Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3324/10.5TBSTS-F.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PRINCÍPIO DISPOSITIVO
CADUCIDADE
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RP201405123324/10.5TBSTS.P1
Data do Acordão: 05/12/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Na impugnação da matéria de facto o recorrente além de aduzir um discurso argumentativo, onde elenque, desde logo, as provas, deve, em seguida, produzir uma análise crítica das mesmas, pois que, verdadeiramente só se coloca uma questão se se elaborar uma argumentação que se oponha à argumentação produzida, colocando, então, o tribunal de recurso perante uma questão a resolver.
II - A ampliação da base factual nos termos referidos no artigo 662.º, nºs 1 e 2 al. c) do C.P.Civil apenas se justifica desde que ela se revele indispensável por forma a assegurar enquadramentos jurídicos diversos dos equacionados pelo tribunal recorrido.
III - Não basta, porém, que os factos tenham conexão alguma com os diversos enquadramentos jurídicos, nesta fase, o que importa ponderar é o enquadramento jurídico em face do objecto do recurso.
IV - A adução do material de facto a utilizar pelo juiz para a decisão da causa só compete, em princípio, às partes: a estas corresponde proporcionarem ao juiz, mediante as suas afirmações de facto (não notórias) a base da decisão, razão pela qual, a parte que invoca a caducidade do direito cabe alegar os factos correspondentes e de acordo com a facti species da respectiva norma.
V - O prazo de seis meses a que se refere o art. 123, n° 1 do CIRE é de caducidade do direito potestativo à resolução dos actos prejudiciais à massa insolvente, não obstante a epígrafe do preceito seja “prescrição do direito”.
V I- Esse prazo conta-se desde o conhecimento do acto, ou seja, das partes nele intervenientes, da sua data, do seu objecto e das obrigações dele resultantes para cada uma das partes, e não desde o conhecimento pelo administrador da insolvência dos pressupostos que podem fundamentar a resolução.
VII - A adoptar-se esta última interpretação, seria colocar nas mãos do administrador da insolvência um instrumento de fácil e indefinida dilação do prazo, o que contrariaria, em absoluto, os princípios da segurança e da estabilidade dos negócios jurídicos que o legislador quis proteger.
VIII - A objectividade subjacente ao abuso de direito exige sempre a alegação e demonstração dos competentes factos constitutivos e da formulação do pedido correspondente, mesmo quando o interessado não o tenha invocado expressamente, altura em que surge de conhecimento oficio.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 3324/10.5TBSTS-F.P1-Apelação
Origem-Tribunal Judicial da Comarca de Santo Tirso-3º Juízo Cível
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Caimoto Jácome
2º Adjunto Des. Macedo Domingues
5ª Secção

Sumário:
I- Na impugnação da matéria de facto o recorrente além de aduzir um discurso argumentativo, onde elenque, desde logo, as provas, deve, em seguida, produzir uma análise crítica das mesmas, pois que, verdadeiramente só se coloca uma questão se se elaborar uma argumentação que se oponha à argumentação produzida, colocando, então, o tribunal de recurso perante uma questão a resolver.
II- A ampliação da base factual nos termos referidos no artigo 662.º, nºs 1 e 4 do C.P.Civil apenas se justifica desde que ela se revele indispensável por forma a assegurar enquadramentos jurídicos diversos dos equacionados pelo tribunal recorrido.
III- Não basta, porém, que os factos tenham conexão alguma com os diversos enquadramentos jurídicos, nesta fase, o que importa ponderar é o enquadramento jurídico em face do objecto do recurso.
IV- A adução do material de facto a utilizar pelo juiz para a decisão da causa só compete, em princípio, às partes: a estas corresponde proporcionarem ao juiz, mediante as suas afirmações de facto (não notórias) a base da decisão, razão pela qual, a parte que invoca a caducidade do direito cabe alegar os factos correspondentes e de acordo com a facti species da respectiva norma.
V- O prazo de seis meses a que se refere o art. 123, n° 1 do CIRE é de caducidade do direito potestativo à resolução dos actos prejudiciais à massa insolvente, não obstante a epígrafe do preceito seja “prescrição do direito”.
VI- Esse prazo conta-se desde o conhecimento do acto, ou seja, das partes nele intervenientes, da sua data, do seu objecto e das obrigações dele resultantes para cada uma das partes, e não desde o conhecimento pelo administrador da insolvência dos pressupostos que podem fundamentar a resolução.
VII- A adoptar-se esta última interpretação, seria colocar nas mãos do administrador da insolvência um instrumento de fácil e indefinida dilação do prazo, o que contrariaria, em absoluto, os princípios da segurança e da estabilidade dos negócios jurídicos que o legislador quis proteger.
VIII- A objectividade subjacente ao abuso de direito exige sempre a alegação e demonstração dos competentes factos constitutivos e da formulação do pedido correspondente, mesmo quando o interessado não o tenha invocado expressamente, altura em que surge de conhecimento oficioso
*
I-RELATÓRIO

B…, S.A., melhor identificado a fls. 2 veio intentar a presente acção de impugnação da resolução a favor da massa insolvente contra Massa Insolvente de C…, pedindo:
a) Que seja reconhecida e declarada a caducidade do direito de resolução da partilha celebrada em 30 de julho de 2008;
Caso assim não se entenda,
b) Ser revogada a resolução incondicional em benefício da massa insolvente relativa à partilha celebrada em 30 de Julho de 2008, por legalmente inadmissível;
Caso assim não se entenda,
c) Ser revogada a resolução condicional em benefício da massa relativa à partilha celebrada em 30 de Julho de 2008;
Caso assim não se entenda,
d) Deve ser reconhecida e declarada a caducidade do direito de resolução em benefício da massa insolvente da hipoteca voluntária constituída a favor do banco Autor pela ap. 2900 de 13 de Outubro de 2009, relativa ao prédio urbano, descrito na Conservatória do Registo Predial da Trofa sob o n.º 112 e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 1622;
Caso assim não se entenda,
e) Deverá ser revogada a resolução em benefício da massa insolvente da hipoteca voluntária constituída a favor do banco Autor pela ap. 2900 de 13 de Outubro de 2009, relativa ao prédio urbano, descrito na Conservatória do Registo Predial da Trofa sob o n.º 112 e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 1622.
Para tanto, e em síntese, alegou que a Sra. Administradora da Insolvência procedeu à resolução da partilha quando já havia decorrido mais de seis meses sobre o conhecimento do ato pelo administrador da insolvência.
Mais, alegou que os pressupostos legais exigidos para se poder operar a resolução incondicional e condicional, como alegado, não se mostram verificados.
*
A Ré, regularmente citada, contestou impugnando os factos alegados pela Autora, reiterando a tempestividade da resolução operada, bem como a verificação de todos os pressupostos legais para que a resolução incondicional e condicional seja válida.
*
Foi elaborado despacho saneador onde, após se ter afirmado a plena validade e regularidade da instância, se procedeu à selecção da matéria de facto assente e a integradora da base instrutória.
*
Teve lugar a audiência de discussão e julgamento com observância do ritualismo legal e, decidida a matéria de facto pela forma que dos autos consta, foi, a final, proferida sentença que julgou acção procedente por provada e consequentemente declarou a caducidade do direito de resolução da partilha celebrada em 30.6.2008 com as legais consequências.
