Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2499/10.8TBVCD-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ AMARAL
Descritores: INTERVENÇÃO DE TERCEIROS
INTERVENÇÃO PRINCIPAL
INTERVENÇÃO ACESSÓRIA
Nº do Documento: RP201301312499/10.8TBVCD-A.P1
Data do Acordão: 01/31/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - No âmbito de uma acção fundada em responsabilidade civil, ainda que o demandado como lesante a tenha transferido, mediante contrato, para uma empresa de seguros, são excepcionais as hipóteses em que o lesado pode demandar directamente a seguradora e exigir dela indemnização.
II - Tal verifica-se nos casos de seguro obrigatório e só em circunstâncias restritas no facultativo.
III - Por isso, em regra, a intervenção da seguradora, provocada pelo demandado, só pode ocorrer acessoriamente, enquanto titular de mera relação jurídica conexa com a que fundamenta a acção e que lhe confere o direito de regresso.
IV - Não se verificando qualquer das hipóteses excepcionais referidas em I, mas verificando-se a mencionada em III, o incidente de intervenção principal provocada pode ser convolado para intervenção acessória.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº. 2499/10.8TBVCD-A.P1 – 3.ª

Relator: José Fernando Cardoso Amaral (nº. 43)
Des. Dr. Trajano Amador Seabra Teles de Menezes e Melo (1º Adjunto)
Des. Dr. Mário Manuel Batista Fernandes (2º Adjunto)

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO

Na Comarca de Vila do Conde1º Juízo Cível, pendem uns autos de Acção Ordinária (declarativa) em que a Autora “EP – Estradas de Portugal, SA” pediu a condenação da Ré “B…, SA” no pagamento de todas as despesas com a reparação da C…, sobre o Rio …, por aquela suportadas, umas já apuradas (431.016,89€) e outras a liquidar em execução de sentença, reparação essa necessária devido ao colapso de dois arcos causado pela implantação de uma ensecadeira, a montante, na obra de reabilitação do açude de … e que originou o estrangulamento do escoamento das águas do rio e, face à situação de cheia então verificada, o aumento da sua velocidade média e a erosão na zona de fundação dos arcos, cuja perda de apoio originou o referido colapso.

Na sua contestação, a Ré “B…, SA, além de excepcionar a ilegitimidade da Autora e de pugnar pela improcedência total da acção, deduziu Incidente de Intervenção Principal Provocada da “Companhia de Seguros D…, SA”, ao abrigo do disposto nos artºs 325º, nºs 1 e 3, e 329º, CPC, alegando para tal que:

> Caso venha a ser julgada responsável pelas despesas decorrentes da reparação da C… danificada, não será ela mas terá de ser essa seguradora a suportá-las, por para esta ter transferido a responsabilidade pelo respectivo pagamento, mediante contrato de seguro.
> Com efeito, entre a “B1…, SA”, grupo em que se integra a Ré, e a “D…”, foram celebrados contratos através dos quais transferiu a sua responsabilidade civil por danos provocados a terceiros em resultado de obras por si promovidas para aquela, contratos esses cujas apólices têm os números ..... e ......
> E através dos quais a “D…” garantiu o pagamento de indemnizações que a segurada viesse a ser obrigada a satisfazer de acordo com a legislação em vigor decorrente da sua responsabilidade directa, indirecta, subsidiária, conjunta, solidária e individualizada ou qualquer outra, por danos materiais e as suas consequências causados a terceiros no exercício das suas actividades.
> E, nomeadamente, mas não exclusivamente, a garantia das responsabilidades decorrentes de trabalhos de construção.
> Pelo que a sua eventual responsabilidade, no caso em apreço, encontra-se transferida para a “D…”, assim obrigada a indemnizar a A. pelos prejuízos (pretensamente) sofridos.

E, em suma, pediu que, admitida a intervenção, na alegada hipótese, seja reconhecida a transferência da alegada responsabilidade para a “D…”, no âmbito da apólice referida, e, consequentemente, seja esta condenada a pagar à A. a totalidade da indemnização [em] que vier a ser condenado[a], conforme peticionado pela A..

Nada tendo oposto a parte contrária, foi o Incidente decidido no sentido de que não se verificam os pressupostos legais da Intervenção Principal mas os da Intervenção Acessória e, portanto, apenas nesta qualidade foi admitida e chamada aos autos a “D…”.

