Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
23808/16.0T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
DECISÃO PENAL CONDENATÓRIA
PRESUNÇÃO IURIS TANTUM
CONTRATO DE MÚTUO
NULIDADE
Nº do Documento: RP2023011023808/16.0T8PRT.P1
Data do Acordão: 01/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PROCEDENTE/DECISÃO REVOGADA.
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A inversão do ónus da prova prevista no art. 344º, nº 2 do Cód. Civil só pode ocorrer quando a parte contrária culposamente tenha tornado impossível a prova à parte com ela onerada.
II – A decisão penal condenatória, transitada em julgado, no respeitante ao autor e ao réu, que intervieram no processo crime na qualidade, respetivamente, de arguido e assistente, tem eficácia absoluta no que toca aos factos constitutivos da infração, que não poderão voltar a ser discutidos dentro ou fora do processo penal, sendo o julgamento desses factos definitivo quanto ao arguido.
III - A possibilidade de ilidir a presunção juris tantum estabelecida no art. 623º do Cód. de Proc. Civil, conferida a terceiros, nunca é concedida ao arguido condenado, mas apenas aos sujeitos processuais que não tiveram intervenção no processo criminal, em homenagem ao princípio do contraditório.
IV – Se o contrato de mútuo está ferido de nulidade, por falta de observância da forma legalmente prescrita, a consequência será a restituição de tudo o que tiver sido prestado, por força do art. 289º, nº 1 do Cód. Civil, acrescido dos juros moratórios contados desde a citação para a ação de condenação ou desde a interpelação extrajudicial admonitória para pagamento, se esta tiver ocorrido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 23808/16.0 T8PRT.P1
Comarca do Porto – Juízo Central Cível do Porto – Juiz 2
Apelação

Recorrente: AA
Recorrido: BB

Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e João Ramos Lopes


Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
O autor AA, residente na Rua ..., ..., ..., ... intentou a presente ação contra o réu BB, residente na Rua ..., ..., Porto, pedindo que seja declarado nulo o contrato de mútuo entre ambos celebrado e que o réu seja condenado a restituir ao autor a importância de 105.450,00€ acrescida de juros legais de 4% ao ano desde o dia .../.../2014 e até efetivo e integral pagamento.
Para tal efeito, o autor alegou que nos meses de julho, agosto e setembro de 2014 emprestou ao réu, faseadamente, a quantia total de 105.450,00€.
Devidamente citado, o réu contestou, excecionando a nulidade do processo por ineptidão da petição inicial. Alegou também que os valores que lhe foram emprestados pelo autor em várias parcelas não atingiram aquele valor, sendo quantias que lhe eram emprestadas no Casino para satisfazer o seu vício pelo jogo, quantias que deveriam ser restituídas a uma taxa de juro semanal de 10%, e que eram tituladas por cheques, cheques que iam sendo substituídos semanalmente por outros, acrescidos daquela taxa de 10%. Concluiu assim pela sua absolvição.
Foi proferido despacho saneador, onde se julgou improcedente a exceção de ineptidão da petição inicial. Mais se identificou o objeto do litígio e se enunciaram os temas da prova.
Realizou-se audiência de julgamento com observância do legal formalismo.
Seguidamente proferiu-se sentença que julgou a ação parcialmente procedente, declarou nulos por falta de forma os contratos de mútuo referidos nos autos, e condenou o réu, BB, a pagar ao autor, AA, a quantia de 25.800,00€, acrescida dos juros de mora legais que se vencerem desde a data da sentença e até efetivo pagamento.
Inconformado com o decidido, interpôs recurso o autor que finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:
A) Pretende-se com o presente recurso colocar em crise, desde logo, a matéria de direito, aplicável ao caso em concreto.
B) Relativamente ao ponto A) destas conclusões, pretende-se desde logo:
B1) Que seja declarado nulo todo o processado posterior à omissão alegada, e que prejudiquem as outras partes destes autos que dele sejam dependentes, ou seja que declare nula a Douta Sentença que agora se recorre.
B2) Pretende-se também, e na hipótese que assim não se entenda, o que só por mera cautela, por dever de patrocínio e por mera hipótese académica se coloca, que este Tribunal da Relação [formule] despacho no sentido do alegado e requerido pelo A./Recorrente, por forma a ser decretado que em face do comportamento do Réu/Recorrido (que culposamente e através do seu comportamento omissivo tornou mais oneroso ou impossível a prova dos autos), se inverta as regras do ónus da prova, conforme atrás melhor se alegou.
B3) Em todo o caso, pretende-se igualmente que os juros legais sejam calculados, não a partir da data da Douta Sentença de que agora se recorre, mas antes a partir da data em que o Réu/Recorrido foi judicialmente interpelado para pagar ao A. a quantia em crise, ou seja a partir do mês de Março de 2015.
C) Pretende-se igualmente colocar em causa a forma como foi decidida, apreciada e valorada a matéria de facto dos autos pelo Tribunal “a quo”, no sentido que a mesma deve ser reapreciada.
D) O objecto da reapreciação da matéria de facto em causa incidirá quer sobre a prova documental, sobre a confissão do Recorrido, quer sobre a prova testemunhal, quer sobre as declarações de parte do A./Recorrente, estas últimas gravadas.
E) Ora, e em face da prova produzida em Audiência de Discussão e Julgamento (prova documental aliás extensa, confissão, prova testemunhal e declarações de parte, já atrás melhor descriminadas, analisadas de forma criteriosa e alegadas), entende o Recorrente que a decisão correta deveria ser: 1 – Os factos que foram dados como provados, factos estes melhor descriminados e alegados em anterior B 1), Itens 1, 3, 5, 6 e 9, deveriam ter sido dados como totalmente não provados. 2 – O facto dado como provado em B1), no item 2 deveria apenas ter sido dado como parcialmente provado no sentido que para além daquelas entregas, ocorreram outras, cuja importância total alcançam o valor total e nunca inferior a 105.450,00€, importância total esta que não se encontra paga. 3 – Foram dados como não provados, e deveriam ter sido dados como provados, os factos mencionados e melhor descriminados em anterior B2, Itens 1 e 2, deste recurso.
