Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
21800/16.4T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
AVALISTA
LIVRANÇA EM BRANCO
PREENCHIMENTO ABUSIVO
RELAÇÕES IMEDIATAS
FACTOS NÃO PROVADOS
Nº do Documento: RP2019011021800/16.4T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 01/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS Nº159, FLS.232-241)
Área Temática: .
Sumário: I – O avalista de uma livrança em branco que interveio no pacto de preenchimento e mesmo no contrato que constitui a relação subjacente encontra-se no domínio das relações imediatas, e pode opor ao portador do título a excepção do preenchimento abusivo.
II – Se a defesa do executado se situa no domínio do direito cartular é-lhe lícito invocar a prescrição do direito cartular do portador do título, mas se a sua defesa se situa no domínio da relação subjacente, a prescrição que pode arguir é a direito de crédito subjacente.
III – Da circunstância de um facto não se ter provado, não é legítimo retirar a prova do facto inverso, contrário ou menor, devendo a decisão ser proferida como se esse facto não tivesse sido sequer alegado, aplicando-lhe as regras do ónus da prova.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2018: 21800.16.4T8PRT-A.P1
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Sumário
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório:
Por apenso à execução para pagamento de quantia certa que lhe move a B…, S.A., pessoa colectiva n.º ……….., com sede no Porto, veio o executado C…, contribuinte fiscal n.º ……….., residente no Brasil, deduzir embargos de executado.
Alegou que nunca foi notificado do vencimento e incumprimento da obrigação garantida, da denúncia ou resolução da obrigação garantida, dos montantes que se encontram em divida ou do preenchimento da livrança, o que foi feito segundo o livre arbítrio da exequente, na data que lhe apeteceu o que constitui um abuso de direito porquanto a data de vencimento da livrança só poderia ser a do vencimento da obrigação que lhe está subjacente.
Alegou ainda que a livrança dada à execução se encontra prescrita, actuando a exequente em abuso de direito ao apor-lhe aquela data de vencimento e que os embargantes não foram interpelados para proceder ao pagamento.
A embargada contestou alegando, em síntese, que a livrança em causa foi entregue para garantia do contrato de garantia bancária que juntou e pugnando pela improcedência dos embargos.
Após julgamento, foi proferida sentença, julgando os embargos parcialmente procedentes no que concerne aos juros de mora que julgou serem devidos apenas a contar a data em que o embargante foi citado na execução e não da data de vencimento aposta na livrança.
Do assim decidido, o embargante interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1.º O Recorrido está obrigado aos deveres de conduta impostos pela boa fé para o regular preenchimento da livrança.
2.º O direito do preenchimento da livrança pressupõe uma interpelação prévia dos devedores a converter a mora em incumprimento definitivo, assim como a subsequente comunicação de resolução do contrato.
3.º A interpelação admonitória, sem a comunicação da resolução, não foi realizada pela recorrida no presente caso.
4.º Até porque, atribuir-se a faculdade de preenchimento da data de vencimento de uma livrança quando se “achar conveniente” dificulta as condições para que a prescrição opera, o que determina a nulidade de tal cláusula, nos termos do artigo 300.º do CC.
5.º A data de vencimento terá de ser a data em que a sociedade foi declarada insolvente, pelo que, não tendo os avalistas sido interpelados, até para efeitos de interromper o prazo de prescrição, na data da propositura da acção, já há muito tinha ocorrido o prazo de prescrição previsto no artigo 70.º e 77.º da LULL.
Não foi apresentada resposta a estas alegações.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i) Se a livrança foi abusivamente preenchida por falta de interpelações que a exequente devia ter realizado previamente ao preenchimento.
ii) Se o direito cartular que o exequente pretende exercer se encontra prescrito.
III. Os factos:
Na decisão recorrida foram julgados provados os seguintes factos:
1- A exequente, enquanto Sociedade de Garantia Mútua (SGM) é uma sociedade financeira constituída sob a forma de sociedade anónima que tem por objecto a realização de operações financeiras e prestação dos serviços conexos, em benefício de pequenas e médias empresas e de microempresas.
2- No exercício da sua actividade, no dia 15 de Novembro de 2010, a exequente celebrou com a sociedade D…, S.A., um contrato, nos termos do qual, a pedido desta, a primeira prestou uma garantia bancária autónoma à primeira solicitação, com o n.º ………., a favor do Banco E…, S.A. (Banco), destinada a garantir o cumprimento da obrigação de pagamento de 60% de capital mutuado, no valor máximo de €90.000,00 (noventa mil euros), junta aos autos de fls. 43 a 50 e cujo teor aqui se dá por reproduzido.
3- A referida garantia bancária foi prestada no âmbito do contrato de mútuo celebrado entre o E… -Banco E… e a sociedade D…, S.A.
4- Para garantia das responsabilidades decorrentes da celebração da referida garantia bancária, a sociedade D…, S.A., entregou à exequente a livrança dada à execução, em branco, por si subscrita e avalizada, por C….
