Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1387/13.0TBGDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: INSOLVÊNCIA
COMPETÊNCIA
TRIBUNAL DE COMÉRCIO
EMPRESA
PATRIMÓNIOS AUTÓNOMOS
Nº do Documento: RP201306171387/13.0TBGDM.P1
Data do Acordão: 06/17/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Legislação Nacional: ARTº 2º DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS
ARTº 89º, Nº 1, A) LOTJ - DL 8/2007 DE 17/01
Sumário: I - O art. 89°/1 a) da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, na redacção do DL 8/2007 de 17/01, prevê que são da competência dos tribunais de comércio a preparação e julgamento do processo de insolvência se o devedor for uma sociedade comercial ou a massa insolvente integrar uma empresa.
II - . Nos termos do art. 5° do Código da Insolvência, para efeitos do processo de insolvência, ‘empresa” constitui toda a actividade económica desenvolvida, desde que assente numa organização que conjugue capital e trabalho e por isso, não constitui condição que a actividade seja exercida por urna pessoa colectiva, pois os próprios patrimónios autónomos, podem ser objecto de processo de insolvência (art., 2° do CIRE), como também não se exige que a actividade exercida vise a obtenção do lucro e por isso, estão incluídas neste conceito as associações com fim altruístico ou de solidariedade social.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Insolv-TComp-1387-13.0TBGDM.P1-670-13TRP
Trib Jud Gondomar
Proc. 1387/13.0TBGDM.P1
Proc. 670/13-TRP
Recorrente: B…
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Juiz Desembargador Relator: Ana Paula Amorim
Juízes Desembargadores Adjuntos: Soares Oliveira
Ana Paula Carvalho
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção – 3ª Cível)

I. Relatório
B… com sede na Rua …, S/N, em …, contribuinte nº ………, veio apresentar-se à insolvência, nos termos do art. 3º e 18º do CIRE, com os fundamentos que se transcrevem:

“ - Enquadramento Geral e situação de insolvência actual:
1° A requerente é uma Instituição Particular de Solidariedade Social, que tem por objecto o apoio a crianças e jovens, a protecção dos cidadãos na velhice e invalidez e em todas as situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho e, a título secundário, promoverá a educação e formação profissional dos cidadãos. (Cfr. Anúncio (extracto) n.° 7324/2007, publicado no diário da República, 2 série — N.° 209 — 30 de Outubro de 2007 e que se junta como Doc. n.° 1 e se dá aqui por integralmente reproduzido e Registo de IPSS da Direcção-Geral da Segurança Social que se junta como doc. n.° 2 e se dão aqui por integralmente reproduzidos)
2° No dia 21/09/2011, a Assembleia-Geral da requerente deliberou a composição da
Direcção com os seguintes elementos:
C… — Presidente;
D… — Vice-Presidente;
E… — Tesoureiro;
F… — Secretário;
G… — Vogal;
H… — Vogal;
I… — Vogal.
Doc. n.° 3 e Doc. 3-A que se dão aqui por integralmente reproduzidos.
3° De 2008 a 2012, a requerente integrou, em parceria com o J…, o núcleo territorial de …, criando um Programa de Resposta Integradas (PRI) naquele território, efectivando e operacionalizando assim o Plano Operacional de Respostas Integradas (PORI).
4° O PORI é uma medida estruturante do J… de âmbito nacional que promove a intervenção integrada no âmbito do consumo de substâncias psicoactivas, e que privilegia a existência de diagnósticos rigorosos que fundamentam a intervenção em territórios identificados como prioritários.
5º Assim, a operacionalização do PORI obedece à implementação de fases sequenciais e concretiza-se mediante a identificação e selecção de territórios, onde são desenvolvidos Programas de Respostas Integradas (PRI).
6° Após a realização dos diagnósticos, identificaram-se em alguns territórios um conjunto de problemas / necessidades prioritárias para as quais não existia resposta.
7° Com base nesta informação, foi possível ao J... definir áreas lacunares a colmatar, para as quais foram desenvolvidas intervenções, com a colaboração de entidades públicas e privadas do território e, em alguns casos, recorrendo à atribuição de apoio financeiro a projetos.
8º Assim, nestes casos, o J… procedeu à abertura de concurso para atribuição de apoio financeiro a projetos que respondam a essas áreas lacunares identificadas em cada área de missão, ao abrigo da Portaria n.° 131/2008, de 13 de fevereiro.
