Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5072/12.2TAVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO
Descritores: CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
FALSIDADE DE DEPOIMENTO OU DECLARAÇÃO
CASO JULGADO FORMAL
Nº do Documento: RP201407095072/12.2TAVNG.P1
Data do Acordão: 07/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: REJEITADO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Os autores da ação cível onde (na sua ótica) terá sido cometido o crime de Falsidade de depoimento ou declaração, do art. 359.º, n.º 1, do Cód. Penal, não são titulares dos interesses especialmente protegidos pela norma e, nessa medida, não têm legitimidade para se constituírem assistentes nos autos.
II – O despacho que admitiu os recorrentes como assistentes nos autos limitou-se a uma decisão genérica que não tem valor de caso julgado formal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal 5072/12.2TAVNG.P1

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
B… e C…, assistentes no processo de instrução acima referenciado, inconformados com o despacho de não pronúncia do arguido D…, recorreram para este Tribunal da Relação do Porto, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
a) Com a sua conduta aqui referida, que sabia ser proibida e punida por lei, o Denunciado, de forma voluntária, livre, consciente, deliberada, intencional e dolosa, recorrendo a erro e engano sobre factos (concretamente os atrás referidos na queixa apresentada) que astuciosamente provocou, convenceu e determinou os Assistentes a outorgarem a escritura pública aqui referida,
b) Documento que estes só outorgaram na firma convicção, e conforme lhes referiu o Denunciado, que os cheques juntos aos autos lhes seriam pagos, conforme lhes garantiu o mesmo,
c) Sabendo antecipadamente que tal não aconteceria, desde logo pelas circunstâncias em que logrou obter tais cheques, nomeadamente sabendo da falta de fundos na conta sacada para os pagar, bem como sabendo da inexistência de qualquer relação subjacente aos mesmos e que justificasse a sua emissão,
d) Determinando assim os Assistentes, na sequência do plano que astuciosamente elaborou com o propósito de os enganar, a praticar um acto que lhes causou prejuízo patrimonial e a obtenção para o Denunciado de um enriquecimento ilegítimo á custa daqueles,
e) Prejuízo consubstanciado no não recebimento dos cheques juntos aos autos, sendo que o pagamento de 20.000.00 Euros efectuado posteriormente pelo Denunciado e ficando um débito remanescente de 43.500.00 Euros a esse título, não afasta a conduta ilícita do mesmo nem o enriquecimento deste de forma ilegítima com esse valor e o consequente prejuízo para os Assistentes,
f) Tudo para além do depoimento de parte e falsas declarações prestadas no âmbito da acção cível melhor identificada nos autos,
g) De tudo resultando que o Denunciado praticou os crimes de Burla qualificada previsto nas disposições conjugadas dos Artigos 217.º e 218.º do Código Penal, bem com o crime de Falsidade de Depoimento ou Declaração previsto no Artigo 359.º do mesmo diploma legal,
h) Normativos esses que assim ao não serem aplicados foram violados na douta Decisão Instrutória,
i) Bem como o disposto no Artigo 308º do Código de Processo Penal ao não se Pronunciar o Denunciado apesar da prova e indícios recolhidos nos autos para o fazer, existindo assim na decisão instrutória, erro notório na apreciação da prova,
j) Crimes pelos quais deve ser pronunciado nos termos e conteúdo da queixa aqui referida e devidamente reproduzida aqui em 1, e julgado e condenado pela prática dos mesmos.
Assim, deve ser admitido e declarado procedente o presente Recurso seguindo-se os demais termos legais, nomeadamente ser revogado a Decisão Instrutória ora em recurso e substituída por outra que pronuncie o Denunciado pela prática dos factos e dos crimes aqui referidos”.

Respondeu o MP junto do Tribunal de Instrução Criminal, pugnando pela ilegitimidade dos recorrentes para se constituírem assistentes relativamente ao crime previsto e punido pelo art. 359º do C. Penal (falsidade de depoimento ou declaração) e pela improcedência do recurso relativamente ao crime de burla, por falta de indícios suficientes.

Nesta Relação, o Ex.º Procurador-geral Adjunto emitiu parecer acompanhando a resposta do MP junto do TIC.