Inconformada, a Ré chamante (“B…”) apelou para esta Relação, tendo concluído as suas alegações assim:

«I. No douto Despacho recorrido não se admitiu a intervenção principal da Companhia de Seguros D1…, S.A., requerida pela ora Recorrente nos arts. 411.º e segs. da sua contestação, por se entender, em síntese, que estaria em causa um mero direito de regresso e não perante uma situação em que uma parte chama um “litisconsorte voluntário ou necessário” – cfr. n.ºs 1 e 2 do texto das presentes alegações;
II. Na contestação, a ora Recorrente alegou excepção e impugnou a pretensão da A., tendo ainda deduzido, além do mais, incidente de intervenção provocada da referida seguradora (v. arts. 411.º e segs. da contestação) e peticionado, designadamente, que fosse reconhecida a transferência de responsabilidade para esta e a mesma condenada a pagar a indemnização, no caso de se considerar procedente a presente acção – cfr. n.ºs 1 e 2 do texto das presentes alegações;
III. Com o devido respeito, não podemos concordar com o douto Despacho recorrido, nesta parte em que não admitiu a intervenção principal da referida seguradora, não se restringindo a questão em apreço apenas a um direito de regresso da ora Recorrente – cfr. n.ºs 1 e 2 do texto das presentes alegações;
IV. Na linha do decidido no douto Ac. da Relação de Lisboa, de 07.11.2006 (Proc. 7576/2206-7, disponível em www.dgsi.pt), em que também estava em causa o chamamento de seguradora, verificam-se in casu os requisitos para a intervenção principal da referida seguradora (cfr., no mesmo sentido, entre outros, Acs. STJ, de 30.03.1989, BMJ 385/563; de 07.07.1983 BMJ 329/484; Ac. RELAÇÃO DO PORTO, de 04.02.1999, BMJ 489/407; SALVADOR DA COSTA, Os Incidentes da Instância, 3.ª Ed., pág. 111) – cfr. n.ºs 1 e 2 do texto das presentes alegações;
V. A intervenção provocada passiva abrange todos os casos em que a obrigação comporte uma pluralidade de devedores ou quando existam garantes da obrigação a que a causa principal se reporte, quer com vista à defesa conjunta, quer para acautelar o eventual direito de regresso ou de sub rogação que lhe venha a assistir (v. SALVADOR DA COSTA, Os Incidentes da Instância, 3.ª Ed., pág. 111; cfr. Preâmbulo do DL 329 – A/95; cfr. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o novo Processo Civil, pág. 183) – cfr. n.ºs 3 a 6 do texto das presentes alegações;
VI. Conforme alegado nos arts. 411.º e segs. da contestação, a ora Recorrente transferiu a sua responsabilidade para aquela seguradora, a qual, por contratos de seguro, garantiu o pagamento de indemnizações que a ora Recorrente venha a ser obrigada a satisfazer, estabelecendo-se, além do mais, que se encontra coberta a responsabilidade civil da ora Recorrente por danos materiais causados a terceiro, estando nomeadamente garantida a responsabilidade em relação a trabalhos de construção ou reparação realizados pela ora Recorrente no âmbito da sua actividade ou mediante serviços contratados, como é o caso (v., entre outros, arts. 418.º e 420.º da contestação, cfr. n.ºs 1 e 2 dos Docs. 36 a 49, juntos com a contestação) – cfr. n.º 7 do texto das presentes alegações;
VII. Quanto às referências, nos contratos de seguro em causa, à seguradora garantir ao segurado ou garantir a responsabilidade em relação a trabalhos executados pelo segurado ou a seu mando, cumpre referir que, conforme se escreve no sumário do douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.06.2009, “o segurador, como garante da responsabilidade do segurado, responde na medida em que for responsável o segurado e/ou as demais pessoas cuja responsabilidade seja garantida pelo contrato de seguro” (Proc. 286/09.5 YFLSB – sublinhado nosso; cfr., no mesmo sentido, Ac. STJ de 27.10.2009, Proc. 844/07.2 TBOER.L1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt) – cfr. n.ºs 8 e 9 do texto das presentes alegações;
VIII. Conforme referido na contestação (v. arts. 411.º e segs.), pelos contratos de seguro em causa a ora Recorrente transferiu para aquela seguradora a sua responsabilidade ou, por outras palavras, transferiu a eventual obrigação de indemnização decorrente dessa responsabilidade – cfr. n.ºs 10 a 14 do texto das presentes alegações;