5- Consta da Cláusula Quarta do contrato de garantia bancária que: “Para garantia de todas as responsabilidade que para V. Exas. emergem do presente contrato, deverão entregar, nesta data, à SGM, livrança em branco por V. Exas. subscrita e avalizada pelas entidades abaixo indicadas, as quais expressamente e sem reservas dão o seu acordo ao presente contrato e às responsabilidade que para si emergem do mesmo. A referida livrança ficará em poder da B…, ficando esta, desde já, expressamente autorizada, quer pelo subscritor quer pelos avalistas, a completar o preenchimento da livrança quando o entender conveniente, fixando-lhe data de emissão e de vencimento, local de emissão e de pagamento e indicando como montante tudo quanto constitua o seu crédito sobre V. Exas..”
6- Do contrato de garantia bancária faz parte integrante a seguinte declaração, subscrita pelo legal representante da sociedade D… SA e pelo embargante na qualidade de avalista: “1) Damos o nosso acordo, em 15/11/2010 expresso e sem reservas, às condições emergentes da prestação de garantia pela SGM a favor do E….”
7- O beneficiário Banco E…, S.A., remeteu à exequente a carta junta a fls. 51, datada de 24 de Setembro de 2012, cujo teor aqui se dá por reproduzido e da qual consta: “Assunto: Accionamento da v/ garantia bancária nº 2010.15559, emitida em 15/11/2010, em nome e a pedido da D…, SA e a nosso favor. E… - Banco E…, SA declara ter comunicado em 14/09/2012 à sociedade D…, SA o vencimento antecipado do contrato de empréstimo (conforme cópia da carta em anexo), não lhe tendo sido paga por esta a importância de €100.000,00 (cem mil euros) (valor total do capital em divida) vencida em 22/09/2012. Faz esta declaração para o efeito de lhe ser paga a importância de €60.000,00 (sessenta mil euros) (valor do capital garantido pela B…), ao abrigo da garantia nº ………., emitida pela B… SA, assumindo inteira responsabilidade, nomeadamente, em relação à Garantida, por todas as consequências decorrentes de qualquer inexactidão das afirmações aqui feitas.”
8- Na sequência da interpelação referida em 7- a exequente emitiu o cheque junto por cópia a fls. 57, datado de 22-10-2012, no valor de €60.000,00 (sessenta mil euros) e à ordem do E… – Banco E….
9- A sociedade D… foi declarada insolvente por sentença proferida em 02-08-2012 e transitada em julgado em 27-08-2012.
10-A execução a que os presentes embargos correm por apenso foi instaurada em 31-10-2016.
IV. O mérito do recurso:
Antes de entrar propriamente na análise das questões jurídicas suscitadas pelo recorrente é necessário fazer uma precisão para evitar equívocos que perpassam pelas alegações de recurso.
A aplicação de normas jurídicas exige a prévia determinação dos factos que integram a respectiva previsão, já que só respeitando os factos que integram a previsão da norma se faz a correcta aplicação do direito, ou seja, das normas legais que associam a determinado facto ou factos consequências jurídicas específicas. A determinação dos factos que constituem a previsão da norma é, num primeiro momento, uma tarefa de apuramento, entre todos os factos que podiam ter lugar, aqueles que efectivamente ocorreram, na medida em que a norma jurídica regula factos e não hipóteses, eventos e não meras suposições.
Por esse motivo, a fundamentação de facto de uma decisão é constituída exclusivamente pelos factos provados. Apenas podem servir de fundamento à decisão os factos que o tribunal julgou provados, os factos em relação aos quais o tribunal, enquanto órgão jurisdicional cuja primeira tarefa é ajuizar os meios de prova e através deles apurar os factos que ocorreram, formula soberanamente um juízo de afirmação de correspondência com a realidade ontológica.
Os factos em relação aos quais o tribunal entendeu não ter sido produzida prova bastante para poderem ser julgados provados não podem servir de sustentáculo à aplicação de qualquer norma jurídica. Se não se sabe sequer se o facto ocorreu não pode obviamente decretar-se a consequência jurídica que o legislador definiu para o caso de o facto ser real.
Daí que em relação aos factos de que não se fez prova tudo se passe como se esse facto não tivesse sido sequer alegado, não podendo fazer-se a partir dele qualquer extrapolação factual ou retirar-se dele qualquer consequência jurídica, com excepção da imposta pelas regras do ónus da prova. Não pode, por exemplo, fazer-se qualquer interpretação à contrario dos factos não provados, retirar-se da não prova de determinado facto a prova do facto contrário, oposto ou menor. Também não se pode, a partir de factos não provados, fazer-se qualquer dedução baseada em regras de experiência ou presunções, as quais apenas podem recair sobre os factos provados.