9° A requerente candidatou-se a três desses projectos, tendo-lhe sido atribuidos, em
31/10/2008, os projectos Reinserir com Arte(s), Prevenir com Arte(s) e Intervir com Arte(s), com início naquela data e fim em 02)11/2010. (Cfr. Doc. n.° 4, 5 e 6 respectivamente e que se dão aqui por integralmente reproduzidos)
10° Para a execução deste processo, no dia 10/10/2008 a requerente celebrou ainda um protocolo de cooperação com a Junta de Freguesia …, por dois anos, renovável. (Cfr. Doc. 0.07 que se dá aqui por ntegralmente reproduzido)
11° No dia 03)11)2010, o J… e a requerente renovaram os projectos iniciais pelo período de 03/11/2010 a 02/11/2012, após avaliação positiva dos resultados alcançados, parecer favorável da delegação regional sobre as propostas de continuidade apresentadas e, por se tratarem de projectos dependentes de financiamento público, disponibilidade orçamental do J…, tudo conforme artigo 40 da Portaria supra citada. (Cfr. Doc. n.° 8 a dcc, n.° 10 que se dão aqui por integralmente reproduzidos)
12º No dia 02/11/2012, foi ainda aprovado pelo J… e contratualizado com a requerente uma Equipa de Rua, com o código ………… até Dezembro de 2012. (Cfr. Doc. n.° 11 e Dcc. n.° 12 que se dão aqui por integralmente reproduzidos)
13° Sucede que, no final de Dezembro de 2012, o J… não procedeu á transferência da totalidade dos apoios financeiros referente à 48 tranche dos projectos que terminaram em 02/11/2012, bem como,
14° Não procedeu também à transferência de qualquer apoio financeiro referente à Equipa de Rua, com o código …………..
15° A par dos projectos supra descritos, em Maio de 2009, a requerente em estreita cooperação com o Centro de Emprego de … instalou um GIP — Gabinete de Inserção Profissional, ou seja, uma estruturas de apoio ao emprego que presta apoio a jovens e adultos desempregados para a definição ou desenvolvimento do seu percurso de inserção ou reinserção no mercado de trabalho. (Cfr. Dcc. n.° 13 a Dcc. n.° 16, que se dão aqui por integralmente reproduzidos)
16° O funcionamento do GIP dependeu de autorização do Instituto do Emprego e Formação Profissional LP. para funcionar entre 01/05/2009 e 30/04/2011 (Cfr. Dcc. n.° 13 a Doe. n° 16)
17° Por via deste projecto, a requerente desenvolvia as seguintes actividades: Informação profissional para jovens e adultos desempregados; apoio na procura ativa de emprego; acompanhamento personalizado dos desempregados em fase de inserção ou reinserção profissional; divulgação de ofertas de emprego e colocação de desempregados nas ofertas disponíveis e adequadas; encaminhamento para ofertas de qualificação; divulgação e encaminhamento para medidas de apoio ao emprego, qualificação e empreendedorismo; divulgação de programas comunitários que promovam a mobilidade no emprego e na formação profissional no espaço europeu; motivação e apoio à participação em ocupações temporárias ou actividades em regime de voluntariado, que facilitem a inserção no mercado de trabalho; controlo de apresentação periódica dos beneficiários das prestações de desemprego; outras atividades consideradas necessárias aos desempregados inscritos nos Centros de Emprego.
18° No dia 01/05/2011, o Contrato de objectivos celebrado com o Instituto do Emprego e Formação Profissional IR foi alvo de um aditamento. (Cfr. doe. n.° 17, que se dá aqui por integralmente reproduzido)
19° No dia 19/05/2012, e após decisão do Instituto do Emprego e Formação Profissional I.P., foi celebrado novo acordo de objectivos com a requerente. (Cfr. Doe. n.° 18 a doe. 21 que se dão aqui por integralmente reproduzidos)
20º O funcionamento do GIP, nomeadamente no que diz respeito a despesas de funcionamento e comparticipação nas retribuições do animador contratado, dependia de apoio financeiro do instituto do Emprego e Formação Profissional l.P. (Cfr. Doc. n.° l3adoc. n.°21)
21° Apoio esse concedido mensalmente e que, nesta data, se encontra com 2 meses de atraso.
22° A tudo isto acresce que, o pagamento de quotas pelos sácios é raro e sem nenhum padrão de regularidade.
