Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3193/23.3T8STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO DIOGO RODRIGUES
Descritores: APRESENTAÇÃO À INSOLVÊNCIA
SOCIEDADES COMERCIAIS
ESTATUTOS
Nº do Documento: RP2024030531933193/23.5T8STS.P1
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Não sendo o devedor uma pessoa singular, a iniciativa da sua apresentação à insolvência compete, por regra, ao órgão social incumbido da sua administração.
II - Só assim não será se faltar esse órgão ou se o mesmo estiver impossibilitado de funcionar.
III - No caso, não estando demonstrada nenhuma destas circunstâncias excecionais e prevendo os estatutos da sociedade Requerente que a sua representação em juízo compete ao Conselho de Gerência, que é constituído por três membros, não podem apenas dois deles tomar a iniciativa de a apresentar à insolvência sem demonstrar que previamente aquele órgão deliberou nesse sentido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3193/23.5T8STS.P1

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Sumário

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Relator: João Diogo Rodrigues;
Adjuntos: Artur Dionísio do Vale dos Santos Oliveira;
Anabela Andrade Miranda.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto,

I- Relatório

1- Neste processo de insolvência em que figura como Requerente, A..., Ldª, que se apresentou à insolvência por iniciativa dos seus gerentes, AA e BB, foi decidido, no dia 21/11/2023, que a apresentação à insolvência desta sociedade não foi deliberada pelo seu Conselho de Gerência, nem subsequentemente ratificada por todos os elementos que compõem aquele Conselho, pelo que, por falta de legitimidade ativa, indeferiu-se liminarmente a petição inicial.

É o seguinte o teor da fundamentação dessa decisão:

“Preceitua o art.º 19.º do CIRE que, não sendo o devedor uma pessoa singular capaz, a iniciativa da apresentação à insolvência cabe ao órgão social incumbido da sua administração, ou, se não for o caso a qualquer dos seus administradores.

Este preceito tem de ser conjugado com a norma da alínea a) do n.º 1 do art.º 6.º do mesmo diploma, nos termos da qual, para efeitos do CIRE, são considerados administradores (não sendo o devedor uma pessoa singular), aqueles a quem incumba a administração ou liquidação da entidade ou património em causa, designadamente os titulares do órgão social que para o efeito for competente.

Constituindo a administração um órgão plural – como sucede no caso vertente – coloca-se a questão de saber como é que o requerimento de apresentação à insolvência vincula a pessoa colectiva, quando é certo que existem três gerentes, e apenas dois subscreveram a procuração forense junta aos autos.

Ora, as sociedades por quotas são administradas pela gerência, que pode ser singular ou plural (art.º 252.º, n.º 1, do CSC). No caso dos autos, verifica-se que a gerência é plural, sendo composta por três membros, sendo que sobre o funcionamento da gerência plural rege o art.º 261.º do CSC que refere, no seu n.º 1, que, quando haja vários gerentes e salvo cláusula do contrato de sociedade que disponha de modo diverso, os respectivos poderes são exercidos conjuntamente, considerando-se válidas as deliberações que reúnam os votos da maioria.

No caso “sub judice” estabeleceu-se no pacto social que para obrigar a sociedade basta a assinatura de dois gerentes, e no que respeita à gestão e representação da sociedade em juízo (activa ou passivamente) e à sua vinculação neste domínio, afastou-se a regra da maioria, pois que fazendo depender a validade desta vinculação à intervenção do Conselho de Gerência, tal equivalerá a fazer depender a validade deste tipo de actos ou actuações à intervenção necessária dos três gerentes que compõem aquele Conselho de Gerência.

Como explica Alexandre Soveral Martins in “Da personalidade e capacidade jurídicas das sociedades comerciais”, 9.ª Edição, pág. 125 e ss., «Se a cláusula do contrato de sociedade exige que a sociedade seja representada por um número superior à maioria, essa cláusula que dispõe de modo diverso tem de ser respeitada para que a sociedade fique vinculada. Essa cláusula, como as restantes, é oponível a terceiros nos termos do disposto no art.º 168.º do CSC.»

Concluímos, assim, que face às regras do funcionamento da gerência que foram estipuladas no contrato social, o órgão social “gerência” da sociedade requerente só poderia apresentar esta à insolvência mediante uma actuação conjunta dos três sócios gerentes, quer em resultado de uma deliberação tomada por unanimidade, quer pela prática simultânea do próprio acto pelos três gerentes.

