Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
18942/21.8T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANTÓNIO CARNEIRO DA SILVA
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
FALTA DE REDUÇÃO A ESCRITO DO CONTRATO
NULIDADE
CONHECIMENTO OFICIOSO
Nº do Documento: RP2023011218942/21.8T8PRT.P1
Data do Acordão: 01/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Pugnando o arrendatário pela validade e eficácia do vínculo decorrente do arrendamento, sobre ele recaía o ónus de alegar e demonstrar que a não formalização do contrato decorria de facto a si não imputável.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 18942/21.8T8PRT.P1


Acordam os Juízes que integram a 3ª secção do
Tribunal da Relação do Porto


Relatório:
AA, viúvo, residente na rua ..., ..., Porto, intentou perante o juízo local cível do Porto (J4) a presente acção constitutiva sob a forma de processo comum contra BB, solteiro, maior, residente na rua ..., Porto.
Alegou o autor, em súmula, na petição inicial, que, sendo proprietário da fração autónoma do 1º andar direito do prédio urbano sito na rua ..., no Porto, inscrito na matriz sob o artigo ... da freguesia ..., em Janeiro de 2009 deu-a de arrendamento ao réu mediante o pagamento da renda mensal de €400,00, contrato que foi declarado resolvido por sentença proferida a 08 de Julho de 2016 no âmbito do processo nº 6834/16.7T8PRT, já transitada em julgado, sendo o réu condenado a restituir o imóvel ao autor, livre de pessoas e bens.
Afirma que, não obstante, a pedido do réu o autor acedeu a manter o arrendamento, não formalizado, mediante o pagamento da renda mensal de €400,00.
Alega que o réu, não obstante manter a ocupação do imóvel, não procedeu ao pagamento do valor da renda relativamente aos meses de Julho de 2021, inclusive, e seguintes.
Invoca o disposto no artigo 1083º do Código civil.
Conclui pedindo:
a) a declaração judicial de resolução do contrato de arrendamento;
b) a condenação do réu no pagamento do valor das rendas já vencidas à data da propositura da acção, no valor global de €2.400,00, bem como no valor das rendas que se vencerem, acrescidas de juros de mora contados, à taxa legal, desde a data do respectivo vencimento;
c) a condenação do réu na entrega do locado livre de pessoas e bens.
Citado, o réu apresentou contestação, na qual, em súmula, não impugna a versão do autor quanto à celebração e resolução do contrato de arrendamento, bem como a sua posterior manutenção por acordo verbal.
Impugna a dívida alegada pelo autor.
Invoca que o autor, no início de 2021, assumiu o compromisso verbal de realizar determinadas no locado, obras que considera essenciais ao uso normal do imóvel, mas que não foram executadas.
Alega diversos vícios de que afirma o locado padecer.
Conclui pedindo a prolação de decisão que declare a manutenção do arrendamento e condene o autor a reparar os vícios que o imóvel apresenta.
O valor da causa foi fixado em €14.400,00.
Foi proferido despacho saneador tabelar.
Foram dispensados os despachos de fixação do objecto do litígio e de enunciação dos temas da prova, não tendo sido apresentada qualquer reclamação.
Instruída a causa, realizou-se a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença que, julgando a acção totalmente procedente:
a) declarou resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre autor e réu referente à da fração autónoma do 1º andar direito do prédio urbano sito na rua ..., Porto, inscrito na matriz sob o artigo ..., da freguesia ...;
b) condenou o réu a despejar o imóvel, entregando-o ao autor, no estado em que o recebeu, livre e devoluto de pessoas e bens;
c) condenou o réu a pagar ao autor o valor global de €5.200,00, referente às rendas vencidas até 14 de junho de 2022, acrescido de juros de mora contados à taxa legal prevista para os juros civis, à taxa de 4%, desde a data de vencimento de cada uma das rendas em falta até integral e efetivo pagamento;
d) condenou o réu a pagar ao autor o montante equivalente ao valor das rendas que se vencerem a partir da presente data, a título de indemnização pelo atraso na restituição da coisa até entrega efetiva do imóvel, acrescido de juros de mora contados à taxa legal prevista para os juros civis, à taxa de 4%, desde a data de vencimento de cada uma das rendas em falta até integral e efetivo pagamento;
É desta decisão que, inconformado, o réu interpôs recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
A- Das declarações do recorrente da testemunha é inequívoco que os factos dados como não provados (2-6; 8;9) deviam ter sido dados como provados;
2- no início do ano de 2021 o autor comprometeu-se verbalmente a efetuar obras no locado;
- das declarações do recorrente: 6.42 ( “… eu depois mando alguém lá para ver isso…”) – 11.40 (… ele prontificou-se a fazer obras, nomeadamente substituir caixilharia…”);
- das declarações da testemunha CC: 5.10 (… o Sr. AA disse que ia tratar disso…) e 4.32 (… o Sr. AA sabia destes problemas…”);
3- A casa de banho de serviço do locado não é utilizada porque os azulejos estão todos a cair e cheia de humidade;
- das declarações do recorrente: 7.35;
- das declarações da testemunha CC: 2.45 e 3.00;
4- na cozinha as persianas estão todas partidas, permitindo a entrada de todo o tipo de ar;
- das declarações da testemunha CC: 9.15;
5- o teto junto ao exaustor está todo a cair e quando chove a água corre pela parede para o exaustor, podendo causar algum incêndio;
- das declarações da testemunha CC: 3.25; 3.35 e 7.51;
6- a laje da cozinha está cheia de humidade provocando a queda de todo o estuque no resto do teto;
- das declarações do recorrente: 7.40;
8- na divisão de arrumos junto à cozinha todo o estuque está a cair devido à humidade no teto e por isso também não é utilizada;
- das declarações da testemunha CC: 4.05;
9- a casa de banho maior tem o teto cheio de humidade que provocará a queda de estuque de todo o teto.
- das declarações da testemunha CC: 8.15;
B- Para além destes factos, outro devia ter sido dado como provado: - o autor nunca efectuou quaisquer obras desde o início do contrato de arrendamento;
(das declarações da testemunha CC: 2.17);
C- Ora, o regime geral das edificações urbanas (REGEU) estipula que essas obras são obrigatórias de 8 em 8 anos – artigo 9º “… As edificações existentes deverão ser reparadas e beneficiadas pelo menos uma vez em cada período de 8 anos, com o fim de remediar as deficiências provenientes do seu uso normal e de as manter em boas condições de utilização, sob todos os aspectos de que trata o presente regulamento” – diploma em conjugação com o Decreto-Lei nº 555/99 na sua actual redacção (RJUE);
D- Tais graves problemas não proporcionavam ao recorrente o gozo da coisa, privando-o do uso do locado;
E- E isso confere direito ao recorrente de não cumprimento da obrigação de pagamento de rendas.
Termos em que se requer, com o suprimento de Vossas Excelências, seja procedente o presente recurso, e assim seja mantido em vigor o contrato de arrendamento, justificando o recorrente o direito de não cumprimento da obrigação de pagamento de rendas enquanto as mesmas não forem efectuadas pelo recorrido.