Coisa diferente consiste em saber qual a parte que estava onerada com o dever de fazer a prova de determinado facto. Essa determinação é importante porque se um determinado facto não tiver sido julgado provado o tribunal deve decidir contra a parte que tinha o ónus de o provar, conforme resulta dos artigos 346.º do Código Civil e 414.º do Código de Processo Civil que contém a chamada regra de julgamento. Só que nessa situação, para fundamentar a decisão o tribunal não retira da não prova do facto a prova do facto oposto ou inverso. Da circunstância de o facto não ter sido julgado provado, o julgador apenas retira a improcedência da pretensão da parte que o devia ter provado para demonstração dos pressupostos do instituto jurídico em que alicerçou a sua pretensão.
Fica assim justificado que da circunstância de ter sido julgado não provado que «a exequente enviou as cartas juntas a fls. 58 e de fls. 61 a 62, cujo teor aqui se dá por reproduzido, à sociedade D…, SA para a Rua …» e ainda que «a exequente enviou as cartas juntas de fls. 59 a 60, cujo teor aqui se dá por reproduzido, ao embargante para a Rua …., …, casa ..., Porto» não se podere retirar que (tenha sido julgado provado que) a exequente não efectuou as comunicações a que se destinavam essas cartas.
Dito isto passemos à descrição do caso que nos ocupa.
A sociedade comercial D…, S.A. celebrou com o Banco E… um contrato de mútuo. Para garantia do reembolso da quantia mutuada foi exigida uma garantia autónoma.
A D…, S.A. celebrou então com a B… um contrato através do qual esta se obrigou a prestar a favor do E… uma «garantia autónoma à primeira solicitação» para garantir a este Banco o reembolso da quantia mutuada à D…, S.A.
Nesse contrato foi estipulado que para garantia das responsabilidades emergentes do mesmo para a D…, S.A. seria entregue à B… uma «livrança em branco» subscrita pela D…, S.A. e avalizada nomeadamente pelo executado embargante.
Este interveio nesse contrato, assinando-o e nele declarando que «expressamente e sem reservas [dá] o seu acordo ao presente contrato e às responsabilidade que para si emergem do mesmo. A referida livrança ficará em poder da B…, ficando esta, desde já, expressamente autorizada, quer pelo subscritor quer pelos avalistas, a completar o preenchimento da livrança quando o entender conveniente, fixando-lhe data de emissão e de vencimento, local de emissão e de pagamento e indicando como montante tudo quanto constitua o seu crédito sobre V. Exas.».
O executado embargante declarou ainda nesse contrato dar o seu «acordo, em 15/11/2010 expresso e sem reservas, às condições emergentes da prestação de garantia pela SGM a favor do E…».
Na sequência disso, foi entregue à B… a prevista «livrança em branco», na qual o executado embargante apôs a sua assinatura na face posterior do título de crédito a seguir à menção “dou o meu aval ao subscritor”.
Posteriormente, com a informação de que a D…, S.A. não tinha cumprido para consigo as obrigações do contrato de mútuo, o Banco E… accionou a garantia, pedindo à B… o pagamento do montante de €60.000,00 coberto pela garantia prestada.
Na sequência desse pedido, a B… pagou ao Banco E…, em 22-10-2012, o valor de €60.000,00.
Nesse ínterim a D…, S.A. foi declarada insolvente por sentença de 02-08-2012.
Posteriormente, a B… preencheu a livrança colocando nela, além do mais, a data de vencimento de 23-06-2014. Por fim, a B… deu à execução a referida livrança em 31-10-2016.
Caracterizado assim o caso, é possível constatar que o embargante está a ser executado com base numa obrigação cartular, isto é, por uma obrigação emergente do aval que prestou ao subscritor de uma livrança.
O aval é o acto pelo qual um terceiro ou um signatário de uma livrança garante o seu pagamento por parte de um dos seus subscritores – artigo 30º da LULL –. A sua função específica é a de garantir o cumprimento pontual do direito de crédito cambiário, assumindo-se como uma garantia prestada à obrigação cartular do avalizado. Mas o avalista não é responsável pelo cumprimento da obrigação constituída pelo avalizado, mas tão só pelo pagamento do título no caso de aquele não o pagar.
Excluindo a relação puramente cambiária, o avalista, só pelo facto de prestar o aval, não se torna sujeito da relação jurídica existente entre o portador e o subscritor da livrança, mas apenas da relação subjacente à obrigação cambiária estabelecida entre ele e o avalizado.
Nos termos do artigo 32º da LULL, o dador de aval é responsável da mesma forma que a pessoa por ele afiançada, o que significa que a extensão e o conteúdo da obrigação do avalista se aferem pela do avalizado (cf. Ferrer Correia, in Lições de Direito Comercial, 1975, III, pág. 207 a 215).
Resulta do artigo 32º que o aval é um acto cambiário que desencadeia uma obrigação independente e autónoma. A obrigação do avalista é uma obrigação materialmente autónoma, ainda que formalmente dependente da do avalizado, pois o avalista responsabiliza-se pela pessoa que avaliza, assumindo a responsabilidade, abstracta e objectiva, pelo pagamento do título. Isto porque a obrigação do avalista vive e subsiste independentemente da obrigação do avalizado, mantendo-se mesmo que seja nula a obrigação garantida, salvo se a nulidade desta provier de um vício de forma – cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.02.2013, relatado por Azevedo Ramos, no processo n.º 597/11.0TBSSB-A.L1.S1, in www.dgsi.pt –.
No Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 11.12.2012, proferido no processo n.º 5903/09.4TVLSB.L1.S1, publicado in DR, I Série, 14, 21.01.2013, pág. 433, afirma-se o seguinte:
«O aval é um acto jurídico cuja função é a de garantir o pagamento do crédito cambiário, tendo como finalidade essencial reforçar a segurança do tomador na definitiva satisfação do crédito inscrito no título em que o aval é prestado. (…) Na definição de Pedro Pais de Vasconcelos “o aval pode ser definido como “o negócio jurídico cambiário unilateral e abstracto que tem por conteúdo uma promessa de pagar a letra e por função a garantia desse pagamento”. (…) Poder-se-á, assim, definir o aval como o negócio cambiário típico, por força do qual se oferece aos tomadores do título cambiário a garantia de uma pessoa, o avalista, formalmente dependente da de outro obrigado no título, o avalizado, mas configurada num plano substancial com carácter autónomo. A garantia oferecida pelo avalista constitui-se ao mesmo tempo acessória e autónoma. (…) Acessória porque se apoia, pelo menos formalmente, em outra obrigação cambiária, a do avalizado, autónoma porque é válida ainda que a obrigação garantida resulte nula por qualquer causa que não seja vício de forma e porque o avalista não poderá opor excepções pessoais ao beneficiário do aval. (…) Para Oliveira Ascensão o aval funciona como uma obrigação autónoma e não como garantia, dado que pelo aval o avalista contrai uma responsabilidade (jurídica) distinta da do avalizado, não estando, sequer, dependente da validade da obrigação garantida “nem mesmo da obrigação do afiançado”. (…) A posição doutrinal mais recente, bem como a jurisprudência, tem vindo a afirmar a natureza autónoma e independente do aval relativamente à obrigação avalizada, ainda que formalmente dependente. (…) O aval surge-nos, assim, como um acto pelo qual uma pessoa que não está obrigada por qualquer razão a pagar uma letra (ou outro título de crédito) aceita fazê-lo para garantir a responsabilidade de um dos obrigados, sacador, subscritor ou endossante. Parece, por outro lado, acertado conceber esta figura como um acto unilateral (de vontade não receptício) conferido por escrito na letra, ou em folha anexa a ela, vinculado a uma obrigação cartular formalmente válida, que converte quem a outorga, em responsável cambiário no pagamento do documento. O aval tem um regime próprio e diferente da fiança e como todo o giro cambiário – baseado no princípio da literalidade – deve constar do título (directamente ou porque a lei se encarrega de integrar ou presumir certas menções). (…) Tratando-se de uma obrigação autónoma, independente da relação subjacente, não poderá, em nosso juízo, o avalista valer-se da renovação/prorrogação do contrato de abertura de crédito para se desobrigar de uma obrigação que, pela sua abstracção e literalidade, se emancipou da relação subjacente para subsistir como obrigação independente e autónoma. O avalista não é responsável ou não se obriga ao cumprimento da obrigação constituída pelo avalizado mas tão só ao pagamento da quantia titulada no título de crédito. A obrigação firmada pelo avalista é perante a obrigação cartular e não perante a relação subjacente.».
Entende-se normalmente que quando o avalista tenha tomado parte no pacto de preenchimento de livrança em branco, subscrevendo-o, as relações entre ele e o tomador ou beneficiário da livrança estão no domínio das relações imediatas – pois não há, nesse caso, entre o avalista e o beneficiário do título interposição de outras pessoas –, o que confere ao dador da garantia legitimidade para arguir a excepção, pessoal, da violação do pacto de preenchimento ou do preenchimento abusivo do título de crédito emitido em branco – cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23.09.2010, relatado por Lopes do Rego no processo n.º 4688-B/2000.L1.S1 e de 22.10.2013, relatado por Alves Velho no processo n.º 4720/10.3T2AGD-A.C1, in www.dgsi.pt –.
Carolina Cunha, in Comentário ao Acórdão de 19 de Fevereiro de 2013 da Relação de Coimbra, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 143.º, n.º 3982, pág. 53 e seguintes, distingue, de forma convincente, o aval prestado num título de crédito preenchido e o aval prestado num título em branco. No primeiro caso entende que «a invulnerabilidade da obrigação cartular do avalista às vicissitudes da relação fundamental entre o avalizado e o credor que manteve o título em seu poder e o apresenta à execução» tem como fundamento não os princípios da literalidade, abstracção e autonomia, mas o «vetusto princípio res inter aliis neque nocere neque prodesse potest - que encerra a ideia de que um terceiro não deve ser prejudicado nem beneficiado por contingências de vínculos obrigacionais em que não tomou parte», em resultado do qual «não tomando o avalista parte na relação extracartular que liga o avalizado ao credor, vedado lhe estará mobilizar para defesa própria excepções emergentes de vínculos obrigacionais que lhe são estranhos (..). O credor poderá, portanto, exigir do avalista um pagamento que não conseguiria obter do avalizado (que, na sua qualidade de contraparte imediata, teria a faculdade de deduzir as competentes excepções causais)».