Esta leitura assume, no caso dos autos, verdadeira relevância e preponderância, quando é certo que, conforme já resultou provado na demanda que decidiu anular a deliberação tomada no sentido de afastar da gerência o gerente CC, existe evidente conflitualidade e visões diametralmente opostas entre os blocos existentes no Conselho de Gerência da sociedade em causa, e os quais opõem ao referido CC os outros dois gerentes. De resto, esta conflitualidade permanece acesa conforme se comprova pela pendência de nova ação, desta feita no J1 desta Instância Central, através da qual o referido CC pretende ver anulada a recente deliberação que terá sido tomada em assembleia, no sentido de deixar de existir qualquer remuneração arbitrada aos gerentes.

Diga-se, ainda, que a argumentação esgrimida pelos dois gerentes que subscreveram a procuração forense dos autos no sentido de estes serem bastantes para o efeito, sob pena de poderem incumprir com prazos legais e por isso serem responsabilizados, não pode ser julgada procedente, dado que as disposições do art.º 186.º e ss. do CIRE que estipulam a responsabilidade dos administradores das pessoas colectivas pelo incumprimento do dever de apresentação à insolvência, estabelecem presunções de culpa postergáveis, designadamente pela prova de que v.g. votaram no sentido da apresentação à insolvência (prova essa que facilmente será feita pela junção da acta da deliberação do órgão).-

Deste modo, e porque comprovadamente a apresentação à insolvência da sociedade requerente/apresentante não foi deliberada pelo Conselho de Gerência, nem subsequentemente ratificada por todos os elementos que compõem aquele Conselho, nos termos do art.º 27.º, n.º 1, alínea a), do CIRE, por falta de legitimidade activa, indefere-se liminarmente a presente petição”.

2- Inconformada com esta decisão, dela interpôs recurso a referida sociedade, finalizando a motivação do mesmo com as seguintes conclusões:

“A) O Tribunal recorrido indeferiu liminarmente o pedido de insolvência pela Recorrente apresentado por alegada falta de legitimidade ativa, decorrente do mesmo não ter sido pelo seu Conselho de Gerência deliberado, nem subsequentemente ratificado por todos os elementos que compõem aquele Conselho, nos termos do art.º 27.º, n.º 1, alínea a), do CIRE.

B) Inexiste qualquer ilegitimidade ativa por parte da Recorrente em se apresentar à insolvência porquanto, conforme resulta do artigo 22º da pi. “A proposição da presente lide é da exclusiva competência da gerência da Requerente, nomeadamente dos seus gerentes de facto AA e BB, com poderes bastantes para vincularem a sociedade e a quem compete deduzir o presente pedido, nos termos dos artigos 18º nº 1 e 19º, ambos do CIRE.”

C) Conforme resulta do artigo 10º nº 3 do seu pacto social já junto a estes autos, a Recorrente fica vinculada pela assinatura de dois gerentes, o que “in casu” foi escrupulosamente respeitado.

D) O Tribunal recorrido ao exigir uma ata do Conselho de Gerência, um ato meramente formal cuja deliberação iria, inevitavelmente, no sentido da imediata apresentação à insolvência atenta a maioria que representam os gerentes subscritores da procuração forense, levaria inevitavelmente ao atraso na propositura desta lide, com a consequente violação do disposto no artigo 18º nº 1 do CIRE.

E) Do pacto social não resulta a necessidade de existirem deliberações unânimes quanto a qualquer ato, seja ele qual for, mormente no domínio da gestão e representação da sociedade em juízo e, em concreto, quanto ao presente pedido de insolvência, não se afastando assim da regra da maioria.

F) Antes pelo contrário, a regra da maioria assenta em praticamente todos os atos societários, sendo certo que do mesmo resultam situações em que uma única assinatura é suficiente, conforme resulta de forma transparente do já supramencionado artigo 10º nº 3.

G) O Tribunal recorrido omite de que a obrigatoriedade da apresentação tem sobre si ínsita, para além da realização do ato em si mesmo, um prazo para a efetivar extremamente curto.

