Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
14/22.0T8VLC.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DA LUZ SEABRA
Descritores: ACÇÃO DE DEMARCAÇÃO
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
CAUSA DE PEDIR COMPLEXA
Nº do Documento: RP2023062714/22.0T8VLC.P1
Data do Acordão: 06/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A ineptidão da petição inicial, não obstante ser de conhecimento oficioso, tem de ser conhecida e decidida até que seja proferido o despacho saneador. Ultrapassado este, fica precludido o seu conhecimento, nomeadamente em sede de recurso de apelação.
II - A contradição entre a fundamentação e a decisão não se confunde com uma eventual discordância entre a fundamentação jurídica invocada pelo juiz no acto decisório e a fundamentação de facto/direito defendida pelo apelante. Essa discordância pode conduzir apenas e só à verificação de um eventual erro de julgamento (de facto ou de direito), que conduz à alteração ou revogação do acto decisório e nunca à sua nulidade.
III - A acção de demarcação supõe uma causa de pedir complexa formada pelos seguintes elementos: a) existência de prédios confinantes; b) pertencentes a proprietários distintos; c) incerteza, controvérsia ou desconhecimento sobre a respectiva linha divisória.
IV - Assim, ao contrário do que sucede na acção de reivindicação, as acções de demarcação não têm por objecto o reconhecimento do domínio, mas tão só a sua delimitação, pressupondo aquele como indiscutido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 14/22.0.T8VLC.P1- APELAÇÃO
Origem: Juizo de Competência Genérica de Vale de Cambra
Recorrentes: AA
BB
Recorridos: CC
DD
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Sumário (elaborado pela Relatora):
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I. RELATÓRIO:
1. CC e mulher DD intentaram ação declarativa de demarcação, em processo comum, contra AA e mulher BB peticionando que sejam os Autores (na qualidade de proprietários do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ... da freguesia ...) e os Réus (na qualidade de proprietários do prédio rustico inscrito na matriz sob o artigo ... da freguesia ...) obrigados a concorrer à demarcação das estremas dos respetivos prédios confinantes, fazendo-se a mesma pela linha do muro antigo em pedra e pela linha da pedra/esteiro em louça de cor preta que se encontra para lá da figueira.
Como fundamento da referida pretensão, alegaram em síntese que, os prédios dos Autores inscritos na matriz sob os artigos ... e ... fazem fronteira, a norte, com o prédio dos Réus, sendo que a confrontação entre o prédio dos Autores inscrito na matriz sob o artigo ... e o prédio dos Réus inscrito na matriz sob o artigo ... corresponde a um muro antigo feito em pedra com mais de 50 anos, assim como a confrontação entre o prédio dos Autores inscrito na matriz sob o artigo ... e o prédio dos Réus inscrito na matriz sob o artigo ... corresponde a esse muro antigo feito em pedra, que se prolonga até ao caminho a poente.
Porém, esse muro antigo encontra-se, atualmente, aterrado na estrema noroeste do prédio dos Autores inscrito na matriz sob o artigo ..., porquanto, em data que se estima ter ocorrido há 25 (vinte e cinco) anos atrás, depois de regressarem do Brasil, onde estiveram emigrados, EE e mulher FF pediram a GG e a HH que lhes permitissem usar uma pequena parcela de terreno (sensivelmente 2 metros para cada lado, num total de 4 metros) a fim de aí poder parar uma carrinha, os quais aceitaram, mas como o terreno de GG (artigo ..., a sul) era desnivelado relativamente ao terreno de HH (artigo ..., a norte) houve, primeiro, necessidade de proceder a aterro, para o elevar/nivelar e, em consequência do aterro/nivelamento, o muro em pedra que demarcava as estremas foi soterrado, não sendo, hodiernamente, visível.
Mais alegaram que o aterro que foi efetuado no prédio que hoje pertence aos Autores teve, unicamente, o propósito de nivelar e segurar as terras, de forma a possibilitar que EE ali pudesse circular/aparcar com o seu veículo automóvel, nunca o propósito de demarcar os terrenos, tanto que, à data do aterro/nivelamento, ali foi colocada por EE, a pedido do anterior proprietário do agora terreno do Autores, uma pedra/esteiro em louça de cor preta, essa, sim, com a finalidade de demarcar/delimitar os terrenos.
Por ação da passagem do tempo e da força e da orientação das árvores que, entretanto, cresceram em cima, o próprio muro antigo deslizou para sul, e devido ao nivelamento dos terrenos e aterro das estremas, não é possível, a olho nu, atualmente, precisar onde termina o terreno dos Autores e onde começa o terreno dos Réus, não sendo o muro antigo em pedra visível, nem existindo um portão, nem tão pouco uma vedação a demarcar o limite do terreno dos Autores e dos Réus, apenas existindo a pedra/esteiro em louça de cor preta que foi colocada naquele lugar, a mando do antigo proprietário com a finalidade de demarcar os terrenos e a Figueira que foi plantada na estrema do terreno dos Autores.
Concluiram que, as estremas do prédio inscrito sob o artigo ... e as estremas do prédio inscrito sob o artigo ... não estão delimitadas, existindo – em consequência da ação de aterro/nivelamento empreendido por EE – divergências ao nível da linha que determina essas estremas, pretendendo os Autores que os Réus concorram para a demarcação dessas extremas, pondo fim aos conflitos entre as partes.

2. Os Réus/Apelados deduziram contestação, impugnando os factos alegados pelos Autores e suscitando a excepção da ilegitimidade passiva por o imóvel pertencer á herança jacente de II, bem como alegaram que a demarcação entre este prédio e os que com ele confinam a sul, encontra-se clara e inequivocamente definida, por muro em pedra, há mais de 20, 30, 40 ou 50 anos, sem qualquer alteração, sendo perfeitamente visível a existência de um muro de vedação e suporte de terras ao longo de toda a linha de contiguidade entre ambos, delimitação que se mostra conforme com a posse que vem sendo exercida por AA. e RR., desde logo porque estes limpam regularmente todo o seu terreno mas nunca limparam qualquer troço para além do muro existente, e onde se encontra a figueira, como se apresenta consonante com os respectivos títulos.

3. Realizada audiência prévia, foi proferido despacho saneador, no âmbito do qual foi julgada improcedente a excepção da ilegitimidade passiva, foi fixado o objecto do litígio, bem como os temas de prova, que não foi objecto de reclamação.

4. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, nos seguintes termos:
“Nestes termos, tudo visto e ponderado, decido:

1. Reconhecer aos Autores o direito de obrigarem os Réus a concorrer para a delimitação dos prédios identificados em 2. e 4..
2. Determinar que a demarcação da estrema entre o prédio dos Autores (identificado no ponto 2.) e o prédio da Ré (identificado no ponto 4.) a partir do muro antigo em pedra e no sentido nascente/poente se faça por uma linha com início no muro de pedra antigo (onde hoje se encontra pedra/esteio de louça preta) e fim na estrada a 2,15m do ponto mais a sul da pedra ali colocada (fotografia de folhas 105), devendo a linha divisória ser assinalada no solo pela colocação de dois marcos, um em cada extremidade da linha.
Custas a cargo dos Autores e dos Réus na proporção de 1/3 para os Autores e 2/3 para os Réus [cfr. n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º do CPC].
Registe. Notifique.”

