Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
275/19.1T8VLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDA ALMEIDA
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
EXTINÇÃO DE SERVIDÃO
DESNECESSIDADE
DIREITO DE PROPRIEDADE
Nº do Documento: RP20230508275/19.1T8VLG.P1
Data do Acordão: 05/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Constituindo a servidão predial uma constrição ao direito de propriedade, direito que deve ser tendencialmente ilimitado (art. 1305.º CC), compreende-se que se extinga quando deixe de ser necessária para assegurar ao terceiro qualquer utilidade.
II - A desnecessidade a que alude a lei no art. 1569.º, n.º 2 CC, para efeitos de extinção da servidão, respeita a uma alteração objetiva superveniente que tenha modificado o estado de facto existente ao tempo da constituição da servidão
III - Tal desnecessidade deverá ser atual, decorrendo, em princípio, de alterações ocorridas no prédio dominante.
IV - O reconhecimento de que, no estado atual, não existe outro acesso, a pé e de carro, senão através do prédio serviente, impede se considere ter-se por extinta a utilidade que se retira da servidão predial constituída por usucapião, ainda que, no futuro, possa vir a ser construído um acesso direto desde o prédio dominante à via pública.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 275/19.1T8VLG.P1

Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:


RELATÓRIO
AUTORA: AA, viúva, com domicílio na Rua ..., ... ....
RÉS: BB, com domicílio na Rua ..., ... ...
CC, com domicílio na Rua ..., ... ..., por si e como representantes da herança aberta por óbito de DD.

Por via da presente ação declarativa, pretende a A. ver declarada a sua propriedade sobre um prédio rústico de cultura, sito em Valongo, declarando-se, ainda, a inexistência de servidão de passagem de pessoas, veículos automóveis, veículos de tração animal, tratores mecânicos e demais máquinas agrícolas a favor do prédio rústico das Rés, contíguo àquele, a poente.
Mais pretende a condenação das Rés a respeitarem o direito de propriedade plena da A. sobre o seu prédio e a absterem-se da prática de quaisquer atos que afetem ou diminuam esse mesmo direito, bem como a ficarem impedidas de aceder ao seu prédio através do imóvel da A.
Subsidiariamente, para o caso da demonstração da existência de servidão de passagem pelo prédio da A. a favor do prédio das Rés, a extinção daquela por desnecessidade.
Alegou aquisição derivada e originária do seu prédio e a existência contígua do prédio das Rés, este com confrontação com a via pública. Afirma que, recentemente, têm as Rés vindo a aceder ao seu terreno, passando com tratores agrícolas pelo da A., contra a vontade desta, inexistindo qualquer servidão e gozando o seu prédio de comunicação com a estrada nacional.

Contestaram as Rés afirmando confrontar o seu prédio com o da A., do lado sul, existindo uma passagem que se inicia do lado nascente do prédio desta até atingir o das Rés, através da qual o acesso ao prédio das Rés sempre foi efetuado, à vista de todos, há mais de cinquenta anos, não sendo possível a ele aceder, nomeadamente com tratores, a partir da via pública, uma vez que se acha elevado de quase dois metros relativamente à estrada, razão pela qual formulam pedido reconvencional, com vista à condenação da reconvinda a reconhecê-las como donas do seu prédio, sendo judicialmente declarado que a servidão de passagem já se encontra constituída (por usucapião), onerando o prédio da A., sendo esta condenada a reconhecer esse direito e a não impedir a passagem pela servidão.

A A. apresentou réplica, opondo-se à procedência do pedido reconvencional, pugnando pela extinção da servidão e assumindo os custos de construção do acesso do prédio das Rés à EN ...04.

Realizado julgamento, veio a ser proferida sentença, datada de 4.1.2022, a qual terminou com o seguinte dispositivo:
(…) julgar a ação parcialmente procedente por provada e a contestação/reconvenção parcialmente procedente por provada e, consequentemente:
I – Declara que a autora é proprietária do prédio identificado em 1 dos factos provados e condena as rés a assim reconhecer;
II – Absolve as rés do demais peticionado pela autora;
III – Condena a autora reconvinda a reconhecer que as rés reconvintes, herdeiras de DD, são donas e legítimas possuidoras do prédio identificado em 6 dos factos provados;
IV – Reconhece o direito de servidão de passagem sobre a faixa de terreno descrita em 10 dos factos provados, constituída por usucapião, a favor do prédio identificado em 6 e a onerar o prédio identificado em 1 dos factos provados;
V – Condena a autora reconvinda a reconhecer esse direito e a não impedir a passagem.