IX. Ora, face a esta transferência da obrigação de indemnizar da esfera jurídica do segurado para a da seguradora, é manifesto que a seguradora tem um interesse igual ao do réu, tal como exigido pela alínea a) do art. 320.º, nada impedindo que o Autor demandasse ab inicio também aquela seguradora, nos termos do art. 27.º do CPC – cfr. n.ºs 10 a 14 do texto das presentes alegações;
X. Ou seja, uma vez que, por força da celebração do contrato de seguro e mediante o pagamento do prémio, a seguradora se obrigou a suportar as consequências da eventual ocorrência do sinistro que determinasse responsabilidade civil do seu segurado, esta passa a ocupar uma posição equivalente à do segurado, a partir do momento em que o sinistro ocorre, uma vez que é sobre ela que irá recair a obrigação de indemnizar – cfr. n.ºs 10 a 14 do texto das presentes alegações;
XI. A referida seguradora tem, assim, um interesse idêntico ao da ora Recorrente, sendo que, tendo sido transferida para esta qualquer eventual obrigação de indemnização pelos trabalhos em causa, sempre se verificariam os requisitos para intervenção provocada do lado passivo, contrariamente ao decidido no douto Despacho recorrido (v. arts. 325.º e segs. do CPC; cfr. art. 320.º/a) do CPC) – cfr. n.ºs 10 a 14 do texto das presentes alegações;
XII. A verificação in casu dos requisitos da intervenção principal passiva, resulta ainda do facto de os contratos de seguro em causa também assumirem a característica de contratos a favor de terceiro – cfr. n.ºs 15 e 16 do texto das presentes alegações;
XIII. Quer isto dizer que o lesado pode demandar o segurado, a seguradora – que surgem aqui como condevedores - ou ambos, no pagamento da indemnização, o que se traduz num caso de litisconsórcio voluntário, tal como definido no art. 27.º do CPC e, consequentemente, permite o incidente de intervenção principal provocada, nos termos dos arts. 325.º e 329.º do CPC, contrariamente ao decidido no douto Despacho recorrido – cfr. n.ºs 17 e 18 do texto das presentes alegações;
XIV. Acresce que a seguradora e o segurado surgem como responsáveis solidários, nos termos do art. 497.º do Código Civil, pelo pagamento da indemnização ao lesado, pois, como referido no douto Acórdão da Relação de Lisboa, de 07.11.2006, acima citado, pelo “contrato de seguro apenas se transferiu o pagamento do quantum indemnizatório para a seguradora, mas não a responsabilidade jurídica pelo evento” – cfr. n.ºs 18 a 20 do texto das presentes alegações;
XV. Com todo o respeito, consideramos ainda que o Despacho recorrido não fez a análise completa do regime da intervenção principal provocada constante dos arts. 325.º e seguintes do CPC, não tendo atendido, em concreto, ao regime especial da intervenção passiva deduzida pelo Réu constante do art. 329.º do CPC – cfr. n.ºs 18 a 20 do texto das presentes alegações;
XVI. Refira-se que, no caso sub judice, a ora Recorrente peticionou expressamente que fosse reconhecida a transferência de responsabilidade para a seguradora e a sua condenação no pagamento da indemnização, no caso de se considerar procedente a presente acção, o que se enquadra expressamente na previsão do n.º 2 do art. 329.º, in fine, em que se estabelece que “pode o chamamento ter ainda como fim a condenação na satisfação do direito de regresso que lhe possa vir a assistir” – cfr. n.ºs 18 a 20 do texto das presentes alegações;
XVII. Ora, o art. 330.º do CPC tem uma finalidade totalmente distinta – que é a de estender a força do caso julgado a um terceiro contra quem o Réu, caso venha a ser condenado, possa exercer o seu direito de regresso por se considerar que esse terceiro é responsável pelo prejuízo causado pela condenação do Réu – cfr. n.ºs 18 a 20 do texto das presentes alegações;
XVIII. Assumindo a referida seguradora a qualidade de garante e, pelo menos, de condevedor, sempre seria admissível a sua intervenção principal passiva, nos termos do art. 329.º do CPC – cfr. n.ºs 21 a 22 do texto das presentes alegações;
XIX. O douto Despacho recorrido enferma, assim, de erros de julgamento, tendo violado, além do mais, o disposto nos arts. 325.º e 329.º do CPC, bem como os arts. 320.º e 27.º do CPC.”