*
Não se conformando com o assim proferido veio Massa Insolvente de C…, representada pela senhora administradora de insolvência, interpor o presente recurso concluindo as suas alegações nos seguintes termos:
A) As respostas dadas nos pontos 15 a 19, deverão ser alteradas, passando para a matéria de facto dada como não provada, o que se invoca nos termos e para os efeitos do artigo 685.º-B do CPC, actual 640.º do NCPC;
B) A interpretação feita pela M. Juiz do Tribunal A quo quanto à matéria de facto e de direito com relevância para a decisão não se reputa como a correcta, visto que omite o conhecimento concreto de factos essenciais alegados pela R. quanto à excepção invocada;
C) Sendo que, estes factos a serem conhecidos teriam que levar a uma decisão contrária;
D) Tendo, ainda, com o devido respeito, efectuado uma errada assunção dos factos (alegados e demonstrados em julgamento) ao direito;
E) Ora, a partilha quando decorre de um divórcio ou sucessão é um acto normal e ordinário, não sendo automaticamente resolúvel a favor da massa insolvente, muito pelo contrário;
F) Para se resolver uma partilha a favor da massa insolvente têm que se verificar, cumulativamente, os requisitos mínimos para o efeito; de uma forma geral tem que ter ocorrido durante o período de suspeição (nos 4 anos anteriores ao início do processo–conforme a anterior redacção do CIRE); tem que ter sido prejudicial à massa, sendo que nos termos da lei, “os actos prejudicais à massa são os que diminuem, frutem, dificultam, ponham em perigo ou retardem a satisfaço dos credores da insolvência”; e, por último, tem que ter ocorrido com má fé–isto a ser condicional;
G) Conforme consta do teor do requerimento (carta de 4.1.2011, que aqui se dá por integralmente reproduzido) do Administrador da Insolvência (doravante abreviadamente identificado por AI) Sr. Dr. D…, declara que o insolvente na sequência da partilha teria recebido tornas e quotas em múltiplas sociedades; Desconhecia, ao que parece, que:
a. o insolvente não recebeu qualquer importância referente às tornas em consequência da partilha ora resolvida;
b. o valor declarado na partilha é menos de metade (-50%) do seu valor de mercado conforme perícia (avaliação junta aos presentes autos);
c. mesmo após o divórcio e partilha, continuam (insolvente e mulher) a viverem conjuntamente como se de marido e mulher se tratassem, usufruindo conjuntamente dos bens partilhados;
d. as quotas das múltiplas sociedades que alegadamente foram adjudicadas ao insolvente nada valiam, em consequência da insolvência também destas; e assim, em consequência, foram irremediavelmente dissipadas todas as garantias imobiliárias que beneficiavam os credores;
e. tendo o B…, credor, conhecimento de todas estas situações (conforme requerimento do próprio banco de 19/01/2011);
H) e tanto é assim que no limiar da substituição do AI, em 4 de Abril de 2011, este juntou a lista dos bens partilhados, mas não refere a sua intenção de resolver qualquer acto, nem alega qualquer facto que fizesse entender esta intenção;
I) Tendo, seguidamente, sido substituído (cfr. fls. 405) em assembleia de credores onde a nova AI nomeada não esteve presente, nem se fez representar, porque não foi notificada, nem teria que ser;
J) E assim, salvo o devido respeito por melhor entendimento, até esta data não se iniciou o prazo de prescrição, nem de caducidade suscitado, visto que não basta a data do conhecimento do acto, mas sim o conhecimento dos pressupostos ou fundamentos onde se subsume o direito para a resolução a efectuar pela AI a favor da respectiva massa insolvente;
K) In casu, o início da contagem do prazo não coincide, necessariamente, com o momento do conhecimento da partilha (ver a este respeito, com as necessárias adaptações o douto Ac. RC, 3-5-1972; BMJ. 217-183), como decorreu, aliás, da prova produzida em julgamento, nomeadamente do depoimento do Dr. E… (acta da AJ de 29/11/2013,15:29:11) que ao minuto 5:44, referiu que o AI anteriormente nomeado “nunca falou em resoluções, … nunca efectivamente identificou património, … seja susceptível de apreensão para a massa por via directa, por via de uma apreensão normal … (passing) … seja com fundamento de eventuais negócios que pudessem ser resolvidos em beneficio da massa insolvente e daí pudessem integrar património das massas; isso nunca foi suscitado por ele, ele nunca disse isto, mas apenas que não encontrava nada …”.
L) E quanto ao conhecimento dos pressupostos de resolubilidade da partilha apenas chegaram ao conhecimento da AI em funções após a conjugação de duas ordens de razões: em primeiro lugar a reunião que decorreu a 3 de Junho de 2011, com o credor F…, SA; e em segundo lugar as diligências posteriormente realizadas no período subsequente (Julho) pela AI no seguimento das nomeações sucessivas nos demais processos de insolvência da família G…, conforme aliás decorreu da prova pacífica e segura produzida em julgamento;
M) Atente-se, a este respeito, ao depoimento da testemunha E… (gravado aquando do julgamento, acta de 29/11/2013, 15:29:11 ss) que no minuto 07:00 e seguintes referiu que: “ … a notícia dos divórcios por mútuo entendimento, no mesmo dia, na mesma hora, no mesmo cartório, com a adjudicação aos cônjuges não avalistas de todos os bens foi carreado ao processo e para o conhecimento da Srª. AI pelo próprio F…, por mim …(passing) … em Junho, Julho de 2011 altura em que se decide, face aos factos, demonstrados pelas escrituras … que a Sr.ª Administradora deveria avençar com as resoluções a favor da massa. … tendo sido realizada uma reunião em Junho com a Sr.ª Administradora e a Dr.ª H…”…. .
N) Acresce o depoimento da D. I… (acta da Audiência de Julgamento de 29/11/2013, 15:54m) que quando questionada sobre em que momento terá a AI conhecido os fundamentos, ou factos, que levaram à resolução da partilha e quando é que foi remetido o processo à Dr.ª J… pelo anterior administrador respondeu que: (minuto 2:00 e seguintes) … nunca conseguiram qualquer contacto com o Sr. C…; o Dr. D… deu os elementos do processo, … as reclamações de créditos á Dr.ª J… em 3 de Junho de 2011; referindo ainda que “nesse mesmo dia houve uma reunião, era uma sexta-feira … foi uma reunião que a Dr.ª teve com o F… em que se falou deste processo e se falou de outros … foi ai que a Dr.ª tomou conhecimento do que se estava a passar para poder elaborar o relatório”. Tendo posteriormente sido realizada uma assembleia.
O) Neste mesmo sentido, como prova foi junto pela R. durante o julgamento o comprovativo da recepção das reclamações de créditos pela nova AI nomeada, remetidos pelo Dr. D… apenas em Junho de 2011 (cfr. acta da A.J. de 29-11-2013, 16:09:46);
P) Sendo que, na última Assembleia de Credores ocorrida em 22.06.2011 foi conferida a possibilidade da administradora de insolvência resolver a partilha em questão. Momento em que se mostrou detentora dos elementos que integram a resolução do ato a favor da Massa Insolvente;
Q) Estes factos são essenciais para o apuramento da verdade e justa decisão do litígio e bem assim deviam ser abordados pelo tribunal a quo;
R) Sem prescindir, a matéria dada como provada nos pontos 15 a 19 da fundamentação de facto é, no seu humilde entendimento, insuficiente para a motivação da decisão recorrida;
S) Quanto à conclusão retirada no ponto 15, note-se que em nenhum momento se faz referência ao conhecimento e quando terá efectivamente ocorrido, por parte da nova AI dos pressupostos necessários para efectuar a resolução;
T) Facto este que se não pode presumir;
U) Da mesma forma que dos pontos 16 a 19 a referência ao “podia” é manifestamente insuficiente para se chegar com rigor e certeza ao conhecia! Questiona-se: ainda que pudesse a AI conhecer! conhecia? Esta dúvida nunca chegou a ser esclarecida. Visto que na nossa humilde opinião não basta poder conhecer, tinha efectivamente que conhecer;
V) Mais se questiona; ainda que a AI tivesse consultado o processo constava do mesmo qualquer informação onde pudesse fundamentar a resolução da partilha a favor da massa Insolvente? Claramente não.