F) Em face disso, ou seja em face do alegado nas anteriores alíneas destas conclusões, importa agora fazer o seu enquadramento legal e subsunção ao direito.
G) E atendendo ao atrás alegado nestas conclusões, só podemos pois concluir pela procedência total da ação (ou subsidiariamente como a seguir se alegará pela procedência parcial desta ação), nos termos a seguir alegados.
H) Em face do atrás exposto, alterando-se a decisão recorrida, quer quanto à matéria de direito (em primeiro lugar), quer quanto à matéria de facto (de seguida), todas atrás já melhor alegadas, explanadas e descriminadas, é evidente que não poderia o Meritíssimo Juiz “a quo” ter decretado a Douta Sentença que agora se recorre.
I) E não poderia desde logo a Douta Sentença em causa enferma de um vício insanável que é a nulidade.
J) Depois porque deveria ter invertido o ónus da prova.
L) E poderia ainda porque os juros legais, ao contrário do que foi proferido na Douta Sentença, deveria[m] ter sido calculado[s] a partir da data em que foi o Réu interpelado para pagar ao A,/Recorrente o valor peticionado.
M) Em todo o caso, deveria ter sido dado por totalmente procedente, por provada a presente ação, e em consequência disso, deveria ter sido o Réu/Recorrido condenado a pagar ao A./Recorrente a quantia de 105.450,00€, acrescida de juros desde a data da sua interpelação e até ao seu efetivo pagamento.
N) Ou caso assim não se entenda, e atento à confissão do Réu/Recorrido, pelo menos deveria a presente ação ter sido julgado parcialmente procedente por parcialmente provada, e em consequência disso ser o Réu/recorrido condenado a pagar ao A./Recorrente a quantia de pelo menos 42.000,00€, acrescida de juros legais desde a data da sua interpelação e até ao seu efetivo e integral pagamento.
O) Com custas a cargo Recorrido.
P) A douta sentença sob censura violou nomeadamente as normas dos arts. 195, 417, 344, 623, 624 do Cód. Proc. Civil; 341, 342, 344 do Cód. Civil, e o Dec. Lei nº 262/83.
Pretende assim que a sentença recorrida seja revogada e substituída por outra que:
- em primeiro lugar julgue nula a sentença recorrida;
- caso assim não se entenda declare invertido o ónus da prova;
- em todo o caso julgue a presente ação totalmente procedente por provada e, em consequência, condene o Réu/Recorrido a pagar ao A./Recorrente a quantia de 105.450,00€ acrescida de juros legais desde a data da sua interpelação e até ao seu efetivo pagamento;
- ou subsidiariamente julgue a presente acção parcialmente procedente e, em consequência, condene o Réu/Recorrido a pagar ao A./Recorrente a quantia de 42.000,00€ acrescida de juros legais desde a data da sua interpelação e até ao seu efetivo pagamento.
O réu não apresentou contra-alegações.
O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Neste despacho o Mmº Juiz “a quo” consignou o seguinte:
“Em nosso entender, a decisão recorrida não enferma das nulidades invocadas pelo recorrente, o que se declara para efeitos do disposto no art. 641 nº 1 do Código de Processo Civil.
Com efeito, cremos que, na sentença sob recurso, sucinta mas suficientemente, cumprimos o dever de fundamentação da matéria de facto imposto pelo art. 607 nº 4 do Código de Processo Civil, com recurso quer a documentos juntos aos autos e factos instrumentais, em que expusemos as nossas conclusões relativamente à análise da prova, bem como as dúvidas que alguns factos nos suscitaram e percurso lógico que levou à convicção deste tribunal.
Tal como na sentença sob recurso se referiu, da mesma constam os factos essenciais (e alguns instrumentais) para apurar se os actos e negócios jurídicos invocados pelas partes nos seus articulados são susceptíveis de gerar as consequências jurídicas por elas pretendidas, não tendo o tribunal de exaustivamente discriminar nos factos não provados aqueles que são completamente desprovidos de qualquer interesse para a apreciação das questões que são colocadas à sua apreciação e para a decisão final a proferir.”
Cumpre então apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
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As questões a decidir são as seguintes:
IOcorrência de nulidade, nos termos do art. 195º do Cód. de Proc. Civil, por omissão de pronúncia relativamente a requerimento apresentado pelo autor;
IIInversão do ónus da prova;
IIIImpugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto;
IVNulidade do mútuo/Juros moratórios
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Os factos dados como provados na sentença recorrida são os seguintes:
1 - O réu BB e o autor AA, conheceram-se no Casino ..., local que ambos frequentavam com assiduidade, o réu como jogador regular e o autor como pessoa que emprestava dinheiro a jogadores que tivessem perdido o dinheiro que levassem consigo e pretendessem continuar a jogar, cobrando um juro semanal de, pelo menos, 10% por esses empréstimos;
2- Assim, nessas circunstâncias, o autor emprestou ao réu, para que este continuasse a jogar, as seguintes quantias:
a) Em 25 de Julho de 2014, a quantia de 5.000,00€;
b) Em 28 de Julho de 2014, a quantia de 5.000,00€;
c) Em 06 e 07 de Agosto de 2014, respectivamente, as quantias de 10.800,00€ e 5.000,00€;
3- Por cada uma dessas entregas em dinheiro, o réu emitia e entregava ao autor cheque bancário com aqueles valores, acrescidos da referida taxa de juro semanal (cheques juntos aos autos);
[1]5- Em caso de não pagamento no acordado prazo de uma semana, o réu emitia e entregava ao autor novo cheque, a que iam acrescendo os referidos juros vencidos de, pelo menos, 10% semanais;
6- Nessa sequência, não efectuando o pagamento das quantias acima referidas, e[m] Outubro de 2014 o réu emitiu e entregou ao autor um cheque bancário, inscrevendo-lhe o montante de 104.500,00 euros, que correspondia às importâncias referidas em nº 2 supra, acrescida do valor dos juros semanais exigidos pelo autor;
7- Em relação aos factos acima descritos, correu termos o Processo Comum com Intervenção do Tribunal Singular nº 637/15.3T9PVZ, em que foi arguido o aqui autor e aí se tendo constituído assistente o aqui réu;
8- Nesse processo foi proferida a decisão final/sentença, transitada em julgado, que consta de fls. 302 a 313, que se dá aqui por integrada no seus dizeres e conclusões e que condenou o ali arguido, aqui autor, “por um crime de Usura Para Jogo, na forma continuada, art. 114.º, n.1, do DL 422/89 de 2/12 e artº 30º, n.2, e 226º, n. 1, do Cód. Penal, na pena de 200 dias de multa…”;
9- O réu não pagou ao autor nenhuma das quantias acima referidas.