Foram aí dados como provados os seguintes factos:
1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Valongo sob o nº ...22, da freguesia ..., o prédio rústico, rústico de cultura, denominado “Campo ...”, sito em ..., da União das Freguesias ... e ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo matricial nº ...61, que teve origem no artigo ...80.
2. Pela Ap. ...6 de 1998/04/01, foi registada a aquisição por doação do prédio a favor da autora, casada sob o regime da comunhão de adquiridos.
3. A autora, por si e pelos seus antecessores, já há mais de 30 anos que vem cultivando o prédio rústico descrito, lavrando e semeando nele milho, centeio, erva, batatas, couves, e colhendo os frutos ali produzidos.
4. Entre os anos 2006 e 2010, a autora cedeu o gozo temporário do prédio a terceiro, que o destinou a parqueamento automóvel.
5. A autora pratica estes atos sem interrupção, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, sendo reconhecida por todos como dona do aludido prédio rústico, sem lesar outrem.
6. O prédio aludido em 1 confronta, pelo seu lado sul com o prédio rústico, sito em ..., da União das Freguesias ... e ..., concelho de Valongo, composto de terreno de cultura e vinha em ramada, com área de 700,00 m2, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...63º da indicada União das Freguesias ... e ....
7. A rés, na qualidade de herdeiras da herança aberta por óbito de DD, falecida no dia 25/10/1992, por si e antecessores, há mais de 30 anos, que vêm amanhando, cultivando, lavrando e adubando, assim como plantando, fresando, sulfatando, podando e limpando as árvores e videiras e destas colhendo os respetivos frutos do prédio identificado em 6.
8. Tais atos foram praticados perante toda a gente, sem oposição de ninguém, na convicção de exercerem um direito próprio e de a ninguém lesarem.
9. Para se deslocarem para o prédio aludido em 6, as rés e os seus antecessores, levando consigo carros de animais, máquinas agrícolas e tratores, entram e saem, sempre que necessário, por forma explorá-lo e a praticar os atos atrás referidos, através do prédio identificado em 1;
10. Por uma faixa de terreno, que se inicia do lado nascente do prédio identificado em 1, onde existe uma entrada com a largura de 4,45 metros, junto à estrada nacional, com a qual confronta, depois flete para sul e prossegue em rampa, ocupando uma área de cerca de 23 m2, até atingir o prédio identificado em 6, onde há uma abertura no meio do muro que separa os dois prédios, com a largura de 2,30 metros.
11. O acesso ao prédio identificado em 6 sempre foi feito através do prédio identificado em 1, sempre que necessário, à vista de todos, sem oposição de ninguém, permanente e reiteradamente e na convicção do exercício dum direito próprio e sem prejuízo para terceiros.
12. Sem a passagem, não seria possível às rés e seus antecessores usufruir das utilidades que o mesmo lhes proporciona.
13. O prédio identificado em 6 não tem qualquer acesso direto à via pública que lhe permita o trânsito de pessoas, carros de tração animal e mecânica, nomeadamente tratores.
14. Existe um desnível entre 1,50 a 1,10 metros desde a estrada até ao prédio identificado em 6.
15. Há mais de 30 anos que esse caminho vem sendo usado para passar, a pé, com carro de tração animal, trator e máquinas agrícolas, entre a via pública e o prédio identificado em 6, que é explorado para fins agrícolas – vinha, erva para os animais.
16. Ao longo desses mais de 30 anos, o leito do caminho esteve visível, no prédio identificado em 1.
17. E desde há mais de 30 anos, existe uma abertura no muro que separa os dois prédios, por onde os carros de tração animal, alfaias agrícolas, tratores e pessoas sempre entraram no prédio identificado em 6.
18. E no prédio identificado em 1, foi mantida a abertura do lado nascente, junto à estrada nacional, por onde rés acedem ao identificado em 6.
19. Durante os anos em que, no prédio identificado em 1, estiveram aparcados veículos automóveis, o caminho sempre esteve demarcado e desimpedido, permitindo o livre acesso ao prédio identificado em 6.
20. E não existe outra forma de a ele aceder, que não seja pelo prédio identificado em 1.
21. Em finais de julho de 2017, a autora colocou uma pedra na entrada do acesso ao caminho, assim tentando tornar impossível o acesso das rés ao identificado em 6, o que não conseguiu porque, com a ajuda de um empilhador, a 2ª Ré acabou por removê-la.
22. As rés têm necessidade de entrar e sair do prédio identificado em 6, utilizando a passagem, para preparar, lavrar, fresar, cultivar, limpar e adubar o terreno, bem como podar, sulfatar e tratar as videiras e oliveiras, e colher os seus frutos e tudo o que lá se cultiva, sob pena de se perder toda a produção.
23. Para a execução das tarefas descritas no número anterior é necessária a utilização de tratores e demais alfaias agrícolas, bem como o acesso pedonal.
24. Exceto no período compreendido entre 2006 e 2010, a autora reconvinda desde sempre, cultivou e semeou o prédio aludido em 1, nomeadamente, com erva e colhendo os frutos ali produzidos.
25. No prédio identificado em 6 não existem caminhos ou trilhos em terra batida ou calcada, reveladores de trânsito de pessoas, animais, veículos automóveis, tratores mecânicos e demais máquinas agrícolas.
26. O prédio identificado em 6, do lado nascente, confronta com a estrada nacional (Rua ...), numa extensão de cerca de 41 metros.
27. É possível realizar uma escavação para construir um acesso ao prédio identificado em 6, a partir da via pública, Rua ..., com um custo estimado de €3.714,75.

Foram considerados não provados os factos seguintes:
1. O prédio descrito em 6 dos factos provados não tem, nem nunca teve, qualquer passagem pelo prédio identificado em 1.
2. O acesso ao mesmo também não se faz, nem nunca se fez, através do descrito em 1.
3. Desde há cerca de 2 anos, a ré tem invadido o prédio identificado em 1, passando com tratores para o identificado em 6, sem consentimento da autora.
4. A passagem sobre o prédio identificado em 1 tem o comprimento de 4,40 metros, no lado nascente (lado esquerdo), e 9,40 metros, no seu lado poente (lado direito).
5. A entrada nascente no prédio identificado em 1 tem como única e exclusiva razão de ser, possibilitar o acesso ao prédio identificado em 6.
6. O prédio identificado em 6 já confrontava com a via pública, quando se estabeleceu a passagem.
7. Qualquer ato de passagem que as rés/reconvintes fizeram pelo prédio identificado em 1 foi consentida por mera tolerância e favor, ou foi contra a vontade da autora reconvinda.
8. A manutenção da passagem pelo prédio identificado em 1 afeta a sua capacidade construtiva.