W) A presunção alicerçada nas regras de experiencia e do normal acontecer não são suficientes nem conformam a aqui recorrente;
X) Ora, como foi a A. quem alegou a caducidade, era a si que pendia o ónus da prova, sendo que não logrou, por qualquer forma, esclarecer o momento preciso em que a actual AI em funções conheceu os fundamentos da resolubilidade da partilha;
Y) Ainda que assim não fosse, a R. ofereceu provas contundentes quer documentais, quer testemunhal no sentido de que o anterior AI nada sabia (quantos aos pressupostos da resolução) e em consequência nada fez; sendo que a actual AI em funções apenas a partir de Junho de 2011 começou a juntar e alicerçar os fundamentos/pressupostos da resolução, que é assim atempada (como superiormente já melhor alegado);
Z) Pelo que, a resolução do negócio em benefício da massa insolvente mostra-se tempestiva por ter sido o exercício potestativo da Senhora Administradora Insolvência exercido dentro dos seis meses após o conhecimento dos pressupostos necessários para a resolução e dentro dos dois anos após a declaração de insolvência;
AA) Por fim, uma vez que o legislador previu expressa e taxativamente o prazo de prescrição e não de caducidade do direito, o que se manteve mesmo após a última revisão da codificação especial falimentar (CIRE), não se entende o porquê, mesmo após a leitura da identificada doutrina e alguma jurisprudência, a invocação da excepção de caducidade quando previu o legislador, nestes casos, a prescrição!
BB) Sem prescindir, do abuso do direito, reunida a Assembleia de Credores para apreciação do novo relatório, em 22 de Junho de 2011, aprovou-se a possibilidade da nova AI nomeada resolver a partilha em objecto nos presentes autos;
CC) Da prova produzida em audiência de julgamento decorreu, conforme o depoimento do Dr. E… (9:03 ss) que todas as instituições financeiras apoiaram a resolução da partilha a favor da massa insolvente (9:22m) … “é opinião do B…, como era do F… … que todos estes negócios deviam ser resolvidos a favor da massa” … “existindo uma posição do B… neste sentido”.
DD) Acresce que, aquando da Assembleia para apreciação do último relatório (22 de Junho de 2011) teve a AI conhecimento de que em 19 de Janeiro de 2011, por requerimento, a A. tinha defendido que a partilha de 2008 devia ser resolvida, porque prejudicial à massa insolvente nos termos do n.º 2 do artigo 120.º do CIRE, (cfr. requerimento que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos);
EE) Ora, uma das modalidades do abuso de direito é o “venire contra factum proprium” a qual se verifica aquando da violação do princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente, não se esperava. Face à conduta anteriormente tida e às legítimas expectativas que intencionalmente gerou. Esta conduta contraditória cabe no âmbito da fórmula “manifesto excesso” e inscreve-se no contexto da violação do princípio da confiança que sucede quando o agente adopta uma postura inconciliável com as expectativas criadas pela contraparte, em função do modo como antes actuara.
FF) Pelo que nunca poderia proceder a invocada excepção de caducidade (a existir) suscitada pela A. face ao invocado, demonstrado e provado abuso do direito, de acordo com o disposto no artigo 334.º e segs. do Código Civil.
GG) Face ao exposto violou, além do mais, a douta decisão recorrida o disposto no artigo 264.ºdo CPC; artigo 5.º do NCPC; tendo aplicado erradamente a lei, nomeadamente o disposto no artigo 120.º e n.º 1 do artigo 123.º ambos do CIRE; n.º 2 do artigo 298.º e n.º 1 do artigo 306.º, 334.º todos do Código Civil.
*
Notificada a massa insolvente contra-alegou concluindo pelo não provimento do recurso.
*
Após os vistos legais cumpre decidir.
*
II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. cfr. artigos 635.º, nº 3, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
**
No seguimento desta orientação são as seguintes as questões de fundo a decidir no presente recurso:
a)- saber se o tribunal cometeu erro na apreciação da matéria de facto;
b)- saber se o direito à resolução do acto havia ou não caducado, embora depois existem outras questões laterais a necessitar de ser equacionadas e decididas.
*
A)-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Pelo tribunal recorrido foram considerados assentes os seguintes factos:
1. Através de petição inicial que deu entrada em juízo em 23.7.2010 veio C… apresentar-se à insolvência, declarada por sentença no dia 9.8.2010 – A).
2. Na sentença dita em A) foi nomeado para funções de Administrador de Insolvência D… – B).
3. Por requerimento que deu entrada no processo no dia 7.1.2011, o Administrador então em funções veio requerer a sua escusa das mesmas, o que foi determinado por despacho de 6.4.2011, no qual se nomeou, em substituição daquele, J… – C).
4. Na carta registada com aviso de recepção, datada de 3 de Novembro de 2011 e recepcionada pelo Autor a 9 de Novembro de 2011, constava o seguinte: “J…, Administradora da Insolvência no processo supra referido, vem por este meio, em cumprimento do disposto nos artigos 120.º, n.º 1, 2, 3, 4 e 5 b), 121.º, n.º 1, al. A), 123.º, 124.º do CIRE, declarar a resolução incondicional em benefício da massa insolvente da partilha de 30 de Julho de 2008, celebrada entre C… e K… e resolução em benefício da massa insolvente das posteriores transmissões e constituição de direitos sobre os bens em benefício de terceiros” – D).
5. A Autora B…, S.A. é uma instituição bancária que, no âmbito do seu escopo, é detentora de um crédito sobre o insolvente no valor global de € 5.191.083,49 relacionado na lista provisória de credores, e já reclamado junto da massa insolvente, por reclamação de créditos recebida em 14 de Setembro de 2010 – E).
6. O insolvente e K… divorciaram-se, por mútuo consentimento, em 28 de Julho de 2008, divórcio que correu termos com o n.º 1433, na Conservatória Civil da Trofa – F).
7. No dia 30 de Julho de 2008, no Cartório Notarial de L… os ex-cônjuges outorgaram a escritura de partilha de bens cuja cópia se encontra a fls. 29/33 dos autos e, em consequência da divisão de bens comuns do casal, foram adjudicados a K…, vários imóveis, que constituíam, à data, a totalidade das quotas e das acções das sociedades; M…, Lda, N…, Lda, O…, S.A., P…, Lda, entre outras – G).
8. Em 20 de Outubro de 2010, o credor F…, S.A. requereu que o Sr. Administrador da Insolvência realizasse as diligências necessárias a “apurar se o insolvente possui património ou se nos dois últimos anos alienou património que eventualmente poderia e deveria ser apreendido aos presentes autos, mais requer que o Sr. Administrador de Insolvência obtenha informações na sequência do divórcio do insolvente, se existir escritura de partilha e em caso afirmativo a quem foi atribuído o património do casal” – H).
9. Em resposta ao requerido pelo credor F…, deu entrada no dia 4 de Janeiro de 2011, um requerimento do Senhor Administrador de Insolvência, a informar e esclarecer os credores acerca do solicitado, não se pronunciando quanto à existência de qualquer negócio jurídico levado a cabo pelo insolvente que fosse susceptível de ser objecto de uma resolução em benefício da massa insolvente, fazendo inclusive alusão à partilha objecto da acção de resolução–I).
10. Na ata de fls. 508/509 dos autos de insolvência, referente à assembleia de apreciação do relatório que teve lugar no dia 22.6.2011, consignou-se, nomeadamente, que “mais foi declarado pelos credores presentes/representados não se oporem ao pedido da Srª Administradora da Insolvência no sentido de que a liquidação do activo tenha início após as diligências a efectuar tendo em vista a resolução de alguns negócios de bens integrantes do inventário”–J).