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Foram considerados não provados os seguintes factos:
- Que o autor tivesse efetuado entregas em dinheiro ao réu no valor total de 104.500,00 euros;
- Que tais entregas do autor ao réu, fossem por este pedidas com outras finalidades, que não o poder continuar a jogar no casino.
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Passemos à apreciação do mérito do recurso.
I - Ocorrência de nulidade, nos termos do art. 195º do Cód. de Proc. Civil, por omissão de pronúncia relativamente a requerimento apresentado pelo autor
O autor/recorrente, no dia 14.6.2021, apresentou o requerimento que se passa a transcrever:
“(…)
1º Constata-se, sem qualquer margem para dúvidas, que o Réu continua a residir na morada já indicada.
2º Aliás, morada esta constante, quer em todos os documentos juntos aos presentes autos;
3º Quer inclusivamente aquela constante na procuração outorgada.
4º Por isso, e em virtude disso, constata-se, sem qualquer margem para dúvidas, que o réu não quer mesmo ser notificado ou citado no âmbito deste processo.
5º "Fugindo" ou arranjando estratagemas processuais lamentáveis, tudo com o objetivo de fugir às mãos da Justiça.
6º Chegando mesmo ao ponto, como se disse, de nem sequer levantar a correspondência que Este mesmo Tribunal envia para a sua morada.
7º Também já se percebeu que para o A., nomeadamente para a sua prova, é importante, mesmo imprescindível, o depoimento de parte do Réu.
8º Não prescindindo, em virtude disso o A., do seu depoimento de parte.
9º Assim sendo, e atendendo ao atrás alegado, o A. requer novamente a notificação do Réu para os fins em causa.
10º E porque o A. tem quase a certeza de que o Réu não receberá, mais uma vez, a notificação em causa; E porque o A. sabe que o Réu é visto de forma frequente em alguns casinos, nomeadamente o da ..., ..., ..., ..., ..., no ... e em ..., requer a V. Exª a sua notificação nos locais atrás mencionados.
11º Requer igualmente, nos termos e para efeitos dos arts. 172, 183 e 184, ambos do Cód. Proc. Civil, e emissão de mandados para os fins em causa.
12º O A., aquando da apresentação dos seus meios de prova, requereu, de entre outros, o depoimento de parte do Réu - vide meios probatórios do A..
13º E requereu pois entendia, e ainda hoje entende que através da seu depoimento haverão factos por si alegados que ficarão definitivamente provados.
14º Ora, durante todo este processo declarativo, nomeadamente durante a sua fase de discussão e julgamento, o Réu foi sucessivamente notificado para comparecer em audiência de discussão e julgamento a fim de prestar o seu depoimento de parte.
15º Tal como aliás já se alegou neste requerimento.
16º E, de todas as vezes que foi notificado para tal, e sem que tivesse qualquer justificação válida, o Réu vem sucessivamente impossibilitando a sua comparência neste Tribunal, tudo com o objetivo de evitar as suas declarações de parte.
17º Ora para isso, ou comunica ao Tribunal que se encontra doente; Ou arranja qualquer outra desculpa "esfarrapada"; Ou até se dá ao "luxo" de nem sequer receber as notificações que lhe são dirigidas por este mesmo Tribunal.
18º Notificações estas que como se disse, lhe são endereçadas para a única residência constante nos autos (aquela constante também inclusivamente na procuração por Ele Outorgada ao seu Ilustre Mandatário).
19º E tudo, como se disse, com aquele objetivo de evitar a toda a força prestar o seu depoimento.
20º Aliás, pasme-se o facto de, uma das razões que chegou mesmo a alegar para não comparecer na audiência de discussão e julgamento previamente designada, é que o não podia fazer, uma vez que supostamente não residiria na morada indicada.
21º Ora, e tal como já se alegou em anterior requerimento enviado a este Tribunal, mais concretamente no dia 4 de Abril de 2019 e cuja referência é a 32074706, requerimento este que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, tal motivo invocado é falso e totalmente injustificado.
22º Na verdade, num outro processo que correu termos no Tribunal Judicial de Vila do Conde, Juízos Locais Criminais, em que também era parte, mas aí demandante, foi o aqui Réu notificado para comparecer em audiência de discussão e julgamento e na mesma morada indicada destes autos.
23º Ora, mas porque nesse processo já lhe interessava depor como parte, compareceu em todas as audiências de discussão e julgamento.
24º Sendo que, nesse mesmo processo indicou como sua residência a mesma que consta nos autos.
25º Para além de que, foi nessa mesma residência que o aqui Réu, ai demandante, foi notificado.