Já no caso dos títulos em branco, isto é, “letra ou livrança voluntariamente emitidas em estado objectivamente incompleto”, a referida autora assinala que «a necessidade de tutela da confiança que um portador venha a depositar no teor da letra ou livrança preenchida, reforçada pelos particulares objectivos do regime cambiário quanto à circulação das letras e livranças, desemboca na regra de que o título vale tal como foi completado» e daí que quem voluntariamente emite uma letra incompleta suporta o risco inerente a essa sua actuação. A seguir a autora esclarece o seguinte: «Quando uma letra ou livrança em branco apresenta simultaneamente as assinaturas de avalista e avalizado estamos em presença do fenómeno da dupla subscrição em branco, que implica necessariamente a manifestação de duas vontades quanto ao conteúdo a inserir no título: uma por cada subscritor. A tendência é para que ambas as vontades coincidam: como o eixo da determinação do conteúdo a inserir no título consiste na dívida eventual e futura em que o avalizado venha a incorrer no plano da relação extra-cambiária que o liga ao credor, é natural que tanto avalista como avalizado pretendam que o preenchimento do título fique subordinado – no seu se, no seu quando e no seu quanto à ocorrência dessa vicissitude. (…) Todavia, mesmo nos casos em que o avalista não tem (ou não fica provado que tenha tido) qualquer contacto com o credor, celebrou com ele qualquer convenção de preenchimento, o credor não pode ou não deve ignorar o seguinte: o sujeito que avaliza ainda em branco o título que sabe destinado a suportar a obrigação cambiaria do avalizado, a quem sem mais entrega o documento assinado, está a manifestar a vontade de que o preenchimento se faça nos mesmos termos que vierem a vigorar para a concretização da obrigação cambiária desse avalizado: nem mais, nem menos. (..) Quer isto dizer que, ao abrigo do art. 10.º LU e nos termos exposto, o avalista pode prevalecer-se de certas vicissitudes de uma relação fundamental à qual é alheio. E pode fazê-lo porque a determinação do conteúdo a inserir na sua própria declaração cambiária é levada a cabo per relationem: depende da verificação do mesmo pressuposto do qual está dependente a responsabilidade cambiária do avalizado, e esse pressuposto emana dos desenvolvimento ocorridos na relação fundamental que este mantém com o credor
Isto posto, vejamos então agora quais são os vícios que o executado embargante sustenta nas suas alegações de recurso para obstar a esta execução.
O embargante começa por defender que houve violação do pacto de preenchimento da livrança. E fundamenta essa sua afirmação em três circunstâncias: (i) o garante (B…) não informou o garantido (C…) da interpelação do beneficiário da garantia (E…), violando as regras da boa fé; (ii) o garante não interpelou o garantido previamente para pagar nem procedeu à interpelação admonitória para esse efeito, pelo que não podia resolver o contrato de garantia e preencher a livrança; (iii) o garante não interpelou o executado para pagar, pelo que a obrigação deste não se venceu, não lhe sendo exigível o pagamento, designadamente através da execução.
Pode discutir-se se esta defesa consiste na arguição da excepção da violação do pacto de preenchimento, propriamente dita, noutra excepção de natureza cambiária distinta e diversa do preenchimento abusivo ou ainda numa excepção relativa à obrigação subjacente à subscrição do título. No caso, não é necessário tomar posição sobre esse aspecto, pela simples razão de que a matéria de facto não permite sequer qualquer discussão a esse respeito.
Com efeito, não existe qualquer facto provado que permita concluir que não foram feitas as interpelações que o recorrente defende serem necessárias. O que obriga a questionar se era sobre a exequente que recaía o ónus de provar que fez as interpelações ou era sobre o executado embargante que recaía o ónus de provar que as interpelações não foram feitas, uma vez que a decisão do tribunal terá de ser proferida contra a parte onerada com esse encargo.
É hoje pacificamente aceite que é ao obrigado cambiário demandado que cabe fazer a demonstração de que o título emitido em branco foi depois preenchido em desconformidade com a vontade dos intervenientes no pacto.