Desta sentença recorre a A., visando a revogação do decidido, terminando as alegações de recurso com as seguintes conclusões:
1 – O que está em causa e constitui o objeto do presente recurso, é a sentença proferida nos presentes autos, quer quanto à decisão da matéria de facto, que, para além do mais, carece de ser ampliada, quer quanto à decisão da matéria de direito, no que respeita ao segmento decisório que julgou improcedente o pedido de declaração de extinção, por desnecessidade, da servidão de passagem constituída por usucapião (servidão esta que veio a ser declarada e reconhecida na sentença).
2 - A Apelante alegou e provou, no processo, os factos essenciais nucleares à procedência do pedido de declaração de extinção, por desnecessidade, da sobredita servidão.
3 - Tendo em conta o relatório pericial exarado pelo perito nomeado pelo tribunal, todos os documentos e os depoimentos das testemunhas, enquanto meios probatórios constantes do processo, devem ser aditados aos factos provados os seguintes factos:
As terras do prédio das Rés, em toda a extensão de cerca de 41 metros, não estão vedadas nem sustentadas, por qualquer muro ou outra construção, de qualquer espécie ou tipo. A A. alegou/declarou nos autos, expressamente, que o custo com a realização da obra para construir um novo acesso ao prédio das Rés, diretamente a partir da via pública, Rua ..., será por si suportado e sempre ficará a seu cargo, tendo manifestado essa vontade e disponibilidade nos autos.
É possível executar a partir da Rua ... uma rampa de acesso direto ao prédio das Rés, removendo a terra, com a largura de rampa de 3 metros e o comprimento de 5 metros, que permitirá fazer o normal acesso àquele prédio, de forma suave, quer por pessoas, quer por tratores.
O caminho proposto oferece condições de utilização similares, com idêntica comodidade, melhorando, a regularidade para utilização a pé, com carro de tração animal, trator ou máquinas agrícolas, no confronto com o caminho existente no prédio descrito no art.º 1.º da petição inicial, seja a pé, com carro de tração animal, trator ou máquinas agrícolas.
Os proveitos e as utilidades proporcionadas ao prédio das Rés (prédio dominante), que é um terreno de cultivo com produção e exploração agrícola, através da servidão que onera o prédio da A. (prédio serviente), são conseguidas pela simples abertura de um acesso ao prédio das Rés, a realizar pelo lado nascente, diretamente a partir da via pública, Rua ..., permitindo àquelas continuar a fruir, em toda a sua plenitude e extensão, de todos os proveitos e utilidades que o seu prédio lhes proporciona, com melhores, ou, pelo menos, as mesmas condições de comodidade que são satisfeitas pela servidão.
O prédio da A. é apto para a construção.
A A. pretende vir a construir uma casa no seu prédio, para a qual irá viver o seu filho e respetivo agregado familiar.
O prédio da A., livre de ónus ou encargos, tem o valor de €36.540,00 (Trinta e Seis Mil Quinhentos e Quarenta Euros).
A servidão de passagem acarreta para o prédio da A. uma desvalorização e prejuízo de €7.308,00 (Sete Mil Trezentos e Oito Euros), que advém da perda potencial da edificabilidade e dos cómodos para as construções que aí vierem a ser materializadas. O prédio das Rés, com a construção de uma rampa, não ficará desvalorizado
4 - No ponto 27, deve ser julgado não provado “com um custo estimado de €3.714,75”, expressão esta, que se propugna, seja eliminada.
5 - A Apelante, para além do mais, não pode deixar de fazer este Venerando Tribunal “ad quem” notar, que está alegado e provado, que:
i. é possível realizar uma escavação para construir um acesso ao prédio das Apeladas, a partir da via pública, Rua ..., removendo a terra, com a largura de rampa de 3 metros e o comprimento de 5 metros, que permitirá fazer o normal acesso àquele prédio, de forma suave, quer por pessoas, quer por tratores;
ii. a Apelante alegou/declarou nos autos, expressamente, que o custo com a realização dessa obra para construir um novo acesso ao prédio das Apeladas, diretamente a partir da via pública, Rua ..., será por si suportado e sempre ficará a seu cargo, tendo manifestado essa vontade e disponibilidade nos autos;
iii. O caminho proposto oferece condições de utilização similares, com idêntica comodidade, melhorando, a regularidade para utilização a pé, com carro de tração animal, trator ou máquinas agrícolas, no confronto com o caminho existente no prédio descrito no art.º 1.º da petição inicial, seja a pé, com carro de tração animal, trator ou máquinas agrícolas.
6 - A Apelante pretende a declaração de extinção, por desnecessidade, da servidão de passagem constituída por usucapião, por ter dado, assim, pleno e cabal cumprimento, tanto ao ónus de alegação, como, também, ao ónus da prova, que lhe incumbiam enquanto proprietária do prédio serviente.
7 - A sentença recorrida violou o disposto nos arts. 5.º e 607.º do Código de Processo Civil e 1569.º do Código Civil.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Objeto do recurso:
- da alteração da matéria de facto;
- da extinção da servidão predial por desnecessidade.

FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentos de facto
Pretende a A. a ampliação da matéria de facto a fim de fiquem aí constarem factos que alegou na réplica e que entende terem sido omitidos pela sentença.
Considera que essa factualidade seria relevante do ponto de vista da extinção do direito de servidão constituído a favor do prédio das Rés e onerando o prédio da demandante.
Verifica-se, com efeito, que, em articulado de réplica, foram alegados factos que podem interessar ao conhecimento quer do pedido, quer da reconvenção e sobre os quais não foi proferida decisão de facto.
A recorrente pretende se considerem os seguintes:
As terras do prédio das Rés, em toda a extensão de cerca de 41 metros, não estão vedadas nem sustentadas, por qualquer muro ou outra construção, de qualquer espécie ou tipo.
Este facto encontra-se alegado em 56.º da réplica.
No ponto 55.º da mesma peça, alegou a A. que o prédio das Rés confronta diretamente com a estrada Nacional (Rua ...), numa extensão de cerca de 41 metros.
Este último facto foi dado como provado em 26 (com exceção do diretamente), nada se referindo quanto à inexistência de vedações nessa confrontação a nascente.
Ora, sendo certo existir um desnível entre a estrada e o prédio das Rés (este terreno está mais alto do que a via pública), como está provado em 14, a verdade é que também resulta provada a inexistência daquelas vedações, como pode ver-se do relatório pericial junto aos autos a 2.7.2020, p. 4 (resposta ao ponto A.3). A inexistência de vedações é também visível nas fotografias juntas como docs. 2 a 7 com a contestação, nas quais se verifica a existência de um muro baixo, na confrontação do terreno da A. com a EN ...09 (Rua ...) e, logo após, para a esquerda das fotografias, o terreno das Rés surge sem vedação. Esta constatação é coonestada pela observação do local no Google maps onde, na localidade de ..., aquela EN confronta com a Rua ...] (a Rua ... entronca com a EN, à esquerda, se consideramos o sentido sul-norte), como se vê da foto aérea de fls. 9 do relatório pericial, local onde o terreno da A. confronta com estas duas vias (a norte com a R. do ..., a nascente com a EN ...04), seguido do terreno das Rés, para sul.
Sendo assim, adita-se aos factos provados o seguinte o ponto:
28 - As terras do prédio das Rés, em toda a extensão de cerca de 41 metros, não estão vedadas nem sustentadas por qualquer muro ou outra construção, de qualquer espécie ou tipo.
Pretende, ainda, a A. se dê como provado o seguinte:
A A. alegou/declarou nos autos, expressamente, que o custo com a realização da obra para construir um novo acesso ao prédio das Rés, diretamente a partir da via pública, Rua ..., será por si suportado e sempre ficará a seu cargo, tendo manifestado essa vontade e disponibilidade nos autos.
Não se trata aqui de factualidade relativa aos elementos objetivos verificados nos terrenos, tratando-se de uma manifestação de intenção por parte da A. que ficou constando do relatório, mas que não tem relevo para a decisão sobre a extinção da servidão.
Indefere-se nesta parte a impugnação factual.
O facto seguinte que a A. pretende ver consignado entre os provados, corresponde aos pontos 66.º a 69.º da réplica:
É possível executar a partir da Rua ... uma rampa de acesso direto ao prédio das Rés, removendo a terra, com a largura de rampa de 3 metros e o comprimento de 5 metros, que permitirá fazer o normal acesso àquele prédio, de forma suave, quer por pessoas, quer por tratores.
Neste tocante, a sentença deu como provado, em 27: É possível realizar uma escavação para construir um acesso ao prédio identificado em 6, a partir da via pública, Rua ..., com um custo estimado de €3.714,75.
A recorrente pretende que este custo seja dado como não provado.
Neste tocante, observamos o relatório pericial onde, a fls. 6, o perito referiu expressamente ser possível executar uma rampa de acesso direto ao prédio das Rés, removendo a terra, com a largura da rampa de 3 metros e o comprimento de 5 metros, adiantando na p. 7, que o preço de uma rampa de acesso ao prédio das AA. dependeria de muitos fatores (definir o local de entrada, a largura, o declive para determinar o comprimento, o tipo de pavimento, ofertas de mercado, etc…), mas que esse valor rondaria os €3.714,75, mais IVA.
Quer destes elementos probatórios, quer da observação das caraterísticas do local (o depoimento da testemunha EE nada adianta que interesse neste contexto), o que resulta demonstrada é a possibilidade de ser construído um acesso ao terreno das Rés a partir da via pública, não sendo relevante aqui fixar as suas dimensões, posto que estas terão apenas que corresponder ao modo de fruição do prédio das Rés tal como lhes é atualmente possível através do prédio da A. Quanto ao valor da construção, não cabendo ao tribunal fixá-lo em ordem a impor à A. qualquer encargo ou obrigação, a respetiva dilucidação – devidamente orientada pela perícia – é apenas relevante na concretização do que seja a desnecessidade da servidão estabelecida no art. 1569.º, n.º 2, CC.