26º Nesses autos, o Réu recebeu a notificação em causa.
27º Ora verifica-se pois, e sem qualquer margem para dúvida, que o Réu apresenta e arranja sempre desculpas pouco legais para não prestar o seu depoimento neste processo.
28º E fá-lo, pois bem sabe que ao prestar o seu depoimento, a grande maioria dos factos alegados pelo A., senão mesmo a sua totalidade, ficarão provados.
29º É pois também evidente que apesar de notificado para este efeito, e por diversas vezes, o Réu continua, e certamente continuará, a faltar às audiências de discussão e julgamento em causa.
30º Ou, mais grave do que isso, furta-se propositadamente às notificações que lhe são enviadas.
31º Ora, no nosso ordenamento jurídico, mais concretamente nos termos do art° 417 do Cód. Proc. Civil, todas as pessoas, incluindo e sobretudo as partes, têm o dever de prestar a sua colaboração ao Tribunal.
32º Respondendo por isso, para isso, e em consequência disso, às questões que lhes forem questionadas.
33º E, aquelas que se recusarem a colaborar, ainda que sendo partes, deverão, para além de serem condenadas em multa, deverá o Tribunal apreciar livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova.
34º Ora, a atuação do Réu nos autos é claramente reveladora de uma total falta de coloração e cooperação para a descoberta material dos factos controvertidos.
35º Mais; O Próprio Réu pretende com a sua conduta, de forma culposa, tornar impossível, ou pelo menos bastante mais difícil, a prova dos factos alegados pelo A..
36º E que de acordo com as regras do ónus da prova, competia ao A..
37º Razão pela qual deve esta recusa ser apreciada livremente pelo Tribunal, aplicando-se [concomitantemente] a inversão do ónus da prova, tudo nos termos e para efeitos dos arts. 417 n° 2 do Cód. Proc. Civil e 344 n° 2 do Cód. Civil.”
O réu/recorrido pronunciou-se sobre este requerimento, em 23.6.2021, nos seguintes termos:
1. Não corresponde à verdade que se constata que o Réu, ainda por cima, sem margem para dúvidas, que continue a viver na morada que teve.
2. E dizemo-lo com muita pena porque o Réu vítima de seu vício de jogo e dos agiotas que à volta pulularam teve que vender o monumento em que nasceu, foi criado e viveu.
3. Aliás tal facto é do conhecimento do Autor que por uns trocos lhe quis apanhar a Casa Solarenga do século XVII que foi sua.
4. É certo que os compradores lhe garantiram que lhe recebiam o correio.
5. E, como não tinha para onde ir, foi viver para Espanha, contactando muito raramente o signatário pelo telefone.
6. O Réu foi citado pessoalmente nos presentes autos como resulta do processo pelo que não se entende o alegado no artigo 4º e tem sido notificado, no âmbito do patrocínio judiciário, pelo seu mandatário constituído.
7. Acresce que o seu depoimento de parte não poderá ser diferente daquilo que alegou em sede de contestação – que o Autor o explorou, que lhe cobrava 10% à semana, contra cheques e que se efectivamente lhe começou por emprestar algum capital não é menos verdade que lhe pagou muito mais do que o que lhe emprestou enquanto pagou os juros usurários e criminosos de 10% à semana.
8. Senhor Juiz, não nos enganámos, eram mesmo 10% à semana.
9. Também é falso que o Réu frequente os casinos referidos no artigo 10º porque não tem meios para os custear e porque agora vive em Espanha.
10. Se aqui alguém anda a servir-se da Justiça para fins menos nobres não somos nós.
11. Quanto ao ponto II, o Réu nunca foi alvo de qualquer falta injustificada ou de qualquer sanção.
12. Agora que o Réu teme pela sua segurança sua segurança se tiver que vir ao Tribunal e dar de caras com o Autor e a testemunha que no casino exerce a actividade de seu guarda-costas, aí isso, teme.
13. Teme ser seguido e ser objecto de vingança física.
14. Enfim, tem medo, sim.
15. Acresce que é ao Autor, já condenado criminalmente pelo crime de usura, a quem compete provar o que alegou.
16. O Réu é claro na sua contestação.
17. Não há pois, qualquer fundamento para ser decretada a inversão do ónus da prova.”
Refere o autor, nas suas alegações de recurso, que o Mmº Juiz “a quo” não se pronunciou sobre o teor deste requerimento, nomeadamente sobre a questão da inversão do ónus da prova, com o que praticou omissão suscetível de influir no exame ou decisão da causa, apoiando-se para tal no art. 195º do Cód. de Proc. Civil.
Por isso, na sua perspetiva, deve ser declarado nulo todo o processado posterior à omissão em causa que dele seja dependente ou, pelo menos, deve ser declarada nula a sentença recorrida.
Vejamos.
O art. 195º do Cód. de Proc. Civil estatui o seguinte no seu nº 1:
«Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa
Resulta dos autos que o requerimento acima transcrito, apresentado pelo autor em 14.6.2021, não foi apreciado por parte do Mmº Juiz “a quo” que sobre ele se limitou a referir o seguinte no seu despacho de 1.9.2021: “Oportunamente, nos pronunciaremos sobre a pretensão do autor, caso se venha a revelar necessário (requerimentos e resposta de fls. 379 e 383, respectivamente).”
Não pode, porém, ignorar-se o regime do art. 199º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil, onde se estabelece quanto às denominadas nulidades secundárias, inominadas ou atípicas[2] que «…se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem ser arguidas enquanto o ato não terminar; se não estiver, o prazo para a arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer-se, agindo com a devida diligência
Ora, acontece que depois da apresentação do requerimento de 14.6.2021 por parte do autor e da lacónica posição que sobre ele tomou o Mmº Juiz “a quo” em 1.9.2021, remetendo a sua apreciação para momento ulterior, caso se viesse a revelar necessário, ocorreram três sessões de julgamento, respetivamente em 13.12.2021, 19.1.2022 e 17.2.2022.