23° Assim, por estas razões de não entrega/atraso dos apoios financeiros contratados, a requerente fica confrontada com dificuldades financeiras e de liquidez.
24° Factos que impedem o seu normal funcionamento e desenvolvimento,
25° E deram origem a uma situação de crescente e reiterado descontrolo económico.
26° Agravado pelo estado actual de crise generalizada onde a economia social é vista pelo sector privado e pelo próprio estado apenas como uma fonte de despesas que, invariavelmente, têm que ser cortadas.
27° Pelo que a requerente já não encontra actualmente qualquer acesso aos apoios financeiros aos quais sempre se candidatou e dependia para o seu funcionamento.
26° Aliás, conforme supra se expôs, mesmo os apoios financeiros contratados não são cumpridos.
29° Desta forma, ao não conseguir a requerente movimentar os activos que ainda dispõe porque os mesmo não lhe são entregues nos prazos acordados, bem como pelo facto de já não conseguir aceder a qualquer apoio financeiro.
30° Não consegue a requerente fazer face a generalidade das suas obrigações, no momento do seu vencimento.
31° O supra exposto descreve a actividade da requerente nos últimos três anos, bem como as causas que, no seu entender, da situação em que se encontra, razão pela qual requer desde já a dispensa de apresentação do documento a que alude a alínea c) do artigo 24° do CIRE.
32° Neste sentido, a Direcção da requerente convocou uma Assembleia Geral que teve lugar em 20/0312013, onde propôs o início do processo de insolvência. (Cfr. Doc. n.° 22 que se dá aqui por integralmente reproduzido)
33° Esta deliberação foi tomada por unanimidade. (Cf. Doe. n.° 23 que se dá aqui por integralmente reproduzido).”
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A instruir a petição, juntou, entre outros elementos, relação dos credores, mapa de pessoal 2013 e relação de bens (computadores, impressoras monitores, secretárias, cadeiras, armários, ventoinhas, bengaleiros, cofre, telemóveis e um veículo automóvel).
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Apresentados os autos com conclusão, o juiz do tribunal “a quo” proferiu o despacho que se transcreve:

“B…, com sede em …, veio requerer a sua declaração de Insolvência.
Como decorre do disposto no artº 89º, nº1, al. a), da Lei de Organização dos Tribunais Judiciais, a competência material para a declaração de insolvência é dos tribunais de comércio, in casu, do Tribunal de Comercio de Via Nova de Gaia.
Concluímos, pois, que este Tribunal é absolutamente incompetente para conhecer do pedido. A incompetência absoluta do Tribunal constitui excepção dilatória, do conhecimento oficioso do Tribunal – artº 101º, 102º, 494º, al. a), 495º, do C.P.C e importa a absolvição da instância – artº 288º, do C.P.C.
Pelo exposto, declaro este tribunal materialmente incompetente para conhecer do pedido.
Custas do incidente pela requerente, com ½ Uc de taxa de justiça
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A requerente veio interpor recurso da sentença.
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Nas alegações que apresentou a apelante formulou as seguintes conclusões:
1º Por douto despacho proferido em 22 /04 /2013, o Mmo Juiz a quo, declarou o Tribunal Judicial da Comarca de Gondomar absolutamente incompetente, para conhecer do pedido de declaração de insolvência formulado pela ora recorrente, por aplicação do artigo 89º n.º 1 alínea a) da Lei da Organização dos Tribunais Judicias (LOFTJ), mais referindo o despacho que, a competência material para conhecer de tal pedido cabe aos Tribunais do Comércio, in casu, ao Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia.
2º Tal despacho viola o disposto nos artigos 5º e 7º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53 /2004, de 18 de Março (CIRE) e os artigos 89º n.º 1 alínea a) e 77º n.º 1 alínea a), da LOFTJ aprovada pela Lei n.º 3 /99, de 13 de Janeiro, com a redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 8 /2007, de 17 de Janeiro.
3º A LOFTJ aplicável no distrito judicial do Porto, nomeadamente nas comarcas de Gondomar e de Vila Nova de Gaia, é a que se encontra vertida na Lei n.º 3 /99, de 13 de Janeiro, com a redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 8 /2007, de 17 de Janeiro.
4º Nos termos do artigo 89º n.º 1 alínea a) da LOFTJ, aprovada pela Lei n.º 3 /99, de 13 de Janeiro, com a redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 8 /2007, de 17 de Janeiro, compete aos Tribunais de Comércio preparar e julgar os processos de insolvência se o devedor for uma sociedade comercial ou a massa insolvente integrar uma empresa.