Cumprido o disposto no artigo 417º, 2 do CPP, não houve resposta.

Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.
2. Fundamentação
2.1. Matéria de facto
O despacho recorrido é do seguinte teor:
“DECISÃO INSTRUTÓRIA – Em 31/01/2014
O Tribunal é o competente.
O Mº Pº tem legitimidade para exercer a acção penal.
Não existem nulidades e excepções.
Questão Prévia.
Conforme resulta da respectiva acta, o Sr. Procurador junto deste TIC, com os argumentos, considerações e jurisprudência, ali doutamente esplanadas e que aqui se dão por inteiramente reproduzidas, pugnou pela rejeição do RAI de fls. 200 e ss., por no seu entender, o mesmo não se encontrar formulado nos termos legalmente exigidos para tal. E, uma vez que o despacho que o admitiu não faz caso julgado, pode ainda o mesmo ser agora rejeitado.
Cabe apreciar.
De facto, dispõe o nº1, alínea b) do art. 287º do Código de Processo Penal que: “A abertura de instrução pode ser requerida pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação”.
No caso, os factos denunciados, apresentavam-se susceptíveis de consubstanciarem ilícitos de natureza não particular.
Dispõem os nºs 2 e 3, do referido preceito legal, que: “O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução. Não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões, de facto e de direito, de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no art. 283º, nº3, alíneas b) e c). (...).
De acordo com este citado dispositivo: A acusação deve conter, sob pena de nulidade:
a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) - A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática (...)
c) - A indicação das disposições legais aplicáveis;
De facto, no caso, pode entender-se e defender-se que o RAI em apreço, embora a lei não exija para o efeito, formalidades especiais, não prima pelas formalidades que legalmente devem ser observadas, dada a forma genérica e dispersa como se encontra elaborado.
Porém, ainda assim, parece-nos que o mesmo se apresenta elaborado de molde a obedecer, no mínimo àquelas formalidades, e dessa forma, poder considerar-se suficiente, para os efeitos prescritos no referido nº 3 do art. 283º do C.P.P..
E, foi por se entender, que o RAI em questão, se encontrava dentro daqueles limites mínimos e suficientes, que não foi objecto de rejeição e daí, ter sido a seu tempo, admitido.
Senão vejamos:
Os denunciados/arguidos encontram-se devidamente identificados (alínea a);
A narração dos factos (arts 1º a 26º), embora de forma genérica e dispersa (alínea b); e,
A indicação das disposições legais aplicáveis (art. 74º (alínea c) e do elemento subjectivo (art. 72º, e ainda alínea g) do art. 51º - fls. 220) daí, a razão da sua não rejeição.
Além do mais, e se por um lado o despacho que admitiu o RAI, não faz caso julgado, por outro, é susceptível, em tempo oportuno, de recurso, o que não foi o caso.
Nesta conformidade, e sempre com o devido respeito por melhor entendimento, mantemos a nossa posição quanto à admissibilidade do RAI de fls. 200 e ss., e, consequentemente, o decidido a fls. 244.
Não há nem foram suscitadas quaisquer outras questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer.
*
Os aqui Assistentes, B… e C…, inconformados com o douto despacho de arquivamento proferido no final do inquérito pelo seu Ilustre Titular e constante de fls. 180 e ss., vieram requerer a abertura de instrução, tudo conforme melhor se alcança do seu requerimento de fls. 200 e ss.
Requereram diligências de prova, que lhes foram indeferidas, com os fundamentos constantes do despacho de fls. 244/245.
A seu tempo teve lugar o debate instrutório, com observância dos formalismos legais, conforme se infere da respectiva acta.