5. Inconformados, os RR/Apelantes interpuseram recurso de apelação da sentença final, formulando as seguintes
CONCLUSÕES
1. Ao decidir nos termos em que o fez, a douta sentença a quo cometeu erros de julgamento, quer quanto à matéria de facto quer quanto à aplicação do direito, em razão do que o presente recurso tem como objeto matéria de direito, designadamente no que refere ao errado enquadramento jurídico da ação, bem como erro notório na apreciação da prova e, ainda, na errada interpretação e valoração jurídica, mas também matéria de facto inserta na referida sentença, e, aí, a reapreciação da prova gravada.
2. Desde logo, os AA. invocam uma pretensa falta de demarcação dos seus terrenos relativamente ao dos RR. mas, simultaneamente, pretendem que essa demarcação se faça por um “muro antigo feito em pedra, com mais de 50 anos (…) que se prolonga até ao caminho a poente” (Cfr. artºs 11º e 12º da, aliás douta, p.i.)., com o que reconhecem não estarmos numa situação de confins incertos ou duvidosos.
3. O reconhecimento dessa linha de contiguidade dos prédios foi especificadamente aceite pelos RR. na sua contestação (artºs 22º e 23º), pelo que, atento o disposto no artº 465º, nº 2, do Cód. de Proc. Civil, não mais pode ser retirado.
4.De qualquer modo, diz-nos as regras da experiência que um muro, de pedras sobrepostas, sem cimento ou argamassa que as consolide, que, ainda por cima, separa terrenos que estão a cotas diferentes, que permanece inalterado há 35 anos (como resulta dos “Factos Provados” sob os nºs 15 a 19), configura a marcação dos limites dos prédios que divide.
5. Ao afirmarem que há terreno seu para lá desse muro, e ao pretenderem que os RR. sejam obrigados a abrir mão dessa parcela de terreno, os AA. formulam pretensão típica da ação de reivindicação.
6. A desconformidade entre os factos relatados no articulado inicial e o pedido, ou seja, entre a causa de pedir e o pedido, dá lugar à ineptidão da p. i. e, consequentemente, à nulidade de todo o processo, com a consequente absolvição dos RR. da instância (artºs 186º, nºs 1 e 2, al. b), 196º e 278º, nº 1, al. b), todos do Cód. de Proc. Civil).
7. Para além disso, e sem conceder, a sentença a quo julgou incorretamente diversos pontos de facto, valorando erradamente os meios probatórios, que impõem decisão diversa, e, desde logo, no que refere ao facto dos prédios serem delimitados por um muro de pedra antigo que vem de nascente para poente, que assim demarca as propriedades de AA. e RR. ao longo de toda a sua extensão, servindo também para suportar as terras do prédio destes, já que a propriedade inscrita na matriz sob o artº rústico ... está a uma cota mais elevada do que aquela a que se situa o prédio dos AA., matricialmente inscrito sob o artº ..., mas que não é interrompido em lado algum, apresentando apenas, em vários locais ao longo da sua extensão, uma espécie de nodosidade ou irregularidade.
8. Trata-se de um muro de pedras soltas, sobrepostas, muito irregulares em termos de dimensão e formato, existente há mais de 50 anos, como os AA. bem referem no artº 11º da p.i., cuja falta de solidez, o decurso dos anos, eventuais deslizamentos ou reparações que possam ter ocorrido ou sido feitas, ocasionaram que apresente um nódulo ou cotovelo.
9. Com base nisso, a sentença faz uma descrição absolutamente fantasiosa da situação, mencionando que o dito muro “é interrompido antes do limite poente com a estrada”, falando em “duas paredes” e até que “o vértice do cotovelo aponta no sentido do interior do prédio”, chegando até a afirmar que “a parede sul é paralela ao muro de pedras soltas (…) e a parede sul/norte é oblíqua ao muro de pedras soltas”. (fls. 24, 3º §).
10. O tribunal a quo dá como provada factualidade essencial que não resulta dos documentos, ninguém disse nem ninguém falou – e de modo algum corresponde à verdade!
11. Não existem duas paredes, e muito menos paralelas.
12. Assim, e desde logo, os ptºs 9 a 12 dos “Factos Provados” devem ser eliminados por não constituírem matéria alegada ou controvertida, ou, seja como for, de modo algum podem constituir factos assentes, por não comprovados com um mínimo de seriedade e consistência, passando, por conseguinte, a integrar os “Factos não Provados”.
13. Ao determinar que a demarcação da estrema entre os prédios de AA. e RR. Se faça nos termos indicados no nº 2 (“IV Decisão”), que segue o alinhamento do pretenso “muro antigo”, e, simultaneamente, dá como não provado que “O muro de pedra antigo estava localizado entre a pedra/esteio em louça de cor preta e a estrada a poente ficando a área identificada em 20. para sul” (alínea d), “Factos não Provados), a sentença incorre em contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, dado tratar-se de posições antagónicas, que se excluem mutuamente nem podem ser compreendidas em simultâneo, o que conduz à nulidade da sentença (artº 615º, nº 1, al. c), do Cód. de Proc. Civil).
14. Não resultando de quaisquer documentos juntos aos autos nem ninguém o tendo afirmado, não é possível dar como provado que o caminho de terra batida existente no prédio dos RR., matricialmente inscrito sob o artº .../..., que se inicia na estrada, a poente, e segue para nascente, se localiza junto à confrontação sul do mesmo.
15. Até porque entre esse caminho (presentemente apenas de servidão para prédios dos RR.), e a propriedade a sul, pertença dos AA., há um troço de terreno, de largura variável, mas sempre com alguns (poucos) metros, motivo pelo qual do ptº 13. dos “Factos Provados” deve apenas constar que “O prédio identificado em 4. está onerado com um caminho de terra batida que tem início na estrada sita a poente e segue para nascente.”
16. A factualidade descrita sob os ptºs 16 a 19 dos “Factos Provados” apresenta-se pouco verosímil, designadamente na parte em que alega que EE e mulher pediram para utilizar uma parcela do prédio identificado em 2., para melhor poder manobrar os seus veículos, e aí construíram uma parede, para só depois terem pedido ao proprietário do prédio indicado em 4. para também o aterrar de modo a nivelá-lo, uma vez que, ficando aquele a jusante deste, no sentido de que a cota inferior, a colocação de aterro, apenas nesse prédio, nunca lhes iria permitir estacionar ou manobrar veículos naquele espaço (dado que tinha a norte o terreno dos RR., em declive e na sua zona mais funda, o que impossibilitaria qualquer manobra).
17. Além de que, tendo todos afirmado que o aterro proveio do terreno onde o EE construiu uma garagem (ou anexo), é crível é que tenha sido todo transportado e depositado sensivelmente na mesma altura, até porque o muro que este terá tido necessidade de construir, segurou as terras de ambos os prédios, pelo que o aterro em ambos os prédios teve de ser depositado sensivelmente na mesma altura.
18. Razão pela qual os factos provados devem albergar a menção de que o EE e mulher pediram aos proprietários dos prédios identificados em 2. e 4. para nestes depositar aterro com o objectivo de poder manobrar os seus veículos.
19. O ptº 20 a sentença define uma pretensa área em litígio, que os próprios AA. Não cuidaram de identificar (cfr. p.i.) e cujos contornos assentam no alinhamento de um pretenso muro, que se comprovou não existir, além de que conflitua com o direito de propriedade dos AA., nem que seja por recurso à aquisição do direito por usucapião, pelo que deve ser eliminado.
20. Do mesmo modo que não se pode dar como provado que a figueira foi plantada há cerca de 15 anos quando, além do mais, a testemunha JJ, que na altura cuidava daquele terreno, afirmou que no ano de 1995/96 a figueira já lá estava plantada, ou seja, há, pelo menos 26 anos – menção essa que deve passar a constar dos factos provados.
21. De tudo resulta que os ptºs 16. a 25. dos “Factos Provados” carecem de explicitação quanto aos seus conteúdos e descrição, em consonância com a prova produzida e constante dos autos, nos termos seguintes:
16. Nessa altura, EE e mulher FF, proprietários do prédio sito após o caminho existente a poente dos prédios identificados em 2. e 4., pediram aos anteriores proprietários dos prédios identificados em 2. e 4. para utilizar a parcela dos referidos prédios com o objectivo de poder manobrar os seus veículos, e, por isso, aterraram os limites poente e nascente desses prédios por forma a que os mesmos ficassem ao mesmo nível do caminho, o que estes autorizaram.
17. Nessa sequência, EE construiu o muro para, dessa forma, segurar as terras.
18. Eliminada, por integrada na antecedente cláusula 16.
19. Passa a integrar os “Factos não Provados”, em consonância, também, com a perícia de escavação realizada.
20. Eliminado.
21. Na área identificada no ponto anterior, foi plantada uma figueira por EE há cerca de 26 anos.
22. Já no que refere aos ptºs 22 a 25 e 28 a 31 dos “Factos Provados”, importa consignar que os actos materiais de posse de AA. e RR. se circunscreveram aos limites físicos dos respectivos prédios, respeitando a delimitação existente, mormente a que é definida pelo muro que separa os prédios de AA. e RR., motivo pelo qual deve ser retirada a ressalva inicial de que “Sem prejuízo da área identifica em 20.”
23. É o próprio A. marido que confessa que a situação dos imóveis e, designadamente, o dos RR., permanece inalterada desde, pelo menos, o ano de 2002, tendo as testemunhas KK eLL declarado, sem hesitação alguma, que o aterro foi lá colocado há cerca de 35 anos, tendo-se, a partir daí, mantido tudo inalterado, e que foi o HH, primeiro, e depois os RR. quem cuidou daquele imóvel, ou, nas palavras da R. BB, “toda a vida limpámos o monte até aquele limite. Também na zona da entrada.”
24. Razão pela qual a sentença reconhece que “… resulta claramente dos factos dados como provados que os prédios em causa foram alterados nas suas confrontações noroeste/sudoeste há cerca de 35 anos …”(2º § da pg.29) – (sublinhado nosso).~
25. A verdade, porém, é que “… não obstante a actual posse do Réu marido sobre parte da parcela em litígio (mais propriamente sobre a figueira) não podemos utilizar o critério da posse uma vez que ….”, e conclui que “Em face do exposto, improcede o critério da posse.” (sublinhados nosso).
26. Criando assim um conceito de usucapião não operante que não tem acolhimento na lei, sabido que é que o instituto da usucapião, verificadas que sejam determinados pressupostos de tempo e posse, converte certas situações de facto em verdadeiro direito, sobrepondo-se inclusivamente aos próprios vícios que hajam inquinado a posição do possuidor face ao bem possuído.
27. Não há, assim, fundamento no direito português para afirmar, como o faz a sentença sub judice, que o critério da posse, invocado pelos RR., não é passível de se utilizado, em razão do que deve a estes ser reconhecido o direito de propriedade, adquirido por usucapião, sobre a totalidade do prédio identificado em 4., incluindo a área identificada em 20.
28. O tribunal ordenou, contra a vontade expressa dos RR., a realização de uma perícia, consistente na escavação do terreno destes a fim de determinar a existência do muro propalado pelos AA., por a considerar absolutamente indispensável ao apuramento dos factos invocados pelos Autores, mas, realizada esta, não se conformou com os factos assim comprovados – que verificaram a existência de pedras soltas, dispersas, sem qualquer critério de ordenação ou sobreposição, mas, nunca, nenhum alinhamento que indicasse minimamente a existência de um muro.
29. Ora, a realização de uma diligência de prova, que os AA. consideravam decisiva e o tribunal considerou absolutamente indispensável, não pode ver o seu resultado ignorado e só pode ser credivelmente contrariada com base em razões consistentes, ponderosas e determinantes.
30. E muito menos o tribunal pode, como o fez, decidir em oposição a quanto de tal diligência resulta, decidindo por uma demarcação com base no alinhamento de um muro que, afinal, se comprova não ter existido!
31. Do mesmo modo que não pode dar como provado que “Com o aterro identificado no ponto anterior, o muro antigo que delimitava os prédios identificados em 2. e 4. na estrema noroeste/sudoeste foi aterrado” (ptº 19.”Factos Provados”), matéria esta que, falecendo a tão insistentemente propalada existência do muro, deve passar a integrar o elenco dos “Factos não Provados”.
32. Decidindo nos termos em que o fez, a sentença de que se recorre violou, entre outros, o disposto nos artºs 465º, nº 2, 186º, nºs 1 e 2, al. b), 196º, 278º, nº 1, al. b), e 411º, todos do Cód. de Proc. Civil, bem como nos artºs 1287º e seg.s, e 1316º e seg.s, ambos do Cód. Civil.
33. De quanto vai dito resulta que a Meritíssima Juíza a quo fez incorreta interpretação dos factos e errada aplicação da lei, mormente ao não respeitar os princípios vertidos nas normas violadas, e, desde logo, ao não reconhecer que a linha de contiguidade entre os prédios de AA. e RR. mencionada nos artºs 11º e 12º da p.i., e especificadamente aceite pelos RR. nos artºs 22º e 23º da contestação, é facto que não mais pode ser retirado, atento o disposto no artº 465º, nº 2, do Cód. de Proc. Civil, com as devidas e legais consequências, o que configura contradição entre a causa de pedir e o pedido, que dá lugar à ineptidão da petição inicial e, consequentemente, à nulidade de todo o processo, com a consequente absolvição dos RR. da instância.
34. O princípio do inquisitório impõe ao Juiz o dever jurídico de ordenar as diligências necessárias ao apuramento da verdade, mas, simultaneamente, o dever de preservar o adequado equilíbrio de interesses e a equidistância e imparcialidade bastantes para que decida com objetividade e tendo em conta as diligências que determinou, sob pena de violação da dita norma.
35. Ou seja, e no caso concreto dos autos, se o tribunal considerou que a escavação do terreno com o intuito de encontrar o muro que, alegadamente, havia sido aterrado, era absolutamente essencial ao apuramento da verdade, não pode, depois, decidir em oposição a quanto de tal diligência resulta, ainda por cima sem justificação ou fundamento algum (determinando a demarcação com base num muro que, afinal … não existe!!!...).
36. A sentença a quo, reconhecendo embora a “actual posse do Réu marido sobre parte da parcela em litígio (mais propriamente sobre a figueira)”, isto é, reconhecendo uma situação de posse, que se prolonga durante 35 anos (“resulta claramente dos factos dados como provados que os prédios em causa foram alterados nas suas confrontações noroeste/sudoeste há cerca de 35 anos”), não reconhece, porém, o consequente direito, alegando que “… não podemos utilizar o critério da posse…”, assim afrontando as normas vertidas nos artºs 1287º e seg.s, e 1316º e seg.s, ambos do Cód. Civil, nos termos dos quais a aquisição do direito correspondente ao exercício depende apenas da existência de posse e do decurso de certo lapso de tempo, sobrepondo-se aos eventuais vícios existentes.
Concluiu, pedindo que seja:
a) Declarada a nulidade de todo o processo, com a consequente absolvição dos RR. da instância, por contradição entre a causa de pedir e o pedido, ou, quando assim se não entenda,
b) Declarada a nulidade da sentença, por contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, ou, ainda subsidiariamente,
c) A matéria de facto seja alterada, em conformidade com a prova produzida e nos termos explicitados na presente apelação, e
d) Seja reconhecido aos RR. o direito de propriedade, adquirido por usucapião, sobre a totalidade do prédio identificado em 4., incluindo a área identificada em 20.

