Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6837/14.6T8PRT-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM CORREIA GOMES
Descritores: ACÇÃO PAULIANA
SENTENÇA
TÍTULO EXECUTIVO
INCIDENTE DE INTERVENÇÃO DE TERCEIRO
Nº do Documento: RP202001096837/14.6T8PRT-B.P1
Data do Acordão: 01/09/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A tutela multinível através do direito fundamental de acesso à justiça, conjugada com a garantia de acesso aos tribunais através do processo executivo, a possibilidade legal de na fase de execução haver a intervenção de terceiros, desde que esta esteja legalmente ancorada, seja a nível adjetivo, seja a nível substantivo, admite a possibilidade legal de existir a intervenção principal provocada no decurso de uma execução.
II - A procedência de uma ação de impugnação pauliana constitui título executivo contra o adquirente dos bens ou direitos transmitidos, podendo esses mesmos bens ou direitos ser penhorados no decurso da ação executiva movida contra o primitivo devedor, devendo para o efeito ser suscitada e admitida a intervenção principal nessa mesma ação executiva daquele adquirente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 6837/14.6T8PRT-B.P1
Relator: Joaquim Correia Gomes;
Adjuntos: António Paulo Vasconcelos; Filipe Caroço.
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto
I. RELATÓRIO
1. No processo n.º 6837/14.6T8PRT-B do Juízo de Execução do Porto, J3 da Comarca do Porto, em que são:

Recorrente/exequente: B…, Lda.

Recorridos/Executados: C…, Lda.; D…

foi proferida decisão em 11/set./2019, que indeferiu liminarmente o requerimento para intervenção principal provocada de E….
2. O exequente insurgiu-se contra esta decisão tendo interposto recurso da mesma em 30/set./2019, pugnando pela sua revogação, apresentando as seguintes conclusões:
a) O Despacho de 11-09-2019 proferido pelo douto Tribunal a quo com a referência 407094340 indeferiu o incidente de intervenção principal provocada deduzido pelo Recorrente/Exequente.
b) A argumentação usada pelo Tribunal a quo para justificar o indeferimento da intervenção de terceiros foi o facto de este incidente estar fora de hipótese em ações executivas.
c) No caso em concreto, a Exequente/Recorrente pretendia com o incidente deduzido em 28/08/2019 (com a referência CITIUS 23409535), executar uma decisão de impugnação pauliana que condenou na execução de dois quinhões hereditários na esfera da adquirente (E…) para pagamento da dívida do transmitente (D…) à Credora Exequente, ora Recorrente.
d) Explicando para melhor compreensão a tramitação antes do incidente: no âmbito de uma ação executiva (a decorrer desde 2012) a Recorrente/Exequente logrou descobrir que, não obstante a existência de dois quinhões hereditários suscetíveis de penhora na esfera patrimonial de um dos executados, os mesmos foram doados indevidamente e com intenção de dissipar o património do Executado,
e) Nesta senda, foi proposta uma ação de impugnação pauliana contra o Executando (transmitente) e a Aquirente que foi julgada procedente e foi declarada ineficaz a doação em relação à Recorrente, conferindo-se a possibilidade de executar os quinhões hereditários no património da Aquirente.
f) Ora, para ver o seu interesse assegurado e para se poder pagar à custa da execução dos correspondentes direitos, a Recorrente/Exequente propôs o incidente de intervenção principal provocada (cfr. artigo 316º do CPC) para chamar ao processo a Adquirente E…, por esta ser proprietária de bens garantes do crédito exequendo.
g) Salvo o melhor entendimento colhido pelos ilustres julgadores, decidiu mal o Tribunal a quo, por isso, o despacho não pode granjear.
h) Ao não permitir a dedução do incidente de intervenção principal, o Tribunal a quo violou normas jurídicas, fazendo uma interpretação e aplicação errada das mesmas, mais concretamente dos artigos 53º/ 1, 54º e 735º/2 do CPC, 818º do, 616º do CC, todos conjugados.
i) O artigo 818º do CC dispõe que “O direito de execução pode incidir sobre bens de terceiro, quando estejam vinculados à garantia do crédito, ou quando sejam objecto de acto praticado em prejuízo do credor, que este haja precedentemente impugnado.”