Em conclusões, o Sr. Procurador junto deste TIC, pugnou, caso não fosse rejeitado o respectivo RAI, pela prolação de despacho de não pronúncia;
O Ilustre Mandatário dos Assistentes, discordou da posição do Sr. Procurador, desde logo, no que concerne à rejeição do RAI, por no seu entender, o mesmo conter os requisitos exigidos por lei para o efeito, bem assim, quanto ao despacho de não pronúncia, relativamente ao qual, reiterou na íntegra o ali alegado, entendendo que a prova carreada aos autos é suficiente para imputar ao arguido a prática do crime de burla e nessa conformidade, deve o mesmo ser pronunciado;
O Ilustre Mandatário do arguido, aderiu inteiramente à posição do Sr. Procurador, quer quanto à rejeição do RAI, quer no que concerne à falta de indícios para poder o arguido ser submetido a julgamento, pelo que, deve ser proferido despacho de não pronúncia e os autos arquivados, fazendo-se assim, inteira justiça.
Cabe apreciar.
Desde logo, nesta fase meramente indiciária, há que ter sempre presente que o J.I.C. estará limitado, à partida, pela factualidade relativamente à qual se pediu a instrução (cfr. arts 287º, nºs 1 e 2 e 288º, nº 4 do C.P.P.), sendo orientado no seu procedimento e decisão pelas razões de facto e de direito invocadas.
Por outro lado, dispõe o art. 283º, nº 2, aplicável à fase de instrução “ex vi” do n.º 2, do art. 308º, ambos do CPP: Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, uma pena ou uma medida de segurança.
Preceituando o art. 308º, nº1, do CPP: Se, até ao encerramento da instrução, tiveram sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não-pronúncia.
Fundando-se o conceito de indícios suficientes na possibilidade razoável de condenação ou de aplicação de uma pena ou medida de segurança, deve considerar-se existirem indícios suficientes para efeitos de prolação do despacho de pronúncia (tal qual para a acusação) quando:
- Os elementos de prova, relacionados e conjugados entre si, fizerem pressentir da culpabilidade do agente e produzirem a convicção pessoal de condenação posterior; e
- Se conclua, com probabilidade razoável, que esses elementos se manterão em julgamento; ou
- Quando se pressinta que da ampla discussão em plena audiência de julgamento, para além dos elementos disponíveis, outros advirão no sentido da condenação futura.
Por seu lado, atendendo a que a prova produzida na instrução é insuficiente, para por si só, esclarecer os factos em causa, tem o tribunal de socorrer-se da prova produzida em inquérito, cotejando a mesma com os depoimentos prestados na instrução.
No caso em apreço, porque nesta fase, não foram carreados aos autos quaisquer outros elementos de prova, a apreciação terá que conter-se dentro dos elementos em que se baseou o douto despacho de arquivamento e com base neles.
Conforme se constata dos autos, no final do inquérito, por douto despacho de fls. 180 e ss., devidamente fundamentado, na carência de indícios suficientes para sustentar qualquer acusação contra o arguido pela prática dos crimes participados, isto é, por a sua apurada conduta não se apresentar susceptível de censura penal, isto é, consubstanciar qualquer ilícito criminal, foi determinado o seu arquivamento.
De facto, compulsados os autos, e atendendo aos elementos carreados aos mesmos, parece-nos que, bem andou o Ilustre Titular do inquérito ao determinar o seu total arquivamento.
Senão vejamos.
Pratica p. e p. pelo art. 217º, do C. Penal:
1 - Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial, (...).
Configuram elementos objectivos deste tipo de crime:
-a provocação astuciosa do agente (exteriorizada numa conduta que a norma não descreve);
-o erro ou o engano do sujeito passivo sobre factos;
-a determinação de outrem à prática de actos causadores de prejuízo patrimonial para si ou para outrem;
-a prática destes actos pelo sujeito passivo;
-um prejuízo patrimonial do sujeito passivo ou de terceira pessoa, e;
como elementos subjectivos:
-a intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo; bem como a consciência da ilicitude da sua conduta e a vontade, ainda assim, de a realizar.
Tem, igualmente, vindo a ser defendido a necessidade de entre os vários elementos objectivos do crime de burla existir um nexo de causalidade ou de motivação, por forma a que a realização de um dos elementos tenha na sua motivação, na mente do agente, o preenchimento do elemento subsequente. O que significa que, por exemplo, a colocação em estado de erro do sujeito passivo só se justifica porque o agente visou provocá-lo (astuciosamente) – elemento lógico e cronologicamente anterior – com vista a determinar o agente à prática de actos que lhe causem prejuízo patrimonial – elemento posteriori, e assim sucessivamente.