6. Foram apresentadas contra-alegações, pugnando pela confirmação do julgado.

7. Foram observados os vistos legais.
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II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635º, nº 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
Por outro lado, ainda, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o tribunal de recurso não pode conhecer de questões não antes suscitadas pelas partes perante o Tribunal de 1ª instância, sendo que a instância recursiva, tal como configurada no nosso sistema de recursos, não se destina à prolação de novas decisões, mas à reapreciação pela instância hierarquicamente superior das decisões proferidas pelas instâncias. (1)
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As questões a decidir no presente recurso são as seguintes:
1ª- Nulidade processual por ineptidão da petição inicial, por contradição entre a causa de pedir e o pedido;
2ª- Nulidade da sentença prevista no art. 615º nº 1 al. c) do CPC.
3ª- Impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
4ª-Demarcação dos prédios de Apelantes e Apelados.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
1. O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
1. Por escritura pública denominada “Doação”, datada de 7 de Abril de 2005, outorgada no Cartório Notarial de Vale de Cambra, em que foram identificados como primeiros outorgantes GG e mulher MM, casados na comunhão geral de bens e como segundo outorgante CC, solteiro, maior, os primeiros declararam:
“Que, pela presente escritura, doam ao segundo outorgante, situado no ..., freguesia ..., concelho de Vale de Cambra, a confrontar do norte com HH, do nascente com NN, do sul com OO e do poente com caminho, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo ..., com a área de quatrocentos e vinte metros quadrados (…).
Disse o segundo outorgante que aceita o presente contrato nos termos exarados. (…)”. 2. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Vale de Cambra sob o nº ... da freguesia ..., o prédio rústico, situado em ..., composto de terreno de cultura com 420m2, a confrontar do norte com HH, do sul com OO, do nascente com NN e do poente com caminho, inscrito na matriz sob o artigo ....
3. Sobre a descrição identificada em 1., incide a seguinte inscrição:
AP. ... de 2007/02/05 – Aquisição a favor de CC e mulher DD, casados na comunhão geral de bens, por doação de GG casado com MM na comunhão geral de bens.
4. Encontra-se inscrito na matriz predial rústica um prédio sito em ..., freguesia ..., composto por terreno de cultura e pinhal com 1.300m2, a confrontar do norte com NN, do sul com GG, do nascente com PP e do poente com caminho, inscrito sob o artigo ..., omisso na Conservatória do Registo Predial de Vale de Cambra.
5. O titular do rendimento do prédio identificado no ponto anterior é a herança aberta por óbito de II.
6. II e HH, ambos já falecidos, foram casados entre si e a Ré BB é a única interessada nas heranças tendo-as aceitado.
7. Os prédios identificados em 2. e 4. são confinantes pelo lado norte/sul e ambos confinam com a estrada a poente que há 35 anos atrás era um caminho estreito com 2 metros de largura.
8. Os prédios identificados em 2. e 4. estão separados na parte mais a poente por um muro de pedras soltas que se inicia no prédio inscrito na matriz sob o artigo ..., também propriedade dos Autores.
9. Actualmente, o muro identificado em 8., no sentido nasceste/poente é interrompido antes do limite poente com a estrada.
10. Após a interrupção, existem duas paredes que fazem um cotovelo sendo que o vértice do cotovelo aponta no sentido do interior do prédio identificado em 2..
11. A parede sul é paralela ao muro de pedras soltas identificado em 8. mas fica cerca de meio metro mais para sul e vai até à estrada sita a poente.
12. A parede sul/norte é oblíqua ao muro de pedras soltas identificado em 8.
13. O prédio identificado em 4., junto à confrontação sul, sempre foi composto por um caminho de terra batida que tem início na estrada sita a poente e segue para nascente.
14. Há 35 anos o caminho identificado no ponto anterior tinha apenas cerca de dois metros de largura em toda a sua extensão.
15. O prédio identificado em 2., há 35 anos era cerca de dois metros mais baixo que o caminho a poente e também era desnivelado em relação ao prédio identificado em 4..
16. Nessa altura, EE e mulher FF, proprietários do prédio sito após o caminho existente a poente dos prédios identificados em 2. e 4., pediram ao anterior proprietário do prédio identificado em 2. para utilizar uma parcela do referido prédio com o objectivo de poder manobrar os seus veículos e, para isso, aterrou o limite poente do prédio por forma a que o mesmo ficasse ao mesmo nível do caminho.
17. Nessa sequência, EE construiu as duas paredes identificadas em 10. para, dessa forma, segurar as terras.
18. A seguir, EE pediu autorização ao anterior proprietário do prédio identificado em 4. para aterrar o seu prédio por forma a nivelá-lo, o que HH autorizou.
19. Com o aterro identificado no ponto anterior, o muro antigo que delimitava os prédios identificados em 2. e 4. na estrema noroeste/sudoeste foi aterrado.
20. A área em litígio configura um triângulo que do lado norte entre o ponto em que o muro de pedras soltas é interrompido e o caminho a poente tem 5 metros, do lado sul entre o ponto em que o muro de pedras soltas é interrompido e o caminho a poente tem 6 metros e 17 cm e no poente tem 4 metros e 30 cm medidos desde o limite sul da pedra ali existente (conforme fotografia de folhas 105).
21. Na área identificada no ponto anterior, foi plantada uma figueira por EE há cerca de 15 anos.
22. Sem prejuízo da área identificada em 20., os Autores por si e antepossuidores cuidaram do prédio identificado em 2., limpando-o, desbastando-o, cultivando-o, colhendo os seus frutos e pagando os respectivos impostos.
23. À vista de toda a gente.
24. Sem oposição de ninguém.
25. Há mais de 20 anos, reportados à propositura da acção.
26. No dia 25 de Março de 2021, JJ, pai do Autor marido, a mando deste, colocou uma vedação pela linha da pedra/esteio em louça de cor preta e para lá da figueira, vedação essa retirada pelo Réu marido por entender que a linha divisória não é essa.
27. Foi instaurado processo crime contra JJ que correu termos na secção de Vale de Cambra do DIAP de Aveiro e que acabou arquivado.
28. Sem prejuízo da área identificada em 20., os Réus, por si e antepossuidores sempre cuidaram do prédio identificado em 4. e sempre nele entraram quando quiseram.
29. Sem oposição de quem quer que seja.
30. À vista de toda a gente.
31. Há mais de 40 anos, reportados à propositura da acção.
32. O Réu marido, após 2006 e até 25 de Março de 2021, podou a figueira que se encontra na área identificada em 20. e para que ficasse mais baixa e redonda, corto-a.