Não houve contra-alegações.

O recurso foi admitido como de apelação, com efeito meramente devolutivo e subida imediata.

Após distribuição, ordenou-se a baixa do processo para completa instrução do traslado, após o que correrem os Vistos legais, cumprindo agora decidir, já que nada a tal obsta.

II. QUESTÕES A RESOLVER

O thema decidendum, nos termos dos artºs 684º, nº 3, e 685º, nºs 1 e 2, do CPC, e conforme entende a Doutrina e a Jurisprudência, é balizado pelas conclusões do agravante.
Assim, de harmonia com as apresentadas, cabe a este Tribunal decidir se a situação alegada justifica que a chamada seja admitida a intervir como parte principal (e não somente como acessória).

III. FACTOS PROVADOS

Com interesse para a apreciação e decisão da específica questão posta e além dos decorrentes do relato que antecede, considera-se, ainda, provado, em face dos documentos juntos, que:

1) O evento lesivo ocorreu em 20-10-2004.
2) Entre 01-01-2004 e 31-12-2004 vigoraram, entre a A. e a R., os contratos de seguro com as apólices nºs ….. e ….., juntas como docs. 36 e 43, de fls. 407 a 420 e de fls. 537 a 553, respectivamente, sendo o segundo deles considerado “apólice de excesso”.
3) Segundo a cláusula geral 5.1 do primeiro, a apólice garantia a “responsabilidade civil geral”.
4) A cláusula 1.1 das condições especiais do primeiro estabelece refere: “Fica estabelecido, de acordo com os termos e condições desta apólice, que a Seguradora garante ao Segurado: Pagamento de indemnizações (…) que o Segurado venha a ser obrigado a satisfazer (…), por danos (…) materiais e as suas consequências, causados a Terceiros no exercício das suas actividades”.
5) A cláusula 2 dispõe: “Fica estabelecida, conforme os termos da Cláusula anterior, que se encontra coberta a Responsabilidade Civil do Segurado por (..) danos materiais e suas consequências causados a Terceiros, derivados de quaisquer actos, factos ou omissões praticados por si ou mediante serviços contratados, ocorridos no exercício das suas actividades. Com carácter geral e enunciativo mas não limitativo, ficam garantidos por esta apólice as responsabilidades em relação a, como consequência de: (…)”.
6) A cláusula 11 refere “Garantem-se as reclamações relativas a sentenças judiciais (…)”.
7) A cláusula 13.1 estipula: “O Segurado obriga-se a não fazer ou aceitar qualquer oferta, promessa ou pagamento por sua iniciativa sem o consentimento prévio e por escrito da Seguradora que ficará autorizada a assumir e dirigir, em nome do Segurado, a defesa ou regularização de qualquer reclamação ou a instaurar acções em nome do Segurado e em defesa deste (…)”.
8) A cláusula 13.2 alude ao “caso da Seguradora pagar directamente ao Segurado qualquer reclamação (…) a Seguradora renunciará à condução e controlo dessas reclamações e não terá mais responsabilidades no que se refere às mesmas (…)”.
9) O seu limite de capital por sinistro é de 150.000€.
10) Segundo a cláusula geral 5.1 do segundo dos referidos contratos, a apólice garantia a “responsabilidade civil geral”.
11) O limite geral de indemnização previsto na cláusula 6.1 é de 200.000.000€;
12) A franquia aplicável a cada sinistro é de 150.000€ (cláusula 7).
13) As cláusulas 11, 13.1 e 13.2 têm teor idêntico às do primeiro contrato.[1]

IV. APRECIAÇÃO

A configuração subjectiva inicialmente desenhada pela Autora, partindo do respectivo objecto (pedido de indemnização com fundamento em responsabilidade civil extracontratual por danos), colocou do lado passivo, apenas, a Ré “B…, SA”, alegadamente a causadora culposa dos prejuízos invocados.

Devendo embora a instância, por regra, manter-se estável quanto às pessoas, ela pode, excepcionalmente, modificar-se pela intervenção de novas partes, nos termos dos artºs 269º e 270º [2], seja para suprimento da ilegitimidade verificada, seja em substituição imposta pela sucessão na relação substantiva em litígio de alguma das partes (inter vivos ou mortis causa), seja, ainda, por virtude dos incidentes de intervenção de terceiros.

É esta a forma aqui suscitada.

A intervenção de terceiros a título principal, ou seja, aquela em que o interveniente faz valer um direito próprio, paralelo ao do autor ou do réu (artº 321º.), pode ocorrer por iniciativa espontânea daquele que, em relação ao objecto da causa, tiver um interesse igual ao do autor ou do réu, interesse este definido nos termos dos artigos 27º e 28º, ou, ainda, aquele que pudesse coligar-se com o autor, nos termos do artº 30º (desde que não se coloquem os obstáculos previstos no artº 31º) – artº 320º.