O autor declarou prescindir de apresentar contra-alegações [requerimento de 29 de Setembro de 2022, referência nº 33402852].

O recurso foi admitido como de apelação por despacho proferido a 07 de Outubro de 2022 [referência nº 440768711], posteriormente rectificado [despacho de 25 de Outubro de 2022, referência nº 441494804], a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

No exame preliminar determinou-se a notificação das partes, ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 3º do Código de Processo Civil, para se pronunciarem quanto à nulidade por falta de forma do contrato de arrendamento em causa nos autos, atento o previsto nos artigos 220º e 286º, ambos do Código Civil, e tendo em consideração a doutrina do acórdão uniformizador de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/95, de 28 de Março de 1995.

Na sequência, o autor veio defender que a eventual nulidade do arrendamento não interfere na consequência legal da falta de pagamento das rendas vencidas e vincendas até restituição do locado, nem no despejo (obrigação de restituição), decretados pelo tribunal a quo, enquanto o recorrente apresentou requerimento no qual simplesmente declara «informar que o contrato de arrendamento nunca foi reduzido a escrito por vontade do recorrido».

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - Fundamentação
Como é sabido, o teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta, onde sintetiza as razões da sua discordância com o decidido e resume o pedido (nº 4 do artigo 635º e artigos 639º e 640º, todos do Código de Processo Civil), delimita o objecto do recurso e fixa os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente.
Assim, atentas as conclusões dos recorrentes e a matéria introduzida no exame preliminar, mostram-se colocadas à apreciação deste tribunal as seguintes questões, enunciadas por ordem de precedência lógico-jurídica:
A) A nulidade do contrato de arrendamento, nos termos invocados na petição inicial e aceites na contestação, como questão prévia à apreciação do objecto do recurso;
B) A impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto;
C) As consequências da declaração de nulidade;
D) A resolução do contrato de arrendamento e suas consequências.
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Delimitado o objecto do recurso, importa conhecer a factualidade em que assenta a decisão impugnada.
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Factos Provados (transcrição):
1- O autor é dono da fração autónoma do 1º andar direito do prédio urbano sita na rua ..., no Porto, inscrito na matriz sob o artigo ..., da freguesia ..., onde o réu reside.
2- Em 28.1.2009 o autor cedeu o uso e fruição da fração referida em 1-, mediante o pagamento da renda mensal de €400,00, pagável por transferência bancária até ao primeiro dia útil do mês anterior a que respeitasse.
3- Por sentença de 8 de Julho de 2016, transitada em julgado, proferida no processo nº 6834/16.7T8PRT, foi decretada a resolução do contrato referido em 2- e a condenação do réu a desocupar e entregar ao autor o locado, livre e desembaraçado de pessoas e bens.
4- A pedido do réu o autor acedeu manter a cedência de uso e fruição do imóvel, mediante o pagamento de renda mensal de €400,00.
5- As casas de banho, cozinha e lavandaria do locado apresentam humidade nos tectos, o que provoca queda de estuque.
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Factos Não Provados (transcrição)
a) o réu pagou as rendas de julho de 2021 a maio de 2022;
b) no início do ano de 2021 o autor comprometeu-se verbalmente a efetuar obras no locado;
c) a casa de banho de serviço do locado não é utilizada porque os azulejos estão todos a cair e cheia de humidade;
d) na cozinha as persianas estão todas partidas, permitindo a entrada de todo o tipo de ar;
e) o teto junto ao exaustor está todo a cair e quando chove a água corre pela parede para o exaustor, podendo causar algum incêndio;
f) a laje da cozinha está cheia de humidade provocando a queda de todo o estuque no resto do teto;
g) as dobradiças das portas dos armários estão todas partidas;
h) na divisão de arrumos junto à cozinha todo o estuque está a cair devido à humidade no teto e por isso também não é utilizada;
i) a casa de banho maior tem o teto cheio de humidade que provocará a queda de estuque de todo o teto.