O crime de burla, é, sem dúvida, um dos tipos legais que mais dificuldades tem levantado na sua concreta aplicação, a que não é alheia a circunstância de nem sempre se conseguir unanimidade doutrinal e jurisprudencial quanto aos seus elementos integradores, bem como, o facto de o tribunal ter experimentado sérias dificuldades na prova de alguns dos seus elementos típicos, como seja a actuação astuciosa do agente.
A estas dificuldades acresce uma outra, que consiste no estabelecer a fronteira entre a burla e o dolo meramente civil, sendo certo que o dolo civil e a burla podem coincidir num mesmo facto.
No caso em análise, e conforme bem ficou desde logo constatado pelo Ilustre Titular do inquérito, os agora Assistentes não conseguiram fazer prova de quaisquer factos que imputados ao arguido, pudessem eventualmente consubstanciar, por parte do mesmo, qualquer conduta astuciosa, que os tivessem levado à realização dos respectivos contratos, isto é, não se ter se apurou qualquer comportamento que o arguido tivesse tomado, com a intenção de os enganar e a levar em erro, para aquela realização.
É que, colocar em erro ou engano é entendido como:
Convencer o sujeito passivo de uma falsa representação da realidade, de factos ou eventos presentes ou passados, é a afirmação de factos como ocorridos (ou não ocorridos) cuja não ocorrência (ou ocorrência) se garante, contrariando a realidade do acontecer, com a consciência de se estar a fazê-lo; é, portanto, a afirmação de factos falsos, sabendo que o são, ou a alteração ou dissimulação de factos verdadeiros, com a consciência desta discrepância.
Ora, do que ficou apurado e exposto no douto despacho de arquivamento, não poderá considerar-se, terem sido os agora Assistentes, levados por engano ou erro, devido a qualquer comportamento ou atitude intencional, por parte do arguido, para a realização de tais contratos.
O mesmo se diga relativamente à prática pelo arguido, de factos susceptíveis de preencherem os elementos constitutivos (objectivos e subjectivo) do crime p. e p. pelo art. 359º, do C. Penal, porquanto, tal como bem deixou considerado o Ilustre Titular do inquérito, não só a versão dos factos apresentada pelo arguido se apesenta com razoável credibilidade, mas também não foi posta em causa por qualquer outra divergente.
Assim, e reiterando aqui a factualidade apurada e contida no douto despacho de fls. 180 e ss., as doutas considerações ali constantes pelo seu Ilustre subscritor, com as quais estamos inteiramente de acordo e aqui damos por inteiramente reproduzidas para todos os efeitos legais, sem necessidade de mais considerandos, entendemos e assim concluímos, que a conduta do arguido D…, aqui apurada, não é susceptível de censura penal.
Assim sendo, analisada a prova recolhida e elaborando um juízo de prognose, constata-se que a renovação da mesma em sede de audiência de julgamento não se apresente como susceptível de redundar numa provável condenação do arguido, quer quanto ao crime de burla, quer quanto ao crime de falsidade de depoimento ou declaração, ou de qualquer outro ilícito criminal, pelo que, o Tribunal reafirma ter a plena convicção de que, uma vez submetido a julgamento, lhe não seria aplicada qualquer pena ou medida de segurança, razão pela qual se decide, ao abrigo do disposto no art. 308º, do CPP, não pronunciar o arguido, D…, devidamente identificado nos autos (fls. 133), e, consequentemente, determinar o arquivamento dos mesmos.
Transitada esta decisão, cessa a medida coactiva, a que o arguido se encontra sujeito (TIR), conforme Termo de fls. 131.
Fixo a taxa de justiça em 2 (duas) UC’s, a cargo de cada um dos Assistentes, levando-se em conta o já pago.”

2.2. Matéria de Direito
É objecto do presente recurso a decisão instrutória que não pronunciou o arguido D… pela prática dos crimes de burla e falsidade de depoimento ou declaração. De acordo com as conclusões do recurso e resposta do MP (suscitando a questão prévia da ilegitimidade dos assistentes), estão para apreciar duas questões: (i) ilegitimidade dos recorrentes para se constituírem assistentes quanto ao crime p. e p. no art. 359º do C.P e, nessa qualidade, interporem recurso nesta parte; (ii) existência de indícios suficientes da prática dos crimes de falsidade de depoimento ou declaração e burla.