E pode, ainda, ocorrer por chamamento de qualquer das partes, como seu associado ou como associado da parte contrária, consoante a natureza do interesse que lhe confira o direito a intervir, desde que o chamante alegue a causa do chamamento e justifique o interesse que, através dele, pretende acautelar – artº 325º (isto, para além do caso previsto no artº 31º-B).

A intervenção aqui em apreço foi provocada pela Ré e destina-se a fazer intervir a empresa seguradora como sua associada (lado passivo).

Deixando agora de parte a hipótese de coligação, atentemos que, estando na origem do chamamento, em regra, as situações previstas nos artºs 27º e 28º, é necessário que uma das previstas nesse âmbito normativo se verifique para a intervenção ser admissível, seja a espontânea ou a provocada.

Tendo por base a legitimidade das partes, possibilita-se que a acção seja proposta por todos os interessados ou contra todos eles, se a relação material controvertida respeitar a várias pessoas; ou, sendo a lei ou o negócio omisso a tal propósito, por um só ou contra um só desses interessados – devendo o tribunal, nesta hipótese, conhecer apenas da respectiva quota-parte do interesse ou da responsabilidade, ainda que o pedido abranja a totalidade (artº 27º.).

Uma vez que a pluralidade ou singularidade é facultativa, a legitimidade fica, em qualquer das opções, assegurada.

No litisconsórcio voluntário, há uma simples acumulação de acções, conservando cada litigante uma posição relativamente independente perante os seus compartes – artº 29º.

Se, para assegurar a legitimidade, a lei ou o negócio exigirem a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, ou, ainda, se for necessária a intervenção de todos para que, em função da própria natureza da relação jurídica, a decisão a obter produza o seu efeito útil normal, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade, e, então, está-se diante de caso de litisconsórcio necessário.

Neste, há uma única acção com pluralidade de sujeitos.

A tal luz, não se vê como, no caso concreto, face aos termos dos contratos de seguro em causa e inexistindo lei que sobre tal disponha expressamente, a situação possa enquadrar-se na previsão do litisconsórcio (ainda que voluntário) de modo a justificar a intervenção da empresa seguradora nos termos e com os efeitos próprios que lhe adviriam da qualidade de parte principal.

É que a relação jurídica fundamental – a relação material controvertida – coloca, de um lado, o sujeito lesado e, do outro, o sujeito lesante. A seguradora só indirectamente surge com ela conexionada por ter assumido, mediante o contrato de seguro, a eventual responsabilidade deste último, garantindo-o a ele e ao seu património, mas não se constituindo como garante directo perante aquele terceiro lesado.

Claro que há interesse prático da chamada em que a ré não seja condenada. Todavia, quanto a esta, tal decorrerá da não verificação e reconhecimento dos pressupostos da obrigação de indemnizar que fundamentaram a sua demanda. Quanto àquela, a não responsabilização será consequência indirecta ou reflexa da não ocorrência do risco que, em face desta, se obrigou a cobrir e de cujas consequências se obrigou a compensá-la. Ali, trata-se da relação directa lesado-lesante; aqui, da relação (interna) seguradora-segurada.

Como se referiu na decisão apelada, entendendo “…o alegado à luz da lei assim analisada, é manifesto que o chamamento da Companhia de Seguros não se insere em nenhuma destas hipóteses, mas sim no disposto no art.” 330º do Cód. Processo Civil que estatui que "o réu que tenha acção de regresso contra terceiro para ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a perda da demanda pode chamá-lo a intervir como auxiliar na defesa, sempre que o terceiro careça de legitimidade para intervir como parte principal".
A intervenção acessória provocada destina-se a permitir a participação de um terceiro que é responsável pelos danos produzidos no réu demandado pela procedência da acção, isto é, de um terceiro perante o qual este réu possui, na hipótese de procedência da acção, um direito de regresso.
Por outras palavras, tal instituto jurídico visa tornar indiscutíveis certos pressupostos de uma futura e eventual acção de regresso contra o terceiro, nele repercutindo o prejuízo que lhe cause a perda da demanda (cfr. neste sentido M. Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 178; A. Pais de Sousa e Cardona Ferreira, in Processo Civil, pág. 65).
Analisando a contestação verifica-se que, a ser condenada a requerente-Ré, esta terá direito de regresso contra a chamada Companhia de Seguros D1…, por força do contrato aludido.
Ora, face à alegação fáctica supra enunciada mostram-se preenchidos os requisitos enunciados no n.º 1 do art. 330º do Cód. Processo Civil.
Sendo assim, conclui-se pela verificação dos requisitos legais previstos para a intervenção acessória provocada de Companhia de Seguros D1…, SA, motivo pelo que se admite a sua intervenção acessória provocada.”