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A)
O contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito – nº 1 do artigo 1069º do Código Civil.
Na falta de redução a escrito do contrato de arrendamento que não seja imputável ao arrendatário, este pode provar a existência de título por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respetiva renda por um período de seis meses - nº 2 do artigo 1069º do Código Civil.
No caso em apreço nos autos, após prolação de decisão judicial que em Julho de 2016 fez cessar o contrato de arrendamento formalizado entre autor e réu, a pedido do réu o autor acedeu na manutenção do uso e fruição do imóvel pelo réu, mediante o pagamento de renda mensal [pontos 3- e 4- da matéria de facto provada].
Ou seja, notoriamente inexiste qualquer documento apto a dar forma ao acordo de vontades que se traduziu no arrendamento do imóvel ao réu a partir de Julho de 2016.
Do que decorre a nulidade de tal acordo [artigo 220º do Código Civil], vício de conhecimento oficioso [artigo 286º do Código Civil].
É certo que, como se disse, não sendo a falta de formalização imputável ao arrendatário, a este está aberta a faculdade de provar a existência de título por qualquer forma admitida em direito.
A alegação e demonstração da não imputabilidade da falta de formalização do contrato, naturalmente, cabe a quem pretenda prevalecer-se da vinculação decorrente de um arrendamento válido e eficaz - na destrinça entre factos constitutivos e factos impeditivos, modificativos ou extintivos (muitas vezes verdadeiro desafio ao raciocínio), e de acordo com a melhor doutrina [a vulgarmente denominada teoria das normas, segundo orientação doutrinal e jurisprudêncial absolutamente pacífica recebida pelo nosso ordenamento jurídico-civil - cfr, sobre a questão, a monografia do Prof. Leo Rosenberg, «La Carga De La Prueba», tradução a cargo da Editorial B. de F., Montevideo - Buenos Aires, 2ª edição, 2002; e ainda o estudo do Prof. Antunes Varela publicado na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 117º, páginas 30 e ss], deverá analisar-se a hipótese legal da norma que cada parte pretende ver aplicada em seu benefício, sendo constitutivos os factos que preenchem a norma cuja aplicação no caso é favorável ao autor, e impeditivos, modificativos ou extintivos os factos que preenchem a norma cuja aplicação no caso é favorável ao réu.
Nesta operação não releva se o facto é negativo ou positivo – essencial é que da interpretação da norma resulte que a sua verificação (seja positivo, seja negativo, repete-se) é pressuposto do preenchimento da hipótese legal que acarreta a produção do efeito jurídico que a parte invoca a seu favor («es únicamente importante el hecho de si la ley ha hecho de un suceso negativo el presupuesto de un efecto juridico. Si lo ha hecho, la parte que hace valer este efecto en su favor, también debe provar el hecho negativo» - Prof. Leo Rosenberg, ob. cit., página 379).
Logo, pugnando o réu pela validade e eficácia do vínculo decorrente do arrendamento, sobre si corria o ónus de alegar e demonstrar que a não formalização do acordo decorria de facto a si não imputável [cfr, neste sentido, o decidido por este Tribunal da Relação do Porto no seu acórdão de 11 de janeiro de 2021, processo nº 4268/20.8T8PRT.P1, disponível em www.dgsi.trp.pt/].
O que manifestamente nem sequer tentou; aliás aceitou ter sido a seu pedido que o autor verbalmente anuiu na renovação do acordo após a extinção do contrato anteriormente celebrado declarada por decisão judicial proferida em Julho de 2016.
Obviamente em nada releva o facto de o réu, já em sede de recurso, ter vindo singelamente declarar que «o contrato de arrendamento nunca foi reduzido a escrito por vontade do recorrido», atento o princípio da concentração da defesa na contestação e a preclusão associada ao incumprimento de tal princípio (artigos 573º e 588º, ambos do Código de Processo Civil).
Consequentemente, o contrato de arrendamento celebrado entre autor e réu após Julho de 2016 é nulo por falta de forma, devendo ser restituído todo o prestado, ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente – artigo 289º do Código Civil.
O que deve ser oficiosamente conhecido e declarado [acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/95, de 28 de Março, publicado no Diário da República, I série, de 17 de Maio de 1995].

B)
Nos termos do nº 1 do artigo 662º do Código de Processo Civil, o Tribunal da Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa – ou seja, constatando-se a existência de elementos no processo [designadamente meios de prova] que não deixam alternativa ao julgador quanto ao relato sobre a matéria de facto, que para os acontecimentos não fornecem outra explicação racional e razoavelmente possível [assim não sucede quando o tribunal razoavelmente opta por uma das versões no caso possíveis, e o recorrente apenas possui uma versão diversa quanto à prova produzida. «A garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto não se destina a assegurar a realização de um novo julgamento, de um melhor julgamento, mas constitui apenas remédio para os vícios do julgamento em 1.ª instância. O uso pela Relação dos poderes de alteração da decisão da 1.ª instância sobre matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados» - acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Maio de 2010, processo nº 696/05.7TAVCD.S 1, disponível emwww.dgsi.pt/jstj.pt/].
É que, convém recordar, o controlo da decisão sobre a matéria de facto, em sede de recurso, designadamente tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade, tendo como pano de fundo o exercício do contraditório.
Efectivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (nº 5 do artigo 607º do Código de Processo Civil) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição [«é sabido que, frequentemente, tanto ou mais importantes que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, etc. (…) «E a verdade é que a mera gravação sonora dos depoimentos desacompanhada de outros sistemas de gravação audiovisuais, ainda que seguida de transcrição, não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância». «Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores» (Abrantes Geraldes in “Temas da Reforma do Processo Civil”, II volume, Livraria Almedina, 3ª edição, páginas 201 e 273)].
Ora, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos objecto do julgamento somente mediante o juízo que objectivamente funda no mérito concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo, sendo apenas necessário e imprescindível que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes por forma a, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, seja possível controlar a razoabilidade da decisão sobre o julgamento de um facto como provado ou não provado.
Nesta perspectiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.

Assim estabelecidos os limites da análise suscitada pelo recorrente, recordemos que a decisão sobre a matéria de facto é em concreto questionada quanto à inclusão dos pontos 2- a 6-, 8- e 9- [b) no início do ano de 2021 o autor comprometeu-se verbalmente a efetuar obras no locado; c) a casa de banho de serviço do locado não é utilizada porque os azulejos estão todos a cair e cheia de humidade; d) na cozinha as persianas estão todas partidas, permitindo a entrada de todo o tipo de ar; e) o teto junto ao exaustor está todo a cair e quando chove a água corre pela parede para o exaustor, podendo causar algum incêndio; f) a laje da cozinha está cheia de humidade provocando a queda de todo o estuque no resto do teto; h) na divisão de arrumos junto à cozinha todo o estuque está a cair devido à humidade no teto e por isso também não é utilizada; i) a casa de banho maior tem o teto cheio de humidade que provocará a queda de estuque de todo o teto] no elenco dos factos não provados, bem como quanto à não inclusão na matéria de facto provada de um ponto com determinada redacção e significado [o autor nunca efectuou quaisquer obras desde o início do contrato de arrendamento].
a. No que respeita ao conjunto de factos que o recorrente pretende ver retirados do elenco dos factos não provados e incluídos na matéria provada, facilmente se constata que os elementos que indica como imporem decisão diversa da proferida resumem-se ao conteúdo do em audiência declarado pelo próprio recorrente e ao conteúdo do depoimento prestado pela sua companheira, ambos residentes no imóvel.
A decisão recorrida ponderou estes meios de prova, pondo em causa a sua credibilidade – «Quer o réu, quer a sua companheira, têm interesse no desfecho da presente causa, o que afetou as garantias de isenção ao conferir aos seus depoimentos».
E, especificamente quanto aos alegados vícios de que o imóvel padece, confrontou esses depoimentos com o que resulta dos registos fotográficos juntos aos autos, concluindo não ser credível o relato feito - «Desde logo, os registos fotográficos juntos com a contestação não retratam a factualidade alegada, pelo contrário, o que se retira é a queda parcial de estuque de um dos tecos e não a queda de todo o estuque; e uma parede sem azulejos; por outro lado, e como já foi referido, as garantias de isenção do depoimento da companheira do réu e do réu, mostram-se afetadas, pelo que tais depoimentos careciam de ser corroborados por outros meios de prova, o que não sucedeu, pelo que não foram suficientes para que o Tribunal se convencesse da ocorrência da factualidade descrita nos pontos 3) a 9) do elenco dos factos provados; aliás o réu nem sequer aludiu à alegada patologia nas persianas e dobradiças das portas e repita-se da análise dos registos fotográficos juntos com a contestação não se retira a impossibilidade de utilização dos espaços retratados».
Trata-se de análise com que se concorda, não se vislumbrando mínimo fundamento para que os registos fotográficos juntos à contestação não retratem a situação cuja demonstração o recorrente pretende – no limite, essa falta gera dúvida fundada quanto à existência dos vícios com a dimensão que recorrente invoca.
Especificamente quanto ao ponto 2- da matéria de facto não provada, caso se admitisse, tal como o recorrente defende, que o autor havia assumido o compromisso de proceder à realização de determinadas obras, e sendo certo que o recorrente apresenta a falta de realização de obras no locado como justificação para o não pagamento da renda, sempre ficaria por esclarecer o motivo de o recorrente jamais ter remetido ao seu senhorio qualquer comunicação escrita a esse propósito [escrita, seguramente; verbal, a testemunha DD declarou que também não foi feita (esta testemunha, sendo filho do autor, naturalmente também possuirá algum interesse no desfecho da lide. Seja como for, ficamo-nos pelas versões contrárias a este propósito apresentadas, o que, sem mais, naturalmente nada permite afirmar com a devida segurança)].
Ou seja, nenhum dos meios de prova invocados pelo recorrente torna necessária a prolação de decisão sobre a matéria de facto diversa da tomada – o recorrente pretende apenas a substituição da decisão tomada pela sua própria interpretação quanto à força probatória dos meios apresentados, o que, como acima se referiu, não é admissível.
b.
Quanto ao ponto da matéria de facto que o recorrente pretende ver incluído ex novo no elenco de factos com relevo no processo, dir-se-á apenas que, atenta a nulidade do arrendamento, torna-se totalmente inútil ao desfecho da lide saber se o autor alguma vez realizou ou não obras no imóvel que deu de arrendamento.
Aliás, face à inevitável declaração de nulidade, facilmente se conclui o réu não possuir sobre o autor qualquer posição juridicamente eficaz da qual de alguma forma decorra o dever de executar qualquer obra.
E, conforme jurisprudência absolutamente pacífica, «não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente» [acórdão ao Tribunal da Relação de Coimbra de 24 de Abril de 2018, processo nº 278/15.5T8GVA.C1, disponível em www.dgsi.jtrc.pt/].
Em suma, improcede integralmente o recurso quanto à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