Em nenhuma dessas sessões, e em particular na última, o autor, através do seu mandatário, arguiu fosse o que fosse relativamente à omissão de pronúncia sobre o seu requerimento de 14.6.2021 e ao relevo que essa omissão poderia ter para o exame e boa decisão da causa.
Se entendia que a ausência de posição expressa sobre esse requerimento era passível de configurar nulidade enquadrável no art. 195º do Cód. de Proc. Civil deveria tê-la arguido até ao término da audiência de julgamento e não remeter-se ao silêncio como o fez.
Deste modo, a eventual irregularidade processual cometida pelo Mmº Juiz “a quo”, por não ter sido tempestivamente invocada pelo autor, terá que se considerar sanada.
Improcede, pois, o recurso interposto pelo autor no segmento relativo à ocorrência de nulidade nos termos do art. 195º do Cód. de Proc. Civil.
*
IIInversão do ónus da prova
Sustenta depois o autor/recorrente, em conexão com a nulidade arguida e atrás desatendida em I, que a 1ª Instância deveria ter procedido à inversão do ónus da prova nos termos e para os efeitos dos arts. 417º do Cód. de Proc. Civil e 344º do Cód. Civil, o que se interliga com a reapreciação da decisão de facto igualmente pretendida por este.
Entende o recorrente que essa inversão do ónus da prova, que conforme se alcança da motivação de facto da sentença recorrida não foi feita, se justifica face ao comportamento omissivo do réu/recorrido que tornou mais onerosa ou impossível a prova dos autos.
Mas também aqui não lhe assiste razão.
Dispõe-se no art. 344º, nº 2 do Cód. Civil que há inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei do processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações.
Este artigo, que corresponde a uma manifestação da regra-mãe tu quoque[3], determina a inversão do ónus da prova sempre que a parte contrária tenha tornado culposamente impossível a prova do onerado, sem prejuízo de sanções processuais: de outro modo, o agente em causa iria tirar partido do ilícito próprio – cfr. MENEZES CORDEIRO, “Tratado de Direito Civil”, V, Parte Geral, 3ª ed., pág. 515.
Há aqui como que uma sanção, em termos probatórios, para a violação do dever de cooperação com vista à descoberta da verdade.[4]
Retornando ao caso dos autos, logo se verifica que nenhum motivo há para proceder à inversão do ónus da prova, até porque da ausência do réu na audiência de julgamento, e da consequente não prestação de depoimento de parte por este, não se infere que tal tenha tornado impossível a prova dos factos pelo autor sobre quem recaía o respetivo ónus.
Neste ponto, apesar do autor sustentar que seria através desse depoimento de parte que ficariam provados os factos por si alegados, senão na totalidade pelo menos na sua grande maioria, não poderá deixar de se assinalar que na sua contestação o réu alegou que não deve os montantes titulados nos cheques, nem sequer o montante de 42.000,00€, uma vez que os valores que entretanto lhe entregou, se os juros fossem normais, reduziriam substancialmente esse quantitativo, adiantando a seguir que o autor sempre imputava às entregas juros especulativos de 10% à semana.
Significa isto que o depoimento de parte do réu, face ao teor da contestação, a ser prestado não iria, seguramente, ter como resultado a prova dos factos alegados pelo autor na petição inicial pela via da confissão judicial.
Por isso, o réu sempre teria que buscar na produção de outros meios probatórios (documentais e/ou testemunhais) a prova dos factos por si alegados, de tal forma que inexiste fundamento para se proceder à pretendida inversão do ónus da prova, que, aliás, foi implicitamente afastada pelo Mmº Juiz “a quo” na sentença recorrida, em sede de fundamentação da decisão factual.
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IIIImpugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto
1. O autor/recorrente procedeu à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, pretendendo que sejam dados como não provados os factos constantes dos nºs 1, 3, 5, 6 e 9 [1 - O réu BB e o autor AA, conheceram-se no Casino ..., local que ambos frequentavam com assiduidade, o réu como jogador regular e o autor como pessoa que emprestava dinheiro a jogadores que tivessem perdido o dinheiro que levassem consigo e pretendessem continuar a jogar, cobrando um juro semanal de, pelo menos, 10% por esses empréstimos; 3- Por cada uma dessas entregas em dinheiro, o réu emitia e entregava ao autor cheque bancário com aqueles valores, acrescidos da referida taxa de juro semanal (cheques juntos aos autos); 5- Em caso de não pagamento no acordado prazo de uma semana, o réu emitia e entregava ao autor novo cheque, a que iam acrescendo os referidos juros vencidos de, pelo menos, 10% semanais; 6- Nessa sequência, não efectuando o pagamento das quantias acima referidas, e[m] Outubro de 2014 o réu emitiu e entregou ao autor um cheque bancário, inscrevendo-lhe o montante de 104.500,00 euros, que correspondia às importâncias referidas em nº 2 supra, acrescida do valor dos juros semanais exigidos pelo autor; 9- O réu não pagou ao autor nenhuma das quantias acima referidas].
Quanto ao facto nº 2 entende que deveria apenas ter sido dado como parcialmente provado no sentido de que, para além daquelas entregas, ocorreram outras cuja importância total alcança o valor total e nunca inferior a 105.450,00€, importância esta que não se encontra paga.
Por outro lado, sustenta ainda que deveriam ser dados como provados os factos que figuram como não provados [- que o autor tivesse efetuado entregas em dinheiro ao réu no valor total de 104.500,00 euros; - que tais entregas do autor ao réu, fossem por este pedidas com outras finalidades, que não o poder continuar a jogar no casino].