2. O Tribunal de 1ª instância julgou não provados os seguintes factos:
a)-EE e mulher FF há 25 anos pediram aos anteriores proprietários dos prédios identificados em 2. e 4. para utilizar uma parcela dos referidos prédios, sensivelmente 2 metros para cada lado, para aí poder parar uma carrinha.
b)- À data do aterro/nivelamento, EE, a pedido do anterior proprietário, colocou uma pedra/esteio em louça de cor preta para demarcar/delimitar os prédios identificados em 2. e 4..
c)-EE plantou a figueira na área identificada em 20. como agradecimento a GG pela permissão de utilização temporária da referida parcela e com a sua concordância.
d)-O muro de pedra antigo estava localizado entre a pedra/esteio em louça de cor preta e a estrada a poente ficando a área identificada em 20. para sul.
e)- O muro antigo, por força da passagem do tempo e da orientação das árvores que cresceram em cima, deslizou para sul.
f)- A figueira existente na área identificada em 20. foi plantada há 35/40 anos por HH, pai da Ré mulher.
g)-HH sempre colheu os frutos da figueira, tendo-a podado, derramado, regado, limpado e zelado pela sua conservação e frutificação.
h)- O Réu podava a figueira para impedir que os ramos propendessem para o prédio identificado em 1.
i)-O muro que delimita os prédios identificados em 2. e 4. não sofreu qualquer alteração nos últimos 40 anos.
j- Quando EE e FF construíram a garagem do outro lado do caminho e depositaram no prédio identificado em 4. grande parte do aterro da construção e algum no prédio identificado em 2. para o altearem, respeitaram o muro existente.
l)- Os Réus, por si e antepossuidores sempre entraram e usaram o prédio identificado em 4. em toda a sua extensão incluindo a área identificada em 20.
m)- Sem oposição de quem quer que seja.
n)- À vista de toda a gente.
o)-Há mais de 40 anos.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA.
1ªQuestão - Nulidade processual por ineptidão da petição inicial, por contradição entre a causa de pedir e o pedido
Sob as Conclusões 2. a 6. sustentam os Apelantes que os Apelados/AA invocam uma pretensa falta de demarcação dos seus terrenos relativamente aos dos Apelantes/RR mas simultaneamente pretendem que essa demarcação se faça por um “muro antigo feito em pedra, com mais de 50 anos (…) que se prolonga atá ao caminho a poente”, com o que reconhecem não estarmos numa situação de confins incertos ou duvidosos, tendo tal reconhecimento dessa linha de contiguidade dos prédios sido especificamente aceite pelos Apelantes/RR na sua contestação, pelo que, ao afirmarem os Apelados que há terreno seu para lá do muro e ao pretenderem que os RR sejam obrigados a abrir mão dessa parcela de terreno, os Apelados/AA formularam pretensão típica da ação de reivindicação, existindo desconformidade entre os factos relatados na petição inicial e o pedido, que dá lugar à ineptidão da petição inicial e, consequentemente à nulidade de todo o processo, com a consequente absolvição dos RR da instância, ao abrigo dos arts. 186º nº 1 e 2 al. b), 196º e 278º nº 1 al. b) do CPC.
Embora os Apelantes/RR tenham abordado de forma muito ligeira nos arts. 38º e 39º da contestação, que “a presente acção configura verdadeiramente uma acção de reivindicação de propriedade (os AA. reivindicam a propriedade sobre uma parcela de terreno dentro do muro de suporte e vedação de terreno dos RR.), verificando-se existir dissonância entre a exposição dos factos aduzidos na petição inicial e a pretensão jurídica formulada”, não invocaram expressamente a ineptidão da petição inicial e, sendo excepção de conhecimento oficioso ( art. 196º do CPC) o tribunal a quo não se pronunciou sobre qualquer ineptidão da petição inicial no despacho saneador proferido, no qual fixou como objecto de litígio “A definição dos limites entre os prédios inscritos na matriz sob os artigos ... e ... rústicos de ..., propriedade dos Autores, e o prédio rústico da Ré inscrito na matriz sob o artigo ... da freguesia ...”, levando aos temas de prova as questões relacionadas com a confinância dos prédios inscritos na matriz sob os artigos ... e ... rústicos de ..., propriedade dos Autores, e o prédio rústico da Ré inscrito na matriz sob o artigo ... da freguesia ..., a existência de um muro antigo feito em pedra que se prolonga até ao caminho a poente entre os prédios inscritos na matriz sob os artigos ... e ... e o prédio da Ré inscrito na matriz sob o artigo ... que serve de delimitação, entre outros, com o objectivo de proceder à demarcação dos prédios identificados nos autos, no pressuposto de haver litígio entre as partes quanto aos limites dos prédios confinantes.
Tal como os Apelantes invocaram em sede deste recurso, a ineptidão da petição inicial, nos casos em que o pedido esteja em contradição com a causa de pedir, conduz à nulidade de todo o processo, nos termos do art. 186º nº 1 e 2 al.b) do CPC e, essa nulidade principal pode ser conhecida oficiosamente, a não ser que deva considerar-se sanada, nos termos do art. 196º do CPC.
Porém, o tribunal a quo não conheceu oficiosamente dessa nulidade e, os Apelantes/RR não a arguiram, sendo que segundo o art. 198º nº 1 do CPC a nulidade a que se refere o art. 186º só pode ser arguida até à contestação ou neste articulado.
Ora o conhecimento dessa eventual nulidade a que se refere o art. 186º do CPC- ineptidão da petição inicial- tem, em regra, como limite o despacho saneador, porquanto é apreciada no despacho saneador, se antes o juiz a não houver apreciado e, só se não houver despacho saneador, pode conhecer-se dela até à sentença final, conforme impõe o art. 200º nº 2 do CPC.
“Neste contexto, a prolação do despacho saneador tem efeitos preclusivos quanto ao conhecimento das nulidades previstas nos arts. 186º e 193º, nº 1, significando isso que, proferido o despacho saneador, fica encerrada a hipóteses de o juiz suscitar aquelas nulidades”(2), que foi manifestamente o que ocorreu nestes autos.
Também José Lebre de Freitas e QQ reiteram que, “proferido o despacho saneador sem que a questão seja levantada, a ineptidão da petição inicial considera-se, desde que tenha sido observado o princípio do contraditório, suprida ou ultrapassada, entendendo-se que o réu, que não a arguiu, e o juiz, que dela oficiosamente não conheceu, compreenderam o sentido da petição inicial ( ac. Do STJ de 26.3.15, Lopes do Rego, www.dgsi.pt., proc. 6500/07).”(3)
Assim sendo, não tendo os Apelantes/RR arguido na contestação a nulidade do processo por ineptidão da petição inicial e, tendo sido proferido despacho saneador sem conhecimento oficioso da ineptidão da petição inicial (ineptidão que o tribunal claramente entende que não existe conforme se extrai da fundamentação da sentença recorrida, que embora a ela não se refira expressamente, concluiu que estamos perante uma ação de demarcação, verificando-se os requisitos legais necessários para tal) não mais se pode conhecer de tal excepção, considerando-se a mesma ultrapassada.
Por conseguinte, não se conhece deste segmento recursivo.

2ªQuestão- Nulidade da sentença prevista no art. 615º nº 1 al. c) do CPC
Sob a Conclusão 13 vieram os Apelantes suscitar a nulidade da sentença, prevista no art. 615º nº 1 al. c) do CPC, alegando que “Ao determinar que a demarcação da estrema entre os prédios de AA. e RR. Se faça nos termos indicados no nº 2 (“IV Decisão”), que segue o alinhamento do pretenso “muro antigo”, e, simultaneamente, dá como não provado que “O muro de pedra antigo estava localizado entre a pedra/esteio em louça de cor preta e a estrada a poente ficando a área identificada em 20. para sul” (alínea d), “Factos não Provados), a sentença incorre em contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, dado tratar-se de posições antagónicas, que se excluem mutuamente nem podem ser compreendidas em simultâneo.”
Se bem percebemos a argumentação, os Apelantes entendem que a decisão proferida quanto ao modo como deve ser efectuada a demarcação entre os prédios de Apelantes e Apelados estará em contradição insanável com o facto dado como não provado sob a alínea d).
Conforme se extrai da sentença recorrida o tribunal não logrou apurar, em toda a sua extensão, a localização exacta do muro, que delimitava os prédios confinantes, porque parte dele teria deixado de estar visível após o aterro lá efectuado e, lançando mão do critério estabelecido no art. 1354º CC determinou ele o modo como a demarcação deve ser feita, nos seguintes termos “Determinar que a demarcação da estrema entre o prédio dos Autores (identificado no ponto 2.) e o prédio da Ré (identificado no ponto 4.) a partir do muro antigo em pedra e no sentido nascente/poente se faça por uma linha com início no muro de pedra antigo (onde hoje se encontra pedra/esteio de louça preta) e fim na estrada a 2,15m do ponto mais a sul da pedra ali colocada (fotografia de folhas 105), devendo a linha divisória ser assinalada no solo pela colocação de dois marcos, um em cada extremidade da linha.”
Consta o seguinte da alínea d) dos factos não provados: “O muro de pedra antigo estava localizado entre a pedra/esteio em louça de cor preta e a estrada a poente ficando a área identificada em 20. para sul.”
A referida área identificada em 20 dos factos provados é “a área em litígio que configura um triângulo que do lado norte entre o ponto em que o muro de pedras soltas é interrompido e o caminho a poente tem 6 metros e 17 cm e no poente tem 4 metros e 30 cm medidos desde o limite sul da pedra ali existente”.
Como resulta evidente da articulação destes dois factos o tribunal considerou que existe um muro de pedra antigo mas que ele não é contínuo em toda a extensão dos prédios até à estrada a poente, estando interrompido a determinada altura, antes do limite poente com a estrada, só sendo visualizadas pedras soltas, porque com um aterro que lá foi feito o muro antigo que delimitava os prédios na estrema noroeste/sudoeste foi aterrado, devendo ser articulada toda a matéria relativa a tal muro que também foi dada como provada nos pontos 8 a 12 e, 19 dos factos provados para que essa matéria seja devidamente enquadrada.
Relativamente à mencionada pedra/esteio de louça preta, a sua existência e localização está mencionada nos pontos 20 e 26 dos factos provados, porém resulta das alíneas b) e d) dos factos não provados que o tribunal não deu como provado que essa pedra tenha sido colocada à data do aterro para demarcar/delimitar os prédios e que o tal muro antigo estivesse localizado entre essa pedra e a estrada.
Da articulação de todos esses factos podemos, com alguma segurança, afirmar que o tribunal a quo apesar de ter dado como não provado que o muro antigo estava localizado entre a pedra/esteio em louça de cor preta e a estrada a poente, não está impedido de determinar que a demarcação das extremas se faça por uma linha com início onde hoje se encontra a tal pedra, utilizando-a como um dos pontos de referência visíveis no local, tal como poderia ser uma árvore ou qualquer outro sinal físico, que permitem tornar o mais percetível possível a linha divisória que deve ser assinalada em sede de cumprimento da sentença.
Quando confrontado com a arguição desta nulidade, o próprio tribunal a quo afastou-a, esclarecendo o seguinte:
De facto, há um muro antigo que divide os prédios o que é aceite por ambas as partes mas esse muro, a determinada altura, é interrompido e o que o tribunal dá como não provado é a localização antiga do muro a partir do ponto em que foi interrompido.
No que se refere à fixação das linhas de demarcação entre os prédios de que Autores e Réus são proprietários na área em litígio descrita no ponto 20., o tribunal usou os critérios do artigo 1354.º do C.C..”
Não obstante, sempre diremos que a aparente incongruência entre um facto dado como não provado e a decisão proferida que determinou a forma como deve ser feita a demarcação dos prédios não constitui fundamento de nulidade da sentença apontada pelos Apelantes.
Sendo o elenco das alíneas do n.º 1 do art. 615º do CPC, um elenco taxativo (4), só nas hipóteses ali expressamente consignadas se coloca a hipótese de nulidade da sentença.
Perante a nulidade invocada pelos Apelantes, convoca-se o art. 615º nº 1 al. c) do CPC, segundo o qual, para o que interessa no caso sub judice:
“É nula a sentença quando:
c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
A nulidade prevista no artigo 615º, n.º 1, al. c) do CPC, tem a ver com uma contradição lógica entre a fundamentação jurídica e a decisão.
Como refere nesta matéria J. Lebre de Freitas, “entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade de sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada conclusão jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se. “(5)
Ora, no caso dos autos, a sentença proferida está em perfeita sintonia com a sua fundamentação jurídica, estando perfeitamente expresso no texto da fundamentação da sentença recorrida os fundamentos jurídicos e de facto determinantes para a decisão proferida, tendo sido apreciados os factos à luz do direito aplicável ao caso concreto e, perante a incerteza da definição dos limites dos prédios com base na prova produzida, não podendo terminar este tipo de ação com sentença de improcedência, coube ao tribunal determinar a linha divisória por recurso ao critério definido no art. 1354º CC.
O Juiz a quo concluiu, na decisão final proferida, no mesmo sentido seguido no seu raciocínio explanado na fundamentação, porquanto entendeu, (mal ou bem, não interessa para a decisão da nulidade) que dos factos apurados resultava determinada conclusão jurídica e este seu entendimento ficou expresso na fundamentação, ou dela decorre.
Se os Apelantes entendem que está mal julgada a matéria de facto e que a decisão final devia ter sido outra, designadamente que se concluísse que os prédios já tinham as suas extremas perfeitamente delimitadas pelo tal muro antigo, constituirá fundamento para a impugnação da decisão da matéria de facto por erro de julgamento, que os aqui Apelantes também suscitaram, sendo essa a sede própria para a sua apreciação.
Saber se houve erro na subsunção jurídica dos factos dados como provados, ou se a conclusão a que chegou o tribunal não encontra arrimo suficiente na factualidade dada como provada, consubstancia, quando muito, a apreciação de um eventual erro de julgamento e não a apreciação da nulidade prevista no art. 615º nº 1 al. c) do CPC. (6)
As partes têm direito a entender que, quer o raciocínio seguido pelo Juiz a quo, quer os fundamentos jurídicos vertidos na sentença recorrida não foram convincentes ou sequer esgrimidos de forma consistente, com apreciação sustentada de todos os factos dados como provados, de forma a convencer as partes da solução encontrada, mas essa discordância não se confunde com qualquer nulidade da sentença por contradição lógica entre a fundamentação e a decisão- a sentença não padece de contradição entre a fundamentação e a decisão, os Apelantes é que com ela não concordam.
Consequentemente, não existe, em termos manifestos, qualquer contradição ou oposição entre o raciocínio expendido pelo julgador e o sentido decisório contido na sentença, pelo contrário, a decisão é coerente e lógica com a fundamentação, independentemente do acerto da decisão, questão que não contende com a nulidade da sentença, mas com o seu mérito. (7)
Improcede, assim, a apontada nulidade da sentença.