11. No escrito intitulado de reclamação de créditos apresentada pela Autora ao Administrador da Insolvência D…, no dia 13.9.2010, consta do n.º 6 sob a epigrafe “Garantias”, a hipoteca constituída a favor do Banco A. por K…–L).
12. No dia 12 de Outubro de 2009 foi constituída por K… hipoteca voluntária a favor do A., de um prédio urbano, adjudicado na partilha, destinado a comércio e habitação com anexo e quintal, sito em …, freguesia …, concelho da Trofa, inscrito na respectiva matriz sob o artigo n.º 1622, descrito na Conservatória do Registo Predial da Trofa sob o n.º 112–Ap. 3546 de 2009.06.12 – M).
13. A hipoteca dita em M) foi celebrada como caução e garantia do bom cumprimento de todas e quaisquer obrigações ou responsabilidades que existissem ou viessem a existir, em nome de C…, da sociedade com afirma “M…, Lda” e da sociedade N…, Lda–N).
14. E já antes da sua constituição, decorriam negociações para a concessão de um novo empréstimo à sociedade N…, Lda, no valor de €600.000 (seiscentos mil euros), na sequência das quais, e também com base nas garantias já prestadas e a prestar, que foi constituída a referida hipoteca, tendo o empréstimo sido concedido em 14 de Dezembro de 2009, constando a hipoteca em crise como uma das garantias previstas na cláusula nona do contrato que formalizou o mútuo em questão–O).
15. O Administrador da Insolvência D… tinha conhecimento da partilha em 4.1.2011–2.º da BI.
16. E, no momento em que iniciou funções, a Administradora da Insolvência J… pôde tomar conhecimento de todos os elementos e documentos existentes no processo–3.º da BI.
17. Nomeadamente da acta da Assembleia realizada no dia 20.10.2011–4.º da BI.
18. E do requerimento junto em 5.4.2011 pelo credor reclamante F…, S.A.–5.º da BI.
19. Após a recepção do documento dito em L), o Administrador da Insolvência soube da existência da hipoteca constituída a favor da A.– 6.º da BI.
*
III- O DIREITO

Antes de entrarmos na apreciação das questões colocadas no recurso, convém definir qual o regime legal que lhe é aplicável, face à entrada em vigor do novo Código de Processo Civil.
Nas normas transitórias da Lei 41/2013 de 26/06 que aprovou o Novo Código de Processo Civil, prevê-se no artigo 5.º, nº 1, que o Código de Processo Civil é imediatamente aplicável às acções declarativas pendentes, sendo que, no artigo 7.º, nº 1 apenas se prevê um regime especial no tocante aos recursos em relação às acções declarativas instauradas em data anterior a 01.01.2008, ou seja, a lei não estabeleceu um regime transitório para os recursos nos processos instaurados em data posterior a 01.01.2008, nos quais as decisões foram proferidas em data anterior à entrada em vigor do novo Código de Processo Civil.
Aplicando o regime previsto no art. 12º do CC ao processo civil resulta que na área do direito processual, a nova lei se aplica às acções futuras e também aos actos futuros praticados nas acções pendentes.
Como refere Antunes Varela: “(…) a ideia, complementar desta, de que a nova lei não regula os factos pretéritos (para não atingir efeitos já produzidos por este ), traduzir-se-á, no âmbito do direito processual, em que a validade e regularidade dos actos processuais anteriores continuarão a aferir-se pela lei antiga, na vigência da qual foram praticados”.[1]
Portanto, a nova lei aplica-se imediatamente aos actos que houverem de praticar-se a partir do momento em que ela entra em vigor, pelo que os actos praticados ao abrigo da lei antiga devem ser apreciados em conformidade com esta lei.[2]
Especificamente, no que concerne às normas reguladoras dos recursos, Antunes Varela distinguia as normas que “fixam as condições de admissibilidade do recurso e as que se limitam a regular as formalidades da preparação, instrução e julgamento do recurso”, defendendo a aplicação imediata da lei nova sempre que não estejam em causa normas que “interferem na relação substantiva”.[3]
Ora a presente acção foi instaurada em 20/02/2012 e a decisão recorrida foi proferida em 26/12/2013 e em 20/01/2014 foi interposto recurso da mesma.
Como assim, proferida a sentença em data posterior a 01.09.2013, a nova lei tem aplicação imediata ressalvando-se apenas os efeitos produzidos pela anterior lei, na medida em que contendam com a relação substantiva.
*
Isto dito, a primeira questão que no recurso vem colocada consiste em:

a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.

Como resulta das alegações recursivas a recorrente impugna, no presente recurso, a decisão sobre matéria de facto proferida pelo tribunal recorrido no segmento em que deveria ter dado como não provados os factos constantes dos 15. a 19. da fundamentação de facto.
Analisando.
O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Efectivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º, nº 5 do CPCivil “o juiz aprecia livremente as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (…) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.[4]
Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
“O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”.[5]
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objectivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPCivil).
Nesta perspectiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.
Daí que, conforme orientação jurisprudencial prevalecente o controle da Relação sobre a convicção alcançada pelo tribunal da 1ª instância deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, sendo certo que a prova testemunhal é, notoriamente, mais falível do que qualquer outra, e na avaliação da respectiva credibilidade tem que reconhecer-se que o tribunal a quo, pelas razões já enunciadas, está em melhor posição.
Na verdade, só perante tal situação [de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão] é que haverá erro de julgamento; situação essa que não ocorre quando estamos na presença de elementos de prova contraditórios, pois nesse caso deve prevalecer a resposta dada pelo tribunal a quo, por estarmos então no domínio e âmbito da convicção e da liberdade de julgamento, que não compete a este tribunal [ad quem] sindicar (artigo 607.º, nº 5 já citado), e pelas razões já supra expandidas.
Em conclusão: mais do que uma simples divergência em relação ao decidido, é necessário que se demonstre, através dos concretos meios de prova que foram produzidos, que existiu um erro na apreciação do seu valor probatório, conclusão difícil quando os meios de prova porventura não se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo apelante ou quando também eles sejam contrariados por meios de prova de igual ou de superior valor ou credibilidade.
É que o tribunal de 2ª jurisdição não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova), mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si.
Sendo, portanto, um problema de aferição da razoabilidade da convicção probatória do julgador recorrido, aquele que essencialmente se coloca em sede de sindicabilidade ou fiscalização do julgamento fáctico operado pela 1ª instância, forçoso se torna concluir que, na reapreciação da matéria de facto, à Relação apenas cabe, pois, um papel residual, limitado ao controle e eventual censura dos casos mais flagrantes, como sejam aqueles em que o teor de algum ou alguns dos depoimentos prestados no tribunal a quo lhe foram indevidamente indiferentes, ou, de outro modo, eram de todo inidóneos ou ineficientes para suportar a decisão a que se chegou.[6]
Casos excepcionais de manifesto erro na apreciação da prova, de flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão do tribunal recorrido sobre matéria de facto serão, por exemplo, os de o depoimento de uma testemunha ter um sentido em absoluto dissonante ou inconciliável com o que lhe foi conferido no julgamento, de não terem sido consideradas- v.g. por distracção-determinadas declarações ou outros elementos de prova que, sendo relevantes, se apresentavam livres de qualquer inquinação, e pouco mais.
A admissibilidade da respectiva alteração por parte do Tribunal da Relação, mesmo quando exista prova gravada, funcionará assim, apenas, nos casos para os quais não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação.
Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão à apelante neste segmento recursório da impugnação da matéria de facto, nos termos por ela pretendidos.
O ponto 15. da matéria de facto corresponde ao ponto 2º da base instrutória que tinha a seguinte redacção:
O Administrador da insolvência D… teve conhecimento da partilha no dia 4.1.2010?