No sentido destas alterações refere o cheque constante dos autos, a documentação junta no articulado de resposta respeitante à anterior ação executiva, onde salienta a circunstância de o ora autor, na oposição aí apresentada, ter aceite a existência de um mútuo de 42.000,00€, o que, na sua ótica, configuraria confissão quanto a este montante mutuado, e ainda o depoimento/declarações de parte do próprio autor e os depoimentos das testemunhas CC e DD.
2. No tocante à prova gravada pretende o autor/recorrente, que não selecionou quaisquer excertos dos depoimentos embora tenha indicado as sessões em que foram produzidos, os marcos horários do seu início e do seu termo e as razões porque esses depoimentos motivariam alteração factual, que a mesma seja reapreciada na sua globalidade.
Apesar do cumprimento, por parte do recorrente, dos ónus previstos no art. 640º, nºs 1 e 2, al. a) do Cód. de Proc. Civil se situar longe da exemplaridade, iremos apreciar a sua impugnação fáctica, onde se incluirá a reapreciação da prova gravada.
3. O autor AA, ouvido em depoimento/declarações de parte, disse que entre julho e Setembro de 2014, em várias entregas (9 ou 10), emprestou ao Sr. BB (réu) à volta de 105.000,00€. Este disse-lhe que estava com dificuldades económicas e que tinha dívidas para pagar. Nunca lhe fez qualquer entrega no casino, salientando que não sabe o que ele depois fez ao dinheiro. Salienta também que o réu lhe passou o cheque de livre vontade preenchido totalmente por ele. Encontravam-se num café, na ..., perto do casino e foi aí que se realizaram as entregas em dinheiro. Nada lhe foi pago por conta das quantias que emprestou.
CC é amigo do autor desde 2012 e conhece o réu. Disse que no ano de 2014, durante alguns meses, o réu (Sr. BB) se encontrou muitas vezes com o autor (Sr. AA) num café na ..., tendo visto, em várias ocasiões, este a entregar dinheiro ao primeiro, em quantias grandes. O Sr. AA disse-lhe que emprestava dinheiro ao Sr. BB para um negócio que ele tinha e que este lhe passara um cheque – do Banco 1... -, que lhe mostrou, numa quantia aproximada a 100.000,00€. Também lhe mostrou uns papéis em que apontava o dinheiro que emprestava ao Sr. BB. Referiu que algumas vezes ia ao casino com o Sr. AA. Não sabe se o dinheiro emprestado era para jogo.
DD conhece o autor (Sr. AA) do café e do casino. Disse que era frequentador habitual do casino, tal como o réu. Encontravam-se, tal como outros, no café que fica ao pé do casino (...), por volta das 3/ 4 horas da tarde. Nesse café, o réu Eng. BB sentava-se numa mesa e o Sr. AA ia ter com ele. E nessas circunstâncias, durante um período que não soube precisar, viu o autor passar notas para o réu. Aliás, o próprio autor dizia que emprestara dinheiro ao réu, embora não dissesse quanto. Exclamou até que o Eng. BB ia lá (ao café) “por causa disso”. O Sr. AA mostrou-lhe, inclusive, um cheque com uma quantia aproximada a 100.000,00€, dizendo que era um cheque pela totalidade do dinheiro que o réu lhe devia. Não sabe o que o réu fazia ao dinheiro que lhe era emprestado. Perguntado sobre se viu o autor emprestar dinheiro a outras pessoas não soube responder, tendo no entanto exclamado “Eles fazem à calada!”.
4. Em sede de motivação da decisão de facto o Mmº Juiz “a quo” escreveu o seguinte:
“O tribunal fundamenta a sua convicção quanto aos factos que considerou provados e não provados nos documentos juntos aos autos, com especial enfoque, na decisão penal acima referida (e factos nela constantes), em que figurou o aqui autor como arguido e o aqui réu como assistente (por referência, nomeadamente, ao disposto nos arts. 623 e 624 do Código de Processo Civil, relativamente ao valor da anterior sentença penal, integrando o direito probatório civil material, ou seja, da eficácia probatória da fundamentação da sentença penal em processo civil, tudo em conjugação com as regras da experiência comum e no confronto com os seguintes depoimentos, na parte em que, por alguma forma, contribuíram para a convicção do tribunal:
O autor AA, negando embora que fossem empréstimos para jogo, afirmando que se encontravam em café, na ..., perto do casino, admitiu que efectuava os levantamentos em dinheiro naquele local (casino) para entrega ao réu;
DD foi também jogador frequente naquele casino. Conhece autor e réus de os ver por ali, no café e no casino. Encontrava-se com o autor e outros no café, cerca de 15/16 horas e depois iam para o casino, que ambos frequentavam, juntamente com outras pessoas com quem também se encontravam no café. Por vezes, cerca de uma vez por semana, o réu sentava-se numa mesa próxima e o autor ia ter com ele. Regressando à mesa, dizia que lhe emprestara dinheiro, tendo-lhe o autor mostrado um cheque; CC, amigo do autor desde cerca do ano de 2012, de quem é amigo, conhecendo o autor apenas de o ver pelo café e casino (como referido pela anterior testemunha). Durante o verão de 2014[5], muitas vezes se encontrava com o autor no café (como acima dito). Por várias vezes aparecia ali o réu, juntando-se com o autor numa outra mesa e vendo que algumas dessas vezes o autor lhe entregava dinheiro. Certa vez, por lho ter perguntado, o autor disse que lhe emprestava dinheiro, tendo-lhe mostrado um cheque e uns papéis em que apontava as contas entre ambos.
Os demais factos considerados não provados, assim o foram quer porque nenhuma prova foi efectuada quanto aos mesmos, quer porque a prova produzida não foi suficiente para este tribunal formar uma convicção segura quanto à sua veracidade.”