Como se diz no artº 321º, o interveniente principal faz valer um direito próprio, paralelo (de acordo com a feição deste caso) ao do réu. Porém, no caso, a seguradora nenhum direito próprio (ainda que de defesa) tem na relação material litigada perante a Autora. Esse direito próprio advém-lhe, sim, da qualidade de seguradora e funda-se no contrato celebrado com a segurada Ré. Não deriva da qualidade de lesante nem se funda na responsabilidade pelo evento danoso enquanto sujeito dele ou seu substituto e que, nos mesmos termos daquela (paralelos), possa contestar (artº 323º, nº1, e 327º, nº 3).

Aliás, in casu, a Ré chamante pediu, para a hipótese de se verificar a sua responsabilidade e consequente obrigação de indemnizar a Autora, que seja reconhecida a transferência da alegada responsabilidade para a “D…”, no âmbito da apólice referida, e, consequentemente, seja esta condenada a pagar à A. a totalidade da indemnização em que vier a ser condenada, nos termos por aquela peticionados.

Só que, nem do contrato (cfr. factos enumerados em III, acima destacados) nem da lei, resulta a pretendida transferência das obrigação e, portanto, fundamento para a chamada ser directamente condenada a indemnizar a Autora, na medida respectiva se exonerando a Ré da sua responsabilidade perante aquela.

Pelo contrário, infere-se do teor das apólices que apenas directamente perante a segurada responde a seguradora, só podendo até agir perante terceiros “em nome” dela e não em nome próprio, todos os termos do contrato afastando (embora não proibindo em absoluto) qualquer relacionamento directo com os lesados.

Das regras outrora constantes do Código Comercial nada resultava e (ao contrário do que actualmente se verifica) inexistia legislação específica que permitisse a demanda directa pelo lesado da empresa seguradora e a correspondente responsabilização deste ante aquela.

Em face disso, invocava-se o regime do artºs 443º, e sgs., CC, para, a partir da qualificação do contrato de seguro como um típico contrato a favor de terceiro sustentar o direito deste (como beneficiário) à prestação e, portanto, a possibilidade de a exigir directamente do segurador, assim como o direito de o promissário (segurado) exigir do promitente (segurador) o cumprimento da promessa (artº 444º, nºs 1 e 2, CC).

Ao contrário do que sucede no contrato a favor de terceiro, o direito do lesado não nasce voluntária e directamente do contrato de seguro mas da consumação do evento lesivo cujo risco de ocorrência naquele se preveniu.

Por isso, no contrato de seguro não se estipula a atribuição de um direito (de crédito ou real), uma prestação certa ou uma atribuição patrimonial imediata ao beneficiário.

Aliás, dado o carácter tipicamente aleatório da obrigação assumida pela seguradora, não se sabe se ela chegará a nascer, qual a sua extensão ou medida (o que depende da posterior e eventual ocorrência do facto danoso cujo risco se cobriu) nem – em casos como o dos autos – se conhece quem será a pessoa do possível lesado e, portanto, seu beneficiário, crendo-se que nem sequer ao caso se ajusta a hipótese do artigo 446º, CC, de a prestação ser estipulada em benefício de um “conjunto indeterminado de pessoas” porque, mesmo aí, especifica-se esse “conjunto” e, portanto, limita-se o círculo das pessoas dele componentes como se atribui às “entidades competentes para defender os interesses em causa” o direito de reclamar a prestação.

Apesar disso, e não obstante ainda muito longe da instituição do regime de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel que só mais tarde viria a implantar-se e a evoluir em termos que hoje permitem a demanda directa e até exclusiva da seguradora, já o STJ, por Acórdão de 16-01-1970[3], certamente partindo da consideração do contrato de seguro como a favor de terceiro, admitia que «II - As companhias de seguros, para as quais haja sido transferida a responsabilidade pela indemnização dos prejuízos causados por automóveis em circulação, podem ser demandadas directamente por quem tiver direito a indemnização. III - O lesado tem o direito de demandar directamente a companhia seguradora, ou o segurado, ou ambos em litisconsórcio voluntario; assim, a circunstância de não exigir do segurado a indemnização devida não constitui causa liberatória da responsabilidade da seguradora.».

A tal propósito, contrapõe, no entanto, Antunes Varela[4] que “Em princípio, não é esse, porém o sentido normal das declarações dos contraentes. O segurado não quer, em regra, atribuir desde logo um direito ao credor da indemnização eventual contra a companhia seguradora, mas reservar apenas para si a faculdade de se desonerar da responsabilidade em que venha a incorrer. Diferente, nesse aspecto, é a fisionomia do seguro obrigatório.”