Como se refere no Acórdão desta Relação de 08.07.2015, relatado por Fernando Samões, no processo n.º 4135/12.9T2AGD-A.P1, in www.dgsi.pt, tendo a livrança sido “dada à execução pelo seu beneficiário, depois de ter completado o seu preenchimento, e tendo os avalistas intervindo no pacto de preenchimento, o que permite situá-los no domínio das relações imediatas, podem estes, não obstante a sua responsabilidade ser autónoma, discutir questões relacionadas com o pacto de preenchimento e a eventual verificação da excepção do preenchimento abusivo, como tem admitido a jurisprudência [..], sendo que sempre lhes competia alegar e provar, oportunamente, os factos integradores de tal excepção peremptória [..] (cfr. art.ºs 493.º, n.º 3 do anterior CPC[..] e 342.º, n.º 2 do C. Civil). Assim o tem entendido, de forma pacífica, a jurisprudência dos tribunais superiores, …, designadamente o … Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23/9/2010, proferido no processo n.º 4688-B/2000.L1.S1, onde se refere: “(...) como flui de jurisprudência uniforme e reiterada – cabe naturalmente ao embargante o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos da excepção que invoca: como se afirma, por exemplo, no acórdão deste Supremo de 20/5/2010 (P. 11683/06-8TBOER.A.L.1): Por se tratar de excepção de direito material, o preenchimento abusivo deve ser alegado e provado pelo oponente (embargante) a quem cumpre demonstrar que o montante foi inscrito ao arrepio do acordado. Para o exequente basta a não demonstração pelo demandado de que o pacto de preenchimento foi incumprido, que o título ainda não se encontra em circulação, valendo-lhe, no mais, os critérios de incorporação, literalidade, autonomia e abstracção.”
Isso é assim porque a acção executiva requer sempre a existência de um título executivo. Este é constituído por um documento com um determinado conteúdo ao qual a lei associa a presunção de existência do direito de crédito, permitindo ao credor aceder directamente aos meios coercivos públicos para obter a satisfação do crédito, sem ter previamente de demonstrar a sua existência e obter uma sentença que condene o devedor a satisfazê-lo.
O título executivo certifica, em princípio, a existência de um direito de crédito, o qual, porém, poderá ser afastado pelo executado nos embargos que deduza à acção executiva. Conforme afirmava Anselmo de Castro, in A Acção Executiva Singular, Comum e especial, 3ª edição, 1977, pág. 46/47, «o risco que representa a possibilidade de ao título executivo não corresponder um direito efectivamente existente é coberto pela defesa que a lei permite ao executado exercer em oposição à execução».
Embora seja dependência de uma acção executiva, a oposição à execução constitui uma acção declarativa (artigo 817º, nº 2, do Código de Processo Civil) que tem por objectivo, no caso de o executado querer pôr em causa o direito de crédito invocado pelo exequente, a declaração da sua não existência, através da invocação de factos impeditivos, modificativos ou extintivos, com a amplitude de que disporia se estivesse a defender-se numa acção declarativa (caso a execução se não baseie em sentença, naturalmente) – cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3.11.2011, in www.dgsi.pt –. Apesar de ter sempre por referência uma execução e o título executivo dado à execução, estruturalmente a oposição à execução apresenta-se como uma contra-acção tendente a obstar à produção dos efeitos do título executivo e da execução que nele se baseia – cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22.02.2007, in www.dgsi.pt –.
Por conseguinte, cabe ao embargante alegar os factos concretos necessários e suficientes para integrar alguma das possíveis causas de invalidade do título executivo ou de extinção, modificação ou impedimento do direito de crédito nele documentado. Falhando essa alegação, subsiste a aparência do título executivo e permanece intocada a sua suficiência para consentir a instauração e prossecução da execução coerciva para obter pagamento do crédito que o título revela.
Os embargos de executado são pois o meio idóneo para se alegarem factos destinados a afastar a aparência do direito que emana do título executivo, factos que constituem matéria de excepção, processual ou material. Logo, cabe ao executado fazer a prova dos factos que fundamentam os embargos e que constituem factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito de crédito (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil).
E isso é válido qualquer que seja a excepção invocada, melhor dizendo, quer se trate em rigor da excepção do preenchimento abusivo, quer se trate de outra excepção que já não contende com o preenchimento do título, tenha ela natureza cartular (i.e, respeite ao direito cartular e às condições do respectivo exercício) ou natureza material (i.e., respeite ao direito material aplicável à obrigação subjacente, no caso em que ao executado seja lícito opô-la ao portador do título).
Refira-se que esta conclusão não prejudica o já decidido em 1.ª instância quanto aos juros entre a data de vencimento aposta na livrança e a citação para a execução. A decisão da 1.ª instância apoia-se num Acórdão da Relação do Porto (e noutro da Relação de Lisboa do mesmo Relator) em que o ora Relator interveio como 2.º Adjunto que abordou uma questão diferente da que ora nos ocupa (sendo que no respectivo processo ficou provado que a exequente não informou o executado do preenchimento do título). Entendeu-se ali que tendo a livrança sido emitida em branco, sem data de vencimento, para ser completada no futuro uma vez verificado um evento que à data da emissão do título era incerto, independentemente da questão da apresentação a protesto ou a pagamento, o portador do título tem de avisar o obrigado cambiário do vencimento da livrança para lhe poder exigir juros de mora desde a data desse vencimento. Como quer que seja o decidido na 1.ª instância encontra-se abrangida pela força do caso julgado, sendo inatacável.
Improcede assim a fundamentação do recurso desenvolvida sob a epígrafe do «preenchimento abusivo do título».
Sob a epígrafe «da prescrição», sustenta a seguir o recorrente que a livrança se venceu em 02-08-2012, data em que foi declarada a insolvência da subscritora, pelo que quando a execução foi instaurada já estava decorrido o prazo de prescrição dos artigos 70.º e 77.º da LULL.