H) Com efeito, os gerentes só possuem trinta dias para apresentar a sociedade à insolvência nos termos do artigo 18º nº 1 do CIRE sob pena de terem de arcar com as consequências do disposto no artigo 186º nº 3 al. a) do mesmo Código.

I) Assim, sendo certo que os gerentes da Recorrente poderiam vir a provar a sua intenção de a apresentarem à insolvência, a verdade é que nunca o conseguiriam no período temporal a que se encontram legalmente adstritos, com todas as nefastas consequências pessoais que sobre si impediriam.

J) O Tribunal recorrido violou o disposto nos artigos 19º e 27º nº 1 al. a), ambos do CIRE”.

Termina pedindo que se revogue a decisão recorrida e se ordene ao Tribunal “a quo” que declare a insolvência da Recorrente.

3- O Ministério Púbico, apesar de notificado da decisão recorrida e deste recurso, não respondeu.

4- Recebido o recurso e preparada a deliberação, importa tomá-la.


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II- Mérito do recurso

A- Definição do seu objeto

Esse objeto, como é sabido, é delimitado, em regra e ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, pelas conclusões das alegações do recorrente [artigos 608º, nº 2, “in fine”, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, todos do Código de Processo Civil (CPC) “ex vi” artigo 17.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE)].

Assim, seguindo este critério, a única questão a solucionar neste recurso é a de saber se, no caso, não ocorre a falta de legitimidade ativa para a apresentação da Apelante à insolvência.


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B- Fundamentação de facto

Na decisão recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:

a) A sociedade A..., Ldª, apresentou-se à insolvência, juntando para o efeito uma procuração forense a favor do ilustre mandatário subscritor da petição inicial junta aos autos, a qual se encontra assinada pela gerência e onde consta os nomes de AA e BB;

b) Na petição inicial que deu origem aos presentes autos, consta que a proposição da presente lide é da exclusiva competência da gerência da requerente, nomeadamente dos seus gerentes de facto AA e BB, com poderes bastantes para vincular a sociedade, nos termos do art.º 18.º e 19.º do CIRE (cfr. art.º 22.º da aludida peça processual);

c) Alegou, a referida gerência, que por força da decisão proferida no âmbito do processo n.º 1345/21.8STS.P1, confirmada recentemente por acórdão da Relação do Porto, vê-se a sociedade apresentante vinculada a reintegrar anterior gerente que havia sido destituído em assembleia geral, e a proceder ao pagamento da totalidade dos seus vencimentos desde a data em que ocorreu tal destituição (21.04.2021) até à presente data, é dizer, € 236.006,03, valor que a devedora não logrará liquidar, nada mais restando a não ser a presente apresentação à insolvência;

d) Da lista dos seus 5 maiores credores, e da lista dos credores a que alude a alínea a) do n.º 1 do art.º 24.º do CIRE, constata-se que os maiores credores deterão, na leitura da devedora, créditos subordinados (sociedades com especiais ligações à ora sociedade apresentante);

e) Dos estatutos da Sociedade Apresentante consta, no seu artigo nono, ponto 1, que “A gestão da sociedade e a sua representação em juízo, activa ou passivamente incumbe ao Conselho de Gerência que é constituído por três membros, eleitos pela Assembleia Geral, que fixará o respectivo regime e período de Mandato”, sendo que no seu artigo décimo consta “1- Ao Conselho de Gerência compete representar e gerir a sociedade, nos termos da lei e do pacto social; (…) 3 – Para obrigar a sociedade é necessária a assinatura de dois gerentes, salvo para actos de mero expediente e de movimentação de contas bancárias até ao limite que vier a ser fixado pela Assembleia Geral, nos casos em que basta uma única assinatura.”;

f) Do teor da certidão permanente junta aos autos da sociedade apresentante, consta, na parte referente à gerência a identificação de BB e AA, mais constando ali registada a pendência de acção no J1 desta Instância Central do Comércio (processo n.º 1409/23.7T8STS entrado em 02.05.2023) com o pedido de ser declarada a anulação da deliberação social tomada na Assembleia Geral realizada no passado 30 de março relativamente à remuneração dos gerentes, ação intentada pelo gerente CC com vista a anular deliberação aprovada no sentido de cessar qualquer remuneração a qualquer gerente (tudo como flui da certidão junta aos autos datada de 14.11.2023, e cujo teor aqui damos por reproduzido);