3ª Questão- Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Perante as exigências estabelecidas no art. 640º do CPC, constituem ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, a seguinte especificação:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
“Quer isto dizer que recai sobre a parte Recorrente um triplo ónus:
Primeiro: circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento;
Segundo: fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa;
Terceiro: enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas.
Ónus tripartido que encontra nos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e boa fé processuais a sua ratio e que visa garantir, em última análise, a seriedade do próprio recurso instaurado, arredando eventuais manobras dilatórias de protelamento do trânsito em julgado da decisão.”(8)
São as conclusões das alegações de recurso que estabelecem os limites do objecto da apelação e, consequentemente, do poder de cognição do Tribunal de 2ª instância, de modo que, na impugnação da matéria de facto devem constar das conclusões de recurso necessariamente os concretos pontos de facto impugnados e a decisão alternativa que o recorrente propõe para cada um dos factos impugnados, admitindo-se, tal como alguma jurisprudência e doutrina, que a análise pormenorizada dos concretos meios probatórios possam constar apenas do corpo das alegações ou motivação propriamente dita, tal como as passagens das gravações ou transcrições dos depoimentos de que o recorrente se socorre.
Analisadas as conclusões deste recurso concluímos que tais ónus de impugnação da matéria de facto foram minimamente cumpridos pelos Apelantes, uma vez que fizeram constar das conclusões de recurso os factos impugnados e a decisão alternativa e, quanto aos concretos meios de prova embora não constem das conclusões, constam do corpo das alegações, sendo feita referência aos exactos segmentos da gravação dos depoimentos invocados
Segundo o disposto no art. 662º nº 1 do CPC, “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
No âmbito do recurso de impugnação da decisão de facto, o Tribunal da Relação pode e deve realizar uma efectiva reapreciação da prova produzida, levando em consideração, não só os meios de prova indicados no recurso, como outros que relevem para a decisão relativa aos pontos da matéria de facto impugnada, com vista a formar a sua própria convicção, mas só o deve efectuar se da fundamentação vertida na sentença recorrida for evidente algum erro de apreciação dos factos controvertidos à luz das regras de experiência ou de prova vinculada.
De todo o modo, não podemos escamotear a importância extrema do princípio da imediação da prova, estando o Juiz de 1ª instância, sem dúvida, melhor posicionado para ter plena percepção da forma como os depoimentos são prestados, as hesitações e linguagem corporal das testemunhas e partes, dificilmente percetível em gravações exclusivamente sonoras, para mais quando o Juiz da Instância Superior se vê limitado a ouvir os depoimentos prestados sem poder interrogar de modo a esclarecer-se convenientemente.
Para podermos reapreciar a decisão proferida pelo tribunal a quo, em função dos meios probatórios produzidos perante ele e, formarmos a nossa própria convicção, de molde a podermos decidir se houve algum erro de julgamento sobre a matéria de facto- se se impunha decisão diferente da que foi tomada- socorremo-nos da audição completa e integral de toda a prova gravada e da análise da documentação junta aos autos, devidamente articulada entre si e analisada à luz das regras de experiência.
Importa, pois, apurar se foi produzida prova cabal e consistente que imponha decisão diferente da que foi tomada pelo tribunal a quo, sobre os factos mencionados pelos Apelantes/RR nas Conclusões 12 e 14 a 31.
Nesta sede, cumprindo minimamente os mencionados ónus de impugnação da matéria de facto, alegaram os Apelantes/RR que, face à prova produzida, encontram-se incorrectamente julgados os pontos 9 a 12, 13, 16 a 25 e 28 a 31 da matéria de facto dada como provada, mencionando a decisão alternativa que propõem para cada um dos factos impugnados, fazendo alusão, no corpo das alegações, aos meios probatórios que em seu entender impunham decisão diversa da tomada naqueles pontos.
Por uma questão de facilidade de exposição e perceção da matéria de facto impugnada, passamos a transcrevê-la, seguido da decisão que os Apelantes pretendem relativamente a cada um dos factos impugnados, em função dos meios probatórios invocados para o efeito:
3.1 Pontos 9, 10, 11 e 12 dos factos provados
“9. Actualmente, o muro identificado em 8., no sentido nasceste/poente é interrompido antes do limite poente com a estrada.
10. Após a interrupção, existem duas paredes que fazem um cotovelo sendo que o vértice do cotovelo aponta no sentido do interior do prédio identificado em 2..
11. A parede sul é paralela ao muro de pedras soltas identificado em 8. mas fica cerca de meio metro mais para sul e vai até à estrada sita a poente.
12. A parede sul/norte é oblíqua ao muro de pedras soltas identificado em 8.”
Pretendem os Apelantes/RR a sua eliminação por não constituírem matéria alegada ou controvertida.
Se assim não se entender, devem passar a integrar os factos não provados, por não constituírem factos assentes, não estando comprovados com um mínimo de seriedade e consistência.
Afigura-se-nos que lhes assiste razão quanto aos pontos 10, 11 e 12, porquanto estes últimos contêm factos que não foram minimamente alegados pelas partes e, mesmo que pudessem decorrer da prova produzida, designadamente da inspeção ao local (não tendo sido reduzido a auto, como se impunha, aquilo que a Sra juiza visualizou no local) ou das fotografias mencionadas na motivação desses factos, era preciso que fossem meros factos instrumentais, complementares ou de concretização dos que as partes haviam alegado e sobre os mesmos lhes tivesse sido concedido o necessário contraditório quanto à sua inclusão na matéria de facto a tomar em consideração na sentença ( art. 5º do CPC), o que não se vislumbra ter acontecido.
O mesmo já não podemos dizer quanto ao ponto 9, porquanto esse facto decorre da alegação feita nos autos que o referido muro seguia contínuo até à estrada, mas deixou de estar visível a determinada altura e, sobre essa matéria os meios de prova que os Apelantes invocam ( que é praticamente toda a prova gravada, mormente depoimentos testemunhais de CC, FF, KK, LL e depoimentos de parte do Autor e dos Réus, independentemente das reservas que o tribunal a quo apontou a estes últimos), não impõem decisão diversa da proferida pelo tribunal, pelo contrário, resulta da articulação desses meios de prova, também eles referenciados na decisão recorrida, com as fotografias juntas aos autos e o resultado da escavação que foi feita em sede de julgamento, que existe efectivamente um muro antigo de pedra, que se inicia nos terrenos dos Apelados, parte dele visível e, que depois de efectuada a escavação, se concluiu não se poder afirmar ser contínuo até à estrada, mostrando-se interrompido, existindo inúmeras pedras soltas que não permitem com segurança concluir que a parte do muro que é visível seguia até à estrada e delimitava os prédios confinantes em toda a sua extensão, encontrando arrimo nos depoimentos e nas fotografias mencionados na fundamentação do tribunal a quo que alicerçaram a sua convicção quanto a esse ponto ( conjugado com o ponto 8 dos factos provados, cujo motivação é conjunta), conforme se retirou da audição dos mesmos, não se podendo concluir por qualquer erro de avaliação, ou atropelo das regras da experiência.
Em função dos motivos expostos, mantém-se o ponto 9 dos factos provados e eliminam-se os pontos 10, 11 e 12 dos factos provados.