Efectivamente, apesar de a solução da demanda directa há muito estar consagrada[5] no seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (cfr., actualmente, artº 64º, do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de Agosto), e das dúvidas suscitadas no âmbito dos seguros de responsabilidade civil em geral, nem assim o legislador quis ser muito ousado.

Com efeito, como se anuncia no preâmbulo do Decreto-Lei 72/2008, de 16 de Abril, “No seguro de responsabilidade civil voluntário, em determinadas situações, o lesado pode demandar directamente o segurador, sendo esse direito reconhecido ao lesado nos seguros obrigatórios de responsabilidade civil. Por isso, a possibilidade de o lesado demandar directamente o segurador depende de se tratar de seguro de responsabilidade civil obrigatório ou facultativo. No primeiro caso, a regra é a de se atribuir esse direito ao lesado, pois a obrigatoriedade do seguro é estabelecida nas leis com a finalidade de proteger o lesado. No seguro facultativo, preserva-se o princípio da relatividade dos contratos, dispondo que o terceiro lesado não pode, por via de regra, exigir a indemnização ao segurador.”

Assim, no que tange ao seguro de responsabilidade civil por danos, em que “o segurador cobre o risco de constituição, no património do segurado,[6] de uma obrigação de indemnizar terceiros” (artº 137º, do citado Decreto-Lei) e mediante o qual se “garante a obrigação de indemnizar”, apenas no caso de seguro obrigatório “O lesado tem o direito de exigir o pagamento da indemnização directamente ao segurador” (artº 146º, nº1).

Fora isso, “O contrato de seguro pode prever o direito de o lesado demandar directamente o segurador, isoladamente ou em conjunto com o segurado” (artº 140º, nº2) ou “ainda quando o segurado o tenha informado da existência de um contrato de seguro com o consequente início de negociações directas entre o lesado e o segurador” (nº 3).

Num ou noutro caso, “O segurador de responsabilidade civil pode intervir em qualquer processo judicial ou administrativo em que se discuta a obrigação de indemnizar cujo risco ele tenha assumido, suportando os custos daí decorrentes.” (nº 1). Intervir – não, note-se, ser parte principal.

Este regime, por ter entrado em vigor em 01-01-2009 e os contratos em causa terem cessados seus efeitos em 31-01-2004, é inaplicável ao nosso caso (artigo 2º e 7º), não estando reunidos os pressuposto para o mesmo poder ser considerado sequer interpretativo (artº 13º, CC), desde logo porque nenhum regime existia antes e no seio do qual tivessem surgido soluções jurisprudenciais relevantemente controversas para as dúvidas no seu âmbito suscitadas e por uma das quais se pudesse agora considerar que o legislador optou.

Do exame (crucial) das principais cláusulas do contrato acima destacadas não resulta indiciado ter sido sequer considerada e voluntariamente estipulada pelas partes nos sentido afirmativo a vontade de o terceiro lesado poder demandar directamente a seguradora, muito menos a obrigação de esta pagar a indemnização directamente àquele.

Assim como dele não resulta qualquer estipulação no sentido da preconizada transferência de responsabilidade.

Perante o terceiro lesado, a seguradora, em face do contrato de seguro e do regime vigente ao tempo, não se apresenta como condevedora nem como principal devedora, muito menos a título de obrigação solidária.

A solidariedade, nos termos do artº 513º, CC, só existe quando resulte da lei ou da vontade das partes (estando previsto no artº 518º a dos condevedores). Nem esta nem aquela tal estipulam, não tendo aqui aplicação a norma do artº 497º, CC, ao contrário do que defende a apelante, sustentando-se no Acórdão da Relação de Lisboa de 07-11-2006[7], uma vez que tal regra, ao referir como várias as pessoas responsáveis pelos danos, manifestamente se refere às causadoras, por acção ou omissão, do evento lesivo ou às detentoras e beneficiárias da fonte do dano e como tal por ele chamadas a responder, e não às que, como as seguradoras, só indirectamente respondem, em termos reflexos e em função do contrato.

A esta luz nunca o artº 329º, CPC, pode legitimar a intervenção principal da seguradora, sendo certo que, de qualquer modo, também, a esse título o fim do chamamento poderá consistir no pedido de satisfação do direito de regresso que ao demandado principal possa assistir (nº 2), mas não sendo isso que a Ré pediu. Diferentemente, ela pretendeu, com o pedido de intervenção principal, que para a chamada fosse transferida a responsabilidade total e exclusiva e que no respectivo pagamento seja condenada apenas ela (esquecendo até a franquia clausulada).