O ponto 16. da matéria de facto corresponde ao ponto 3º da base instrutória que tinha a seguinte redacção:
E, no momento em que iniciou funções, a Administradora da insolvência J… pôde tomar conhecimento de todos os elementos e documentos existentes no processo?”
O ponto 17. da matéria de facto corresponde ao ponto 4º da base instrutória que tinha a seguinte redacção:
“…nomeadamente da Acta da Assembleia realizada no dia 20.10.2011?”
O ponto 18. da matéria de facto corresponde ao ponto 5º da base instrutória que tinha a seguinte redacção:
E do requerimento junto em 5.4.2011 pelo credor reclamante F…, S.A.?
O ponto 19. da matéria de facto corresponde ao ponto 6º da base instrutória que tinha a seguinte redacção:
Após a recepção do documento dito em L), o Administrador da Insolvência soube da existência da Hipoteca constituída a favor da A.?
Ora, na fundamentação da decisão da matéria de facto o tribunal recorrido, sobre estes pontos factuais discorreu do seguinte modo:
“O Tribunal fundou a sua convicção tendo em conta a prova produzida em sede de julgamento conjugadas com os documentos juntos aos autos e as regras da experiência e da lógica.
A factualidade constante do ponto 15 dos factos provados fundamentou-se no teor do documento de fls. 48 e 49, requerimento subscrito e assinado pelo Administrador da Insolvência Dr. D… dirigido ao presente processo de insolvência, com data de entrada em juízo de 4.1.2011, no qual no ponto 4 de tal requerimento se escreve “Na sequência desse divórcio, efectuou a partilha com a ex-cônjuge no dia 30 do mesmo mês, tendo os bens sido adjudicados à ex-mulher e o Insolvente recebeu tornas no valor de 81.102,52 euros, ficando ainda com as quotas e acções das sociedades de M…, Lda, N…, Lda, O…, S.A., Q…, S.A., P…, Lda e outras”.
Tal documento não foi impugnado por nenhuma das partes, nem foi questionado o seu teor e autoria, pelo que, atento o teor e subscrição de tal requerimento, conjugado com as regras da experiência e da lógica, teremos forçosamente de concluir que em 4.1.2011 (data de entrada do requerimento em causa em juízo) o Sr. Administrador subscritor de tal requerimento tinha conhecimento efectivo da mencionada partilha, bem como do seu teor, tendo em conta que o fez consignar.
Quanto à factualidade vertida nos pontos 16 a 19 dos factos provados resultam os mesmos das regras da experiência e do normal acontecer, porquanto a partir do momento em que alguém é nomeado Administrador de Insolvência num processo de insolvência, o processo fica inteiramente disponível para consulta na secção de processos.
Assim, a partir da sua nomeação, a Sra. Administradora da Insolvência nomeada podia tomar conhecimento de todos os elementos e documentos existentes no processo, quer da ata quer do requerimento em causa, uma vez que o processo de insolvência estava ao seu dispor no Tribunal.”
Será de sufragar esta fundamentação?
Importa, porém, antes de avançarmos, relembrar o que a este propósito resulta das normas processuais quando se pretenda impugnar a decisão da matéria de facto.
Estatui o artigo o artigo o artigo 640.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão de facto” que:
1- Quando seja impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
(…).
Esta norma impõe rigor e precisão, onerando o recorrente com o dever de especificar obrigatoriamente, sob pena de rejeição do recurso, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
Daqui resulta, pois, que o recorrente além de aduzir um discurso argumentativo, onde elenque, desde logo, as provas, identificando-as, ou seja, dizendo onde se encontram no processo e, tratando-se de depoimentos, identifique a passagem ou passagens pertinentes deve, em seguida, produzir uma análise crítica dessas provas.
É que, indicar apenas os meios probatórios, isto é, o depoimento da testemunha A ou B, ou o documento C ou D, é reproduzir apenas o que consta do processo, ou seja, nada se acrescenta àquilo que já existe nos autos, nem por outro lado se mostra a razão por que a resposta a uma dada matéria de facto deve ser diversa da que foi dada pelo juiz.
Acontece que, verdadeiramente só se coloca uma questão se se elaborar uma argumentação que se oponha à argumentação produzida, colocando, então, o tribunal de recurso perante uma questão a resolver. Não basta pois identificar meios de prova.
O recorrente terá, assim, de fazer uma análise crítica da prova formalmente análoga à realizada pelo juiz e concluir no sentido que pretende.
Feito estes breves considerandos, no que tange ao ponto 15. da fundamentação factual, não vemos com que elementos probatórios a recorrente pretende que este facto seja dado como não provado.
Aliás, quanto este ponto factual o que a recorrente refere é que, em nenhum momento, se faz referência ao conhecimento do Administrador da Insolvência dos pressupostos necessários para a resolução.
Bom, mas essa falta de referência aos pressupostos exigidos para a resolução nada tem que ver com o julgamento desse ponto factual.
Como já se referiu, este ponto factual corresponde ao ponto 2º da base instrutória e englobava uma pergunta muito concreta, qual seja, se na data de 04/01/2011 o Administrador da insolvência D… havia tido conhecimento da partilha.
Na resposta positiva a tal ponto o tribunal recorrido valorou o documento constante de fols. 48/49 da autoria do Sr. Administrador.
E, tal valoração é de subscrever, pois que, não tendo sido impugnado nem quanto ao seu teor e autoria, forçosamente haveria que dela fazer uso para prova do citado facto, uma vez que o Sr. administrador aí consignou, além do mais, o seguinte: “Na sequência desse divórcio, efectuou a partilha com a ex-cônjuge no dia 30 do mesmo mês, tendo os bens sido adjudicados à ex-mulher e o Insolvente recebeu tornas no valor de 81.102,52 euros, ficando ainda com as quotas e acções das sociedades de M…, Lda, N…, Lda, O…, S.A., Q…, S.A., P…, Lda e outras”.
Perante este conteúdo, como não tirar a ilação, por recurso à presunção- (artigo 349.º do C.Civil)-, de que ele nessa data tinha conhecimento da partilha?
Só produz aquela afirmação quem tem conhecimento de o acto ter ocorrido.
Como assim, bem andou o tribunal recorrido ao ter dado como provado tal facto.
Também o facto constante do ponto 16. encerrava uma pergunta concreta, isto é, se no momento em que iniciou funções, a Administradora da insolvência J… pôde tomar conhecimento de todos os elementos e documentos existentes no processo, nomeadamente, dos referidos nos pontos 17., 18, e 19.
Portanto, o que se perguntava é se a Administrador, a partir do início de funções, podia conhecer os elementos existentes no processo.
Ora, esta resposta era intuitiva. De facto, a partir do momento em que alguém é nomeado Administrador de Insolvência o processo fica inteiramente disponível para consulta na secção de processos, sendo, aliás, redundante perguntar-se se, a partir dessa nomeação, podia tomar conhecimento de todos os elementos e documentos existentes no processo.
Significa, assim, que a resposta dada está em consonância com aquela possibilidade de acesso ao processo por parte da administradora da insolvência. E, neste ponto factual não estava perguntado se a Administradora conhecia, como pretende a recorrente, o que se perguntava, como já se afirmou, é se podia conhecer.
Acresce que, para além do que fica dito, a recorrente também não deu cumprimento à exigência legal estatuída na alínea b) do nº 1 do artigo 640.º do C.P.Civil nos termos que atrás se deixaram expostos.
Quais os meios de prova convocados pela recorrente para alteração da matéria factual nos termos propugnados?
A resposta é obvia, nenhuns.
Decorre do exposto que a apreciação da Mmª Juiz surge-nos, assim, como claramente sufragável, com iniludível assento na prova produzida e em que declaradamente se alicerçou, nada justificando por isso a respectiva alteração.
