora reconhece a sua obrigação no pagamento das despesas por transporte de táxi, no caso de não haver transportes colectivos que possam ser utilizados pela sinistrada.
“12. Importa, assim, para aferir da viabilidade da pretensão da autora, saber se existiam transportes colectivos que pudessem ser utilizados pela sinistrada, nas viagens de ida e volta entre: - ... e a D..., no período de época escolar de 07/05/2015 e 30/10/2015, a que se referem as facturas juntas a fls.72 a 88, 90 a 92, 94 e 95; - ... e Hospital E..., nos dias 09/10/2015, 27/11/2015 e 04/12/2015, a que se referem as facturas juntas a fls.89, 93 e 96.
“13. Ora, não decorre minimamente dos autos, sendo quase um facto notório, de conhecimento geral, de que não existe qualquer transporte colectivo entre Mancelos e o Hospital E..., no Porto, e bem assim a inexistência de um qualquer sistema de utilização sucessiva de transportes públicos (vulgo, interface) que obedecesse às condições de comodidade impostas pela natureza da lesão e que pudesse ser utilizado pela sinistrada entre ... e o Hospital E... de forma exequível, por forma àquela poder observar os horários dos tratamentos a que certamente a sinistrada estava sujeita, e que não lhe causasse a perda de várias horas do dia na espera das ligações que porventura pudesse existir, ao que acresce não resultar minimamente demonstrado que havendo um transporte colectivo de Amarante para o Porto, o mesmo, para além de chegar a horas que permitissem à sinistrada o necessário tratamento, a deixasse junto do Hospital E....
“O que necessariamente implica concluir que, relativamente aos transportes de táxi, nada resulta demonstrado nos autos que a sinistrada pudesse utilizar transportes colectivos que obedecessem às condições de comodidade impostas pela natureza da lesão, entre ... e Hospital E..., nos dias 09/10/2015, 27/11/2015 e 04/12/2015, a que se referem as facturas juntas a fls.89, 93 e 96, pelo que, relativamente aos montantes de tais facturas, necessariamente que terá de ser dado provimento ao requerido pela sinistrada a fls.71.
“14. E quanto às demais facturas?
“Resulta da informação de fls.125 e 128 da Junta de Freguesia ... que no período escolar existia transporte público até ..., existindo carreira normal de ... até Penafiel em horário estabelecido pela empresa de camionagem.
“Porém, já não resulta dos autos que a utilização sucessiva de tais transportes públicos, designadamente o horário da carreira normal entre ... e Penafiel, permitisse à sinistrada aceder, em tempo útil, aos tratamentos na D... (de acordo com os horários de tais tratamentos), sendo certo que a sinistrada referiu a fls.108 que o horário de tratamento de fisioterapia na aludida Clínica era às 13 horas e que o transporte escolar existente era apenas no início e no final do dia “não sendo por isso compatível com os horários de tratamento de fisioterapia que a sinistrada fez e tinha que fazer”, (sic).
“Assim sendo, também, nesta parte, importa deferir o requerido pela sinistrada a fls.71.
“15. A tudo não sendo despiciendo que a autora sofreu de ITA desde 29/04/2015 até 10/09/2015, de ITP de 30% desde 11/09/2015 até 30/10/2015 e de 15% desde 31/10/2015 até 04/12/2015, (cfr. fls.31), com as necessariamente maiores exigências de comodidade nas suas deslocações impostas por esse estado de incapacidade da autora, que se verificou entre os dias 29/04/2015 e 04/12/2015.
“Pelo exposto, e sem necessidade de ulteriores considerações, defiro ao requerido pela Autora sinistrada a fls.71 e em consequência condeno a Ré seguradora “C..., Companhia de Seguros, S.A.” a pagar à sinistrada a requerida quantia de €1.821,00, a título de despesas de deslocação a tratamentos na D... de Penafiel e ao Hospital E..., nos termos que melhor constam das facturas juntas a fls.72 a 96, acrescida dos juros de mora, à taxa legal, desde 04 de Abril de 2017 (cfr. fls.71) até integral e efectivo pagamento.”