5º Ora, a recorrente (devedor) é uma Associação de Solidariedade Social, sem fins lucrativos conforme decorre dos seus estatutos, pelo que não se poderá enquadrar na noção de sociedade comercial /empresa para efeitos do CIRE, nomeadamente a que decorre do seu artigo 5º.
6º A noção de empresa decorrente do artigo 5º do CIRE pressupõe a existência de uma pessoa colectiva, cujo fim único ou principal é a obtenção de lucro.
7º Pelo que, não sendo a recorrente qualificada como empresa ou como sociedade comercial para efeitos do artigo 89º n.º 1 alínea a) da LOFTJ aprovada pela Lei n.º 3 /99, de 13 de Janeiro, com a redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 8 /2007, de 17 de Janeiro, a competência material para a declaração de insolvência não poderá ser atribuída ao Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia, mas sim atribuída ao Tribunal Judicial da Comarca de Gondomar, por força da aplicação dos artigos 77º n.º 1 alínea a) da LOFTJ aprovada pela Lei n.º 3 /99, de 13 de Janeiro, com a redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 8 /2007, de 17 de Janeiro e 7º n.º 1 do CIRE, normas que deveriam ter sido aplicadas.
Termina por pedir que se julgue materialmente competente para declarar a insolvência da recorrente, o Tribunal Judicial da Comarca de Gondomar, anulando assim a decisão vertida no douto despacho ora em crise e fazendo a Justiça que ao caso cabe.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como recurso de apelação.
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Dispensaram-se os vistos legais.
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Cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 685º- A CPC.
A questão a decidir consiste em saber se o tribunal Judicial de Gondomar é competente em razão da matéria para julgar a presente acção.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os actos e circunstâncias enunciadas no relatório.
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3. O direito

- Da competência em razão da matéria –

Na decisão em recurso, o juiz do tribunal “a quo” julgou incompetente em razão da matéria o tribunal de Gondomar para apreciar, julgar e decidir a presente acção, por considerar que em conformidade com o disposto no artº 89º, nº1, al. a), da Lei de Organização dos Tribunais Judiciais, a competência material para a declaração de insolvência é dos tribunais de comércio, mais propriamente do Tribunal de Comercio de Via Nova de Gaia.
A apelante defende, contudo, que a recorrente (devedor) é uma Associação de Solidariedade Social, sem fins lucrativos, pelo que não se poderá enquadrar na noção de sociedade comercial /empresa para efeitos do CIRE, nomeadamente a que decorre do seu artigo 5º. Por esse motivo, o Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia não tem competência para julgar a presente acção, na medida em que só tem competência para julgar os processos de insolvência se o devedor for uma sociedade comercial ou a massa insolvente integrar uma empresa.
A questão que se coloca consiste, pois, em apurar se a Autora reúne as características para ser considerada uma empresa, de acordo com o regime específico do processo de insolvência, pois como resulta do seu estatuto, não é uma sociedade comercial e por outro lado, se o tribunal de Gondomar – juízes cíveis – tem competência em razão da matéria para preparar, julgar e decidir a presente acção.
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A competência do tribunal constitui um pressuposto processual que resulta do facto de o poder jurisdicional ser repartido, segundo diversos critérios, por numerosos tribunais.
A competência abstracta de um tribunal designa a fracção do poder jurisdicional atribuída a esse tribunal.
A competência concreta do tribunal, ou seja, o poder do tribunal julgar determinada acção, significa que a acção cabe dentro da esfera de jurisdição genérica ou abstracta do tribunal.
A competência em razão da matéria distribui-se por diferentes espécies ou categorias de tribunais que se situam no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia (de subordinação ou dependência) entre elas.
Neste domínio funciona o princípio da especialização, de acordo com o qual se reserva para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do direito[1].
A “insusceptibilidade de um tribunal apreciar determinada causa que decorre da circunstância de os critérios determinativos da competência não lhe concederem a medida de jurisdição suficiente para essa apreciação”, determina a incompetência do tribunal, como observa Miguel Teixeira de Sousa[2].
Nos termos do art. 211º da Constituição da República Portuguesa, os tribunais judiciais constituem a regra dentro da organização judiciária e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais. Gozam de competência não discriminada.