Acresce que, de acordo com o relatório pericial, “o prédio das Rés, com a construção de uma rampa, não ficaria desvalorizado” (p. 15 do relatório, R. 13).
Sendo assim, o ponto 27 passa a ter a seguinte redação:
«É possível realizar um acesso direto desde a Rua ..., a nascente do prédio das Rés, até este terreno, mediante a remoção de terras e a construção de uma rampa que orçará em valor não concretamente apurado, mas não inferior a €3.700,00, mais IVA, não importando tal construção qualquer desvalorização para o prédio das Rés.»
O ponto seguinte propugnado pela A. respeita aos cómodos proporcionados pelo acesso a realizar, desde a via pública até ao terreno das Rés, em ordem extinguir a servidão sobre o seu imóvel.
Refere-se ao que alegou em 70.º da réplica.
O caminho proposto oferece condições de utilização similares, com idêntica comodidade, melhorando a regularidade para utilização a pé, com carro de tração animal, trator ou máquinas agrícolas, no confronto com o caminho existente no prédio descrito no art.º 1.º da petição inicial, seja a pé, com carro de tração animal, trator ou máquinas agrícolas.
Neste tocante, é de atender ao relatório pericial que, a fls. 15, se revela eloquente, respondendo a esta questão com sim, a comodidade é semelhante e melhora a regularidade para utilização a pé, com carro de tração animal, trator ou máquinas agrícolas.
Por esta razão, cremos ser de acrescentar um ponto 29, com o seguinte teor:
«Através da construção de uma rampa de acesso, nos termos descritos em 27, é possível dotar o terreno das Rés de uma passagem desde a via pública, com condições de utilização similares, com idêntica comodidade, melhorando a regularidade para utilização a pé, com carro de tração animal, trator ou máquinas agrícolas, no confronto com o caminho existente atualmente sobre o prédio da A.»
Face ao que agora ficou exposto e afim de evitar contradições, afigura-se-nos ser de alterar a redação dos pontos de facto provados em 12, 13 e 20, nos termos seguintes:
12 – Sem a passagem referida em 9 a 11, atualmente não seria possível às Rés proceder conforme descrito em 22.
13 – O prédio das Rés confronta com a estrada, a nascente, conforme referido em 26, mas nessa confrontação, mercê do desnível mencionado em 14, não é atualmente possível efetuar o trânsito de peões, carros de tração animal e mecânica, nomeadamente tratores.
20 – Atualmente, não existe forma de aceder ao prédio das Rés, a não ser através do prédio da A., sem prejuízo do que consta provado em 29.
O que se pretende de seguida no recurso - dar como provado que Os proveitos e as utilidades proporcionadas ao prédio das Rés (prédio dominante), que é um terreno de cultivo com produção e exploração agrícola, através da servidão que onera o prédio da A. (prédio serviente), são conseguidas pela simples abertura de um acesso ao prédio das Rés, a realizar pelo lado nascente, diretamente a partir da via pública, Rua ..., permitindo àquelas continuar a fruir, em toda a sua plenitude e extensão, de todos os proveitos e utilidades que o seu prédio lhes proporciona, com melhores, ou, pelo menos, as mesmas condições de comodidade que são satisfeitas pela servidão – constitui uma repetição do que já anteriormente ficou exposto, razão porque se indefere o recurso nesta parte.
Pretende ainda a recorrente se dê como provado ser o seu prédio apto para construção. Sobre este tema o relatório pericial contém resposta afirmativa, consignando na p. 7, A.13, achar-se este terreno, segundo o PDM de Valongo, inserido em espaços residenciais do tipo II, solo urbanizado fora de zona urbana consolidada. O mesmo para o prédio das Rés, conforme constante da p. 8 do mesmo relatório, A. 17), razão por que se acrescenta aos factos provados o ponto 30: «Os prédios de A. e rés são aptos para construção».
Já se indefere o que pretende a recorrente quanto à finalidade concreta que diz destinar ao seu prédio, posto que essa circunstância em nada releva para a desnecessidade (ou não) da servidão. Indefere-se, por isso, a inclusão do seguinte: A A. pretende vir a construir uma casa no seu prédio, para a qual irá viver o seu filho e respetivo agregado familiar.
Pela mesma razão, os factos seguintes - O prédio da A., livre de ónus ou encargos, tem o valor de € 36.540,00 (Trinta e Seis Mil Quinhentos e Quarenta Euros) e A servidão de passagem acarreta para o prédio da A. uma desvalorização e prejuízo de €7.308,00 (Sete Mil Trezentos e Oito Euros), que advém da perda potencial da edificabilidade e dos cómodos para as construções que aí vierem a ser materializadas – não são de incluir no rol dos factos relevantes ou atendíveis porquanto o valor da oneração do prédio serviente pela existência de uma servidão não entra em linha de conta na circunstância postulada pela lei para a extinção da mesma. O que se refere na norma é a desnecessidade desta para o prédio dominante e não o grau de desvalorização do prédio dominante.
Os factos a considerar são, assim, os consignados em primeira instância, com as alterações agora introduzidas, o que se consubstancia no seguinte:

1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Valongo sob o nº ...22, da freguesia ..., o prédio rústico, rústico de cultura, denominado “Campo ...”, sito em ..., da União das Freguesias ... e ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo matricial nº ...61, que teve origem no artigo ...80.
2. Pela Ap. ...6 de 1998/04/01, foi registada a aquisição por doação do prédio a favor da autora, casada sob o regime da comunhão de adquiridos.
3. A autora, por si e pelos seus antecessores, já há mais de 30 anos que vem cultivando o prédio rústico descrito, lavrando e semeando nele milho, centeio, erva, batatas, couves, e colhendo os frutos ali produzidos.
4. Entre os anos 2006 e 2010, a autora cedeu o gozo temporário do prédio a terceiro, que o destinou a parqueamento automóvel.
5. A autora pratica estes atos sem interrupção, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, sendo reconhecida por todos como dona do aludido prédio rústico, sem lesar outrem.
6. O prédio aludido em 1 confronta, pelo seu lado sul com o prédio rústico, sito em ..., da União das Freguesias ... e ..., concelho de Valongo, composto de terreno de cultura e vinha em ramada, com área de 700,00 m2, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...63º da indicada União das Freguesias ... e ....
7. A rés, na qualidade de herdeiras da herança aberta por óbito de DD, falecida no dia 25/10/1992, por si e antecessores, há mais de 30 anos, que vêm amanhando, cultivando, lavrando e adubando, assim como plantando, fresando, sulfatando, podando e limpando as árvores e videiras e destas colhendo os respetivos frutos do prédio identificado em 6.
8. Tais atos foram praticados perante toda a gente, sem oposição de ninguém, na convicção de exercerem um direito próprio e de a ninguém lesarem.
9. Para se deslocarem para o prédio aludido em 6, as rés e os seus antecessores, levando consigo carros de animais, máquinas agrícolas e tratores, entram e saem, sempre que necessário, por forma explorá-lo e a praticar os atos atrás referidos, através do prédio identificado em 1;
10. Por uma faixa de terreno, que se inicia do lado nascente do prédio identificado em 1, onde existe uma entrada com a largura de 4,45 metros, junto à estrada nacional, com a qual confronta, depois flete para sul e prossegue em rampa, ocupando uma área de cerca de 23 m2, até atingir o prédio identificado em 6, onde há uma abertura no meio do muro que separa os dois prédios, com a largura de 2,30 metros.
11. O acesso ao prédio identificado em 6 sempre foi feito através do prédio identificado em 1, sempre que necessário, à vista de todos, sem oposição de ninguém, permanente e reiteradamente e na convicção do exercício dum direito próprio e sem prejuízo para terceiros.
12. Sem a passagem referida em 9 a 11, atualmente não seria possível às Rés proceder conforme descrito em 22.
13. O prédio das Rés confronta com a estrada, a nascente, conforme referido em 26, mas nessa confrontação, mercê do desnível mencionado em 14, não é atualmente possível efetuar o trânsito de peões, carros de tração animal e mecânica, nomeadamente tratores.
14. Existe um desnível entre 1,50 a 1,10 metros desde a estrada até ao prédio identificado em 6.
15. Há mais de 30 anos que esse caminho vem sendo usado para passar, a pé, com carro de tração animal, trator e máquinas agrícolas, entre a via pública e o prédio identificado em 6, que é explorado para fins agrícolas – vinha, erva para os animais.
16. Ao longo desses mais de 30 anos, o leito do caminho esteve visível, no prédio identificado em 1.
17. E desde há mais de 30 anos, existe uma abertura no muro que separa os dois prédios, por onde os carros de tração animal, alfaias agrícolas, tratores e pessoas sempre entraram no prédio identificado em 6.
18. E no prédio identificado em 1, foi mantida a abertura do lado nascente, junto à estrada nacional, por onde rés acedem ao identificado em 6.
19. Durante os anos em que, no prédio identificado em 1, estiveram aparcados veículos automóveis, o caminho sempre esteve demarcado e desimpedido, permitindo o livre acesso ao prédio identificado em 6.
20. Atualmente, não existe forma de aceder ao prédio das Rés, a não ser através do prédio da A., sem prejuízo do que consta provado em 29.
21. Em finais de julho de 2017, a autora colocou uma pedra na entrada do acesso ao caminho, assim tentando tornar impossível o acesso das rés ao identificado em 6, o que não conseguiu porque, com a ajuda de um empilhador, a 2ª Ré acabou por removê-la.
22. As rés têm necessidade de entrar e sair do prédio identificado em 6, utilizando a passagem, para preparar, lavrar, fresar, cultivar, limpar e adubar o terreno, bem como podar, sulfatar e tratar as videiras e oliveiras, e colher os seus frutos e tudo o que lá se cultiva, sob pena de se perder toda a produção.
23. Para a execução das tarefas descritas no número anterior é necessária a utilização de tratores e demais alfaias agrícolas, bem como o acesso pedonal.
24. Exceto no período compreendido entre 2006 e 2010, a autora reconvinda desde sempre, cultivou e semeou o prédio aludido em 1, nomeadamente, com erva e colhendo os frutos ali produzidos.
25. No prédio identificado em 6 não existem caminhos ou trilhos em terra batida ou calcada, reveladores de trânsito de pessoas, animais, veículos automóveis, tratores mecânicos e demais máquinas agrícolas
26. O prédio identificado em 6, do lado nascente, confronta com a estrada nacional (Rua ...), numa extensão de cerca de 41 metros.
27. É possível realizar um acesso direto desde a Rua ..., a nascente do prédio das Rés, até este terreno, mediante a remoção de terras e a construção de uma rampa que orçará em valor não concretamente apurado, mas não inferior a €3.700,00, mais IVA, não importando tal construção qualquer desvalorização para o prédio das Rés.
28. As terras do prédio das Rés, em toda a extensão de cerca de 41 metros, não estão vedadas nem sustentadas por qualquer muro ou outra construção, de qualquer espécie ou tipo.
29. Através da construção de uma rampa de acesso, nos termos descritos em 27, é possível dotar o terreno das Rés de uma passagem desde a via pública, com condições de utilização similares, com idêntica comodidade, melhorando a regularidade para utilização a pé, com carro de tração animal, trator ou máquinas agrícolas, no confronto com o caminho existente atualmente sobre o prédio da A.
30. Os prédios de A. e Rés são aptos para construção.