g) Não houve deliberação do Conselho de Gerência no sentido de ser apresentada a sociedade “A...” à insolvência;

h) Ouvida a sociedade apresentante, pela mesma foi dito que entendia redundante estar a dar lugar a reunião do Conselho de Gerência, dada a posição já assumida pelos dois gerentes acima identificados, e que face aos prazos para apresentação à insolvência qualquer atraso poderia redundar em desrespeito à lei;

i) A decisão que decidiu anular a deliberação consistente na destituição do gerente CC (por alegada justa causa que não foi comprovada), transitou em julgado aos 02.11.2023, tudo conforme flui do teor da certidão junta aos autos (processo 1345/21.1T8STS), que aqui se dá por integralmente reproduzida;

j) A presente demanda deu entrada em juízo aos 30.10.2023.


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C- Fundamentação jurídica

A questão nuclear a decidir no presente recurso é apenas a de saber quem tem legitimidade para apresentar a Apelante à insolvência: se os dois gerentes que outorgaram a procuração ao Mandatário que subscreveu o requerimento inicial, como defende a Apelante, ou o Conselho de Gerência, “quer em resultado de uma deliberação tomada por unanimidade, quer pela prática simultânea do próprio acto pelos três gerentes”, como se decidiu na sentença recorrida.

A lei, a este propósito, prescreve o seguinte: “Não sendo o devedor uma pessoa singular capaz, a iniciativa da apresentação à insolvência cabe ao órgão social incumbido da sua administração, ou, se não for o caso, a qualquer um dos seus administradores” – artigo 19.º do CIRE.

Numa primeira leitura, pareceria, assim, que a solução da questão antes enunciada era simples: sendo a Apelante uma sociedade comercial por quotas, em que a sua administração compete a um Conselho de Gerência, é a este último, e a mais ninguém, que incumbe a referida iniciativa.

A verdade, porém, é que nem a lei, nem a realidade são sempre tão lineares. Casos há em que o órgão social responsável pela administração da sociedade existe, mas não funciona ou não pode funcionar, pelas mais variadas razões (porque, por exemplo, um dos seus membros morreu e ainda não foi substituído), e, nessas hipóteses, ocorrendo uma situação de insolvência, atual ou iminente, a transcrita disposição legal não é inequívoca sobre a solução a adotar.

Por isso mesmo, a doutrina e jurisprudência têm dado respostas diferenciadas.

O Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 23/01/2023 ([1]), fez uma síntese dessas respostas, que nos parece útil transcrever, apesar da sua extensão:

“Num sentido mais favorável à iniciativa de qualquer administrador na apresentação à insolvência de sociedade comercial pronuncia-se Pedro Pidwell [] nos seguintes termos:

“Assim, atendendo a que o órgão social incumbido da administração, por via de regra funciona, ou deve funcionar, de forma colegial, a questão está em saber se um gerente/administrador de forma isolada e contra a decisão do órgão a que pertence, ou simplesmente face à sua omissão, pode ou não, por sua iniciativa exclusiva dar cumprimento ao dever de apresentação à insolvência, iniciando o processo através da apresentação do respectivo requerimento. À primeira vista, o próprio código responde à questão pela negativa, porquanto o requerimento inicial deve ser instruído com o documento comprovativos dos poderes dos administradores que representem o devedor e com a cópia da acta que documente a deliberação da iniciativa do pedido por parte do órgão social [segue a nota de rodapé nº 410 com o seguinte teor: Art. 24.º, n.º 2, alínea a)]. Ora, face à possível dificuldade, em fazer tudo como determina a norma, dificuldade que é de monta, devem ser tidos em conta os interesses envolvidos, particularmente os interesses dos credores, e considerar admissível a possibilidade do requerente justificar a não apresentação de tais documentos [segue a nota de rodapé nº 411 com o seguinte teor: Art. 24.º, n.º 2, alínea b), primeira parte.]. Por isso, propende-se, a responder pela afirmativa à questão, em primeiro lugar porque o alcance do preceito é amplo, no sentido de conferir aos titulares do órgão de administração o poder/dever de tomar a decisão de apresentação à insolvência, independentemente do modo como se organizam e distribuem as competências para o exercício de direitos e cumprimento de obrigações que incubem [sic] ao devedor. Em segundo lugar, face ao regime previsto no que tange à qualificação da insolvência [segue a nota de rodapé nº 412 com o seguinte teor: Art. 186.º, n.os 3 e 4 (que remete também para o n.º 2).], onde se comina a aplicação de gravosas sanções, para os administradores individualmente considerados, no caso de a insolvência ser qualificada como culposa. A ser assim, não faz sentido, que sendo as sanções de aplicação pessoal individual, não seja reconhecida aos administradores a possibilidade de se salvaguardarem da sua aplicação, através da apresentação à insolvência por sua iniciativa, mesmo que em oposição a qualquer deliberação em sentido contrário.”