Daqui decorre que os restantes tribunais, constituindo excepção, têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especialmente atribuídas.
O art. 89º/1 a) da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, na redacção do DL 8/2007 de 17/01, prevê que são da competência dos tribunais de comércio a preparação e julgamento do processo de insolvência se o devedor for uma sociedade comercial ou a massa insolvente integrar uma empresa.
A nova redacção do preceito surgiu na sequência das decisões do Tribunal Constitucional que consideraram inconstitucional[3], nos termos do 165º/1 p) da Constituição, a norma constante do art. 29º do DL 76-A/2006 de 29/03, na medida em que conferiu nova redacção à alínea a), ou seja, a atribuição aos tribunais de comércio de competência para preparar e julgar os processos de insolvência.
Daqui decorre, face ao actual regime, que os tribunais de comércio apenas têm competência para a preparação e julgamento do processo de insolvência se o devedor for uma sociedade comercial ou a massa insolvente integrar uma empresa.
No domínio do processo de insolvência o conceito de “empresa” tem um significado muito especifico, como decorre do art. 5º do Código de Processo de Insolvência (DL 53/2004 de 18/03 e que se manteve com as alterações introduzidas pela Lei 16/2012 de 20/04), onde se prevê:.
“Para efeitos deste Código, considera-se empresa toda a organização de capital e de trabalho destinada ao exercício de qualquer actividade económica”.
João Labareda[4] sublinha esta especificidade referindo que “ a noção de empresa facultada pela lei reveste uma índole eminentemente pragmática, válida apenas no âmbito do Código, sem que necessariamente lhe deva ser imputada outra pretensão ou alcance jus-cientifico”.
O critério diferenciador consiste no modo de prosseguir a actividade, não merecendo relevo o tipo ou natureza de actividade a prosseguir, ou ainda, a realidade jurídica em que a empresa se insere. Revela-se determinante o exercício de uma actividade económica sob a veste organizativa da concertação entre capital e trabalho[5].
O Código da Insolvência acolheu a noção de “empresa” sob uma perspectiva “objectivista[6]”, sendo assim encarada como objecto de direitos por parte do empresário.
Sob este prisma as realidades empresariais distinguem-se do exercício de profissões livres, na medida em que nestas verifica-se a indissociabilidade entre o produto ou serviço prestado e o próprio produtor ou prestador, já que capital e trabalho fundem-se na mesma pessoa[7].
Na integração do conceito de “empresa”, para efeitos do Código da Insolvência, observa Catarina Serra[8]: “[q]uanto à empresa, a lei define-a, simplesmente, como uma organização de capital e de trabalho destinada ao exercício de qualquer actividade económica (cfr. art. 5º). É uma noção minimalista, ainda mais vaga do que no regime anterior, o que lhe garante um grande alcance: não se exige qualidade comercial e por isso admitem-se as empresas agrícolas e de artesanato; não se exige profissionalidade ou sistematicidade no exercício da actividade e por isso admitem-se as “ empresas ocasionais”; não se exige fim lucrativo e por isso admitem-se as unidades de auto-consumo e as organizações com fim altruístico. Quando a empresa assume uma qualquer forma jurídica (pessoa jurídica ou património autónomo), é ela que está sujeita à declaração de insolvência; no caso contrário, o sujeito da declaração de insolvência é o seu titular”.
Na jurisprudência tem sido este o sentido interpretativo acolhido, podendo consultar-se, entre outros, o Ac. Rel. Porto 18.06.2008 (Proc. 0851075 – endereço electrónico: www.dgsi.pt) e Ac. Rel. Porto 26.09.2011 (Proc. 1614/11.9TBPVZ.P1 – endereço electrónico: www.dgsi.pt)
Defende, contudo, a apelante que a noção de empresa decorrente do art. 5º do CIRE pressupõe a existência de uma pessoa colectiva, cujo fim único ou principal é a obtenção de lucro.
Como se acabou de referir, para efeitos do processo de insolvência, “empresa” constitui toda a actividade económica desenvolvida, desde que assente numa organização que conjugue capital e trabalho e por isso, não constitui condição que a actividade seja exercida por uma pessoa colectiva, pois os próprios patrimónios autónomos, podem ser objecto de processo de insolvência (art., 2º do CIRE), como também não se exige que a actividade exercida vise a obtenção do lucro e por isso, estão incluídas neste conceito as associações com fim altruístico ou de solidariedade social.