5. Elemento fundamental para a formação da convicção do julgador em 1ª Instância quanto aos factos provados e não provados foi a sentença condenatória, transitada em julgado, proferida no âmbito do processo comum com intervenção do tribunal singular nº 637/15.3T9PVZ, em que foi arguido o aqui autor e assistente o aqui réu, e em que o primeiro foi condenado pela prática de um crime de usura para jogo, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 114.º, nº 1, do Dec. Lei nº 422/89 de 2/12 e 30º, nº 2 e 226º, nº 1 do Cód. Penal – cfr. nºs 7 e 8.
Dispõe o art. 623º do Cód. de Proc. Civil que “[a] condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como os que respeitam às formas do crime, em quaisquer ações cíveis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração.”
Constata-se, pois, que neste preceito apenas se regula expressamente o valor probatório cível da sentença penal condenatória face a terceiros, aí se estabelecendo que nos casos em que estes sejam titulares de uma relação jurídica dependente da infração criminal, a sentença penal, conquanto proferida no âmbito de processo em que o terceiro não teve intervenção, representa uma presunção ilidível da ocorrência dos factos que sejam comuns aos que foram apreciados e considerados provados no processo penal.[6]
Nada dizendo esta norma legal quanto às partes propriamente ditas dever-se-á entender que o legislador quis significar que a sentença penal é tida como vinculante para as partes também no tocante aos fundamentos decisórios, ou seja, aos factos constitutivos da infração.[7]
Assim, a decisão penal condenatória, transitada em julgado, no respeitante ao autor e ao réu, que intervieram no processo crime na qualidade, respetivamente, de arguido e assistente, tem eficácia absoluta no tocante aos factos constitutivos da infração, que não poderão voltar a ser discutidos dentro ou fora do processo penal, sendo o julgamento desses factos definitivo quanto ao arguido, aqui autor.
A possibilidade de ilidir a presunção juris tantum estabelecida no art. 623º do Cód. de Proc. Civil, conferida a terceiros, nunca é concedida ao arguido condenado, mas apenas aos sujeitos processuais que não tiveram intervenção no processo criminal, em homenagem ao princípio do contraditório – cfr. Ac. STJ de 13.1.2010, proc. 1164/07.8 TTPRT.S1, relator Pinto Hespanhol, disponível in www.dgsi.pt..
Deste modo, foi acertada a posição assumida pelo Mmº Juiz “a quo” na sentença recorrida ao convocar, para formar a sua convicção, o teor da sentença penal, transitada em julgado, que condenou o aqui autor pela prática, no caso dos autos, de um crime de usura para jogo na forma continuada.
Considerou este que a factualidade dada como provada e não provada emergiu desta sentença condenatória penal em conjugação com as regras da experiência comum e com o teor dos depoimentos/declarações prestados pelo próprio autor AA e pelas testemunhas DD e CC, que atrás se deixaram sintetizados.
Ora, ouvidos estes depoimentos/declarações, na sua íntegra, entendemos que os mesmos não permitem afastar a convicção probatória formada pela 1ª Instância, largamente assente, conforme já se referiu, no conteúdo da sentença penal condenatória proferida no proc. nº 637/15.3T9PVZ.
Neste contexto, concluímos que o Mmº Juiz “a quo”, de forma correta, deu como assente que:
- o autor emprestava dinheiro a jogadores que frequentavam o Casino ..., cobrando um juro semanal de, pelo menos, 10%, o que fez com o aqui réu;
- por cada uma das entregas em dinheiro, o réu emitia e entregava ao autor um cheque bancário com aquele valor acrescido da referida taxa de juro semanal de 10% e se esse cheque não era pago no prazo de uma semana, o réu emitia e entregava um novo cheque, a que sempre iam acrescendo aqueles juros semanais;
- não tendo efetuado o pagamento de quaisquer quantias, em outubro de 2014, o réu emitiu e entregou ao autor um cheque no valor de 104.500,00€, que correspondia à totalidade das verbas que lhe tinham sido emprestadas, acrescidas dos referidos juros semanais;
- as quantias que o autor emprestou ao réu ascenderam ao valor total de 25.800,00€, divididas em três tranches de 5.000,00€ e uma de 10.800,00€.
Factualidade esta que, de resto, se compagina com o conteúdo da referida sentença penal condenatória, com a prova oralmente produzida na audiência de julgamento, com as regras da experiência comum, que manifestamente apontam o vício de jogo de que padece o réu como razão de ser dos empréstimos que lhe foram sendo efetuados pelo autor, e também com o conjunto da demais prova documental constante dos autos.
Acresce que o cheque emitido pelo réu no valor de 107.000,00€, face à natureza dos juros cobrados pelo autor, não permite concluir que os empréstimos efetuados por este se tenham situado em montante próximo desta quantia.
E quanto à fixação da quantia mutuada no montante de 42.000,00€, em virtude de o ora réu no âmbito de anterior oposição a execução que lhe foi movida pelo ora autor ter admitido este valor[8], importa referir que nos presentes autos, nos arts. 5º a 7º da contestação, este não aceitou sequer o empréstimo desta quantia ao alegar o seguinte:
“5º Mas não deve os montantes nele titulados, nomeadamente os €107.000,00 titulados pelo cheque que foi inicialmente dado à execução e agora é usado como prova invocada como essencial nos presentes autos.
6º Mas o Autor bem sabe que o Réu não lhe deve a quantia que peticiona.
7º Nem sequer o montante de €42.000,00, pois que os valores que o Autor lhe entregou, se os juros fossem normais, reduziriam substancialmente este quantitativo.”
Como tal, entendemos que nenhuma alteração se justifica introduzir na factualidade dada como provada e não provada, assim improcedendo o recurso do autor no tocante à impugnação da decisão fáctica.
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IVNulidade do mútuo/Juros moratórios
1. Dispõe o art. 1142º do Cód. Civil que «mútuo é o contrato pela qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.»