Num registo menos permissivo pronuncia-se Filipe Cassiano dos Santos [6], nos seguintes termos:

“A apresentação das pessoas colectivas à insolvência cabe ao seu órgão de administração, ou, nas palavras da lei, “se não for o caso, a qualquer administrador” (art. 19.º). A expressão “se não for o caso” não é clara, e deixa por saber exactamente quando é que o administrador pode intervir directamente (isto é, sem o órgão de que faz parte). A resposta a este quesito tem de ser dada pela mobilização de dados exteriores ao preceito.

Por um lado, há que considerar que os administradores têm um interesse legítimo e individual na apresentação atempada: é que se esta não ocorrer, presume-se a culpa grave dos administradores, a qual permite a qualificação da insolvência como culposa (n.ºs 3, al. a) e 1 do art. 186.º do CIRE); e esta qualificação é susceptível de afectar o administrador – que terá que ilidir a presunção, provando que não houve contribuição do órgão para a criação ou agravamento da situação, ou, pelo menos, agora para evitar que a qualificação lhe seja estendida e que ele próprio seja afectado pelos efeitos graves previstos na lei (inabilitação e inibição para o exercício do comércio), terá que provar que não teve intervenção nos actos que conduziram à qualificação [segue a nota de rodapé nº (188) com o seguinte teor: Cf., infra, 7.11.].

Por outro lado, há que ter em consideração as regras próprias de competência e funcionamento dos órgãos colegiais, designadamente do órgão de administração das sociedades comerciais, as quais supõem sempre uma actuação num quadro institucional.

Diz a lei que os administradores poderão actuar, individualmente se “for o caso”. À luz de quanto se disse, é “o caso” sempre que o órgão não existir ou não estiver em funcionamento, mas também quando não é assim e o administrador suscitou institucionalmente, pelos modos próprios, a questão da insolvência e o órgão recusou a apresentação. Só assim se cumprem aquelas regras internas e o administrador não fica sujeito a que a maioria que se forme no órgão o submeta a riscos e mesmo consequências a que não é obrigado, a qualquer título, a suportar. Um administrador pode, pois, para lá dos seus poderes gerais, apresentar, por si só, a pessoa jurídica à insolvência, com base no disposto no art. 19.º do CIRE – ainda que tenha que fazer previamente a prova de que não há órgão ou ele não tem funcionamento ou de que o órgão recusou um pedido seu fundado para que deliberasse no sentido da apresentação.”

Num registo ainda menos permissivo sobre a questão objeto deste recurso, pronunciam-se Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões [7] nos seguintes termos:

“No caso de gerência/administração plural, tem sido aflorada a questão de saber se bastará qualquer membro do órgão de administração formular o pedido ou se será necessária uma deliberação colegial dos membros do órgão de administração. Maria José Costeira (“Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas revisitado”, in Miscelâneas do IDET, 6, Almedina, Coimbra 2010, pág. 59) defende ser necessária uma deliberação do “conselho de administração ou conselho de gerência”. Nessa posição é secundada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 26 de maio de 2009 (Proc. Nº 1477/08.1TYLSB.L1-1), relatora Maria Rosário Barbosa: “1. Sendo a requerente uma sociedade por quotas administrada por um sistema de gerência plural, a iniciativa de apresentação à insolvência cabe aos seus gerentes conjuntamente sendo obrigatória a junção de cópia da acta da deliberação da gerência. 2. A falta de junção da deliberação dos gerentes com vista à instauração da acção implica a falta de prova da legitimidade do apresentante”.

