Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3891/16.0T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: INSOLVÊNCIA
INSUFICIÊNCIA DA MASSA INSOLVENTE
COMPLEMENTO DA SENTENÇA
DEPÓSITO PRÉVIO
DISPENSA
APOIO JUDICIÁRIO
Nº do Documento: RP201709113891/16.0T8AVR.P1
Data do Acordão: 09/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS Nº 657, FLS.157-165)
Área Temática: .
Sumário: Ocorrendo a falta de meios económicos, beneficiando o requerente do apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, não deve o tribunal aplicar a norma do art. 39º/3 CIRE, por representar uma limitação ao exercício do direito de ação, que viola o art. 20º da CRP.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Insolv-Insuf-Complemento-3891-16.0T8AVR.P1
Proc. 3891/16.0T8AVR
Recorrente: B…
Recorrido: C…, Lda
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Juiz Desembargador Relator: Ana Paula Amorim
Juízes Desembargadores Adjuntos: Manuel Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto[1] (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)
I. Relatório
No presente processo de insolvência por sentença proferida em 05 de janeiro de 2017, com trânsito em julgado, foi declarada a insolvência de C…, Lda, com sede na Rua …, nº .., freguesia de …, Oliveira do Bairro, Aveiro, NIPC … … …, com Código de Atividade Económica …..-.. (Rev.3), nos termos do art. 39º CIRE, limitada ao cumprimento do preceituado nas alíneas a) a d) e h) do artº 39º do CIRE e não foi declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência.
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B…, credora da insolvente por força da execução que corre contra a executada/insolvente no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Águeda - Juízo de Execução sob o nº 1641/15.7T8AGD, notificada do anúncio de declaração de insolvência com carácter limitado da Sociedade C…, Lda., veio ao abrigo do disposto no artigo 39.º, nº 2, alínea a), do CIRE, requerer que a sentença fosse complementada com as restantes menções previstas no nº 1 do artigo 36.º do CIRE.
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Proferiu-se despacho que determinou a notificação da credora para, em cinco dias, informar e documentar sobre a realização e atual estado de eventuais penhoras no âmbito do processo executivo que identificou, ou depositar ou caucionar, nos termos do art. 39.º/3 do CIRE, o montante de €4.000,00, que se fixa como o razoavelmente necessário para garantir o pagamento das custas e dívidas que uma conversão da insolvência limitada em plena previsivelmente acarreta, sob pena de indeferimento.
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O credor veio dar satisfação ao solicitado com o requerimento que se transcreve:
“ […]informar e documentar sobre a realização e atual estado de eventuais penhoras no âmbito do processo executivo n.º 1641/15.7T8AGD, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Águeda - Juízo de Execução vem juntar o auto de penhora realizado – cfr. doc. 1
Por outro lado, tendo sido notificada para depositar ou caucionar, nos termos do art. 39.º/3 do CIRE, o montante de 4000,00€ fixado como razoavelmente necessário para garantir o pagamento das custas e dívidas que uma conversão da insolvência limitada em plena previsivelmente acarreta, sob pena de indeferimento, vem expor e requerer o seguinte:
1. A requerente requereu, como demonstrou aquando do pedido de complemento de sentença com as restantes menções do art. 36.º, n.º 1 do CIRE, pedido de apoio judiciário nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
2. Ainda não dispõe da decisão sobre tal pedido, todavia, como não dispõe de meios económicos que lhe permitam sequer prover à sua subsistência, está em crer que tal apoio lhe irá ser deferido.
3. A requerente requer que lhe seja deferida a dispensa do depósito de qualquer quantia à ordem do Tribunal ou prestação de caução, nos termos previstos no art. 39, nº 3, do C.I.R.E., por se encontrar em situação de absoluta incapacidade económica”.
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Proferiu-se despacho que indeferiu a dispensa do depósito prévio e o complemento da sentença de insolvência, com os fundamentos que se transcrevem:
“Na sequência da declaração de insolvência, mediante própria apresentação, de C… Lda., veio B…, afirmando-se credora da insolvente, requerer o complemento da sentença e, depois a dispensa de depósito do valor fixado para o efeito, sendo certo que juntou auto de penhora referente a bens móveis no montante atribuído de cerca de €4.400,00 e comprovando ter requerido apoio judiciário.