j) Direito esse que foi conferido à ora Recorrente nos termos do n.º 1 do artigo 616.º CC, mediante a condenação na ação de impugnação pauliana;
k) Aquela execução, como vimos já, pode ser deduzida em execução onde tal crédito já esteja peticionado (cfr. art 54.º/2 do CPC);
l) Acrescendo ainda que, o artigo 316º do CPC dispõe que “qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária”.
m) Resulta claro, da conjugação de todos os artigos indicados que, pretendendo-se penhorar bens de terceiro que não haja sido inicialmente demandado, mas que estão sujeitos a cumprimento da obrigação (como acontece no caso de procedência de uma ação de impugnação pauliana), antes de realizada a penhora deverá o exequente promover as diligências adequadas à inclusão desse terceiro no processo executivo com qualidade de executado e essa inclusão pode (e deve) ser feita através do incidente de intervenção principal provocada.
n) Voltando ao caso em concreto e subsumindo a lei à situação, podemos concluir que, à data em que foi instaurada pelo Recorrente/Exequente a ação de impugnação pauliana já se encontrava pendente a ação executiva, pelo que, para garantir a possibilidade de executar coercivamente os quinhões hereditários, o Recorrente/Exequente pretendeu fazer intervir a aquirente dos mesmos (Sra. E…).
o) Adicionalmente, cumpre ainda indicar que, a admissão do incidente de intervenção principal provocada também se justifica pela aplicação do princípio de economia processual e a aplicação prática do artigo 2º/2 do CPC, porquanto, a necessidade de se instaurar nova ação executiva titulada pela sentença de impugnação pauliana levaria a um sacrifício de meios e de custos que, para além de serem mais morosos e menos proveitosos, são processualmente desnecessários;
p) Estando assim claro que, com o indeferimento do incidente de intervenção principal provocada, o Tribunal a quo não está a permitir fazer uso de um instrumento legalmente previsto que evitaria a demora na tramitação da execução.
3. Admitido o recurso foi o mesmo remetido a esta Relação onde foi autuado em 05/nov./2019, proferindo-se o despacho preliminar e cumprindo-se os vistos legais.
4. Não existem questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento deste recurso.
5. Este recurso tem como objeto a admissibilidade da intervenção principal provocada que foi indeferida.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
1. O despacho recorrido
“Indefiro o requerido uma vez que a intervenção de terceiros está fora de hipóteses na acção executiva.
Com efeito, na esteira do entendimento jurisprudencial e doutrinal maioritário, entendo que na acção executiva não pode haver lugar a intervenção de terceiro.
[…]
Com efeito, a intervenção principal – quer espontânea quer provocada – apenas poderá ter lugar em sede de acção declarativa qua tale, isto é, anterior e independente de qualquer ação executiva.”
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2. Fundamentos do recurso
A Constituição estabelece no seu artigo 20.º, n.º 4 o direito fundamental a um processo justo, o qual compreende duas vertentes essenciais, que são o direito a um processo equitativo e a obtenção de uma decisão em prazo razoável, mas que se desdobra em outras dimensões, sendo uma delas o direito de acesso à justiça. A propósito o NCPC (Lei 41/2013, de 26/jun., DR I, n.º 121), estabelece no seu artigo 2.º a garantia de acesso aos tribunais, considerando como tal que “A proteção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar” (n.º 1), bem como que “A todo o direito, exceto quando a lei determine o contrário, corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação.” (n.º 2) – sendo nosso o negrito.
Por sua vez, o princípio da estabilidade da instância (artigo 260.º NCPC), pode ser sujeito a certas modificações, nomeadamente a nível subjetivo, ou seja, para a intervenção de novas partes, sendo uma delas através da intervenção de terceiros (artigos 261.º, 262.º, al. b), ambos do NCPC), estando esta previsão inserida no Livro II Do processo em geral, não sendo, por isso, um exclusivo do processo declarativo (Livro III), abrangendo igualmente o processo de execução (Livro IV). Assim, no que concerne à intervenção de terceiros, mais precisamente na modalidade principal, o artigo 311.º do NCPC estipula que “Estando pendente causa entre duas ou mais pessoas, pode nela intervir como parte principal aquele que, em relação ao seu objeto, tiver um interesse igual ao do autor ou do réu, nos termos dos artigos 32.º, 33.º e 34.º.” – o artigo 32.º diz respeito ao litisconsórcio voluntário necessário, o artigo 33.º ao litisconsórcio necessário e o artigo 34.º às ações respeitantes a ambos os cônjuges.