O presente caso, manifestamente, não se reconduz, pois, a um daqueles casos flagrantes e excepcionais em que-como vimos-essa alteração é de ocorrência forçosa, por ter havido, na primeira instância, um manifesto erro na apreciação da prova, uma flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão do tribunal recorrido sobre matéria de facto.
*
Para além daqueles pontos factuais a recorrente refere que o tribunal recorrido omitiu o conhecimento concreto de outros factos alegados e provados em julgamento.
Diga-se, desde logo, que a recorrente não indica que factos, em concreto, o tribunal não deu como provados e que foram alegados.
É que não basta, como fez a recorrente, verter nas alegações recursórias 11 artigos da contestação e em seguida tecer considerações sobre determinados meios de prova e alguns aspectos jurídicos, e concluir depois que o tribunal a quo tinha que conhecer da matéria de facto por ela alegada desde a contestação.
Com efeito, a recorrente devia indicar que factos é que o tribunal recorrido, dos alegados na contestação, deveria ter dado como provados, pois que, só assim este tribunal se vê, confrontado, como noutro passo já se referiu, com uma questão que importa resolver e que neste caso se circunscrevia à modificação da decisão de facto.
Acresce que, esses pretensos factos como não constavam da base instrutória, só podiam ser considerados por via da ampliação da base factual.
Sem dúvida que, como decorre do artigo 662.º, nº 1 do C.P.Civil a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa, como também pode anular a decisão quando se revele indispensável ampliação da matéria de facto-nº 4 do mesmo normativo.
Efectivamente, com vista a evitar que, por razões de ordem formal, acabe por ser prejudicada a justiça material, a lei atribui à Relação o poder dever de determinar a ampliação da matéria de facto de forma a assegurar enquadramentos jurídicos diversos dos equacionados pelo tribunal.
Não basta, porém, que os factos tenham conexão alguma com os diversos enquadramentos jurídicos. Nesta fase, o que importa ponderar é o enquadramento jurídico em face do objecto do recurso.
A fixação dos factos num processo judicial é sempre feita em função de um certo quadro de relevância jurídica. Não se cura num processo judicial da reconstituição, a todo o custo, da verdade histórica, mas tão-só da determinação dos factos necessários e suficientes para a resolução da questão ou questões jurídicas que são colocadas ao tribunal.
Por conseguinte, não importa o apuramento de factos juridicamente irrelevantes ou inócuos, constituindo essa actividade a prática de actos inúteis, legalmente proibidos (artigo 130.º, do C.P.Civil) e atentatórios da celeridade que deve nortear o desenvolvimento de qualquer processo judicial (veja-se o artigo 2.º, nº 1, do mesmo diploma legal).
Ora, neste segmento recursório, toda a alegação da recorrente gira em torno do conhecimento relevante para efeito da contagem do prazo de caducidade do pedido resolutório do acto a que se refere o artigo 123.º, nº 1 do CIRE. Ou seja, no entender da recorrente não basta o simples conhecimento do acto, mas sim o conhecimento dos pressupostos ou fundamentos onde se subsume o direito à resolução e, portanto, a impugnação factual, com a consideração de novos factos não tidos em conta pelo tribunal recorrido, tinha como desiderato demonstrar que o conhecimento daqueles pressupostos ocorreu em momento posterior àquele outro, não tendo, pois, decorrido o prazo de caducidade como foi sentenciado.
Não é este, porém o nosso entendimento, como de seguida se analisará, razão pela qual estes novos pretensos factos não seriam, salvo melhor opinião, relevantes para a apreciação do objecto do recurso.
Mas ainda que assim não fosse, ou seja, que o conhecimento para contagem do prazo de caducidade tinha de ser aferido em função do conhecimento dos fundamentos resolutórios do acto, a ampliação da base factual mostrava-se desnecessária.
Com efeito, em homenagem ao princípio dispositivo, a adução do material de facto a utilizar pelo juiz para a decisão da causa só compete, em princípio, às partes: a estas corresponde proporcionarem ao juiz, mediante as suas afirmações de facto (não notórias) a base da decisão.
Cada uma das partes suporta, em resultado do princípio dispositivo, um ónus de afirmação (alegação).
Decidir que o ónus de afirmação incumbe a uma das partes significa que será julgado o pleito contra si, se os não alegados forem indispensáveis à sua pretensão.
O problema do ónus de afirmação não deixa de ser idêntico ao do ónus da prova, de tal sorte que estamos com Manuel de Andrade[7] quando diz que os critérios gerais para a repartição do ónus da prova valem do mesmo modo para o ónus de afirmação.
Estes critérios, em conformidade com o artigo 342º do Código Civil, sintetizam-se no seguinte:
-Ao autor cabe a afirmação dos factos que segundo a norma substantiva servem de pressupostos ao efeito jurídico pretendido. O autor terá assim o ónus de afirmar os factos (constitutivos) correspondentes à situação de facto (Tatbestand) traçada na norma substantiva em que funda a sua pretensão;
-Ao réu incumbirá, por sua vez, a afirmação dos factos correspondentes à previsão (abstracta) da norma substantiva em que baseia a causa impeditiva, modificativa ou extintiva do efeito pretendido pelo autor.
Compete-lhe, portanto, a prova de factos impeditivos ou extintivos da pretensão da contraparte, determinados de acordo com a norma em que assenta a excepção por ele invocada.
O que se acaba de dizer, vem a significar que na presente acção era o banco recorrido que teria de alegar a factualidade da qual, uma vez provada, se concluísse pela verificação da excepção da caducidade do direito de resolução do acto em causa e, portanto, mesmo seguindo o entendimento defendido pela recorrente, sempre àquele incumbiria fazer a prova de que já havia decorrido o prazo de seis meses desde o conhecimento dos fundamentos resolutórios, sob pena de improceder aquela excepção.
Também, pois, por esta razão, a ampliação da base se factual se revelava desnecessária, já que a recorrente não tinha qualquer ónus probatório (apenas a contra prova) neste segmento.
*
Destarte, tudo pois se confina em saber se, como refere a recorrente, a matéria de facto dada como provada é ou não suficiente para a motivação da decisão recorrida, com o que entramos na apreciação da segunda questão colocada no recurso e que consiste em:

b)- saber se se verifica ou não a excepção da caducidade do pedido resolutório.

O artigo 120.º do CIRE antes da alteração por força da Lei 16/2012 de 20/04 (aplicável ao caso concreto) no seu nº 1 estabelecia: “Podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os actos prejudiciais à massa praticados dentro dos quatro anos anteriores à data do início do processo de insolvência”.
Segundo o nº 2 do mesmo preceito “consideram-se prejudiciais à massa os actos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência”
Estatui por sua vez o artigo 123.º do mesmo diploma legal no seu nº 1 que “a resolução pode ser efectuada pelo administrador da insolvência por carta registada com aviso de recepção nos seis meses seguintes ao conhecimento do acto, mas nunca depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência”.
Ora, este artigo está epigrafado da seguinte forma: “Forma de resolução e prescrição do direito”.
Como assim, a primeira questão que importa deslindar prende-se com o saber se o prazo que o citado preceito consigna é, afinal, de prescrição ou caducidade, questão, diga-se, também a recorrente a coloca nas suas alegações.
É certo que o artigo 298.º, n.º 2 do CCivil dispõe que “quando, por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente prescrição”.
Acontece que, não obstante a referência à prescrição que consta da epígrafe do citado artigo 123.º, não nos parece que nesta norma se estabeleça outra coisa senão um prazo de caducidade do direito de requerer a resolução do acto.