Não concordamos com tal posição no que respeita às sociedades por quotas, cujo órgão de administração (a gerência) não funciona, regra geral, de forma colegial (só muito pontualmente os sócios convencionam a existência de um conselho de gerência, sendo tal convenção inclusivamente de legalidade duvidosa para alguns – v. Menezes Cordeiro, Manual de Direito das Sociedades, vol. II, 2ª edição Almedina, Coimbra 2007, pág. 426, nota 1187). Assim, fora desses casos excepcionais de gerência colegial, não será exigível a junção de qualquer deliberação colegial da gerência.”

Num registo algo ambíguo pronunciam-se Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda [8], escrevendo o seguinte:

“3. Ainda assim, o dever de apresentação comporta dois momentos ou etapas, que cabe distinguir. Um respeita, sem dúvida, à realização de diligências operativas que se traduzem na abertura do processo, mediante a entrega do requerimento inicial e demais documentação apropriada. Outro, porém, logica e cronologicamente anterior, reporta-se à decisão de recurso ao tribunal para dar satisfação ao dever legal.

Quanto ao primeiro, ele está inquestionavelmente coberto pela fattispecie normativa.

À semelhança, porém, do que sustentámos no Direito anterior (Código dos Processos Especiais, 3.ª ed., pág. 78), entendemos – e, na lei actual, ainda com mais razões, como se demonstrará de seguida – que o mesmo sucede com o segundo.

Na verdade, estatuído o dever de apresentação, a prática dos atos processuais necessários ao cumprimento, enquanto expressão operativa da sua satisfação, não poderia deixar de estar a cargo daqueles que, agora nas expressões do art.º 6.º, estejam encarregados da administração ou liquidação do património a atingir com a insolvência, ou, dos representantes do devedor, quando, sendo pessoa singular, não é, todavia, dotado de capacidade de exercício.          

De sorte que, se o sentido do art.º 19.º se esgotasse na confiança, aos administradores, do poder para, simplesmente, praticar os atos necessários à concretização da apresentação, ele seria totalmente inútil.

O alcance do preceito é, todavia, mais amplo, conferindo aos titulares da administração a faculdade legal de tomarem a decisão de apresentação à insolvência, independentemente do modo como se organizem e distribuam os poderes e competências para o exercício dos direitos, prática de atos e cumprimentos de obrigações que incumbem ao devedor.

Esta solução ganha nova pujança por força do regime que a lei desencadeia no caso de incumprimento do dever.

Como fundamentalmente se pode ver nos art.ºs 186.º, n.ºs 3 e 4, 188.º e 189.º, no caso de falta de apresentação atempada, os administradores ficam pessoalmente sujeitos a sanções diversas, de caráter pessoal e patrimonial. Ora, não pode razoavelmente aceitar-se que os administradores sejam penalizados pela falta de apresentação, se, simultaneamente, eles não estiverem investidos da competência necessária para decidir a instauração da ação.

É, pois, com este conteúdo amplo que deve entender-se a atribuição pela lei aos titulares da administração da iniciativa da apresentação à insolvência.

Esta asserção sai, aliás, reforçada com a referência expressa ao órgão social incumbido da administração, quando exista, como primeiro destinatário da competência, ponto em que a redacção final do preceito anotando diverge da do paralelo art.º 19.º do Anteprojeto, como se assinalou.

[…]

7. Se a administração constituir um órgão plural, põe-se a questão de saber como é que o requerimento de apresentação vincula o devedor.

Este não é, no entanto, um problema particular da apresentação. A resposta deve, por isso, ser comum à que resolve a questão de saber quais os procedimentos que hão de ser adotados para que o devedor, em geral, fique vinculado.

Não há, com efeito, nenhum motivo para sustentar que este art.º 19.º introduz mecanismos de exceção na vinculação do devedor.

Uma vez mais acode em favor deste entendimento a alusão à competência do órgão social incumbido da administração.

Há de, por isso, ser em consonância com este sentido que deve interpretar-se o n.º 2, al. a), do art.º 24.º, notando-se, sem embargo, que a atuação do devedor em desconformidade com aquele preceito – isto é, a falta de junção de documento quando aplicável – é causa de indeferimento liminar do requerimento, como resulta do n.º 2 do art.º 27.º.