Segundo entendemos, a exigência do depósito ou garantia a que se refere o art. 39.º/3 do CIRE, como condição para o complemento da sentença, visa assegurar a existência de um fundo de maneio suficiente para suportar o exponencial aumento de despesas e custos processuais inerentes à transição de uma insolvência limitada para plena, em ordem a que aumento não venha a recair sobre o Cofre dos Tribunais e, assim, sobre o erário público.
Por isso, é justo considerar que tal depósito ou garantia sejam dispensadas havendo comprovação bastante, ou no mínimo, informação credível, da existência de património na insolvente suficiente para o pagamento das custas do processo e dívidas previsíveis da massa.
Todavia, salvo o devido respeito, não podemos dar como verificado, no caso dos autos, semelhante requisito, tendo em conta, por um lado, o exíguo valor que foi atribuído aos bens penhorados, no momento da penhora e, por outro, ainda com mais relevância, a circunstância de se tratarem de bens móveis de fácil dissipação e desvalorização, que para mais ficaram confiados ao executado, sendo manifesto, segundo máximas de experiência comum, que muito dificilmente podem ser apreendidos e liquidados por valor semelhante ao atribuído.
Por outro lado, sendo aquele o fundamento da condição necessária para o complemento da sentença, nos termos do art. 39.º/3 do CIRE, entendemos que não pode ser dispensado mercê do pedido ou sequer da concessão do benefício do apoio judiciário, pois num caso desses o risco que a norma pretende evitar tem fortes possibilidades de ocorrer realmente, acabando o aumento dos custos inerente à alteração processual por ser inteiramente suportado pelo IGFAJ.
Sem que a esta solução, a nosso ver, obste minimamente o acesso ao direito por parte de quem viu reconhecido o pedido de apoio judiciário.
Desde logo, um credor trabalhador pode ser pago pelo Fundo de Garantia Salarial mesmo no caso de uma insolvência com carácter limitado (art. 336.º do Código do Trabalho). Podendo exercer esse direito desde que possua algum título, público ou mesmo particular, emanado por exemplo da sua entidade patronal, que fundadamente possa fazer prova junto daquele Fundo da existência e valor do crédito. Para isso, não carece, pois, da conversão do processo limitado em insolvência plena, sendo certo que mesmo que essa conversão operasse, nada garantiria que o credor trabalhador obtivesse semelhante título (a respeito da existência e valor do seu crédito) no âmbito do processo, visto que este pode ser encerrado na assembleia de credores a que alude o art. 156.º do CIRE por insuficiência da massa insolvente (art. 232.º do CIRE), caso em que não há lugar a reconhecimento e verificação de créditos (art. 233.º/2, al. b), do CIRE).
Assim sendo, no caso limite de o credor trabalhador não lograr título com indicação suficiente do seu crédito (existência e valor), para o Fundo de Garantia Salarial, terá ainda legitimidade para intentar novo processo de insolvência contra a requerida, aí sim, sem lugar à prestação de depósito ou garantia (cfr. art. 39.º/7, al.d), do CIRE, e Acórdão do Tribunal Constitucional nº440/2012, de 31-10).
E por tudo isso entendemos que, nem o pedido de poio judiciário é suficiente para o pretendido complemento da sentença, em substituição do depósito ou da garantia, nem a negação desse complemento infringe o direito de acesso do credor ao direito, nem os elementos juntos relativos a bens penhorados substituem eficazmente, no caso dos autos, aquele depósito ou garantia”.
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Em 21 de fevereiro de 2017 e após prolação do despacho, o ISS, IP deu conhecimento nos autos que foi concedida à credora o benefício do apoio judiciário, na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
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O credor veio interpor recurso do despacho.
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Nas alegações que apresentou a apelante formulou as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto do despacho que indeferiu o requerimento para complemento da sentença com as restantes menções previstas no nº 1 do artigo 36.º do CIRE, ao abrigo do disposto no artigo 39.º, nº 2, alínea a), do CIRE.
2. O despacho que indeferiu o requerido complemento da sentença com as restantes menções previstas no nº 1 do artigo 36.º do CIRE, funda-se no facto de que o nº 3 do artigo 39.º do CIRE exige como condição do complemento da sentença o depósito ou garantia, entendendo-se que tal condição (depósito do valor que vier a ser fixado ou prestação de garantia) não pode ser dispensada nem sequer pela concessão do benefício de apoio judiciário, uma vez que tal norma pretende evitar o aumento de custos inerentes à alteração processual, a suportar pelo IGFAJ, no caso de vir a revelar-se a insuficiência da massa para os suportar.