Não podendo ignorar que a livrança se encontra preenchida com a data de vencimento de 23-06-2014, por referência à qual, quando a execução foi instaurada, não estava decorrido ainda o prazo prescricional assinalado nas normas que cita, o recorrente argumenta que o preenchimento dessa data foi feito de forma arbitrária, sendo que um pacto de preenchimento que autorizasse essa arbitrariedade seria nulo por violação do artigo 300.º do Código Civil.
Quid iuris?
Esta argumentação, não pode deixar de dizer-se, pretende reunir o melhor de dois mundos, ser uma espécie de Santo Gral!
Por um lado, deseja fazer prevalecer o prazo de prescrição dos direitos cartulares sem se ater à literalidade do título de crédito, conforme imposto pela específica natureza do direito cartular, por outro lado, intenta fazer prevalecer o regime da obrigação fundamental ou subjacente mas escapar ao respectivo prazo de prescrição, olvidando que o prazo de prescrição do direito de crédito é totalmente diferente do prazo de prescrição da obrigação cartular e que em cada domínio há-de, por certo, valer o prazo de prescrição que lhe é próprio.
Os princípios da literalidade e da abstracção que enformam o direito cartular e imprimem carácter aos direitos e obrigações cartulares conduzem a que esses direitos possuam as características que resultam do próprio título e dos dizeres do título, devendo ser exercidos em conformidade com elas. Para que assim não seja, é necessário que o obrigado cambiário possa opor ao credor cambiário os termos da relação subjacente à obrigação cambiária. Nessa situação, aqueles princípios são afastados não porque o título cambiário os perca mas porque o direito e as obrigações irão ser determinados em função dos termos e do regime jurídico da relação subjacente, os quais hão-de determinar o montante pelo qual a execução, ainda que alicerçada no título executivo, irá prosseguir.
Como vimos, a livrança foi emitida em branco, isto é por preencher quanto a alguns dos seus elementos e não a totalidade deles, para garantir as obrigações decorrentes do contrato de garantia autónoma assumidas pelo garantido perante o garante. A obrigação de o garantido reembolsar o garante da quantia que este tiver pago ao beneficiário da garantia só se constitui se e quando a garantia for accionada e o garante pagar ao beneficiário da garantia o montante cujo reembolso poderá de seguida reclamar do garantido.
No caso, o contrato de garantia estipula que ocorrendo a insolvência do garantido o garante pode exigir de imediato o pagamento das quantias devidas ao abrigo do contrato, incluindo o valor da garantia já pago e o valor da garantia que ainda estiver por pagar. O contrato prevê, portanto, que a declaração de insolvência do garantido determina a exigibilidade imediata do valor da garantia esteja ela já accionada (o pagamento far-se-á a título de reembolso) ou ainda por accionar (o pagamento far-se-á para que o garante, no caso de a garantia ser accionada, suporte a garantia com a segurança antecipada do reembolso).
Ora é conhecido que uma coisa é uma dívida se ter tornado exigível e outra coisa é essa dívida estar vencida. A exigibilidade significa que a dívida passa a poder ser reclamada judicialmente do devedor, que a partir desse momento o credor pode diligenciar pela satisfação do seu crédito não podendo o devedor opor-lhe que a obrigação ainda não lhe pode ser exigida.
Mas, tratando-se de uma obrigação pura ou sem prazo, cuja exigibilidade está indexada a um evento incerto, para que a dívida se vença e o credor passe a estar em mora quanto à sua satisfação é ainda necessário que o credor informe o devedor da verificação do evento que tornou exigível a dívida e reclame o vencimento desta num prazo razoável.
O artigo 777.º do Código Civil distingue as obrigações que não estão sujeitas a qualquer prazo e, portanto, o credor pode exigir o seu cumprimento a qualquer altura, das obrigações que por disposição das partes, da lei, da sua natureza, das circunstâncias que a determinaram ou dos usos, estão sujeitas a um termo inicial (dies a quo) e, portanto, o seu cumprimento está suspenso, não pode ser exigido enquanto o prazo não decorrer.
O que distingue uma das outras é pura e simplesmente o seu cumprimento poder ser exigido a qualquer momento ou exigido apenas decorrido um determinando prazo (voluntário, legal, natural, circunstancial, usual) ou verificado um determinado evento (certo ou incerto), isto é, a possibilidade de saber exactamente quando o cumprimento pode ser exigido, de determinar com certeza o momento da exigibilidade da obrigação.
Daí que se enquadrem na previsão do preceito não apenas as obrigações puras propriamente ditas, isto é, aquelas que não estão subordinadas a qualquer prazo, como também as obrigações que as partes quiseram subordinar a um prazo e que naturalmente têm de ser subordinadas a um prazo, mas que foram pelas partes indexadas a um evento futuro cuja data de verificação é incerta, de modos que não seja possível extrair do acordo das partes a certeza sobre o momento em que o cumprimento se torna exigível.