Entretanto, para o caso de uma sociedade por quotas se encontrar sem gerentes – em virtude do que todos os sócios assumiram a gerência, em conformidade com o art.º 253.º, n.º 1, do C.S.Com. – entendeu o Tribunal da Relação de Lisboa que a iniciativa de apresentação caberá, então, a qualquer dos sócios-gerentes, sem necessidade de intervenção dos demais (ac. de 07-12-2010, proferido no proc. N.º 985/10.9TYLSB.L1-7). A decisão pode estribar-se na ideia de que, numa situação dessas, não existe, em rigor, um órgão social incumbido da administração, pelo que é aplicável a última parte do art.º 19.º).”

Finalmente, num sentido totalmente diverso do dos autores precedentemente citados, pronuncia-se Alexandre de Soveral Martins [9], do seguinte modo:

“O art.º 19.º também não é claro quanto a um outro aspeto. É dito ali que, se o devedor não é pessoa singular, «a iniciativa cabe ao órgão social incumbido da sua administração, ou, se não for o caso, a qualquer dos seus administradores». Mas quais são os casos em que a iniciativa não cabe ao órgão social incumbido da administração do devedor?

Aí se inclui, antes de mais, o caso em que o devedor não tem órgão de administração. E será também o regime aplicável quando o órgão de administração não pode funcionar porque já não tem em funções membros em número suficiente para tal. Porém, há que ter em conta o art. 253.º, 1, do CSC, de acordo com o qual a falta definitiva de todos os gerentes da sociedade por quotas tem como consequência que «todos os sócios assumem por força da lei os poderes de gerência, até que sejam designados os gerentes». Este regime valerá também para a apresentação do pedido de declaração de insolvência [segue a nota de rodapé nº 72 com o seguinte teor: Sobre o art. 253.º, 1, do CSC, v. Raúl Ventura, Sociedades por quotas, III, Almedina, Coimbra, 1991, p.39 e ss., Ricardo Costa, «Artigo 253.º», in J.M.Coutinho de Abreu (coord.), Código das Sociedades Comerciais em comentário, IV, 2.ª ed., Almedina, Coimbra 2017, p. 91-99, Diogo Pereira Duarte, «Artigo 253.º», in António Menezes Cordeiro (coord.), Código das Sociedades Comerciais anotado, 3.ª ed., Almedina, Coimbra 2020, p. 896-898.].

Que dizer se o órgão de administração está em funcionamento pleno, mas não delibera no sentido da apresentação à insolvência? Será que, nesse caso, um dos administradores pode sozinho apresentar o devedor à insolvência? Julgamos que não [segue a nota de rodapé nº 73 com o seguinte teor: Com outra leitura, Cassiano dos Santos, Direito comercial português, cit., p. 215, Pedro Pidwell, O processo de insolvência e a recuperação da sociedade comercial de responsabilidade limitada, cit., p. 100 e s., Adelaide Menezes Leitão, Direito da Insolvência, cit., p. 136 (aparentemente). Mais claro é o § 15ª, 1, da InsO, que faz menção aos «membros do órgão de representação».] Numa situação dessas, o administrador que receia as consequências da eventual qualificação da insolvência como culposa deve fazer cessar unilateralmente a relação com a sociedade, nos termos da lei aplicável ao caso concreto.”

Na jurisprudência, além dos dois acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa citados nas transcrições doutrinais que precedem e do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa e de um outro da Relação de Guimarães citados na decisão recorrida, recenseámos mais os seguintes acessíveis na base de dados da DGSI e que se identificam por ordem cronológica:

- acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 06 de fevereiro de 2014, relatado no processo nº 179/13.1TBPTB.G2[10] e que exigiu que a procuração para interposição de recurso numa insolvência por apresentação fosse subscrita por dois gerentes em conformidade com o que se dispõe no pacto social e isso independentemente de a apresentação à insolvência ter sido da iniciativa de apenas um dos gerentes e de isso ter sido considerado legalmente admissível em anterior acórdão;

- acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06 de março de 2014, proferido no processo nº 1017/13.0TBSJM-A.P1, em que se decidiu que numa sociedade por quotas em que o pacto social estabelece que a gerência compete a todos os sócios-gerentes, a apresentação à insolvência dessa mesma sociedade deve resultar de deliberação unânime dos gerentes”.