C)
Declarada a nulidade, naturalmente fica prejudicado o conhecimento do fundamento de resolução invocado pelo autor.
Devendo ser repetido o que foi prestado, ou o seu valor em espécie [nº 1 do artigo 289º do Código Civil], o pedido de condenação do réu na entrega do imóvel não pode deixar de proceder.
E, porque simplesmente não há meio de restituir a ocupação que desde 2016 o réu de facto tem feito do imóvel, deve aquele ser condenado no pagamento do valor que essa utilização possuirá, o qual, por princípio, corresponde à renda que senhorio e locatário livremente acordaram.
Esse mesmo princípio deve manter-se no caso dos autos, face à não demonstração de qualquer diminuição do valor de utilização do imóvel susceptível de influir no cômputo da concreta quantia que corresponde ao seu uso.
A obrigação de pagamento de valor relativo à utilização em concreto feita não se funda no cumprimento contratual, mas nas regras legais relativas à invalidade do negócio, pelo que não está sujeita a prazo certo.
Logo, na falta de outro momento para a constituição em mora, os juros relativamente ao valor devido à data da propositura da acção devem ser contados, à taxa legal, desde a citação (artigo 805º do Código Civil); quanto aos juros relativos à quantia devida por cada mês posteriormente decorrido com utilização do imóvel pelo réu, devem ser contados desde o último dia do respectivo mês [a interpelação foi feita com a citação para os termos da acção, mas nesse momento a obrigação era ainda futura (nº 2 do artigo 804º do Código Civil)].
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III - Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes que integram a 3ª secção deste Tribunal da Relação do Porto em
I - revogar a decisão recorrida e, em sua substituição:
a. declarar a nulidade do contrato de arrendamento entre autor e réu celebrado após 08 de Julho de 2016, relativo à fração autónoma correspondente ao 1º andar direito do prédio urbano sito na rua ..., no Porto, inscrito na matriz sob o artigo ..., da freguesia ..., e, em consequência:
b. condenar o réu BB a entregar ao autor AA, livre de pessoas e bens, a fração autónoma correspondente ao 1º andar direito do prédio urbano sito na rua ..., no Porto, inscrito na matriz sob o artigo ..., da freguesia ...;
c. condenar o réu BB a pagar ao autor AA a quantia global de €2.400,00, acrescida de juros de mora vencidos, à taxa legal, desde a citação e até integral reembolso;
d. condenar o réu BB a pagar ao autor AA a quantia mensal de €400,00, desde Janeiro de 2022, inclusive, e até efectivação da entrega referida em a), a que acrescem juros de mora contados, à taxa legal, relativamente a cada parcela de € 400,00 desde o último dia do respectivo mês;
II - Julgar improcedente o recurso interposto pelo réu.

Mais se condenam autor e réu nas custas do processo, na proporção de 2/10 para o autor e 8/10 para o réu – artigo 527º do Código de Processo Civil.

Notifique.

Porto, 12/01/2023
António Carneiro da Silva
Isabel Ferreira
Deolinda Varão