Da factualidade considerada assente decorre que o autor emprestou ao réu, em julho e agosto de 2014, a quantia total de 25.800,00€, em quatro tranches, sendo três de 5.000,00€ e uma outra de 10.800,00€, donde flui que entre ambos foi celebrado um contrato de mútuo.
Quanto à forma estatui o art. 1143º do Cód. Civil[9] que o mútuo de valor superior a 25.000,00€ só é válido se for celebrado por escritura pública ou documento particular autenticado e que, por seu turno, o mútuo de valor igual ou equivalente a 25.000,00€, mas superior a 2.500,00€ exige documento assinado pelo mutuário.
Verifica-se, pois, tal como se entendeu na sentença recorrida, que o presente contrato de mútuo, não tendo sido celebrado na forma legalmente prescrita, é nulo.
Com efeito, no art. 220º do Cód. Civil estatui-se que «a declaração negocial que careça da forma legalmente prescrita é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei.»
Esta solução – da nulidade - é pacificamente reconhecida na jurisprudência.[10]
Ora, perante a nulidade do mútuo há que recorrer ao regime do art. 289º, nº 1 do Cód. Civil, onde se preceitua o seguinte:
«Tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for viável, o valor correspondente
Como tal, sendo o contrato de mútuo nulo, por falta de forma, a consequência será a restituição, pelo mutuário, de tudo o que tiver sido prestado, por força do referido art. 289º, nº 1 do Cód. Civil.
Por conseguinte, o Mmº Juiz “a quo” concluiu que o réu terá que restituir ao autor a importância mutuada de 25.800,00€, mas quanto aos juros moratórios considerou que estes apenas seriam devidos a partir da data da sentença recorrida.
2. Este entendimento teve, em sede recursiva, a discordância do autor que pugna no sentido dos juros moratórios serem devidos, pelo menos desde o dia 18.3.2015, data em que alega ter sido o réu citado para os termos da execução com o nº 13638/14.0 T8PRT.
Conforme já atrás se referiu, declarado nulo por vício de forma um contrato de mútuo, por preterição da forma legal prevista no art. 1143º do Cód. Civil, fica o mutuário obrigado, pura e simplesmente, a restituir tudo o que houver sido prestado pelo mutuante.
Tratando-se de uma obrigação pecuniária, rege o princípio nominalista devendo, em consequência, a restituição ser feita pelo valor nominal que a moeda tinha, não havendo lugar a qualquer atualização do capital a restituir.
De qualquer forma, sempre serão devidos juros moratórios desde a citação para a ação de condenação ou desde a interpelação extra-judicial – admonitória - para pagamento, se a mesma tiver ocorrido.
Assim, deve ser restituído ao réu não apenas o capital mutuado mas também uma quantia equivalente ao montante dos juros de mora à taxa legal a contar, não da decisão recorrida, mas sim da citação – ou da interpelação admonitória se esta tiver tido lugar – como frutos civis que são (arts. 289º, 1270º, nº 1, e 212º do Cód. Civil), sendo que vale como interpelação a citação judicial para a presente ação de condenação – cfr. Ac. STJ de 18.9.2003, proc. 03B2325, relator Ferreira de Almeida, disponível in www.dgsi.pt..[11] [12]
Significa isto que no segmento relativo aos juros de mora o recurso interposto pelo autor merece parcial acolhimento, pelo que estes deverão ser contados desde a citação do réu para a ação, mantendo-se em tudo o mais o decidido pela 1ª Instância.
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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pelo autor AA e, em consequência, alterando-se o decidido, condena-se o réu BB a pagar ao autor a quantia de 25.800,00€ (vinte e cinco mil e oitocentos euros), acrescida dos juros de mora legais vencidos e vincendos desde a data da citação do réu para a presente ação e até efetivo e integral pagamento.

As custas serão em ambas as instâncias suportadas na proporção do decaimento, que se fixa em ¾ para o autor e ¼ para o réu.

Porto, 10.1.2023
Rodrigues Pires
Márcia Portela
João Ramos Lopes
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[1] Na sequência factual constante da sentença recorrida inexiste o nº 4.
[2] Cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., pág. 248.
[3] A fórmula tu quoque exprime a regra pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica não pode depois, sem abuso: - ou prevalecer-se da situação daí decorrente; - ou exercer a posição violada pelo próprio; - ou exigir a outrem o acatamento da situação já violada – cfr. MENEZES CORDEIRO, “Tratado de Direito Civil”, V, Parte Geral, 3ª ed., pág. 365.
[4] Como exemplo de inversão de ónus da prova, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA (in “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª ed., pág. 309) referem o caso em que a parte contrária inutilizou um documento que serviria ao autor para fazer a prova do fundamento do seu direito.
[5] Corrigiu-se aqui um manifesto lapso na indicação do ano – 2014 e não 2104.
[6] Cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., pág. 773.
[7] Cfr. RUI PINTO, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, 2018, pág. 192.
[8] Trata-se da execução nº 13638/14.0 T8PRT que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Instância Central – 1ª Secção de Execução – Juiz 6 -, a qual, por falta de título executivo, foi julgada extinta em 29.2.2016, decisão esta confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28.6.2016.
[9] Redação introduzida pelo Dec. Lei nº 116/2008, de 4.7., ainda atualmente em vigor.
[10] Cfr., por ex., Acs. STJ de 4.2.2014, proc. 2390/11.0 TBPRD-A.P1.S1 (João Camilo) e de 19.5.2005, p.05B1200 (Luís Fonseca), disponíveis in www.dgsi.pt.
[11] Cfr. MENEZES CORDEIRO, “Tratado de Direito Civil”, XII, Contratos em Especial (2ª Parte)”, reimpressão, 2020, pág. 237.
[12] Não se considera relevante para este efeito o ocorrido na execução nº 13638/14.0 T8PRT, que, aliás, foi julgada extinta por falta de título executivo.