E, prossegue o Aresto que vimos transcrevendo:

“Que dizer?

Na nossa perspetiva, a referência legal em alternativa aparente [11] à iniciativa da apresentação à insolvência de pessoa coletiva pelo órgão incumbido da sua administração, ou, não sendo esse o caso, por iniciativa de qualquer um dos administradores, significa que apenas no caso de falta de órgão de administração da pessoa coletiva ou de impossibilidade de funcionamento desse órgão[12], essa iniciativa passa a competir a qualquer um dos seus administradores e tal como definidos na alínea a) do nº 1 do artigo 6º do CIRE.

A circunstância de os administradores de sociedade comercial poderem no caso de qualificação da insolvência desta como culposa vir a sofrer gravosas sanções não tem, a nosso ver, qualquer repercussão na interpretação do artigo 19º do CIRE.

De facto, se o legislador entendesse que tal circunstância relevava para a definição de quem podia tomar a iniciativa de apresentação de uma pessoa coletiva à insolvência, teria conferido essa iniciativa aos administradores em alternativa à que naturalmente compete ao órgão de administração e não apenas subsidiariamente, como resulta do aludido preceito.

Na falta de uma previsão legal desta natureza, no caso de gerência plural, resta ao administrador que não obtém o conforto da maioria dos gerentes na sua decisão de apresentação da sociedade comercial à insolvência curar de comprovar os seus esforços nesse sentido a fim de não vir ulteriormente a ser responsabilizado pelo incumprimento do dever de apresentação à insolvência (veja-se o artigo 186º, nº 3, alínea a) do CIRE)”.

Concordamos com este ponto de vista.

E, assim, porque a administração da Apelante é colegial e não está demonstrada a impossibilidade de funcionamento desse órgão, não pode a sua apresentação à insolvência ser feita apenas, como sucedeu na situação presente, por dois dos membros dessa mesma administração, sem esta ter deliberado previamente nesse sentido. E isso, ainda que aqueles membros representem a maioria do capital social.

Em primeiro lugar, por uma questão institucional. As sociedades comerciais atuam e vinculam-se através dos seus órgãos sociais. Mas a atuação dos titulares desses órgãos não pode ser feita à margem dos limites e condicionamentos legais. E se o for, essa atuação é ilegítima e ineficaz em relação a ela[2]. Ora, exigindo a lei que seja demonstrada a ocorrência de uma deliberação prévia do órgão de administração, não podem os seus membros, mesmo que representem a maioria do capital social, suprimir esse procedimento.

De qualquer modo, a verdade é que os estatutos da Apelante determinam que é ao Conselho de Gerência, e não apenas a alguns dos seus membros, que compete a representação da mesma em juízo. Representação que, ao contrário do que parece sustentar a Apelante, nada tem a ver com a vinculação da sociedade nos contratos que celebra com terceiros. Com efeito, uma coisa é a representação em juízo e outra, bem diferente, é a representação obrigacional no tráfego comercial, de que trata o artigo 261.º, n.º 1, do CSC[3]. E, no caso, não há dúvidas de que essa diferença foi assinalada nos ditos estatutos, exigindo que o primeiro tipo de representação seja assegurado pelo Conselho de Gerência. Logo, não pode deixar de ser este órgão a tomar a iniciativa da insolvência da Apelante e a desencadear o procedimento para a declarar oficialmente nesse estado.

Ou seja, em resumo, as razões esgrimidas por esta última no presente recurso não podem ser acolhidas e, nessa medida, a decisão recorrida não pode deixar de ser confirmada.


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III – Dispositivo

Pelas razões expostas, nega-se provimento ao presente recurso e confirma-se o decidido na sentença recorrida.


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- Em função deste resultado, as custas deste recurso serão pagas pelo Apelante – artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.


Porto, 5/3/2024
João Diogo Rodrigues
Artur Dionísio Oliveira
Anabela Miranda
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[1] Processo n.º 3706/22.0T8AVR.P1, consultável em www.dgsi.pt.
[2] Neste sentido, Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Vol. II, 6ª Edição, Almedina, pág. 567.
[3] Neste sentido, Ac. RP de 05/07/2011, Processo n.º 411/10.3TBLSD-A.P1, consultável em www.dgsi.pt.