No âmbito do regime processual da ação executiva e de modo a reforçar a referida garantia de acesso aos tribunais, o NCPC veio consagrar certas regras para a intervenção de terceiros, que correspondem a desvios à determinação da legitimidade, sendo uma delas com carácter geral e outra com carácter específico, porquanto incide apenas sobre a penhora. Assim, de acordo com o artigo 54.º, consagra-se, entre outro enunciado, que “A execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro segue diretamente contra este se o exequente pretender fazer valer a garantia, sem prejuízo de poder desde logo ser também demandado o devedor” (n.º 2) e “Quando a execução tenha sido movida apenas contra o terceiro e se reconheça a insuficiência dos bens onerados com a garantia real, pode o exequente requerer, no mesmo processo, o prosseguimento da ação executiva contra o devedor, que é demandado para completa satisfação do crédito exequendo” (n.º 3). Mais acrescentou-se que “Pertencendo os bens onerados ao devedor, mas estando eles na posse de terceiro, pode este ser desde logo demandado juntamente com o devedor.” (n.º 4). Uma outra possibilidade é a exequibilidade da sentença contra terceiros (artigo 55.º do NCPC). Por sua vez e no que concerne à penhora o artigo 735.º, n.º 2 do NCPC, confere a possibilidade de que “Nos casos especialmente previstos na lei, podem ser penhorados bens de terceiro, desde que a execução tenha sido movida contra ele”. E a referência a bens de terceiros estende-se aos direitos de terceiros (artigo 778.º do NCPC).
No que concerne à impugnação pauliana, a sua procedência conduz à ineficácia dos actos que envolvam a diminuição da garantia patrimonial do crédito (610.º Código Civil), porquanto, tal como decorre do artigo 616, n.º 1 Código Civil, “Julgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os atos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei.”, sendo certo, de acordo com o subsequente n.º 4, que “Os efeitos da impugnação aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido”. E mais adiante na disciplina da realização coactiva da prestação, estipula-se no artigo 818.º, que “O direito de execução pode incidir sobre bens de terceiro, quando estejam vinculados à garantia do crédito, ou quando sejam objecto de acto praticado em prejuízo do credor, que este haja procedentemente praticado”. Podemos aqui encontrar na lei substantiva uma possibilidade legal de um terceiro ser demandado para satisfazer um direito de crédito, relativamente ao qual e ab initio o mesmo não era o sujeito passivo dessa relação creditícia, mas cujo património que lhe foi transmitido passou igualmente a responder pela dívida do devedor primitivo. Trata-se como que de uma “garantia real específica” e respeitante a um património de terceiro, que devido à ineficácia relativa dessa transmissão, passa a poder ser executada na medida do interesse do credor. No âmbito da impugnação pauliana, tem sido entendimento da jurisprudência que a sentença condenatória aí proferida, constitui título executivo contra o terceiro adquirente – Ac. TRP de 23/fev./2012 (Des. Maria Adelaide Domingues, acessível em www.dgsi.pt, assim como os demais a que se fizer referência).