Apreciaremos cada uma das questões suscitadas.
(i) Ilegitimidade dos recorrentes para se constituírem assistentes relativamente ao crime de falsidade de depoimento ou declaração, previsto no art. 359º do CP. A “questão prévia” da ilegitimidade dos recorrentes para se constituírem assistentes relativamente ao crime p. e p. no art. 359º do C.P e, nessa qualidade, interporem recurso (nesta parte), foi suscitada pelo MP junto do tribunal de 1ª instância, por entender que os mesmos não são titulares do bem jurídico protegido pela respectiva incriminação.
De acordo com o disposto no art. 68º, 1 do C. Proc. Penal, só têm legitimidade para se constituir assistentes em processo penal (“só podem constituir-se assistentes”) os ofendidos, considerando-se como tais “os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”.
No tipo de ilícito em causa, o bem jurídico protegido é a “realização ou administração da justiça”, como claramente decorre da epígrafe do Capítulo III, onde está inserido este art. 359º (“Dos crimes contra a realização da justiça”) e do recorte dos elementos do tipo, não exigindo a intenção de causar prejuízo a terceiros. Na verdade, são elementos objectivos do tipo previsto no art. 359º do CP a prestação de falsas declarações, em depoimento de parte, relativamente a factos sobre os quais deve depor, depois de ter prestado juramento e de ter sido advertido das consequências a que se expõe com a prestação de depoimento falso. Não se exige assim (contrariamente ao que ocorre com a falsificação ou contrafacção de documento) a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado (art. 256º, 1 do CP). O crime em causa “configura um crime de mera actividade, pois o ilícito esgota-se precisamente na efectivação da conduta proibida: a prestação do depoimento falso, não exigindo a lei qualquer resultado decorrente dessa conduta e dela autonomizável (…)” – cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, 2001, Parte Especial, Tomo III, pág. 402.
Daí que, como bem refere o MP junto do tribunal recorrido, não seja aplicável ao crime previsto no art. 359º, 1 do CP o entendimento seguido no acórdão do STJ n.º 1/2003, DR 1ª Série, de 27-02-2003, fixando jurisprudência nos seguintes termos: “No procedimento criminal pelo crime de falsificação de documento, previsto e punido pela alínea a) do n.º 1 do art. 256º do Código Penal, a pessoa cujo prejuízo seja visado pelo agente tem legitimidade para se constituir assistente.”.
Contrariamente ao tipo de ilícito p. e p. no art. 359º do CP, em causa nos autos, no crime previsto no art. 256º, 1 do CP (referido no citado acórdão do STJ) a intenção de causar prejuízo é elemento do tipo e, por isso, os interesses da pessoa visada se incluem também no âmbito de protecção da norma incriminatória. Já no caso da falsidade de depoimento ou declaração, os interesses da “contra-parte” no processo onde é prestado o depoimento falso são totalmente irrelevantes para o recorte do tipo, o que demonstra com clareza que tais interesses não estão incluídos no âmbito de protecção da norma.
Tanto basta para concluirmos que os ora recorrentes – autores na acção cível onde (na sua óptica) terá sido cometido o crime de falsidade de depoimento – não são titulares dos interesses especialmente protegidos pela norma incriminatória e, nessa medida e nos termos do art. 68º do CPP, não têm legitimidade para se constituir assistentes nos autos, relativamente ao crime previsto e punido pelo art. 359º, 1 do CP.
Por outro lado, e de acordo com o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, expresso no Acórdão de 31 de Janeiro de 2002, proc. n.º 453/01, citado por MAIA GONÇALVES, Código Processo Penal anotado, 13ª Edição, 2002, página 225, “o despacho que admitiu a intervenção do assistente não faz caso julgado formal sobre a legitimidade do mesmo”.
Tal entendimento foi seguido (entre muitos outros) no acórdão da Relação de Coimbra, de 30-11-2011, proferido no processo 15/09.3TASBG.C1, referindo que as “decisões genéricas declarando a legitimidade não têm valor de caso julgado formal, podendo tal questão ser reapreciada até final”.
No presente caso, o despacho que admitiu os ora recorrentes como assistentes nos autos limitou-se, quanto à legitimidade, a uma decisão genérica: “Porque têm legitimidade, requereram em tempo (…)” – cfr. fls. 244.
Assim, e de acordo com o entendimento acima exposto, esse despacho não tem valor de caso julgado formal. Tal implica que os requerentes B… e C… não possam ser admitidos a intervir como assistentes nos autos, relativamente ao crime previsto no art. 359º, 1 do CPP, por falta de legitimidade.
A falta da qualidade de assistentes relativamente ao crime previsto no art. 359º, 1 do CP implica a impossibilidade de os mesmos requererem a abertura da instrução (cfr. art. 287º, al. b) do CPP) e implica ainda a falta de legitimidade para, nessa parte, interporem recurso da decisão de não pronúncia (art. 401º, 1, b) do CPP).
Deste modo, e relativamente à não pronúncia do arguido pelo crime previsto no art. 359º, 1 do CP, o recurso deve ser rejeitado, por ilegitimidade dos recorrentes.
(ii) Indícios suficientes da prática pelo arguido de um crime de burla.
Relativamente ao crime de burla, entendem os recorrentes que os autos contêm indícios bastantes para a pronúncia do arguido pela prática do referido crime.
Os factos descritos no requerimento para abertura de instrução que levaram os (ora) recorrentes a outorgar a escritura de compra e venda em causa, foram essencialmente os seguintes: a falsa qualidade do arguido como legal representante de uma sociedade inexistente (“E…, Lda.”) determinou os assistentes a aceitar dois cheques sem provisão, convencidos do contrário, causando-lhes assim um prejuízo de valor consideravelmente elevado (€ 43.500,00).
No artigo 70º do seu requerimento para abertura de instrução, os assistentes evidenciam o engano provocado pelo arguido ao ter agido como legal representante de uma sociedade inexistente. Contudo, explicitam ainda que aceitaram dois cheques emitidos por F… (no valor global de 63.500,00 euros), entregues pelo arguido para pagamento de parte do valor dos imóveis vendidos, “na convicção de que os mesmos teriam provisão, como lhes foi expressamente garantido pelo denunciado E….” (artigo 14 do mesmo requerimento).
O artigo 217º do C. Penal delimita a acção típica da burla nos seguintes termos:
“Quem, com a finalidade de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com a pena de (…)”
É assim elemento do tipo da burla (além de outros que não estão aqui em causa), o erro ou engano astuciosamente provocado sobre factos, determinando a vítima à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial (art. 217º do CP).
Exige-se pois que haja um erro ou engano astuciosamente provocado pelo agente e que esse erro seja a causa da prática do acto prejudicial. Quer isto dizer que não basta um simples erro, decorrente de diversas circunstâncias da vida comercial. O erro deve ser astuciosamente provocado, isto é, o agente deve, através de artifício ou meio enganatório com algum ardil ou manha, induzir a vítima em erro (ou engano).
Ora, o engano que os recorrentes alegam ter sofrido traduziu-se, bem vistas as coisas, em terem acreditado que os cheques que lhes foram entregues (pelo arguido) para pagamento dos imóveis tinham provisão e foi efectivamente a falta de provisão dos cheques a causa do seu prejuízo patrimonial (conclusão c)).

Ora, nenhum dos alegados erros ou enganos se reveste da qualidade típica, ou seja, nenhum deles pode ser qualificado como engano astuciosamente provocado pelo agente, determinante da prática do acto causador do prejuízo.
Com efeito, a alegada invocação de que o arguido assumiu a qualidade de legal representante da Sociedade Comercial “F…, Lda.”, a qual não existia (com essa exacta denominação), em nada contribuiu para o engano. Quer a sociedade promitente-compradora fosse “F…, Lda”, ou “G…, Lda”, nada se alterava no desenvolvimento dos factos alegados pelo recorrente.