Fundamentos de Direito
Conforme já explicitado na sentença recorrida, o prédio das Rés goza de servidão predial sobre o terreno da A. (art. 1534.º CC), constituída por usucapião (arts. 1287.º, 1547.º e 1548.º CC), destinando-se à passagem a pé e com carros de tração animal e mecânica, a fim de que o mesmo possa ser agricultado.
Logo na pi, a A. invocava a desnecessidade da servidão que onera o seu prédio, pedindo fosse declarada a sua extinção por desnecessidade.
Na contestação/reconvenção, as Rés opuseram-se e peticionaram o reconhecimento da existência de tal direito real, tendo a A. na réplica esgrimido dois argumentos: a desnecessidade da servidão e a sua extinção, por esse efeito; a possibilidade de construção de um novo caminho de acesso à estrada, a expensas suas.
O primeiro argumento assenta no disposto no art. 1569.º, n.º 2, CC (extinção da servidão); o segundo parece defluir do disposto no art. 1568.º CC (mudança de servidão).
O tribunal a quo, quiçá porque a A. não enquadra a sua defesa ao pedido reconvencional neste último normativo, considerou apenas o primeiro que é, na realidade, o único que acaba por ser pedido.
Porém, argumentando-se na réplica ser possível construir uma rampa de acesso por outro local, que não o prédio serviente (da A.), a questão deixa de ser de extinção por desnecessidade, mas sim de mudança da passagem, o que acabou por não ser requerido pela A.
Nos termos do disposto no art. 1569.º, n.º 2, as servidões prediais constituídas por usucapião serão extintas a requerimento do dono do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante.
Na sentença recorrida entendeu-se que a servidão era necessária porque o prédio das Rés, mercê do desnível que apresenta relativamente à estrada, não dispõe atualmente de outro acesso senão o constituído sobre o prédio da A.
Já a possibilidade de construção, no futuro, de um acesso direto a partir da EN não cairia na noção de desnecessidade, antes implicando exatamente o oposto: a atual necessidade da servidão.
A possibilidade de o proprietário do prédio serviente requerer em tribunal a extinção da servidão, por desnecessária, justifica-se plenamente no caso das servidões constituídas por usucapião, uma vez que nestas não existiu qualquer acordo de vontades, tendo-se as mesmas gerado por circunstâncias de facto que se verificaram repetidamente.
Se falta o elemento básico da utilidade, deixa de haver razão para existência da servidão.
Aliás, a criação de uma servidão em que se não verifica a existência de uma utilidade viola o princípio da tipicidade dos direitos reais (art. 1306.º CC).
Sendo a servidão uma constrição ao direito de propriedade, direito que deve ser tendencialmente ilimitado (art. 1305.º CC), compreende-se que se extinga quando deixe de ser necessária para assegurar ao terceiro qualquer utilidade. Perpetuar uma servidão sem utilidade alguma constituiria uma limitação inaceitável e um encargo injustificado para o prédio serviente, violando a função social da plena in re potestas.
Com efeito, «é certo que a sobreposição ou co-existência de vários direitos reais sobre a mesma coisa é susceptível de tornar menos eficiente o domínio e pode conceber-se como socialmente indesejável a justificar instrumentos jurídicos que, em dadas circunstâncias, lhe permitam pôr termo (v.gr. direito de preferência, extinção por desnecessidade, remição). Mas não se contém na garantia da propriedade privada “nos termos da Constituição” uma vinculação social que se caracterize pela intencionalidade ou propensão restritiva quanto à posição do titular de “direitos reais menores” sobre a mesma coisa no sentido da restauração da plenitude dos direitos de gozo do titular do direito real máximo, que imponha a resolução do conflito a favor deste, segundo um critério objectivo de (des)necessidade da servidão, mesmo perante servidões cuja origem se não revista de natureza coerciva» (ac. TC n.º 484/2010).
Ora, a desnecessidade a que alude a lei respeita a uma alteração objetiva superveniente que tenha modificado o estado de facto existente ao tempo da constituição da servidão, como expressa Oliveira Ascensão (Desnecessidade e Extinção de Direitos Reais, Separata da Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, 1964, 10-12): a “desnecessidade” tem de ser objetiva, típica e exclusiva da servidão, caracterizada por uma mudança na situação objetiva do prédio dominante verificada em momento posterior à constituição da servidão, e em consequência da qual perdeu utilidade para o prédio dominante.
Neste sentido, também Rita Teixeira, em Da Extinção por Desnecessidade das Servidões por Destinação do Pai de Família, Dissertação de Mestrado, Universidade Católica, Porto, 2012, p. 33 e ss.
Assim, «para se concluir pela desnecessidade da servidão de passagem importa que se observem as seguintes características:
(i) A extinção por desnecessidade de passagem não deve ser subjectiva - relacionada com o proprietário do prédio dominante - mas antes objectiva - atinente ao próprio prédio dominante.
(ii) A desnecessidade deverá ser actual, decorrendo, em princípio, de alterações ocorridas no prédio dominante.
(iii) A desnecessidade não pode ser equiparável a indispensabilidade, o que significa que não basta provar que a servidão deixou de ser indispensável para o prédio dominante, antes tendo de provar-se que para ela deixou de ter qualquer utilidade» (ac. RL, de Lisboa, 27.2.2014, Proc. 206/10.4TBCDV.L1-2).