Neste contexto e retomando a questão da competência, cumpre referir, como tem sido tradicionalmente aceite pela doutrina e pelos tribunais, que a competência do tribunal em razão da matéria determina-se por referência à data da instauração da acção e afere-se em razão do pedido e da causa de pedir tal como se mostram estruturados na petição[9].
No caso concreto, a requerente veio apresentar-se à insolvência, pelo que, na determinação do tribunal competente em razão da matéria deve atender-se ao critério do art. 89º da Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, conjugado com o art. 5º do Código da Insolvência.
Da análise dos fundamentos da petição resulta que a apelante é uma organização de solidariedade social que tem por objecto a prestação de serviços no âmbito do apoio à criança e jovens, a protecção dos cidadãos na velhice e invalidez e em todas as situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho e, a título secundário, promoverá a educação e formação profissional dos cidadãos.
Para o exercício da respectiva actividade dispõe de um local próprio, com equipamento de escritório (relação de bens que compõem o património), trabalhadores e ainda, de capital que obtém a partir de programas de financiamento a que se candidatou junto dos organismos oficiais. Presta os serviços que constam do seu objecto social a partir desta organização de meios – trabalho e capital - revestindo, por isso, as características de uma empresa, para os efeitos do art. 5º do Código da Insolvência.
Conclui-se, assim, atento o critério do art. 89º/1 a) da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais que por se tratar de uma empresa, o processo de insolvência deve ser preparado e julgado no Tribunal de Comércio, por ser o tribunal competente em razão da matéria.
Desta forma, não merece censura o despacho recorrido quando julgou incompetente o tribunal comum de Gondomar, para preparar e julgar a acção, ao abrigo do art. 101º, 102º, 494º, al. a), 495º, do C.P.C.
Contudo, no caso concreto, a decisão da excepção determina o indeferimento liminar da petição, já que a decisão foi proferida em sede de despacho liminar (art. 105º/1 CPC e art. 17º e art. 27º/1 a) do Código da Insolvência).
Improcedem, desta forma, as conclusões de recurso.
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Nos termos do art. 446º CPC as custas são suportadas pela apelante.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida, que julgou incompetente em razão da matéria o tribunal judicial de Gondomar, para preparar e julgar a acção e nessa conformidade, indefere-se liminarmente a petição.
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Custas a cargo da apelante.
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Porto, 17.06.2013
(processei e revi – art. 138º/5 CPC)
Ana Paula Pereira de Amorim
José Alfredo de Vasconcelos Soares de Oliveira
Ana Paula Vasques de Carvalho
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[1] Cfr. ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA, SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2ª edição Revista e Actualizada de acordo com o DL 242/85, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pag. 195.
JOÃO DE CASTRO MENDES Direito Processual Civil, vol I, Lisboa, AAFDL, 1980, 646.
[2] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, Lisboa, Lex, 1997, 128.
[3] Ac. nº 690/2006 de 19/12, DR, II série de 31.01.2007.
[4] LUÍS A. CARVALHO FERNANDES E JOÃO LABAREDA Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado “, reimpressão (notas actualizadas até Agosto de 2009), Lisboa, Quid Juris, 2009, pag.82).
[5] Cfr. LUÍS A. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado “, reimpressão (notas actualizadas até Agosto de 2009), ob. cit., pag. 82 a 84.
[6]. LUÍS A. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado “, reimpressão (notas actualizadas até Agosto de 2009), ob. cit., pag. 83.
[7] Cfr. LUÍS A. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado “, reimpressão (notas actualizadas até Agosto de 2009), ob. cit., pag.84 e ainda, Ac. Rel. Porto 26.09.2011 (Proc. 1614/11.9TBPVZ.P1 – endereço electrónico: www.dgsi.pt ).
[8] CATARINA SERRA, O Regime Português da Insolvência, 5ª edição revista e actualizada à luz da Lei 16/2012, de 20/04 e do DL 178/2012 de 03/08, V. N. Famalicão, Edições Almedina, SA, Setembro, 2012, pag. 35.
[9] Cfr. MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1993, pag. 91.
Na jurisprudência, entre outros, podem consultar-se: Ac. Rel. Porto 31.03.2011 – Proc. 147/09.8TBVPA.P1 endereço electrónico: www.dgsi.pt; Ac. STJ, CJ/STJ, 1997, I, 125; Ac. Rel Porto 07/11/2000, CJ, Tomo V/2000, pág. 184.