Em rigor, não foi essa troca de nomes da sociedade a causadora de qualquer engano ou prejuízo, tanto mais que o contrato de compra e venda dos imóveis foi celebrado com as pessoas que a sociedade (que figurava no contrato promessa) indicou ao promitente vendedor. Não houve portanto (na referida troca de nomes da sociedade de que o arguido era legal representante) qualquer influência na formação da convicção do recorrente (de outorgar no contrato de compra e venda).
Assim, o facto de o arguido se ter assumido como legal representante de uma sociedade que, na verdade, com aquela denominação social, não existia (embora existisse uma sociedade de que o arguido era legal representante com o NIF indicado e denominada “G…”, como sede no local indicado), não é indício suficiente da existência de um engano astuciosamente provocado, capaz de justificar a pronúncia do arguido pela prática do crime de burla.
E os assistentes também não têm razão relativamente aos cheques sem provisão entregues pelo arguido. Efectivamente, os recorrentes receberam dois cheques, no montante de € 31.750,00 cada, emitidos por F…, entregues pelo arguido para pagamento de parte do preço da venda de dois imóveis. Alegam no entanto que só aceitaram os cheques, na convicção de que os mesmos tinham provisão, como lhes foi expressamente garantido pelo arguido.
Contudo, das vicissitudes descritas no processo, resultam indícios muito claros de que não terá sido apenas por isso, pois tinham também acordado fazer constar da escritura pública um valor inferior ao valor real e os cheques em causa destinavam-se a pagar a parte do preço que não constava da escritura pública. Deste modo, desligava-se o recebimento da quantia de 63.500,00 euros de qualquer pagamento feito pelos compradores dos prédios, ocultando desse modo a prática do crime de fraude fiscal, previsto no art. 103º, 1, al. b) do RGIT, cometido na ocasião da celebração do contrato de compra e venda (a que os ora recorrentes eufemísticamente chamam de “vantajoso em termos fiscais”).
Ora, nas relações entre recorrentes (na qualidade de vendedores de um imóvel) e arguido (na posição de detentor de uma posição contratual que cedeu a terceiros), a entrega de dois cheques (de que o arguido era portador, mas emitidos por outra pessoa) para pagamento do preço, com a indicação de os mesmos tinham provisão, não é um engano astuciosamente provocado.
A declaração de que os cheques tinham provisão não foi acompanhada de qualquer artifício especial que pudesse induzir os assistentes em erro (salvo as circunstâncias acima referidas, quanto ao interesse do promitente vendedor em querer enganar o Estado e, portanto, sujeitar-se a aceitar, via endosso, cheques emitidos por pessoas que não conhecia).
Em boa verdade, os assistentes aceitaram os cheques emitidos por um terceiro porque assim o entenderam (quiseram), porque confiaram no arguido e porque estavam interessados em camuflar a verdadeira origem da obrigação que os mesmos pretendiam cumprir.
A confiança que o vendedor teve na palavra do arguido e na validade do cheque como meio de pagamento é a que decorre da vida normal do giro comercial, onde são normalmente entregues cheques para pagamento e, muitos deles, são devolvidos por falta de provisão. Não se pode por isso transformar a entrega de dois cheques sem provisão num engano astucioso. Afinal, a crença de que os cheques são meios de pagamento válido decorre da fé associada a tais títulos de crédito (e não do engano provocado pelo agente).
Daí que o recurso deva ser julgado improcedente, nesta parte, uma vez que os factos constantes dos autos não permitem um juízo positivo sobre a existência de indícios suficientes da prática, pelo arguido, do tipo de ilícito da burla p. e p. pelo art. 217 do CP – artigos 308º, n.º 1 e 2 e 283º, 2 do CPP.
3. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam:
a) Rejeitar o recurso relativamente ao crime de falsidade de depoimento ou declaração, p. e p. no artigo 359º, 1 do Código Penal, por falta de legitimidade dos recorrentes;
b) Negar provimento ao recurso relativamente ao crime de burla.
Custas pelos recorrentes, fixando a taxa de justiça em 5 UC.

Porto, 09/07/2014
Élia São Pedro
Donas Botto