3.2 Ponto 13 dos factos provados.
“13. O prédio identificado em 4., junto à confrontação sul, sempre foi composto por um caminho de terra batida que tem início na estrada sita a poente e segue para nascente.”
Pretendem os Apelantes que este ponto passe a ter a seguinte redação:
“13. O prédio identificado em 4 está onerado com um caminho de terra batida que tem início na estrada sita a poente e segue para nascente.”
Alegaram os Apelantes que não resulta de nenhum documento junto aos autos, nem ninguém o afirmou, que o caminho se localiza junto à confrontação sul do mesmo.
Compulsado o que consta do registo desse prédio e foi vertido no ponto 4 dos factos provados, a confrontação a sul é com GG e a poente é mencionado que confronta com caminho.
O ponto 7 dos factos provados, que não foi impugnado refere expressamente que esses prédios são confinantes pelo lado norte/sul e ambos confinam com a estrada a poente que há 35 anos atrás era um caminho estreito com 2 metros de largura.
Se está onerado ou não com um caminho, é matéria conclusiva, induzindo essa expressão uma eventual servidão que não está em causa nestes autos.
Não tendo sido alegado pelas partes nos articulados com o conteúdo que consta deste ponto de facto e, na ausência de prova nesse sentido, apontando os atrás mencionados factos em sentido diverso do que nele está vertido, elimina-se este ponto 13 dos factos provados.

3.3 Pontos 16, 17, 18, 19, 20 e 21 dos factos provados
“16. Nessa altura, EE e mulher FF, proprietários do prédio sito após o caminho existente a poente dos prédios identificados em 2. e 4., pediram ao anterior proprietário do prédio identificado em 2. para utilizar uma parcela do referido prédio com o objectivo de poder manobrar os seus veículos e, para isso, aterrou o limite poente do prédio por forma a que o mesmo ficasse ao mesmo nível do caminho.
17. Nessa sequência, EE construiu as duas paredes identificadas em 10. para, dessa forma, segurar as terras.
18. A seguir, EE pediu autorização ao anterior proprietário do prédio identificado em 4. para aterrar o seu prédio por forma a nivelá-lo, o que HH autorizou.
19. Com o aterro identificado no ponto anterior, o muro antigo que delimitava os prédios identificados em 2. e 4. na estrema noroeste/sudoeste foi aterrado.
20. A área em litígio configura um triângulo que do lado norte entre o ponto em que o muro de pedras soltas é interrompido e o caminho a poente tem 5 metros, do lado sul entre o ponto em que o muro de pedras soltas é interrompido e o caminho a poente tem 6 metros e 17 cm e no poente tem 4 metros e 30 cm medidos desde o limite sul da pedra ali existente (conforme fotografia de folhas 105).
21. Na área identificada no ponto anterior, foi plantada uma figueira por EE há cerca de 15 anos.”
Vejamos o que pretendem os Apelantes relativamente a cada um dos pontos impugnados:
16. Nessa altura, EE e mulher FF, proprietários do prédio sito após o caminho existente a poente dos prédios identificados em 2. e 4., pediram aos anteriores proprietários dos prédios identificados em 2. e 4. para utilizar a parcela dos referidos prédios com o objectivo de poder manobrar os seus veículos, e, por isso, aterraram os limites poente e nascente desses prédios por forma a que os mesmos ficassem ao mesmo nível do caminho, o que estes autorizaram.
17. Nessa sequência, EE construiu o muro para, dessa forma, segurar as terras.
18. Eliminada, por integrada na antecedente cláusula 16.
19. Passa a integrar os “Factos não Provados”, em consonância, também, com a perícia de escavação realizada.
20. Eliminado.
21. Na área identificada no ponto anterior, foi plantada uma figueira por EE há cerca de 26 anos.
Grande parte das alterações pretendidas pelos Apelantes assumem pouco relevo, desde logo as relativas aos pontos 16 a 18, porquanto basicamente, a dar-se-lhes razão, a matéria de facto relevante mantém-se a mesma, apenas com precisões, não se concordando quando afirmam que a factualidade nos moldes vertida naqueles pontos se apresenta pouco verosímil.
A sequência dos factos vertidos nos pontos 16 a 18 resulta desde logo, do depoimento da testemunha FF, única testemunha que verdadeiramente vivenciou tais factos e por isso mesmo os pode relatar e que o fez de forma muito coerente, assertiva, sem hesitações, que nos mereceu credibilidade, a qual esclareceu devidamente como as coisas se passaram quando ela e o marido EE regressaram do Brasil em 1976, e alguns anos depois pediram autorização a GG para fazerem o aterro e só depois pediram a HH para construírem uma garagem, que o marido só mexeu no terreno do GG, tendo o aterro o objectivo de conseguirem manobrar o carro para entrar e sair da garagem que lá vieram a construir, esclarecendo devidamente a forma como ficaram os prédios após esse aterro e o motivo da colocação do muro que o marido lá fez, na parte de baixo para segurar o aterro, assumindo que as pedras novas não estão colocadas em cima das pedras velhas, não tendo sido feito esse dito muro novo para delimitar os prédios.
Deste modo, não existe fundamento para alterar os pontos 16 a 18, apenas se elimina do ponto 17 o segmento “as duas paredes identificadas em 10”, passando a dele constar em substituição a palavra “muro”, quer em função do referido pela mencionada testemunha, quer em função da eliminação do ponto 10 efectuada anteriormente.
O ponto 17 passa a ter a seguinte redação:
17. Nessa sequência, EE construiu o muro para, dessa forma, segurar as terras.
Relativamente ao ponto 19 dos factos provados, afigura-se-nos que não se pode afirmar que foi produzida prova segura e consistente que com o aterro levado a cabo por EE foi aterrado também uma parte do muro antigo que delimitaria os prédios identificados em 2. e 4 na estrema noroeste/sudoeste, desde logo porque nenhuma testemunha demonstrou ter conhecimento directo, pessoal e assertivo sobre essa matéria, nem tal foi dito pela testemunha FF, única testemunha que o poderia afirmar caso tivesse ocorrido, e apesar da testemunha LL ter afirmado que o tio fez uma paredinha em cima da estrema e que se for a escangalhar deve ter o antigo por baixo, nada disso resultou da escavação levada a cabo pelo tribunal, tendo ficado exarado em acta que lá só foram encontradas pedras de várias dimensões, tendo inclusivamente o tribunal feito constar da motivação da matéria de facto que no local da escavação existem muitas pedras soltas mas não é possível concluir que essas pedras são parte do muro antigo que servia de delimitação aos dois prédios e, que na zona são visíveis muitas pedras e portanto não foi possível concluir que se trata das pedras do muro antigo, logo, não se pode concluir que com o aterro tenha ficado soterrado o muro antigo.
Pelas razões expostas, determina-se que o ponto 19 dos factos provados transite para os factos não provados sob a alínea p)
Relativamente ao ponto 20 dos factos provados, da diligência da escavação ficou exarado em acta o resultado do tipo de trabalhos de escavação que foram realizados, onde o foram e, o que lá foi encontrado, tendo ficado identificada a faixa de terreno em litígio, isto é, a área onde os dois prédios confinam, sem que qualquer das partes tenha manifestado qualquer discordância sobre o texto assim exarado pelo tribunal, apenas não se entendem por onde passará a linha divisória.
Não obstante, aqueles factos embora não alegados resultaram daquela diligência e destinam-se apenas a identificar a área em que a demarcação terá de ser feita, sendo naquela área que partes estão em litígio quanto ao local por onde passará a linha divisória e, quanto a essa matéria resulta de toda a prova produzida, designadamente por declarações de parte e testemunhal que é aquela a área em litígio, a ela se tendo referido quando discorreram sobre quem plantou e quem tratou da figueira e quanto à pedra de louça preta se foi lá colocada como sinal de demarcação ou não, pelo que, em rigor o que consta do ponto 20 dos factos provados resultou do que as partes alegaram quanto à área onde foi plantada a figueira e onde hoje consta uma pedra de louça preta, área que ambas as partes pretendem fazer incluir dentro do seu terreno na demarcação a efectuar, só não a descreveram com o pormenor que consta desse ponto de facto (desenho e medições), mas cuja especificação está dentro dos poderes de averiguação que cabem ao tribunal.
Veja-se a esse propósito, neste sentido, o já assim decidido no Ac RP de 29/9/2021, cujo sentido decisório aqui se segue:” A concreta linha divisória não integra a causa de pedir na ação de demarcação e, como tal, os factos que a definem não se encontram exclusivamente na disponibilidade de alegação e prova pelas partes, o mesmo é dizer não são qualificáveis como factos essenciais, o que permite a aquisição oficiosa dos mesmos.”(9)
Prova disso mesmo é o facto de os Apelantes inclusivamente fazerem uso desse mesmo ponto 20, até para se arrogarem proprietários dessa área por usucapião, a ela se referindo no ponto 21 ( e nesse ponto os Apelantes não pedem a eliminação à referência do ponto 20) e no ponto 32 que não foi impugnado.
Deste modo, mantém-se o ponto 20 dos factos provados.
Quanto ao ponto 21 dos factos provados, e conforme decorre da prova produzida, efectivamente a figueira terá sido plantada por EE não há cerca de 15 anos, mas pelo menos há 20 anos, tendo relatado a testemunha JJ que o muro foi feito pelo Sr EE entre 1995 /96 e 2002, o qual também plantou a figueira, o que coincide com o depoimento da testemunha FF que confirmou que foi o seu marido que lá a plantou depois de ter feito o referido aterro.
Deste modo, altera-se o ponto 21 dos factos provados para a seguinte redação:
21. Na área identificada no ponto anterior foi plantada uma figueira por EE há cerca de 20 anos.