Inconformada, veio a seguradora interpor recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
I. O despacho proferido com a referência 74835663 não pode manter-se, uma vez que efectuou uma incorrecta interpretação dos preceitos aplicáveis, violando, por essa razão, o disposto nos artigos 112º e 117º, nº 1, alínea b) do Código do Processo de Trabalho;
II. Por brevidade e economia processual remete-se para o teor da sentença proferida a fls., e concretamente para o teor da matéria dada como provada nos pontos 2, 6, 7 e 8, já transitada em julgado;
III. Resulta do Auto de Não Conciliação, no âmbito da diligência levada a cabo no dia 11 de Julho de 2016, que a única questão que não mereceu a concordância das partes, mais concretamente aqui da Recorrente, foi a do grau de incapacidade de que a trabalhadora se encontrava afectada;
IV. Na aludida diligência, a trabalhadora, doutamente patrocinada pelo Senhor Procurador do Ministério Público, declarou, expressamente e sem reservas, entre outros factos que “Foram-lhe pagas todas as indemnizações e demais despesas acessórias que eram devidas até à data da alta”;
V. Não havendo quaisquer outras questões a discutir, foi ordenada a realização do exame por Junta Médica, nos termos do qual, por unanimidade, os Senhores Peritos Médicos concluíram que a trabalhadora se encontrava afectada de uma I.P.P. de 5,87%;
VI. Apenas em 04.04.2017, e não obstante a confissão vertida no Auto de Não Conciliação, a trabalhadora reclamou o pagamento de despesas de deslocação, designadamente de táxi, nos termos dos documentos juntos aos autos a fls., no valor de € 1.821,00, despesas essas efectuadas em data anterior à alta e à Tentativa de Conciliação;
VII. Face ao declarado pela Autora e ao teor da sentença proferida, está, processual e legalmente vedada à trabalhadora a reclamação, sendo certo que, caso não obtivesse acordo, na fase contenciosa seria, igualmente, discutida tal questão;
VIII. Caso a trabalhadora pretendesse o pagamento das despesas em causa deveria ter colocado tal questão na tentativa de conciliação, sendo certo que, caso não obtivesse acordo, na fase contenciosa seria, igualmente, discutida tal questão;
IX. Cumpridas as regras processuais, sobre a trabalhadora recaía o ónus de, ao intentar a acção, alegar factos demonstrativos do seu direito e, caso o entendesse, juntar documentos e, após, citada para a acção, sobre a Seguradora recaía o ónus de demonstrar nada ser devido a este título;
X. Não o tendo feito, encontra precludido o seu direito a peticionar o pagamento de tais despesas, aliás conforme o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, em 13.12.2011 (Proc. nº 444/09.2TTPTM.A.E1), para cujo teor, por brevidade e economia processual se remete;
XI. Ao agir como agiu, a trabalhadora violou, de forma ostensiva e consciente, os deveres de boa-fé e lealdade processual;
XII. Tal comportamento merece a censura do direito, uma vez que a trabalhadora, procurando justificar o declarado, apenas naquela data entendeu exercer tal alegado direito;
XIII. A sentença proferida a fls., transitou em julgado, e aí ficou expressamente consignado, por provado, que foram pagas “todas as indemnizações e demais despesas acessórias que eram devidas até à data da alta;
XIV. A decisão vertida no presente despacho viola, de forma flagrante, o já decidido a este propósito e coloca em causa a certeza jurídica que se impõe;
XV. Em conclusão: ponderados os factos resultantes dos autos, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, o despacho proferido ser revogado e, em consequência, indeferido o pedido formulado pela trabalhadora, com todas as consequências legais.
A sinistrada respondeu, concluindo:
1. O Recurso interposto pela Recorrente não merece provimento, devendo ser mantido o despacho que condenou a Recorrente no pagamento das despesas com as deslocações para as consultas e tratamentos médicos, cuja fundamentação se sufraga inteiramente.
2. Em momento algum, os serviços clínicos da Recorrente comunicaram à Recorrida que a mesma não podia utilizar táxi nas deslocações para as referidas consultas e tratamentos.