Do mesmo modo, ac. STJ, de 16.3.2011 (Proc. 263/1999.P1.S1): 1. A desnecessidade de uma servidão de passagem tem de ser aferida em função do prédio dominante, e não do respectivo proprietário. 2. Em princípio, a desnecessidade será superveniente em relação à constituição da servidão, decorrendo de alterações ocorridas no prédio dominante. 3. Só deve ser declarada extinta por desnecessidade uma servidão que deixou de ter qualquer utilidade para o prédio dominante; fazer equivaler a desnecessidade à indispensabilidade não é consistente com a possibilidade de extinção por desnecessidade de servidões que não sejam servidões legais. 4. Incumbe ao proprietário do prédio serviente que pretende a declaração judicial da extinção da servidão o ónus da prova da desnecessidade. 5. Salvaguardadas hipóteses de abuso de direito ou semelhantes, bastará ao proprietário do prédio serviente provar que a servidão deixou de proporcionar utilidade ao prédio dominante para conseguir obter a sua extinção.
Na situação que nos ocupa, resulta da factualidade demonstrada não existir atualmente outra passagem para o prédio das Rés desde a estrada, senão através do prédio da A.
Para que esta passagem deixe de ser necessária, impõe-se levar a cabo a construção de uma rampa de acesso que vença o desnível existente entre o terreno e a via pública.
O reconhecimento de que, no estado atual, não existe outro acesso, a pé e de carro, senão através do prédio da A., impede se considere ter-se por extinta a utilidade que se retira da servidão predial constituída por usucapião.
A passagem não é, pois, desnecessária. Poderá vir a sê-lo, acaso se construa uma rampa de acesso, mas neste momento a utilidade da passagem por terreno alheio mantém-se.
Sendo assim, a pretensão da A. de ver extinta a servidão por desnecessidade não pode proceder porque não aplicável o n.º 2 do art. 1569.º CC e, nesse sentido, a sentença será de manter.
Coisa distinta poderia ser outra: a de ser alterada a servidão porque fisicamente possível tal solução em função da construção de uma rampa de acesso desde a via pública.
Neste segmento, o pedido não seria de extinção da servidão, mas de mudança da mesma.
De acordo com o art. 1568º CC, o titular do prédio serviente não pode estorvar o uso da servidão, mas pode exercer o direito potestativo de exigir a sua mudança de sítio, dentro do seu prédio, ou a sua mudança para outro prédio, se a mudança lhe for conveniente e não prejudicar os interesses do prédio dominante. Nessa situação, a mudança de servidão será efetuada à custa do titular do prédio serviente.
Trata-se aqui de um afloramento do princípio quod tibi non nocet et mihi prodest.
Esta mudança está subordinada à verificação de um duplo requisito: “É necessário que ela se mostre conveniente ao dono do prédio serviente. E é ainda imprescindível que se não prejudiquem os interesses do proprietário do prédio dominante (…). Aplica-se aqui um critério de proporcionalidade entre a necessidade ou conveniência da diminuição do encargo sobre o prédio serviente, que deve corresponder a uma vantagem relevante, e o prejuízo que a mudança de servidão possa acarretar para o prédio dominante” (Isabel Campos, anotação ao art. 1568.º, Comentário ao Código Civil, Direito das Coisas, UCP, p. 738).
Parece a lei, neste normativo, pressupor que a mudança se opere geograficamente dentro do prédio serviente ou que passe a onerar prédio de terceiro, pois se a passagem passa a efetuar-se através do prédio dominante operar-se-á a extinção da servidão por inexistência de prédio dominante e serviente.
Mas o princípio subjacente a este normativo não excluirá, parece-nos, o caso em que é possível ao prédio dominante aceder à estrada diretamente, sem passar pelo prédio vizinho, apenas tendo que se realizar obras naquele, nomeadamente a construção de uma rampa, e desde que o titular do prédio serviente suporte as despesas com tais obras.
Nessa situação, se nenhum prejuízo resultar para o prédio dominante – como se apurou no caso dos autos – e se, em contrapartida, se apurar ser isso vantajoso para o prédio serviente – o que se nos figura ocorrer, uma vez que, tendo este vocação edificativa, naturalmente o exercício de passagem pelo mesmo comprime a possibilidade do uso integral e livre de toda a sua área – estamos em crer ser de deferir eventual pretensão do dono do prédio onerado com a servidão no sentido de se ver livre da servidão.
Seria abusivo opor-se o dono do prédio dominante ao exercício da passagem para o seu prédio a partir da via pública com que confronta, deste modo desonerando o prédio contíguo da servidão constituída por usucapião, caso essa passagem fosse possível através de obra a realizar pelo dono do prédio dominante e sem qualquer prejuízo para o prédio serviente que, aliás, se veria servido de forma mais eficaz do que o é através da servidão por usucapião constituída sobre o prédio contíguo.
Todavia, para que isso ocorra e possa o dono do prédio serviente ser condenado à realização das obras necessárias ou a suportar o seu valor, será necessário que manifeste pedido nesse sentido, designadamente peticionando a mudança da passagem para local concreto do terreno dominante, a fim de que a parte contrária possa exercer contraditório esclarecido e possa o tribunal condená-lo em conformidade.
Neste caso, a A. não formulou pedido nesse sentido concreto, tendo-se limitado ao pedido de extinção da servidão por desnecessidade o que, pelas razões que vimos, não pode proceder.

Dispositivo
Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, mantendo-se a sentença recorrida.

Custas pela recorrente.


Porto, 8.5.2023.
Fernanda Almeida
Teresa Fonseca
Augusto de Carvalho
_________________
[1] A Rua ... entronca com a EN ...09 em dois locais distintos, situando-se o terreno da A. no local onde essa confrontação se situa mais a norte, isto é, no local onde se situam o n.º ... da Rua ... da Rua ..., .... ... - Google Maps