3.4 Pontos 22, 23, 24 e 25 dos factos provados
“22. Sem prejuízo da área identificada em 20., os Autores por si e antepossuidores cuidaram do prédio identificado em 2., limpando-o, desbastando-o, cultivando-o, colhendo os seus frutos e pagando os respectivos impostos.
23. À vista de toda a gente.
24. Sem oposição de ninguém.
25. Há mais de 20 anos, reportados à propositura da acção.”
Pretendem os Apelantes que se retire a expressão inicial “ sem prejuízo da área identificada em 20” sendo que a prova testemunhal e por depoimento de parte foi no sentido de que cada uma das partes e seus antepossuidores cuidaram de cada um dos prédios identificados nos pontos 2 e 4 dos factos provados até ao seu limite, tendo sido essa mesma expressão usada pela testemunha FF “cada um limpava até ao limite, um em cima e o outro em baixo, depois de feito o muro do aterro naquela zona era o Sr EE que limpava”.
Foi precisamente esse limite que não ficou devidamente apurado, não tendo sido produzida prova suficiente sobre se os Apelados efectivamente usaram aquela área descrita no ponto 20 durante mais de 20 anos reportados á propositura desta acção, até porque o Apelado admitiu nas declarações que prestou que terá deixado de colher os frutos da figueira desde 2006 ( quando saiu do país), altura em que os Apelantes terão passado a fazê-lo e a podá-la, como se extrai também da articulação com o que consta do ponto 32 dos factos provados e os pontos f), g), h), l), m), n) e o) dos factos não provados, que não foram impugnados.
Deste modo mantém-se a redação integral desses pontos 22 a 25 dos factos provados.

3.5 Pontos 28, 29, 30 e 31 dos factos provados
“28. Sem prejuízo da área identificada em 20., os Réus, por si e antepossuidores sempre cuidaram do prédio identificado em 4. e sempre nele entraram quando quiseram.
29. Sem oposição de quem quer que seja.
30. À vista de toda a gente.
31. Há mais de 40 anos, reportados à propositura da acção.”
Pretendem os Apelantes que se retire a expressão inicial “ sem prejuízo da área identificada em 20”, no entanto, pelas mesmas razões que fundamentam a decisão de não alteração do ponto 22 dos factos provados, decide-se manter a redação desses pontos 28 a 31 dos factos provados.

4ª Questão- Demarcação entre os prédios de Apelantes e Apelados
Apesar de alterada parte da matéria de facto no sentido propugnado pelos Apelantes, como veremos, a argumentação jurídica por estes invocada para peticionarem a revogação da sentença recorrida acaba por não ter arrimo, mesmo assim, na factualidade apurada.
Senão vejamos.
A Jurisprudência consolidada, sobre este tipo de acções, refere de forma reiterada que, a ação de demarcação supõe uma causa de pedir complexa, integrada por factos tendentes a demonstrar cumulativamente os seguintes requisitos:
i) existência de prédios confinantes;
ii) pertencentes a donos diferentes;
iii) incerteza, controvérsia ou mero desconhecimento sobre a linha divisória entre eles. (neste sentido, Ac STJ de 20/11/2019, Proc. Nº 841/13.9TJVNF.S1; Ac RP de 14/11/2022, Proc. Nº 1711/19.192T8PNF.P1; Ac RP de 29/9/2921, Proc. Nº 1229/18.0T8VNG.P1; Ac RP de 13/7/2021, Proc. Nº 500/20. 6T8ALB.P1; Ac RP de 15/12/2021, Proc. Nº 882/12.3TBSJM.P3; Ac RP de 12/9/2022, Proc. Nº 316/13.6TBAMT.P2, Ac RG 13/6/2019, Proc. Nº841/13.9TJVNF.G2; Ac RC 13/5/2014, Proc. Nº 3779/10.8TBVIS.C1, todos www.dgsi.pt)
A ação de demarcação, prevista no artigo 1353.º do CC, contrariamente à acção de reivindicação, supõe a certeza e indiscutibilidade dos títulos de propriedades dos prédios confinantes, havendo duvidas apenas quanto aos respetivos limites, que é o caso sob apreciação.
Isso mesmo resume o recente Ac RP de 9/1/2023, no qual é feita a diferenciação dos dois tipos de acções e respectivas pretensões, e do qual se pode ler que, “por variadas vicissitudes, como seja a ignorância dos limites dos prédios e a identidade dos confrontantes, seja em consequência do crescente afastamento das pessoas da terra, seja ainda em decorrência de encobertas ações de usurpação, nem sempre a delimitação dos imóveis se acha definida de forma inequívoca e indiscutida, com a existência de marcos respeitados pelos confinantes ou com outros sinais igualmente respeitados, como sejam muros, fragas, ribeiros, etc…
Nesta eventualidade, em ordem a dissipar as dúvidas existentes quanto aos limites dos prédios, o proprietário tem o direito potestativo de exigir aos proprietários confinantes que concorram para a demarcação das estremas entre o seu prédio e os deles (artigo 1353º, do Código Civil).
De forma sintética, pode dizer-se que enquanto a ação de revindicação pressupõe a definição precisa da coisa imóvel reivindicada, nomeadamente dos seus limites[8], operando a restituição dentro desses limites, a ação de demarcação implica necessariamente uma situação de incerteza ou dúvida quanto a uma ou várias estremas do imóvel a demarcar, destinando-se precisamente à definição precisa das linhas que permitem a determinação dos limites dos prédios em que se regista essa incerteza.”(10)
E, tal como se fez referência na bem fundamentada sentença recorrida, o que os Apelados/Autores pretendem fazer valer nesta ação é o direito à demarcação do seu prédio com o prédio dos Apelantes/Réus, o qual está expressamente previsto no art. 1353.º do CC, segundo o qual “O proprietário pode obrigar os donos dos prédios confinantes a concorrerem para a demarcação das estremas entre o seu prédio e o deles”.
Apesar de os Apelantes/Réus terem sustentado, em sede de contestação, que a linha divisória está definida no local, resultou da factualidade apurada que é manifesta a controvérsia sobre a localização da linha divisória entre os prédios, pois que os Apelantes entendem que a mesma está feita pelo muro que lá existe a delimitar os dois prédios e os Apelados mantêm que a determinada altura do percurso o muro antigo deixou de estar visível e que a demarcação não deve ser feita pelo novo muro que lá existe mas deve ser feita pela linha do muro antigo em pedra e pela linha da pedra/esteiro em louça de cor preta que se encontra para lá da figueira, cabendo, pois ao tribunal, defini-la em função dos critérios estabelecidos no referido preceito legal.
Tal como consta do Ac RP de 13/7/2021, “ Na ação de demarcação, o autor, requer junto do tribunal que este demarque (delimite) o seu prédio no confronto com aquele que lhe é adjacente; nesta ação será o tribunal, não o autor, que virá finalmente a elucidar a área e os limites do prédio que o autor possui. Aqui visa-se pôr fim a um estado de incerteza sobre a localização da linha divisória entre dois (ou mais) prédios, dúvida essa que o autor também partilha.”(11)
Os apelantes pedem que lhes seja reconhecido o direito de propriedade adquirido por usucapião, sobre a totalidade do prédio identificado no ponto 4 dos factos provados, incluindo a área identificada no ponto 20 dos factos provados, a tal área que inclui a figueira.
Salvo o devido respeito, os Apelantes laboram em erro ao requerer que se lhes reconheça o direito de propriedade, por usucapião daquela área, desde logo porque não é esse o objecto da ação de demarcação, não se mostrando controvertido o direito de propriedade dos Apelantes sobre o prédio identificado no ponto 4 dos factos provados e o direito de propriedade dos Apelados sobre o prédio identificado no ponto 2 dos factos provados, não havendo, por isso, que declarar incluída em qualquer daqueles prédios a mencionada área em litígio, apenas e só que proceder à definição da linha divisória entre os dois prédios confinantes, demarcando as estremas respectivas onde confrontam dentro da área que constitui o ponto da discórdia ( independentemente de onde ficará a figueira, se dentro do terreno de um ou de outro).
Tal como esclareceu devidamente o Ac STJ de 20/11/2019, “Embora conexa com o direito das coisas, a acção de demarcação não é uma acção real, mas pessoal.
Por ela não se pretende a declaração de qualquer direito real, ou da sua amplitude, mas unicamente obter que se precisem as estremas de prédios confinantes, estremas essas que, depois de definidas judicialmente, em princípio, foram fixadas como sempre eram, sem porem em dúvida ou afectarem qualquer direito real.
As acções de demarcação não têm por objecto o reconhecimento do domínio, embora o pressuponham; o seu fim específico é o de fazer funcionar o direito reconhecido ao proprietário pelo artigo 1353º do Código Civil, de obrigar os donos dos prédios confinantes a concorrerem para a demarcação das estremas respectivas.”(12)
Isso mesmo foi defendido no Ac RP de 14/11/2022, no mesmo sentido, dele constando que “a demarcação não visa a declaração do direito real, mas apenas pôr fim a um estado de incerteza ou de dúvida sobre a localização da linha divisória entre dois (ou mais) prédios, e por isso, a pretensão a formular pelo autor é, no uso do direito potestativo que lhe assiste, a de que os proprietários dos prédios vizinhos sejam obrigados a concorrer para a definição e fixação das estremas dos prédios confinantes.”(13)
Igual entendimento sustenta Mariana Cruz, ao escrever em anotação ao art. 1353º CC que “A inclusão do direito de demarcação no Livro III parece sugerir que se trata de uma ação de carácter rela. No entanto, trata-se de uma ação pessoal embora conexa com direitos de carácter real. O direito de demarcação per se tem caracter pessoal, embora dependa e esteja conexo com um direito de carácetr real (o direito de propriedade). O direito real está fixado nos títulos e o direito de demarcação (de caracter pessoal) visa apenas por fim a dúvidas relativamente à extensão de tal direito real.”(14)
Não obstante, tal pretensão sempre estaria votada ao insucesso uma vez que os pressupostos de facto necessários para o efeito foram dados como não provados nas alíneas l), m), n) e o) dos factos não provados, que não foram objecto de impugnação em sede deste recurso, não estando demonstrado que os Apelantes tenham exercido posse bastante para se considerar que tal área foi por eles adquirida por usucapião.
Sustentam, ainda, os Apelantes que o tribunal devia ter reconhecido que a linha de contiguidade entre os prédios de Apelantes e Apelados mencionada nos arts. 11º e 12º da pi foi aceite por eles, porém, como bem sabem os Apelantes, apurou-se que o referido muro antigo feito em pedra com mais de 50 anos não se prolonga ao longo de toda a linha divisória dos dois prédios, resultando dos factos apurados nos autos que existe de facto um muro antigo de pedra mas que o mesmo se mostra a dada altura interrompido, não tendo ficado apurado se anteriormente prosseguia até á estrada e, nesse caso por onde.
Os Apelados alegaram que esse muro antigo encontrava-se aterrado na estrema noroeste do prédio deles, não sendo hoje visível, mas que a pedra/esteio em louça de cor preta que na altura do aterro lá foi colocada para demarcar/delimitar os terrenos, tendo sustentado que a aferição da delimitação dos terrenos em confronto seria ainda assim possível através da desobstrução do terreno e da localização desse muro em pedra, o que não lograram demonstrar.
Por seu turno, os Apelantes alegaram que o muro que demarca os prédios corresponde a um muro antigo feito em pedra que se prolonga atá ao caminho a poente e que se mantém sem qualquer alteração há mais de 20, 30 e 40 anos, sendo essa a linha divisória, bem demarcada, visível e prolongada no tempo, o que também não lograram demonstrar.
Na acção de demarcação cabe ao autor provar que é proprietário confinante e ao réu provar que a demarcação está feita e concretizada numa linha divisória.(15)
Ora, resulta por demais evidente que os prédios dos Apelantes e Apelados confrontam entre si, são confinantes pelo lado norte/sul e ambos confinam com a estrada a poente ( ponto 7 dos factos provados), e que estão separados na parte mais a poente por um muro de pedras soltas que se inicia no prédio também dos Apelados ( ponto 8 dos factos provados), mas que actualmente, no sentido nascente/poente, é interrompido antes do limite poente com a estrada e, existe divergências entre as partes sobre a linha da estrema dos seus terrenos nessa parte (tanto existe que quando o Apelado tentou colocar uma vedação pela linha da pedra/esteio em louça de cor preta essa vedação foi retirada pelo Apelante por entender que a linha divisória não é essa ( ponto 26 dos factos provados).
Por conseguinte, ficou demonstrado que os prédios contíguos pertencem a proprietários diferentes e que a demarcação não está feita, de forma incontroversa, em toda a linha divisória, existindo desentendimento entre Apelantes e Apelados sobre as respetivas estremas, pelo que, a divergência teria de ser resolvida por recurso às regras do art. 1354º do CC, preceito legal ao qual o tribunal a quo recorreu.
Quanto ao modo de proceder à demarcação, dispõe o art. 1354.ºCC do seguinte modo:
“1 – A demarcação é feita de conformidade com os títulos de cada um e, na falta de títulos suficientes, de harmonia com a posse em que estejam os confinantes ou segundo o que resultar dos meios de prova.
2 – Se os títulos não determinarem os limites dos prédios ou a área pertencente a cada proprietário, e a questão não puder ser resolvida pela posse ou por outro meio de prova, a demarcação faz-se distribuindo o terreno em litígio por partes iguais.
3 – Se os títulos indicarem um espaço maior ou menor do que o abrangido pela totalidade do terreno, atribuir-se-á a falta ou o acréscimo proporcionalmente à parte de cada um.”
Consubstancia o exercício de um direito potestativo à colaboração dos donos dos prédios confinantes com vista à rigorosa fixação dos limites físicos entre esses prédios.
Explicitando tais critérios, lê-se do Ac RP de 15/12/2021, que “O artigo 1354.º, do Código Civil define quais os critérios a atender para proceder à demarcação dos prédios em confinância:
a) O primeiro critério atendível para a demarcação consiste e realizá-la em conformidade com os títulos de cada um dos proprietários dos prédios confinantes;
b) Na falta ou insuficiência dos títulos, recorre-se à posse em que estejam os confinantes ou segundo o que resultar de outros meios de prova.
c) Como critério residual, na falência de todos os demais, resta a aplicação da regra salomónica, em que a demarcação faz-se distribuindo o terreno em litígio por partes iguais.”(16)
Ora, não estando em discussão os títulos de aquisição dos prédios confinantes, mas não estando os proprietários confinantes de acordo quanto á linha divisória dos mesmos, limitando-se a fixação das estremas a parte da zona em que confrontam, não existindo evidências de marcos ou demarcações anteriormente existentes, incumbirá ao tribunal determinar essa demarcação.
Os Apelantes invocam a posse e a aquisição do direito de propriedade, mas a posse a que o art. 1354º do CC faz alusão não diz respeito à propriedade do seu prédio, porquanto esse direito não está questionado, mantendo-se apenas controvertido onde termina a estrema do seu prédio e onde começa a dos Apelados e quanto a isso os factos dados como provados nos pontos 22 a 25 e 28 a 31 nada acrescentam aos títulos.
Ainda que se tenha apurado que a figueira que tem sido podada pelo Apelante desde 2006 encontra-se na tal área em litígio, por onde passará a linha divisória, certo é que os Apelantes não impugnaram as alíneas l), m), n) e o) dos factos não provados e consequentemente nenhuma posse ficou demonstrada que permita definir as estremas no sentido pugnado pelos Apelantes.
Tal como defendido no Acórdão acima aludido, “não existe predominância da posse sobre os outros meios de prova mencionados no artigo 1354º, nº 2, do Código Civil. Como explicam Pires de Lima e Antunes Varela[27] fez-se “uma referência expressa a outros meios de prova ao lado da presunção resultante da posse, por se entender que, podendo esta ser arbitrária ou abusiva, não devia funcionar como um elemento decisivo de prova. Quer dizer que, não obstante existir posse da faixa, ou de parte dela, pode o tribunal, com base noutros meios de prova, que podem ser simples presunções (desde que não haja usucapião, é evidente), chegar a uma conclusão contrária à revelada pela posse”.
Também no Ac RG de 13/6/2019 é feita referência a que “desde que não haja usucapião, não existe predominância da posse sobre os outros meios de prova mencionados no artigo 1354º, nº 2, do Código Civil.”(17)
Contrariamente ao alegado pelos Apelantes, a sentença recorrida não determinou que a demarcação fosse feita com base no alinhamento de um muro que não existia, pelo contrário, na ausência de prova do dito muro antigo numa parte em que os prédios confrontam, porque o dito muro antigo não é contínuo até à estrada e os proprietários divergem quanto aos limites dos seus prédios e, não podendo socorrer-se do critério da posse, porque a mesma não ficou provada, nem tendo resultado dos meios de prova que foram realizados para o efeito (designadamente da inspeção ao local e da escavação) os factos reveladores da estrema entre os prédios, para que fosse definida a linha divisória entre o prédio dos Apelantes e o prédio dos Apelados, a demarcação teria de ser feita, como o foi, dividindo a meio a faixa de terreno em litígio tal como prevê o art. 1354º do CC.
“Por via da norma do artº 1354º, nº 2, do C. Civ. vê-se que o direito a demarcar prédios depende, não tanto da invocação de uma linha de demarcação, mas antes da própria inexistência de demarcação em si - tudo o mais deve ser conhecido pelo próprio tribunal, aplicando, para efeitos da fixação de uma linha de demarcação, os critérios principal e supletivo previstos no citado artº 1354º.
Desde que se verifique a confinância de prédios pertencentes a proprietários diferentes e inexista linha divisória entre eles (seja porque, indiscutida entre os proprietários confinantes, não está marcada, sinalizada no terreno, seja porque ela (isto é, a sua localização), é objecto de controvérsia entre eles, seja porque eles pura e simplesmente desconhecem a sua localização) está aberta a porta para a actuação do direito de demarcação.
Se a divisão da área conflituante não puder ser resolvida pelos títulos de cada um, será sucessivamente resolvida pela posse ou outros meios de prova; no limite, não podendo ser resolvida por nenhum desses meios, será equitativamente dividida pelos proprietários confinantes.”(18)
Deste modo, na ausência de outros critérios, só restava ao tribunal fixar a linha divisória tendo como início o muro antigo em pedra que ainda lá existe e fim na estrada, dividindo a faixa de terreno em litígio em partes iguais, nos moldes melhor percecionados no local pelo tribunal a quo e que constam da parte dispositiva da sentença.
**
V. DECISÃO:
Em razão do antes exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelos Apelantes/Réus, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas a cargo dos Apelantes, que ficaram vencidos-artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
Notifique.