Na verdade, pensamos que é na diferença dos conceitos de exercício do direito e de exigibilidade que se pode, num primeiro momento, descortinar a distinção entre a prescrição e a caducidade.
Estando subjacente à exigibilidade o cumprimento de uma obrigação insatisfeita, a prescrição integra a inexigibilidade. Sendo o exercício que perspectiva a realização do direito a modificar, extinguir ou constituir uma relação jurídica, a caducidade integra a falta de exercício.
Enquanto que a limitação da exigibilidade tem o escopo de colocar termo a uma situação antijurídica, a limitação do exercício tem a finalidade, nos direitos potestativos, de fazer cessar um estado de sujeição e, nos direitos subjectivos, de acelerar ou abreviar a sua realização.
Portanto, o citado normativo ao estabelecer o prazo de seis meses, a contar do respectivo conhecimento por parte do Administrador, para que este exerça o direito potestativo de resolver os actos prejudiciais à massa, visa, em nosso modesto entendimento, abreviar o estado de sujeição decorrente do mesmo, estabelecendo, pois, atento o que acima ficou exposto, um prazo de caducidade.
É também este o entendimento expresso por Carvalho Fernandes e João Labareda[8] e também de Menezes Leitão[9] que afirma “A lei qualifica na epígrafe do art. 123, nº 1, como «prescrição do direito» a situação decorrente da ultrapassagem desse prazo. A qualificação é manifestamente estranha, dado que a situação parece ser antes de caducidade do direito de promover a resolução.”[10]/[11]
*
Assente que se trata de um prazo de caducidade vejamos então se, como se decidiu, em 3.11.2011, data em que a Srª Administradora da Insolvência resolveu o acto, já tinha decorrido aquele prazo.
Como já atrás se referiu a recorrente dissente do entendimento vertido na decisão recorrida, por entender que não basta o conhecimento do acto resolúvel sendo, pois, necessário o conhecimento dos pressupostos que podem albergar a resolução, e daí que o prazo de seis meses apenas começa a correr daquele conhecimento.
Não sufragamos semelhante entendimento.
O normativo em questão refere expressamente “(…) seis meses seguintes ao conhecimento do acto”.
Com vista à determinação do seu sentido e alcance que não se cinge à letra da lei, importa, evidentemente, entrar em linha de conta com a chamada mens legis, ou se quisermos, a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que ela foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada de acordo com o artigo 9.º, n.º 1, do CCivil.
Todavia, o limite é o de que não pode ser considerado um pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (cfr. artigo 9.º, n.º 2, do CCivil), devendo, todavia, o intérprete presumir haver o legislador consagrado as soluções mais acertadas e expressado o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do mesmo diploma legal).
Como refere Baptista Machado[12] “O texto da lei é o ponto de partida da interpretação. Como tal, cabe-lhe desde logo uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei. Mas cabe-lhe igualmente uma função positiva, nos seguintes termos. Primeiro, se o texto comporta apenas um sentido, é esse o sentido da norma-com a ressalva, porém, de se poder concluir com base noutras normas que a redacção do texto atraiçoou o pensamento do legislador. Quando, como é de regra, as normas (fórmulas legislativas) comportam mais que um significado, então a função positiva do texto traduz-se em dar mais forte apoio a, ou sugerir mais fortemente um dos sentidos. É que, de entre os sentidos possíveis, uns corresponderão ao significado mais natural e directo das expressões usadas, ao passo que outros só caberão no quadro verbal da norma de uma maneira forçada, contrafeita. Ora, na falta de outros elementos que induzam à eleição do sentido menos imediato do texto, o intérprete deve optar em princípio por aquele sentido que melhor e mais imediatamente corresponde ao significado natural da expressões verbais utilizadas, e designadamente ao seu significado técnico-jurídico, no suposto (nem sempre exacto) de que o legislador soube exprimir com correcção o seu pensamento”.
Aportando estes ensinamentos para o caso concreto, não existem elementos nomeadamente históricos, que nos levem a concluir que não nos atenhamos ao sentido que melhor corresponde ao significado natural da expressão utilizada, isto é, que o prazo de caducidade se conta a partir do conhecimento do acto puro e simples, ou seja, do conhecimento das partes nele intervenientes, da sua data, do seu objecto e das obrigações dele resultantes para cada uma delas.
O sentido de que esse prazo de seis meses se conta a partir do conhecimento dos pressupostos resolutórios, não tem qualquer correspondência na letra da lei.
E, se fosse essa a intenção do legislador, teria de constar do próprio texto do preceito, tendo em conta o efeito gravoso que daí resultava para as partes intervenientes nesses actos.
Efectivamente, a entender-se no sentido propugnado pela recorrente seria admitir que o administrador de insolvência podia resolver o acto em qualquer altura, pois que, então, esse prazo só começava a correr desde que tivesse conhecimento dos fundamentos resolutórios.
Acontece que, a escassez do prazo de seis meses, ainda assim alargado para o dobro quando confrontado com o de três meses fixado no artigo 156.º, nº 3 do anterior CPEREF, encontra o seu fundamento na necessidade de rapidamente se pôr termo à incerteza quanto ao destino dos actos em causa, tanto mais que em certos casos eles revestem natureza onerosa.[13]
A adoptar-se aquela interpretação, do preceito em análise, seria colocar nas mãos do administrador da insolvência um instrumento de fácil e indefinida dilação do prazo, o que contrariaria, em absoluto, os princípios da segurança e da estabilidade dos negócios jurídicos que o legislador quis proteger.
Significa, portanto, que, perante o conhecimento de acto resolúvel, o administrador de insolvência tem que o analisar de forma a avaliar se o mesmo prejudicou a massa insolvente, de forma a poder, se for caso disso, impugná-lo, no prazo de seis meses, sob pena de caducidade.
Aliás, repare-se que quando o legislador pretendeu que o decurso dos prazos de caducidade estivessem dependentes do conhecimento de outras circunstâncias expressamente o referiu, veja-se por exemplo, entre outros, os artigos 976º, nº 1 e 1842.º, nº 1 al. a) e c) do CCivil, o primeiro referente à acção da revogação da doação, prazo contado desde o facto que lhe deu causa, e o segundo referente a acção de impugnação de paternidade, cujo prazo de dois anos se conta desde que o marido teve conhecimento das circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade e pelo filho a partir do momento em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe.
Como assim, se fosse a intenção do legislador, condicionar o decurso do prazo de caducidade ao conhecimento das circunstâncias que poderiam fundamentar a resolubilidade do acto, tê-lo-ia dito expressamente, como o fez noutros casos.[14]
Aqui chegados forçoso é, pois, concluir que, efectivamente, em 3.11.2011, data em que a Srª administradora da insolvência resolveu o acto (partilha), já tinha decorrido o prazo de seis meses tendo em conta a data em que o anterior administrador teve conhecimento do acto resolúvel-04/01/2011-, verificando-se, assim, a sua caducidade com a consequente extinção do direito que se pretendia exercer.
Na verdade, a circunstância de ter ocorrido em 6.4.2011 a substituição do administrador da insolvência não interrompe ou suspende aquele prazo de caducidade em curso–cfr. artigo 328.º do Código Civil ex vi artigo 17.º do CIRE- que ocorre em 6.10.2010.[15]
*
c)- saber se se verifica a excepção do abuso de direito

Refere a recorrente que a invocação da excepção da caducidade é abusiva na modalidade de “venire contra factum proprium”, pois que, o banco recorrido sempre defendeu, até por requerimento constante dos autos, que o acto (partilha de 2008) deveria ser resolúvel.
Vejamos se assim é.
O actual Código Civil delimitou o conceito de abuso de direito no art.º 334.º dispondo que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Esta figura ocorre quando o direito, embora legítimo, é exercido de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, ou seja, longe do interesse social e por forma a exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico-social desse mesmo direito, tornando-se, assim, escandalosa e intoleravelmente ofensiva do comum sentimento de justiça.