A jurisprudência tem vindo ultimamente a ser mais compreensiva na admissibilidade da intervenção de terceiros no âmbito das ações executivas, como de modo persuasivo ficou expresso no Ac. TRC de 04/jun./2013 (Des. Carvalho Martins), ao considerar que “A admissibilidade dos incidentes de intervenção de terceiro no âmbito da acção executiva e respectiva oposição tem que ser analisada em face das circunstâncias do caso concreto, com vista a apurar se, nessas circunstâncias, estão ou não verificados os respectivos pressupostos legais e se a intervenção tem ou não a virtualidade de satisfazer um qualquer interesse legítimo e relevante e ainda se a intervenção implica ou não com a estrutura e a finalidade da acção executiva.” – no mesmo sentido expressou-se mais recentemente o Ac. TRG de 17/jan./2019 (Des. Fernando Fernandes Freitas). A propósito da existência uma garantia real por parte do credor/exequente o Ac. TRC de 17/jun./2014 (Des. Catarina Gonçalves), sustentou que “Pretendendo o exequente fazer valer, no processo de execução que instaurou contra o devedor, a garantia real do seu crédito e constatando-se que o bem sobre o qual incide essa garantia havia sido transferido para terceiro em momento anterior à propositura da execução, pode o exequente recorrer ao incidente de intervenção principal provocada para fazer intervir o aludido terceiro (que poderia ter demandado inicialmente) tendo em vista o prosseguimento da execução contra o devedor e contra o titular do bem onerado com a garantia real”. E perante uma garantia de terceiros, o Ac. TRC de 20/mar./2018 (Des. Jorge Arcanjo) alinhou neste posicionamento ao estatuir que “O art. 54º, nºs 2 e 3, do NCPC (chamamento do devedor) prevê uma situação de litisconsórcio voluntário, pelo que podendo a execução ser instaurada inicialmente contra a devedora, em litisconsórcio voluntário passivo, e alegando os executados (terceiros garantes) interesse atendível no chamamento, em face da compensação de créditos, deve admitir-se o incidente de intervenção principal provocada da devedora na acção executiva”. E mais recentemente num caso de impugnação pauliana o Ac. TRL de 07/jun./2018 (Des. Arlindo Crua), veio considerar numa situação semelhante à aqui em recurso, que “na pendência de processo de execução, impugnado, em competente acção de impugnação pauliana, procedentemente o acto de doação praticado em prejuízo do credor, ora Exequente, o direito de execução pode incidir sobre tal bem, ainda que pertencente a um terceiro (cf., artº. 818º, do Cód. Civil); - e, pretendendo-se obter o pagamento do crédito em execução através do património da obrigada à restituição, ou seja, perante um bem de terceira à relação obrigacional, esta tem necessariamente que figurar como demandada ou sujeito passivo na execução, sob pena do seu bem não poder ser penhorado – cf., artº. 735º, nº. 2, do Cód. de Processo Civil; - o que constitui situação análoga à legalmente prescrita no nº. 2, do artº. 54º, do mesmo diploma, como um desvio à regra geral de determinação da legitimidade no processo executivo; - pelo que, tendo sido a acção de impugnação pauliana intentada após a instauração da acção executiva, o Exequente pode requerer a intervenção principal da terceira adquirente para assegurar os efeitos da impugnação e poder prosseguir a execução.”
Nesta conformidade, atenta a tutela multinível anteriormente traçada a nível normativo, que passa pelo direito fundamental de acesso à justiça, a garantia de acesso aos tribunais através do processo executivo, a possibilidade legal de na fase de execução haver a intervenção de terceiros, desde que esta esteja legalmente ancorada, seja a nível adjetivo, seja a nível substantivo, como tem sido ultimamente acolhido pela jurisprudência, de que demos conta, não vemos razões para obstar à existência da intervenção principal provocada no decurso de uma execução. E como se pode constatar na situação em apreço, o que a recorrente pretende é executar o direito ao quinhão sobre certa herança que foi procedentemente impugnado, sendo considerada ineficaz em relação àquela a mencionada transmissão. Daí que o presente recurso, tenha plena procedência, impondo-se a revogação da decisão recorrida.
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Na procedência do recurso e não tendo havido oposição, as custas agora devidas entram em regra de custas a final – artigo 527.º, n.º 1 e 2 NCPC.
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No cumprimento do disposto no artigo 663.º, n.º 7 do NCPC, apresenta-se o seguinte sumário:
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III. DECISÃO
Nos termos e fundamentos expostos, delibera-se conceder provimento ao recurso interposto por B…, Lda. e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra a admitir a requerida intervenção principal provocada.

Custas deste recurso a entrar em regra de custas a final.
Notifique.

Porto, 09 de janeiro de 2020
Joaquim Correia Gomes
António Paulo Vasconcelos
Filipe Caroço