3. A Recorrente reconheceu nos autos a obrigação no pagamento de despesas por transporte de táxi, por não haver transportes coletivos que pudessem ser utilizados pela Recorrida.
4. Tendo já pago à Recorrida, a título de transportes de táxi, a quantia de 1.473,00 € relativas a faturas apresentadas no período de 11-06-2015 a 14-09-2015, conforme recibo que foi por si junto aos autos
5. Nos termos do artigo 23º, alínea a) da Lei 98/2009, de 4 de Setembro, o direito à reparação compreende prestações de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica, hospitalar e quaisquer outras, seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e à sua recuperação para a vida ativa;
6. Resulta do artigo 25º, nº 1, alínea f) da citada Lei que o direito à reparação em espécie do acidente de trabalho abrange os transportes para observação, tratamento ou comparência a atos judiciais, o qual se encontra mais detalhadamente regulamentado nos arts. 39º e 40º.
7. De harmonia com o art. 39º, nº 1 e 2 “1. O sinistrado tem direito ao fornecimento ou ao pagamento de transporte e estada, que devem obedecer às condições e comodidade impostas pela natureza da lesão ou doença” e “2. O fornecimento ou o pagamento referidos no número anterior abrangem as deslocações e permanência necessárias à observação e tratamento e as exigidas pela comparência a actos judiciais, salvo, quanto a estas, se for consequência de pedido do sinistrado que venha a ser julgado improcedente.
8. Acresce que, logo após o início das deslocações, a Recorrida entregou nos serviços da Recorrente sitos em Penafiel, as várias faturas que já possuía e que, entretanto, acabou por juntar aos presentes autos.
9. Os colaboradores da Recorrente informaram a Recorrida para que entregasse todas as faturas decorrentes de deslocações somente no final dos tratamentos, as quais seriam liquidadas de uma única vez, o que a Recorrida fez.
10. As despesas em causa foram apresentadas à Recorrente logo após o término dos tratamentos e estavam na posse da Recorrente (agência de Penafiel) aquando a tentativa de conciliação que se realizou nos presentes autos, advertência que a Recorrida fez na data dessa diligência.
11. Tendo aí lhe sido comunicado que essas despesas por já se encontrarem na posse da Recorrente (refira-se, na agência da recorrente-Balcão de Penafiel), embora ainda não se encontrassem juntas aos autos, ser-lhe-iam pagas.
12. Talqualmente como já lhe haviam sido pagas as anteriores, pois quer umas, quer as outras, dizem respeito ao acidente dos autos, cuja responsabilidade pela reparação dos danos emergentes do acidente de trabalho pertence à Recorrente.
13. Por esse motivo é que a Recorrida aceitou conciliar-se e estava convencida de que tais faturas seriam pagas pela Recorrente.
14. A conduta ora revelada pela Recorrente, em não assumir as despesas em causa, é claramente violadora dos princípios da boa fé e da confiança em que a Recorrida fizera assentar as suas expectativas relativamente ao comportamento da Recorrente, traduzindo- se essa sua conduta num venire contra factum proprium que ofende de forma intolerável os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, acabando por se traduzir numa clamorosa injustiça.
15. As despesas reclamadas pela Recorridas, tratam-se de despesas que a mesma não suportaria se não fosse o acidente de trabalho, pelo que é perfeitamente compreensível que seja a entidade responsável pela reparação dos danos emergentes do acidente de trabalho a suportar as despesas de deslocação, adiantando-as ou assumindo previamente a responsabilidade prevista no citado art. 40º, nº 2.
16. A Recorrente é, assim, responsável pela reparação dos danos emergentes do acidente de trabalho e despesas com este conexas nos termos do previstos na Lei 98/2009, designadamente as despesas reclamadas pela Recorrida.
O Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal teve vista nos autos, tendo emitido parecer no sentido da anulação da decisão a fim de se apurar da invocada viciação da vontade da sinistrada, com produção de prova e posterior decisão.
Notificadas do parecer, as partes não responderam.
Admitido o recurso e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Como se sabe, o âmbito objectivo dos recursos é definido pelas conclusões do recorrente (artigos 635º, nº 3 e 4, e 639º, nº 1, do CPC, por remissão do art. 87º, nº 1, do CPT), importando assim decidir quais as questões naquelas colocadas.
A questão colocada consiste em determinar se é admissível a condenação da seguradora no pagamento de despesas de transporte suportadas pela sinistrada, não reclamadas na fase conciliatória e apenas requeridas depois do trânsito em julgado da sentença.
Os factos a considerar são os que constam do relatório.
Nos termos do art. 112º, nº 1, do CPT, se se frustrar a tentativa de conciliação, no respectivo auto são consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve ou não acordo acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau da incapacidade atribuída.
Consta do sumário do acórdão do STJ de 30 de Junho de 2004, processo 04S1506, acessível em www.dgsi.pt: “I - A declaração feita na tentativa de conciliação, no âmbito de um processo emergente de acidente de trabalho, pela qual a entidade empregadora aceita a sua responsabilidade indemnizatória na medida da diferença entre a retribuição efectiva paga e o salário declarado para efeitos de seguro, equivale a uma confissão judicial espontânea, com todas as consequências que decorrem dos artigos 294º e 301º do Código de Processo Civil. II - A declaração de nulidade ou a anulação da confissão efectuada nesses termos, com base em erro na declaração ou em erro sobre os motivos determinantes da vontade, apenas pode ser obtida mediante a competente acção anulatória, a tal não obstando o eventual trânsito em julgado da sentença proferida sobre a confissão, desde que não tenha entretanto caducado o direito (artigo 301º do Código de Processo Civil).”
Ou seja, se por um lado a questão do montante das despesas apreciada na tentativa de conciliação, obtendo acordo, se considera transitada, por outro lado, nada obsta a que se aprecie a nulidade do acordo, nessa parte, se a declaração de acordo se encontrava viciada, conforme sugerido pelo Digno Magistrado do Ministério Público no seu parecer.
Releva a circunstância de as despesas, posteriormente reclamadas e aqui em causa, serem datadas de 7 de Maio a 4 de Dezembro de 2015, logo, anteriores à data da tentativa de conciliação da fase conciliatória do processo, que ocorreu a 11 de Julho de 2016.
Sucede que as facturas em questão só vieram a ser devolvidas à sinistrada, com indicação de recusa do seu pagamento, por carta datada de 23 de Março de 2017, ou seja, em data muito posterior ao trânsito da sentença final proferida nos autos e da entrega do capital de remissão.
No requerimento que apresentou em juízo a 12 de maio de 2017, acima transcrito, a seguradora veio alegar que “Face à divergência nas declarações apresentadas, foi informada que deveria reclamar em Tribunal, o que não fez, dado o teor do auto de não conciliação de 11 de Julho de 2016, tendo-o feito apenas agora após a devolução das facturas que não foram liquidadas”. Se assim fosse, poderia dizer-se que a sinistrada na tentativa de conciliação sabia que a seguradora não assumia o pagamento daqueles despesas de transporte e, logo, que as deveria ter reclamado nesse acto.
Acontece, porém, que a seguradora não concretizou quando, por quem, onde e de que forma foi feita essa alegada comunicação à sinistrada, nem tão pouco juntou qualquer prova, como lhe competia (art. 342º, nº 2, do Código Civil).
Sendo assim, é manifestamente abusivo que a seguradora venha agora invocar o caso julgado no que se refere às despesas da sinistrada, quando é certo que reteve as facturas em questão durante muito mais de um ano, sem nada dizer, designadamente não referindo que entendia não ser devido o seu pagamento, assim criando na sinistrada a legítima expectativa de que iria receber o valor em causa, pelo que não teria reclamado atempadamente o seu pagamento.
É certo que, apesar disso, a sinistrada deveria ter solicitado o pagamento das aludidas facturas na tentativa de conciliação, mas isso não afasta a censurabilidade da conduta da seguradora.
Impondo-se deixar esclarecido que não há caso julgado quanto a esta questão. O tribunal a quo não foi confrontado com o pedido destas despesas na sentença e, logo, não emitiu qualquer pronúncia sobre elas. O tribunal quando fez constar da sentença que “Foram-lhe pagas todas as indemnizações e demais despesas acessórias que eram devidas até à data da alta", procede a uma afirmação genérica e parte do que foi alegado pelas partes. Ora, nem a sinistrada nem a autora sujeitaram ao tribunal qualquer pedido de apreciação sobre essas despesas.
Aceita-se que a actuação processual mais correcta da sinistrada para assegurar os seus direitos passaria pela reclamação do pagamento das facturas em causa aquando da tentativa de conciliação e nada referindo quanto à recusa do seu pagamento, o que só fez a 23 de Março de 2017, sabendo ainda que a sinistrada, porque já anteriormente recebera outras despesas semelhantes da seguradora, sem qualquer objecção por parte desta, e que a mesma nada referia quanto às despesas aqui em causa, pode entender-se que terá agido em abuso de direito, conforme art. 334º do Código Civil.
O princípio do abuso de direito constitui um expediente técnico, ditado por razões de justiça e equidade, para obstar que a aplicação de um preceito legal, certo e justo em circunstância normais, venha a revelar-se injusto numa situação concreta, em razão das particularidades ou circunstâncias especiais que nela concorram. Ocorrerá a figura de abuso “quando um certo direito – em si mesmo válido – seja exercido em temos que ofendam o sentimento de justiça dominante na comunidade social” (Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 1968, págs. 26-27).
Acolhe-se a concepção objetiva do abuso de direito defendida por parte da doutrina, por contraposição à corrente subjetiva defendida por outra parte. O que interessa averiguar não é a intenção do agente titular, isto é, se ele agiu com o único propósito de prejudicar o lesado, mas antes os dados de facto, o alcance objetivo da sua conduta, de acordo com o critério da consciência pública. Como igualmente elucida Almeida Costa, “Não é preciso que o agente tenha consciência da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico do direito exercido. Basta que na realidade esse acto se mostre contrário (op. cit., pág. 29).
Porém, como notam Pires de Lima e Antunes Varela, “isto não significa, no entanto, que ao conceito de abuso do direito consagrado no art. 334º sejam alheios factores subjectivos, como, por exemplo, a intenção com que o titular tenha agido. A consideração destes factores pode interessar, quer para determinar se houve ofensa da boa fé ou dos bons costumes, quer para decidir se se exorbitou do fim social ou económico do direito”. Contudo, exige-se um abuso nítido, isto é o titular do direito deve ter excedido manifestamente esses limites impostos ao seu exercício. Por isso mesmo, “os tribunais só podem, pois, fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimaram, se houver manifesto abuso. É esta a lição de todos os autores e de todas as legislações (op. cit. págs. 299-300; no mesmo sentido, também Almeida e Costa, op. cit., pág. 29).
Na elaboração dogmática à volta do instituto do abuso do direito, o venire contra factum proprium assume, como é consabido, uma das manifestações mais características do abuso do direito, cuja estrutura pressupõe duas condutas, sucessivas mas distintas, temporalmente distanciadas e de sinal contrário, protagonizadas pelo mesmo agente: o factum proprium, seguido, em contradição, do venire.
Daí entendermos que a presente oposição da seguradora consubstancia abuso do direito, na modalidade venire contra factum proprium.
Por outro lado, afigura-se que nada obsta a que se reabra a instância para conhecer desta matéria, uma vez que a mesma não foi anteriormente conhecida e não tinha necessariamente que ser apreciada na fase conciliatória, uma vez que não consta do elenco das matérias de que se deve conhecer nessa altura, enunciadas no art. 112º, nº 1, do CPT (conforme o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 8 de Maio de 2008, processo 160-B/2000.C1, acessível em www.dgsi.pt).
Quanto ao mais, relativamente à obrigação de pagamento das despesas, subscrevemos a decisão recorrida.
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela seguradora.

Porto, 11-4-2018
Rui Penha
Jerónimo Freitas
Nelson Fernandes