Tal como se depreende do seu teor, aquele normativo acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito actue com consciência de que excede os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito ou com “animus nocendi” do direito da contraparte, bastando que tais limites sejam e se mostrem ostensiva e objectivamente excedidos.[16]
A boa fé tem a ver com o enunciado de um princípio que parte das exigências fundamentais da ética jurídica que se exprimem na virtude de manter a palavra e na confiança de cada uma das partes para que procedam honesta e lealmente segundo uma consciência razoável.
Mas para que a confiança seja digna de tutela tem de radicar em algo de objectivo, tem de se verificar o investimento de confiança, a irreversibilidade desse investimento e tem de haver boa fé da parte que confiou, isto é, é necessário que desconheça uma eventual divergência entre a intenção aparente do responsável pela confiança e a sua intenção real, que aquele tenha agido com o cuidado e precaução usuais no tráfico jurídico.[17] (Baptista Machado, RLJ, ano 119, pág. 171).
Aquele excesso deve ser manifesto, claro, patente, indiscutível, embora sem ser necessário que tenha havido a consciência de se excederem tais limites.
Tal objectividade exige sempre a alegação e demonstração dos competentes factos constitutivos e da formulação do pedido correspondente, mesmo quando o interessado não o tenha invocado expressamente, altura em que surge de conhecimento oficioso.[18]
Orientação jurisprudencial que, diga-se, mereceu a concordância do Prof. Menezes Cordeiro, que também faz depender a aplicação daquele instituto da verificação dos pressupostos processuais, justificando: “na verdade, o Tribunal não fica limitado pelas invocações jurídicas das partes: pedido um certo efeito e constando, do processo, os factos necessários, pode o juiz optar pelo abuso de direito, mesmo que este não tivesse sido expressamente invocado”.[19]
Uma das modalidades de abuso de direito é, como se sabe, o “venire contra factum proprium”, a qual se manifesta pela violação do princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou. Esta conduta contraditória cabe no âmbito da fórmula “manifesto excesso” e inscreve-se no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara.
Porém, o abuso do direito, enquanto “válvula de escape” só deve funcionar em situações de emergência, para evitar violações chocantes do Direito.[20]
Postos estes considerandos, para que, no caso em apreço, se pudesse considerar abusivo o exercício do direito por parte do banco recorrido na invocação da excepção da caducidade, era necessário demonstrar factos através dos quais se pudesse considerar que excedeu, manifestamente, clamorosamente, o fim social ou económico do direito exercido ou que, com a sua pretensão, havia violado expectativas incutidas na recorrente.
Coisa que, manifestamente, no caso não se verifica.
A recorrente limita-se a tecer meras considerações subjectivas e conclusões, que não têm correspondência em qualquer factualidade assente nos autos.
Na verdade, o tribunal julga com base em factos e não no depoimento de testemunhas, sendo que, no que tange ao requerimento da autoria do banco recorrido datado de 19 de Janeiro de 2011 a que a recorrente faz referência, ele não pode ser tomado em consideração.
Com efeito, por requerimento de 10 de Fevereiro de 2011, o banco recorrido requereu o desentranhamento e a devolução desse requerimento, por o mesmo ter sido apresentado por manifesto lapso, sendo que, por despacho de 11 de Fevereiro de 2011, com a referência 6030352, foi ordenado a satisfação do requerido e, tendo sido desentranhado dos autos, conforme requerido e ordenado, não podendo valer para qualquer efeito.
Ora, não tendo sido alegados nem provados quaisquer factos que demonstrem que o banco recorrido tenha invocado de forma abusiva a caducidade do direito resolutório, por ter violado qualquer confiança que tivesse sido incutida na recorrente, não pode proceder o abuso de direito por esta invocado.
*
Diante do exposto improcedem todas as conclusões formuladas pela recorrente e, com elas, o respectivo recurso.
*
IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação confirmando, assim, a decisão recorrida.
*
Custas a cargo da Massa Insolvente (artigo 304.º do CIRE e 527º nº 1 do C.P.Civil).
*
Porto, 12 de Maio de 2014
Manuel Domingos Fernandes
Caimoto Jácome
Macedo Domingues
_______________
[1] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio da Nora in Manual de Processo Civil, 2ª Almedina, pág. 49.
[2] Antunes Varela, ob. citada pág. 54.
[3] Obra citada pág. 55.
[4] De facto, “é sabido que, frequentemente, tanto ou mais importantes que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, etc.”-Abrantes Geraldes in “Temas da Reforma do Processo Civil, II Vol. cit., pág. 201) “E a verdade é que a mera gravação sonora dos depoimentos desacompanhada de outros sistemas de gravação audiovisuais, ainda que seguida de transcrição, não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância” (ibidem). “Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores” (Abrantes Geraldes mesma obra, pág. 273).
[5] Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág. 348.
[6] Miguel Teixeira de Sousa obra citada, pág. 348.
[7] Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora pág. 374.
[8] In CIRE Anotado”, Vol. I, reimpressão, 2006, pág. 443.
[9] in “Direito da Insolvência”, 4ª Ed., pág. 223.
[10] No mesmo sentido veja-se Ac. desta Relação de 12/04/2011 in www.dgsi.pt
[11] Em sentido contrário, ou seja, de que se trata de um prazo de prescrição, Gravato Morais in Resolução em Benefício da Massa Insolvente, Coimbra Almedina, 2008, pág. 161 e ss.
[12] In Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, pág. 182.
[13] Cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. e loc. cit., que, aliás, expressam reservas quanto ao alargamento do prazo de três meses para seis meses. Por seu turno, Fernando de Gravato Morais, ob. cit., pág. 158, considera justificável este alargamento, entendendo que o mesmo não é significativo.
[14] Repare-se, que antes da reforma de 1977 (D.Lei 496/77 de 25/11) do C.Civil o prazo de caducidade estatuído no artigo 1842.º se contava a partir do conhecimento do nascimento do filho, ou seja, quando o legislador pretendeu mudar de critério fê-lo de forma expressa, pelo que, antes da operada reforma, o artigo não podia ser interpretado e não compreendia o sentido que aí hoje se encontra vertido.
[15] Como bem se refere na decisão recorrida o Administrador da Insolvência é um órgão da insolvência–cfr. artigo 52.º e ss do CIRE, pelo que, ainda que ocorram circunstância susceptíveis de levar à substituição da pessoa inicialmente nomeada como administrador da insolvência, o seu trabalho é contínuo, os actos praticados não se repetem nem se anulam. O administrador da insolvência substituto recebe o processo de insolvência no exacto ponto e momento processual que o administrador da insolvência substituído o deixa. Daí que, sobre o administrador judicial substituído incida o dever de prestar toda a colaboração necessária que lhe seja solicitada pelos administradores judiciais que o substituam, conforme impõe o artigo 16.º, n.º 4 da Lei do Estatuto do Administrador Judicial.
[16] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição, pág. 298, e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 7.ª edição, pág. 536.
[17] Cfr. Baptista Machado, RLJ, ano 119, pág. 171.
[18] Cfr., entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 30/11/95, na CJ–STJ- Ano III 20/5/97, Tomo III, pág. 132, de 20/5/97, no BMJ n.º 467.º, pág. 557 e de 25/11/99, CJ–STJ-, Ano VII, Tomo III, pág. 124, da RL de 29/1/98, na CJ, Ano XXIII, I, 103 e da RE de 23/4/98, CJ, XXIII, II, 278.
[19] In Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo I, 2.ª edição, pág. 247.
[20] Cfr. Acórdão do STJ de 15/1/2013 in www.dgsi.pt.