Porto, 27 de Junho de 2023
Maria da Luz Seabra
Artur Dionísio Oliveira
Maria Eiró

(O presente acórdão não segue na sua redação o Novo Acordo Ortográfico)
________________
(1) F. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª edição, pág. 147 e A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª edição, pág. 92-93.
(2) Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, CPC Anotado, Vol. I, pág. 254
(3) CPC Anotado, Vol. 1º, 4ª edição, pág. 411
(4) A. Varela, Manual de Processo Civil, pág. 686.
(5) José Lebre de Freitas, CPC Anotado, 2º volume, 3ª edição, pág. 736-737. Vide, ainda, no mesmo sentido, AC RP de 29.06.2015, AC RP de 1.06.2015 ou, ainda, AC RG de 14.05.2015, todos www.dgsi.pt.
(6) Neste sentido, entre outros, Ac STJ de 30.11.2021, Proc. Nº 760/19.5T8PVZ.P1.S1 e Ac STJ de 16.11.2021, Proc. Nº 2534/17.9T8STR.E2.S1, www.dgsi.pt
(7) Vide, neste sentido, ainda, A. VARELA, ob. cit., pág. 690.
(8) Cadernos Temáticos De Jurisprudência Cível Da Relação, Impugnação da decisão sobre a matéria de facto, consultável no site do Tribunal da Relação do Porto, Jurisprudência
(9) Proc. Nº 1229/18. 0T8VNG.P1, www.dgsi.pt
(10) Proc. Nº 41/21. 4T8BAO.P1, www.dgsi.pt
(11) Proc. Nº 500/20.6T8ALB.P1, www.dgsi.pt
(12) Proc. Nº 841/13.9TJVNF.S1, www.dgsi.pt
(13) Proc. Nº 1711/19.2T8PNF.P1, www.dgsi.pt
(14) Comentário ao Código Civil, Direito das Coisas, UCP, pág. 273
(15) Ac STJ de 20/11/2019, Proc. Nº 841/13.9TJVNF.S1, www.dgsi.pt
(16) Proc. Nº 882/12.3TBSJM.P3, www.dgsi.pt
(17) Proc. Nº 841/13.9TJVNF.G2, www.dgsi.pt
(18) Ac RC de 13/5/2014, Proc. Nº 3779/10.8TBVIS.C1, www.dgsi.pt