Assim, a afirmação de que o terceiro pode demandar directamente a seguradora, ou o segurado ou ambos, em litisconsórcio voluntário, como se entende, por exemplo, no já citado Acórdão da Relação de Lisboa de 07-11-2006[8] (em que faz fé a apelante), não se nos afigura suficiente e convincentemente fundamentada na lei, até porque o argumento de que, embora não se transmita a responsabilidade pelo evento transfere-se o pagamento do quantum indemnizatório, não se apresenta cabal e explicitamente nela baseado.

Não podendo, mesmo em caso de verificação dos demais pressupostos e da inexistência de quaisquer outras excepções, o tribunal condenar no pedido, singular, conjunta ou solidariamente (por não ter fundamento legal ou contratual para isso) a Interveniente Seguradora, mostra-se desconforme aos pressupostos dos artigos 27º e 28º, do CPC, e, por isso, inútil, a sua intervenção nessa qualidade.

Como bem refere Salvador da Costa[9], “Ao invés do que ocorre na intervenção acessória provocada, em que se chama ao processo, numa posição passiva, o titular de uma relação jurídica conexa com a que se discute na acção, com a intervenção passiva em análise [a prevista no artº 329º] visa-se colocar no processo, como réu, ao lado do réu primitivo um dos sujeitos passivos da relação jurídica material controvertida que à acção serve de causa de pedir”.

Já o mesmo não sucede no âmbito do artº 330º, e sgs., CPC. A relação de regresso que a Ré segurada terá contra a Interveniente seguradora justifica a intervenção desta no quadro do incidente de intervenção acessória e, portanto, o auxílio na defesa.

Reconhecendo-se embora que a questão não é pacífica, entendemos que bem andou, portanto, o tribunal a quo ao julgar não verificados os pressupostos da intervenção principal provocada, designadamente por falta de legitimidade para tal, e, convolando o incidente (possibilidade admitida na Doutrina e na Jurisprudência), deferindo-o nos parâmetros da principal acessória.[10]

Improcedem, portanto, as conclusões da apelante e, assim, o recurso.

V. DECISÃO

Em função do exposto, julga-se improcedente a apelação e confirma-se a decisão recorrida.

Custas da apelação pela Ré apelante – Tabela I-B, do RCP.

Notifique.

Porto, 31-01-2013
José Fernando Cardoso Amaral
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo
Mário Manuel Baptista Fernandes
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[1] Sublinhados nossos dos trechos mais relevantes para a decisão a tomar.
[2] Do Código de Processo Civil, como os demais que vierem a ser indicados sem outra referência.
[3] Relatado pelo Consº Acácio Carvalho, cujo sumário se encontra na Base de Dados do ITIJ e no BMJ nº 193, página 359.
[4] Das Obrigações em Geral I, 4ª edição, 1982, página 332, nota 1.
[5] Foi assim tornado pelo Decreto-Lei 408/79, de 25 de Setembro (artº 22º.).
[6] Garantia de cobertura que não significa transferência do risco.
[7] Relatora: Desembª Maria do Rosário Morgado.
[8] Acolhendo-se também no do STA, de 01-02-2000.
[9] Os Incidentes da Instância, Almedina, 1999, páginas 117 e 118.
[10] Neste sentido, Acórdão da Relação de Guimarães de 25-09-2012 (Desembargador: Figueiredo de Almeida).
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Sumário (artº 713º, nº7, CPC):
I) No âmbito de acção fundamentada em responsabilidade civil, ainda que o demandado como lesante a tenha transferido para empresa de seguros, mediante contrato, são excepcionais as hipóteses em que o lesante pode demandar directamente a seguradora e exigir dela a indemnização.
II) Tal se verifica nos casos de seguro obrigatório (artº 146º, nº 1, do Decreto-Lei 72/2008, de 16 de Abril) e só em circunstâncias restritas no facultativo (artº 140º, nº 2, do mesmo diploma).
III) Daí que, em regra, a intervenção da sua seguradora provocada pela ré lesante, só pode ocorrer acessoriamente, enquanto titular de mera relação jurídica conexa com a que fundamenta a acção, e não desta (direito de regresso).
IV) Não se verificando qualquer das hipóteses excepcionais referidas em I), mas verificando-se as mencionadas em III), o incidente de intervenção provocada principal pode ser convolado na acessória.

José Fernando Cardoso Amaral