3. Nos presentes autos, por requerimento apresentado em juízo pela sociedade C…, Lda., por deliberação tomada por um dos sócios e gerente D…, foi declarada a insolvência da sociedade requerente, por sentença proferida em 05.01.2017, concluindo-se que o património do devedor é presumivelmente insuficiente para a satisfação das custas do processo e das dívidas previsíveis da massa insolvente, sendo justificada a aplicação do disposto no artigo 39.º do CIRE.
4. A ora recorrente, na qualidade de credora, requereu atempadamente, que a sentença fosse complementada com as restantes menções do nº 1 do artigo 36.º do CIRE.
5. Na sequência da notificação de despacho para o efeito, veio a ora recorrente alegar que é credora da devedora, da quantia exequenda de €38.650,00, esclareceu o estado da execução que corre termos no tribunal da Comarca de Aveiro, Águeda – Instância Central – Secção de Execução – J1, sob o nº 1641/15.7T8AGD e juntou o auto de penhora de alguns bens móveis que foram encontrados nas instalações da devedora, levado a efeito no dia 15/12/2016 e simultaneamente requereu a dispensa do depósito da quantia de €4.000,00 ou a prestação de caução, por se encontrar em situação de absoluta incapacidade económica, tendo para o efeito requerido a concessão do benefício de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, nos termos de cópia do requerimento que havia junto anteriormente.
6. Nos termos do disposto no disposto na alínea a) do nº 2 do artigo 39.º do CIRE qualquer interessado pode pedir, no prazo de cinco dias, que a sentença seja complementada com as restantes menções do nº 1 do artigo 36.º do CIRE e o nº 4 do citado normativo prevê que “requerido o complemento da sentença nos termos dos nºs 2 e 3, deve o juiz dar cumprimento integral ao artigo 36.º, observando-se em seguida o disposto no artigo 37.º e no artigo anterior, e prosseguindo como pleno o incidente de qualificação da insolvência, sempre que ao mesmo haja lugar”, o que implica que o processo retomará o percurso normal.
7. Assim, sendo indeferido o complemento da sentença o processo de insolvência é declarado findo, o que significa que a declaração de insolvência não desencadeia os efeitos que normalmente lhe estão lhe estão ligados, ao abrigo das normas do CIRE, designadamente, o devedor mantém a administração e disposição do seu património; não é possível, no processo, suscitar a existência efetiva de bens não conhecidos ao tempo da decisão ou de outros que foram sonegados pelo devedor e ainda que o administrador não tem competência para promover a apreensão de quaisquer bens, nem para proceder à resolução dos atos previstos no artigo 121.ºdo CIRE, conforme decorre do disposto na alínea c) do nº 7, do artigo 39.º do CIRE.
8. A recorrente tem fundadas razões de que a insolvente dissipou todos o seu património poucos meses antes de se ter apresentado à insolvência e a verificação desses factos só poderão ser identificados se a sentença for complementada com as restantes menções do nº 1 do artigo 36.º e com o cumprimento do disposto no nº 4 do artigo 39.º, pelo que a decisão recorrida cerceia o seu direito de poder vir a receber o seu crédito.
9. A decisão recorrida indeferiu o pedido de complemento da sentença com dispensa do depósito do montante fixado para o efeito, de €4.000,00, por entender que o pedido de apoio judiciário não é suficiente para substituir o depósito ou da garantia.
10. Após a prolação da decisão recorrida foi deferido o benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxas de justiça e demais encargos com o processo, por insuficiência de rendimentos, provando-se que não tem meios económicos para proceder ao depósito da quantia fixada pelo tribunal ou prestar caução.
11. Se um credor, porque não tem meios económicos para fazer o depósito, fica impedido de requerer o complemento da sentença, e consequentemente que o processo de insolvência retome o percurso normal, por forma a fazer valer o seu direito, tal situação afronta o princípio ínsito no artigo 20.º, nº 1 da constituição da república, segundo o qual “a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”.
12. Assim, verificando-se a falta de meios financeiros, o que é comprovado pela concessão do benefício de proteção jurídica, como é o caso da recorrente, o tribunal não deve aplicar a norma (nº 3 do artigo 39.º do CIRE) que condiciona o deferimento do complemento da sentença, ao pagamento de €4.000,00 que esta não pode pagar.
13. O Tribunal Constitucional já se pronunciou pela inconstitucionalidade desta norma, no seu Acórdão nº 83/2010 (proc. 821/09):
“Decide-se julgar inconstitucional, por violação do nº 1 do artigo 20.º e da alínea a) do nº 1 do artigo 59.º, ambos da Constituição, a norma do artigo 39.º, nº 3 do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, quando interpretada no sentido de que o requerente do complemento da sentença, quando careça de meios económicos e, designadamente, beneficiar de apoio jurídico na modalidade de isenção da taxa de justiça e demais encargos com o processo, se não depositar a quantia que o juiz especificar nem prestar a garantia alternativa não pode requerer aquele complemento da sentença”
14. O Tribunal “a quo” ao interpretar o artigo 39.º, nº 3 do CIRE, nos termos em que o fez, ou seja, no sentido de que é condição necessária para deferimento do complemento da sentença, o pagamento da quantia fixada de €4.000,00 para assegurar as custas do processo e dívidas previsíveis da massa e tendo considerado insuficiente o benefício de apoio judiciário concedido, violou o disposto no artigo 20.º, nº 1 da CRP, sendo tal despacho inconstitucional por violação do referido normativo.
Termina por pedir a procedência do recurso, com a revogação do despacho recorrido e o deferimento do pedido de complemento da sentença, com dispensa do pagamento fixado de €4.000,00.
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A insolvente veio apresentar resposta ao recurso, na qual formulou as seguintes conclusões:
A - Alega a Recorrente, em suma, que por se encontrar em situação de absoluta incapacidade económica (surpreendentemente!) deveria ter sido dispensada de depósito de garantia de 4.000,00 eur, ou a prestação de caução.
B - A este propósito, NENHUMA prova fez a Recorrente para provar a alegada absoluta incapacidade económica.
C - A Recorrente é proprietária de 50% de um imóvel e de um terreno com o valor patrimonial global declarado na caderneta predial de €88.325,00, valor esse, longe dos valores praticados no mercado, cujo valor real ultrapassa facilmente os 150.000,00eur.
D - As despesas com os referidos imóveis são suportados em exclusivo pelo ex-marido da Recorrente, não obstante de esta os usar em exclusivo desde a data da separação.
E - A Recorrente, no passado dia 21 de novembro de 2016, adjudicou, 3 veículos automóveis, recusando inclusive propostas por terceiros para a sua adjudicação, sendo que no seu conjunto tais adjudicações totalizam o valor de 8.650,00eur.
F - Valor esse, mais que suficiente para garantir o depósito da quantia de 4.000eur, requeridos pelo Meritíssimo Juiz ad quo.
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O recurso foi admitido como recurso de apelação.
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Dispensaram-se os vistos legais.
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Cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
As questões a decidir:
- saber se requerendo o credor o complemento da sentença, nos termos do art. 39º/3 CIRE, pode ser dispensado do depósito prévio ou prestação de caução quando alega a incapacidade económica para suportar tal despesa, demonstra ter requerido o apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com a ação e tal benefício vem efetivamente a ser concedido;
- se estão reunidos os pressupostos para proceder ao complemento da sentença.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos que resultam dos autos e ponderados no despacho sob recurso:
- O credor B… faz parte do mapa de funcionários da insolvente;
- Detém sobre a insolvente um crédito no montante de €37.900,00, cujo pagamento foi reclamado no processo de execução P 1641/15.7T8AGD;
- Em 13 de janeiro de 2017 B… requereu a concessão de apoio judiciário junto dos Serviços da Segurança Social;
- Por decisão de 16 de fevereiro de 2017, comunicada aos autos em 21 de fevereiro de 2017 foi concedido ao credor o benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e encargos com o processo.
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3. O direito
Na apreciação da questão, por efeito da sucessão de leis no tempo, cumpre ter presente que o presente processo de insolvência foi instaurado em 2016, vigorando à data, o regime previsto no DL 53/2004 de 18/03, na redação do DL 200/2004 de 18/08, com as alterações introduzidas pelo DL 116/2008 de 04/07, DL 185/2009 de 12/08, Lei 16/2012 de 20 de abril (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que passaremos a designar de forma abreviada “ CIRE “), que se aplicará ao caso presente.
A recente alteração introduzida ao Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas pelo DL 79/2017 de 30 de junho, que entrou em vigor a 01 de julho de 2017, apenas será considerada para efeitos adjetivos.
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Nas conclusões de recurso a apelante insurge-se contra o despacho recorrido pelo facto de se considerar que a alegação de insuficiência económica, comprovada com a concessão de apoio judiciário se mostra insuficiente para dispensar o depósito ou prestação de caução e suscita, ainda, a inconstitucionalidade de tal interpretação, por violação do art. 20º CRP, com fundamento no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 83/2010 (Proc.821/09).
Na sentença considerou-se que não se justifica a dispensa do depósito por duas ordens de razões:
- inexistência de património suficiente para o pagamento das custas e demais despesas, porque os bens penhorados no âmbito do Proc. 1641/15.7T8AGD são constituídos por bens móveis, sujeitos a fácil dissipação e que sofrem uma depreciação no seu valor; e
- a concessão do apoio judiciário acaba por repercutir sobre o IGFAJ os custos inerentes à alteração processual, o que contraria o fim que se pretende alcançar com a norma do art. 39º/3 CIRE.
A apelante não se insurge contra a primeira ordem de argumentos, mas considera que condicionar o exercício do direito ao depósito prévio, quando não tem capacidade económica e requereu o apoio judiciário representa uma violação do direito de ação, previsto no art. 20º CRP.
A questão que se coloca consiste, assim, em determinar se no caso concreto requerido o complemento da sentença se justifica dispensar o depósito ou a prestação de caução à ordem do tribunal, quando se alega a falta de capacidade económica e se requereu o benefício de apoio judiciário, que acabou por ser concedido.
Determina o art. 39º/1 CIRE que concluindo o juiz que o património do devedor não é presumivelmente suficiente para a satisfação das custas do processo e das dividas previsíveis da massa insolvente e não estando esta satisfação por outra forma garantida, faz menção desse facto na sentença de declaração da insolvência, dando nela cumprimento apenas ao preceituado nas alíneas a) a d) e h) do nº1 do art.36º.
A sentença é proferida com caráter limitado e não se fixa prazo para reclamação de créditos, nem se ordena a apreensão de bens para a massa insolvente, nem se determina a realização da assembleia de credores, nem o devedor e credores são notificados com as advertências legais.
A lei prevê, contudo, a possibilidade de ser requerido o complemento da sentença, com as restantes menções do nº1 do art. 36º, nos termos do art. 39º/2 a) CIRE.
Nessas circunstâncias determina o art. 39º/3 CIRE:
“O requerente do complemento da sentença deposita à ordem do tribunal o montante que o juiz especificar segundo o que razoavelmente entenda necessário para garantir o pagamento das referidas custas e dividas, ou cauciona esse pagamento mediante garantia bancária, sendo o depósito movimentado ou a caução acionada apenas depois de comprovada a efetiva insuficiência da massa, e na medida dessa insuficiência”.
Estatui ainda o nº4:
Requerido o complemento da sentença nos termos do nº2 e 3, deve o juiz dar cumprimento integral ao artigo 36º, observando-se em seguida o disposto no art. 37º e no artigo anterior, e prosseguindo com carater pleno o incidente de qualificação da insolvência, sempre que ao mesmo haja lugar”.
Não sendo requerido o complemento da sentença o processo finda – art. 39º/7/b) CIRE.
O deferimento do complemento está dependente da demonstração da qualidade de interessado e do depósito à ordem do tribunal do montante que o juiz especificar segundo o que razoavelmente entenda necessário para garantir o pagamento das referidas custas e dividas, ou caução mediante garantia bancária.
Com efeito, uma vez que o processo de insolvência tem por finalidade o pagamento, na medida em que ele seja ainda possível, dos créditos da insolvência, a constatação de que a massa insolvente não é sequer suficiente para fazer face às respetivas dívidas – aí compreendidas, desde logo, as custas do processo e a remuneração do administrador da insolvência – determina que o processo não prossiga após a sentença de declaração de insolvência ou que seja mais tarde encerrado, consoante a insuficiência da massa seja reconhecida antes ou depois da declaração.
Concorda-se, como se observa na sentença, que “a exigência do depósito ou garantia a que se refere o art. 39.º/3 do CIRE, como condição para o complemento da sentença, visa assegurar a existência de um fundo de maneio suficiente para suportar o exponencial aumento de despesas e custos processuais inerentes à transição de uma insolvência limitada para plena, em ordem a que aumento não venha a recair sobre o Cofre dos Tribunais e, assim, sobre o erário público”.
Contudo, entendemos que tal ónus não se pode manter quando contende com o direito de ação, constitucionalmente consagrado no art. 20º da Constituição da Republica Portuguesa e representa uma limitação ao seu exercício.
O direito de ação é pacificamente entendido como um “direito público” totalmente independente da existência da situação jurídica para a qual se pede a tutela jurídica, “afirmando-se” como existente: ainda que ela na realidade não exista, a afirmação basta à existência do processo, com o consequente direito à emissão da sentença.
Quer para o autor, quer para o réu, o direito ao acesso aos tribunais engloba a inexistência de entraves económicos ao seu exercício. Tal implica, designadamente, a concessão de apoio judiciário a quem dele careça e a proibição de disposições da lei ordinária que limitem o direito à jurisdição por não satisfação de obrigações alheias ao objeto do processo[2].
Neste sentido, se pronunciaram, entre outros, os Ac. Rel Porto 26 de junho de 2007, Proc.0722767; Ac. Rel. Guimarães 02 de junho de 2011, Proc.327/11.6TBFLG.G1; Ac. Rel. Guimarães 04 de junho de 2015, Proc.51/14.8T8VLN.G1 todos acessíveis em www.dgsi.pt.
O Tribunal Constitucional foi já chamado a pronunciar-se sobre a conformidade da interpretação do preceito à luz do art. 20º da Constituição da Republica Portuguesa nos Ac.nº 83/2010 e Ac.nº 372/2016 (Proc. 903/2014) de 08 de junho de 2016 (ambos acessíveis em www.dgsi.pt-Jurisprudência Tribunal Constitucional), sendo que neste último se decidiu:” Julgar inconstitucional, por violação do n.º 1 do artigo 20.º da Constituição, a norma do artigo 39.º n.º 3 do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, quando interpretada no sentido de que o requerente do complemento da sentença, quando careça de meios económicos e, designadamente, beneficiar do apoio judiciário na modalidade de isenção da taxa de justiça e demais encargos com o processo, se não depositar a quantia que o juiz especificar nem prestar a garantia bancária alternativa não pode requerer aquele complemento de sentença”.
Não vemos motivo para não acolher tal sentido interpretativo e por isso, ocorrendo a falta de meios económicos, beneficiando o requerente do apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, não deve o tribunal aplicar a norma do art. 39º/3 CIRE, por representar uma limitação ao exercício do direito de ação, que viola o art. 20º da CRP.
Os argumentos expostos no despacho recorrido não justificam interpretação distinta.
No caso concreto foi proferida sentença com caráter limitado e a apelante na qualidade de credora da insolvente veio requerer o complemento da mesma. Não se questiona que lhe assiste tal direito.
Contudo, perante a quantia fixada pelo juiz para garantir as custas e dividas, veio a apelante requerer a respetiva dispensa, invocando dificuldades económicas e comprovou ter formulado o pedido de apoio judiciário. O apoio judiciário veio a ser-lhe concedido.
Seguindo a interpretação atrás defendida, tal circunstância justifica a dispensa do depósito e que se afaste a aplicação da norma do art. 39º/3 CIRE, por violação do art. 20º da CRP.
Considerou-se na decisão recorrida que a interpretação não viola o acesso ao direito, porque um credor trabalhador pode ser pago pelo Fundo de Garantia Salarial mesmo no caso de uma insolvência com caráter limitado, desde que possua um título.
A apelante quando requereu a dispensa de depósito ou de prestação de caução, sob a forma de garantia bancária, não alegou que pretendia reclamar créditos de natureza salarial para obter um título que lhe permitisse aceder ao Fundo de Garantia Salarial. Apenas invocou a sua qualidade de credor.