O artigo 805.º do Código Civil pressupõe que chegou o momento em que a obrigação se tornou exigível e preocupa-se em definir o modo do seu vencimento: se o devedor a deve efectuar, sob pena de constituição em mora, assim que ela se tornou exigível ou apenas na sequência de interpelação do devedor para que cumpra. Compreende-se, portanto, que entre as situações em que não é necessária a interpelação se conte a das obrigações com prazo certo, mas não as obrigações com prazo incerto. Sabendo o devedor de antemão o momento certo em que deve cumprir, a exigência suplementar de uma interpelação seria absolutamente inútil. No entanto, não resulta daqui que sendo necessária a interpelação do credor para operar o vencimento das obrigações sem prazo certo, melhor dizendo, com prazo incerto, essa interpelação seja forma válida de operar também a fixação do momento da exigibilidade da obrigação porque a essa questão responde sim o regime dos artigos 777.º e seguintes.
Sendo assim, face ao contrato de garantia, para cumprimento de cujas obrigações foi emitida a livrança em branco, a insolvência do garantido conduzia à imediata exigibilidade da dívida mas não ao seu imediato vencimento. Por essa razão, mesmo dando de barato que em respeito pelas regras da boa fé, a autorização que o avalista em branco deu ao portador da livrança em branco para a preencher «quando o entender conveniente» (expressão usada no pacto de preenchimento dos autos) deva ser interpretada por referência aos termos do contrato a que a livrança servia de garantia e não como atribuição da faculdade de proceder ao preenchimento de modo totalmente livre e arbitrário, podemos afirmar que o contrato em causa não só autorizava como impunha mesmo que a data de vencimento da livrança fosse posterior à data em que foi declarada a insolvência do subscritor.
Não obsta a esta conclusão, o disposto no artigo 91.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que estabelece que a declaração de insolvência determina o imediato vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva. Trata-se de uma norma de aplicação restrita no âmbito de aplicação do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e, portanto, aplicável em exclusivo às obrigações de que é titular o devedor declarado insolvente e para efeitos de as mesmas poderem ser reclamadas e verificadas no próprio processo de insolvência e aí pagas.
Essa norma não impõe, por isso, o vencimento imediato das obrigações dos garantes das obrigações do devedor principal declarado insolvente. Aliás, esse vencimento imediato de outras obrigações, mesmo as dos garantes das obrigações do insolvente, é que seria violadora das regras da boa fé ao impor a estes a antecipação do momento em que devem satisfazer as suas obrigações, por razões totalmente alheias ao seu comportamento e à garantia patrimonial representada pelo seu património.
Não se invoque também, como faz o recorrente em claro desespero, o disposto no artigo 300.º do Código Civil que comina com a sanção da nulidade os negócios jurídicos destinados a modificar os prazos legais da prescrição ou a facilitar ou dificultar por outro modo as condições em que a prescrição opera os seus efeitos.
O contrato de garantia e especificamente o pacto de preenchimento da livrança emitida para garantia do mesmo não contém qualquer cláusula destinada a fixar prazos de prescrição ou a alterar as condições em que a prescrição opera os seus efeitos! O que contém é somente a definição dos termos do próprio contrato, aos quais se aplicarão depois, sem reserva ou alteração, os prazos legais de prescrição e as condições legais de produção dos respectivos efeitos.
Se num contrato se estabelece que determinada prestação será exigível ou se vence em determinado momento, isso interferirá naturalmente com o momento em que o direito do credor prescreverá na medida em que essa cláusula permite determinar o evento ao qual a lei associa o início da contagem do prazo de prescrição. Porém, mesmo aí continuam a aplicar-se os prazos legais de prescrição e as condições legais da produção dos seus efeitos, sem qualquer interferência do contrato.
O argumento do recorrente levaria ao absurdo jurídico de em qualquer situação, tendo o contrato cláusulas a fixar prazos para o cumprimento dos deveres de prestação, essas cláusulas serem nulas porque seria sempre possível argumentar que se ela tivesse fixado o prazo em data anterior a prescrição se completarias mais cedo, favorecendo o devedor. Por outras palavras, todos os contratos seriam nulos por violação do artigo 300.º do Código Civil, excepto aqueles que apenas previssem obrigações puras.
Em suma, o direito cartular do portador do título de crédito dado à execução não se encontra prescrito porque tendo ele aposta a data de vencimento de 23-06-2014 quando a execução foi instaurada e o executado foi citado (em finais de 2016) não estavam ainda decorridos os três anos que constituem o prazo de prescrição do direito do portador do título contra o subscritor e o avalista do subscritor (artigos 70.º e 77.º da LULL). Da mesma forma, não estava prescrito o direito de crédito emergente da obrigação subjacente, nem o preenchimento do título com aquela data afronta os termos da relação subjacente.
V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmam a douta sentença recorrida.
Custas do recurso pelo recorrente.
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Porto, 10 de Janeiro de 2019.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.º 467)
Inês Moura
Francisca Mota Vieira
[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas]