Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
667/09.4TVPRT-B.P1
Nº Convencional: JTRP00043380
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: EFEITO DO RECURSO
CAUÇÃO
TRÂNSITO EM JULGADO
Nº do Documento: RP20100118667/09.4TVPRT-B.P1
Data do Acordão: 01/18/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO - LIVRO 403 - FLS 166.L
Área Temática: .
Sumário: Após o trânsito em julgado da sentença cujo recurso teve efeito suspensivo em virtude de caução prestada, não há que recorrer previamente a um processo executivo para se obter o pagamento do condenado/devedor através da dita caução, bastando notificar o garante para colocar o dinheiro à ordem do Tribunal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: AGRAVO Nº 667/09.4TVPRT-B.P1
5ª SECÇÃO


Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I
B………., S.A., por apenso aos autos de acção ordinária em que obteve sentença de condenação de C………., S.A., a pagar-lhe a quantia de €. 96.091,17, acrescida de juros de mora, veio requerer por diversas vezes reforço de caução, considerando o facto de a requerida no recurso da sentença que interpôs ter obtido o efeito suspensivo do mesmo mediante prestação de caução, e, considerando ainda o tempo decorrido sem que houvesse decisão final transitada em julgado, face aos sucessivos recursos.
Tais pedidos de reforço foram sistematicamente deferidos e os reforços de caução foram prestados pela recorrente C………. .
A caução foi sendo prestada como garantia bancária pela D………, no valor último de €. 196.978,20.
Em 26/06/2009 veio a recorrida B………., S.A., requerer a notificação da D………. para pagar directamente à requerente a quantia de €. 196.978,20, considerando terem decorrido mais de trinta dias sob o trânsito em julgado da sentença proferida na acção principal, sem que a garantida C………. tivesse efectuado àquela o pagamento do valor devido, sendo o mesmo à data de € 203.194,70.
A requerida C………. veio responder.
Admitiu não ter ainda pago à Autora a importância em que foi condenada, alegando não o ter feito por se encontrar pendente uma acção ordinária no .º Juízo Cível da Comarca da Maia em que a aqui Ré é Autora naquela e a Autora desta é ali Ré e, onde pede a condenação desta no pagamento de € 283.093,15.
Mais alegou que, pretendendo a Autora receber a importância caucionada, teria de executar a sentença e, em consequência, accionar a respectiva caução.
Decidiu o Tribunal a quo o seguinte:
«Improcede a argumentação da devedora, por falta de assento legal, pelo que se determina a notificação da D………. para proceder ao depósito da quantia garantida de €. 196.978, 20, à ordem dos presentes autos».
De tal despacho recorreu a requerida C………., recurso que foi admitido como agravo e com efeito suspensivo.
Concluiu do seguinte modo as suas alegações de recurso:
1º - De facto, a recorrente ainda não pagou à recorrida a importância em que foi condenada;
2º - Não o fez porque corre no .º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Maia, acção ordinária com o nº …./09.5TBMAI em que, a aqui recorrente e ali Autora, contende com a aqui recorrida e ali Ré;
3º - Na acção referida supra, a aqui recorrente, pede que a aqui recorrida, seja condenada no pagamento da importância de €.238.093,15, correspondente a €. 123.895,57 de capital, acrescida dos juros vencidos, no montante de €.159.197,58, e dos vincendos, calculados à taxa legal aplicável, devendo proceder-se à capitalização dos juros vencidos após a citação, consoante o art. 560º do Código Civil;
4º - A recorrida tem conhecimento de que esta é a razão, entre outras para o não pagamento da importância em que a recorrente foi condenada;
5º - Para que o pagamento seja feito de forma coerciva, a recorrida terá que executar a sentença e accionar a respectiva caução;
6º - Não pode a recorrida requerer a notificação do garante imediatamente, como pretende;
7º - Terá que, após verificar o incumprimento definitivo da obrigação, recorrer ao respectivo processo executivo para aí executar a sentença.
A final requer que se julgue procedente o recurso revogando-se o despacho recorrido.

Contra-alegou a recorrida B………. concluindo do seguinte modo:
1- O douto despacho de fls. 228 é um despacho de mero expediente, e como tal irrecorrível – art. 679º do CPC, pelo que o recurso não deveria ter sido admitido.
Sem prescindir:
2- Os efeitos atribuídos ao recurso não têm base legal porque:
- O recurso interposto do douto despacho de fls. 228 não se enquadra em nenhuma das situações previstas no artº 736. do CPC e como tal não devia ter sido admitido com subida imediata nos próprios autos.
- O despacho de fls. 228 não está abrangido em nenhuma das situações previstas no art. 736º do CPC e como tal não devia ter sido admitido com subida imediata nos próprios autos.
- O despacho de fls. 228 não está abrangido em nenhuma das situações previstas no art. 740 do CPC, nomeadamente no nº 1 e nº 2 alínea b) do CPC.
- Motivo porque apreciadas as questões prévias não deve ser admitido o recurso pelas razões expostas.
Sem prescindir:
3 - Transitada em julgado a sentença na acção principal e perante as obrigações assumidas pela D………., S.A. que atribuam somente ao tribunal o direito de solicitar o pagamento da quantia garantida, o Mmº Juiz só podia fazer o que fez no douto despacho de fls. 228 – notificar o Banco para depositar o valor por si garantido.
4 – Estão verificadas as condições de accionamento da garantia bancária, e o douto tribunal fez muito bem em ordenar o depósito.
5- O douto despacho recorrido de fls. 228 no entender da Agravada não mercê qualquer reparo, devendo ser mantido.
II
A factualidade a considerar é a que resulta do relatório supra, a que se adita o seguinte facto:
1- É o seguinte o teor da garantia prestada pela D………. em 22/04/2008:
«A D………. (….) declara, pelo presente documento, e a favor do Beneficiário (…) constituir-se garante e principal pagador, com expressa renúncia ao benefício de excussão, nas seguintes condições:
I- Ordenadora : C……….. S.A. (…)
II – Beneficiário: Tribunal Cível da Comarca do Porto (.ª Vara)
IV- Sede Social: Porto
V – Responsabilidade: Até €. 188.008,70
VI – Finalidade: Garantir, no âmbito da acção ordinária nº …/99, da .ª secção, .ª Vara Cível, da Comarca do Porto, o pagamento incondicional da quantia a que a recorrente foi condenada a pagar logo que transite em julgado essa condenação e a D………. seja intimada pelo tribunal no âmbito deste processo a fazer esse pagamento.
VII – Prazo da exigência desse pagamento: enquanto subsistir a obrigação objecto da presente garantia bancária».
III
Na consideração de que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações, não podendo este tribunal conhecer das matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (artºs 684º nº 3 e 690º nºs 1 e 3 do CPC), são as seguintes as questões a decidir:
Questões prévias:
- da (in)admissibilidade do recurso considerando a natureza do despacho em causa.
- da (in)devida atribuição de efeito suspensivo ao recurso de agravo.
Questão final:
-Se o accionamento da caução prestada como condição para obter o efeito suspensivo do recurso de apelação, se basta com a mera notificação do garante após o trânsito em julgado da sentença confirmada, ou se, pelo contrário, obriga a lançar mão, previamente, do respectivo processo executivo contra o incumpridor/recorrente.

Conhecendo das questões prévias:
O despacho que decide a notificação do garante para proceder ao depósito da quantia garantida não é, como veremos, um despacho de mero expediente.
Com efeito, definindo a lei como despacho de mero expediente “aquele que se destina a prover ao andamento regular do processo sem interferir no conflito de interesses entre as partes” – n.º 4 do art.º 156º do C. P. C. – ou entendendo-se como na Jurisprudência, que despachos de mero expediente são aqueles que, “se destinam a regular ou a disciplinar o andamento ou a tramitação do processo que não importem decisão, julgamento, denegação, reconhecimento ou aceitação de qualquer direito (vide Ac. R.C., de 14/04/2004, Processo:1031/04, in www.dgsi.pt/jtrc), a decisão subjacente a tal despacho não se atem a uma mera regulação processual.
Na verdade, de acordo com o teor daquele n.º 4, despacho de mero expediente é aquele que:
a) provendo ao andamento regular do processo,
b) não interfere no conflito de interesses entre as partes.
Ora, o tribunal ao ordenar ao garante o pagamento da quantia garantida a favor do credor (pois que, embora beneficiário seja em primeira linha o processo judicial, só o é formalmente, pois que a quantia garantida pertence à esfera jurídica do credor, só ele dela pode beneficiar), está mais do que reconhecer um direito, está a realizar um direito de crédito.
Após verificada essa realização a caução perde a sua razão de subsistência.
Ora, no caso, a decisão judicial ao concretizar um direito do credor e, ao deixar o devedor sob a esfera de actuação sub-rogatória do garante que pagou em vez dele, interfere necessariamente no conflito de interesse entre as partes, pelo que, o despacho que contem tal notificação para pagamento, não é um despacho de mero expediente, sendo, por consequência, recorrível.
Assim, bem andou o tribunal a quo ao admitir o recurso de tal despacho.

Da atribuição do efeito suspensivo ao recurso
O agravante requereu fosse atribuído efeito suspensivo ao recurso porquanto o efeito devolutivo implicaria a execução da garantia prestada e o pagamento definitivo do valor caucionado, tornando o agravo absolutamente inútil. Por sua vez a execução da garantia e o pagamento por parte da afiançada D………. determinaria também que a recorrente pagasse integralmente o valor da condenação, implicando pelo elevado valor em presença, um prejuízo de difícil reparação.
O agravado opôs-se.
O Tribunal deferiu o requerimento.
De acordo com o disposto no art. 740 º nº 2 al d) e nº 3 do CPC, o juiz pode fixar o efeito suspensivo ao agravo, quando o agravante o haja pedido no requerimento de interposição do recurso e, depois de ouvir o agravado, reconhecer que a execução imediata do despacho é susceptível de causar ao agravante prejuízo irreparável ou de difícil reparação.
Ora, pretendendo a agravante que, ao contrário do decidido, a recorrida terá que executar a sentença sem o que não poderá accionar a respectiva caução, a execução imediata de tal despacho implicaria que o montante caucionado seria entregue à recorrida e, a ser procedente o recurso, esta teria que o devolver e instaurar a correspondente execução do mesmo.
Ora, é razoável supor que, não estando a agravada inibida ou limitada na disponibilidade de tal quantia, pode ficar comprometida essa devolução, no todo ou em parte, logo que decidido em definitivo o recurso.
Assim, a fim de obviar a tal risco justifica-se, no caso, a atribuição do efeito suspensivo ao mesmo.
Bem andou, pois, o tribunal a quo na fixação do efeito ao recurso.

Cumpre-nos agora conhecer da questão final: - se o accionamento da caução prestada como condição para obter o efeito suspensivo do recurso de apelação, se basta com a mera notificação do garante após o trânsito em julgado da sentença confirmada, ou se, pelo contrário, obriga a lançar mão, previamente, do respectivo processo executivo contra o incumpridor/recorrente.
Para tal, impõe-se definir as finalidades da caução.
No caso, a caução foi oferecida pelo apelante e ora agravante, para que não lhe fosse executada a sentença em que foi condenado, até decisão definitiva do recurso por si interposto.
Resulta do art. 692 nº 1 do C.P.C., que a apelação tem efeito meramente devolutivo.
Esta é a regra.
Quem pretender obter o efeito suspensivo, não estando abrangido pelas situações excepcionais previstas nas alíneas a) e b) do nº 2, requererá a prestação de caução, nos termos do nº 3: “a parte vencida pode requerer, ao interpor o recurso, que a apelação tenha efeito suspensivo quando a execução lhe cause prejuízo considerável e se ofereça para prestar caução, ficando a atribuição desse efeito condicionada à efectiva prestação da caução no prazo fixado pelo tribunal e aplicando-se, devidamente adaptado, o nº 3 do art. 818º”.
Mas, a função da caução não se esgota na suspensão do recurso, ela visa ainda, garantir ou assegurar o pagamento do montante objecto da condenação na acção declarativa.
A caução é uma garantia especial das obrigações que pode ser imposta ou permitida por lei, decisão judicial ou convenção, relativamente a uma obrigação futura ou de objecto não determinado.
Sendo a prestação da caução imposta por lei, pode, em princípio, e quando não determinada a espécie que deve revestir, «ser prestada por meio de depósito de dinheiro, títulos de crédito, pedras ou metais preciosos, ou por penhor, hipoteca ou fiança bancária», cabendo ao tribunal apreciar a idoneidade da caução se não houver acordo entre os interessados.
Se a imposição ou autorização da caução provier de negócio jurídico ou de decisão judicial, pode ela ser prestada por qualquer garantia real ou pessoal.
«Se a pessoa obrigada à caução a não prestar, o credor tem o direito de requerer o registo de hipoteca sobre os bens do devedor, ou outra caução idónea», salvo se outra for a solução especialmente prevista na lei (cfr. arts. 623º a 626º, CC).
A caução tem, assim, uma dupla finalidade: evitar a imediata execução do julgado (obtendo com a sua prestação o efeito suspensivo) e, garantir ao credor a satisfação do seu crédito, servindo de garantia ao cumprimento da obrigação do devedor, caso a decisão venha a ser confirmada no recurso.
A caução visa, pois, não só suspender o recurso mas também garantir um crédito.
Ora, é nesta vertente de garantia de crédito que se encontra a resposta para a questão do recurso.
Prestada a caução e confirmada a decisão, fica o credor/apelado, com o direito a fazer valer essa garantia de cumprimento da obrigação de pagamento.
Transitada em julgado a sentença condenatória cabe ao apelado, ora agravado, querendo, fazer uso dessa “garantia especial das obrigações”, meio mais expedito e eficaz do que o complexo e moroso processo executivo.
Efectivamente a função da caução permanece enquanto o direito que ela visa acautelar não estiver efectivamente protegido por forma equivalente ou quando a obrigação se mostre cumprida.
E não o está, seguramente, pelo simples facto de o requerente da caução poder fazer uso do processo de execução.
Assim sendo, após o trânsito em julgado da sentença condenatória pode o credor, através do tribunal, accionar a caução prestada como condição para obter o efeito suspensivo do recurso de apelação, sem necessidade de recorrer previamente a um processo executivo contra o incumpridor/recorrente. E isto porque a caução não se esgota nessa finalidade de suspensão do recurso, ela destina-se igualmente a garantir o cumprimento duma obrigação e, essa finalidade subsiste válida e eficaz até que a obrigação se mostre cumprida.
Improcede, por consequência, a questão do recurso.

Por fim, não podemos deixar de assinalar a curiosa justificação do recorrente para não querer pagar, posição algo ambivalente com a sua “pretensão” a ser executado.
Colocando como questão do recurso a necessidade de executar previamente a sentença, postergando a existência de uma caução, reporta o agravado, a sua recusa em pagar, ainda, ao facto de estar pendente uma acção em que pede à recorrida o pagamento de quantia de montante superior ao da condenação.
Contudo, não firma esse fundamento em qualquer instituto jurídico pelo que, dele não importa conhecer.
IV
Termos em que, acorda-se em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo agravado.

Porto, 18 de Janeiro de 2010
Anabela Figueiredo Luna de Carvalho
Rui António Correia Moura
Maria de Deus Simão da Cruz Silva Damasceno Correia