Contudo, admitindo que fosse esse o motivo, porque a requerente é referenciada nos autos com trabalhador da insolvente, não se aceita a interpretação defendida na sentença. Nos termos do art. 5º/2 a) /3 DL 59/2015 de 21 de abril ( diploma que estabelece o regime do Fundo de Garantia Salarial ) o trabalhador não necessita obter sentença de verificação e graduação de créditos no âmbito do processo de insolvência para instruir o requerimento. Caso não consiga obter o reconhecimento do crédito junto da entidade patronal, a lei prevê apenas que o trabalhador deve instruir o requerimento com certidão da reclamação emitida pelo administrador judicial[3].
Na insolvência com caráter limitado não há lugar à reclamação de créditos pelo que só pela via da alteração da decisão se poderia facultar a possibilidade de reclamar os créditos, para obter o título e por isso, condicionar esse direito ao depósito das quantias necessárias para satisfazer as despesas e dívidas da massa insolvente, quando não dispõe de meios económicos para o fazer constituiria uma limitação ao exercício do direito de ação.
Argumenta-se, ainda, que sempre poderia o credor instaurar novo processo de insolvência, como forma de obter o título, ficando dispensado do pagamento de taxa de justiça nos termos do art. 39º/7 d) CIRE, seguindo a interpretação do Ac. Trib Constitucional nº 440/2012 de 31/10.
Constitui um ónus desproporcional exigir a instauração de um processo de insolvência para reclamar o crédito, quando se encontra pendente processo de insolvência onde o credor pode exercer o direito, estando reunidas as condições para obter o complemento da sentença e por isso, tal argumento não pode ser atendido. Acresce que nada garante que nesse processo fosse concedida a dispensa de custas e encargos, uma vez que o acórdão do Tribunal Constitucional citado, não tem força obrigatória geral.
A insolvente na resposta ao recurso considera que a apelante não logrou provar que se encontra numa situação de absoluta incapacidade económica e enuncia vários factos para demonstrar que a apelante dispõe de bens suficientes para proceder ao depósito da quantia fixada pelo tribunal.
O apelado vem invocar um conjunto de argumentos, mas sem que oportunamente tenha deduzido oposição ao incidente suscitado, não constituindo a resposta ao recurso o meio próprio de se opor ao incidente.
Contudo, a incapacidade económica da apelante para suportar as custas com a ação está comprovada com a decisão que concedeu o apoio judiciário, a qual também não foi objeto de impugnação, face aos elementos que decorrem dos autos.
No entanto, sempre se dirá, que os documentos juntos com a resposta ao recurso não comprovam os factos alegados. Nas certidões da matriz a apelante não figura como titular dos prédios. Os documentos não revelam a partilha dos bens na sequência de divórcio, pelo que não se pode afirmar que adquiriu a propriedade de metade de um imóvel. Por outro lado, na adjudicação, em sede de processo de execução, a apelante figura como exequente e tanto quanto resulta da ata requereu a dispensa de depósito do preço.
Atento o exposto, verifica-se que a apelante requereu a dispensa de pagamento do depósito ou da prestação de caução e formulou o pedido de apoio judiciário, o qual acabou por lhe ser concedido na modalidade de dispensa de pagamento de custas e demais encargos. A insuficiência económica para suportar as custas com o prosseguimento do processo está comprovada.
Conclui-se que se justifica afastar a aplicação do art. 39º/3 CIRE, com fundamento na violação do art. 20º CRP e nessa conformidade julgam-se procedentes as conclusões de recurso.
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Nos termos do art. 303º CIRE as custas do incidente e da apelação são suportadas pela massa insolvente.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e revogar o despacho recorrido e nessa conformidade, dispensa-se a apelante do depósito da quantia fixada pelo juiz em €4000,00, para suportar as custas e dividas e defere-se o pedido de complemento da sentença de insolvência, a qual deverá ser completada após baixa dos autos à 1ª instância.
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Custas do incidente e da apelação, a cargo da massa insolvente.
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Porto, 11 de Setembro de 2017
(processei e revi – art. 131º/5 CPC)
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
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[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico.
[2] LEBRE DE FREITAS Introdução ao Processo Civil, 1996, 79
[3] Artigo 5.º DL 59/2015 de 21 de abril
Requerimento
1 - O Fundo efetua o pagamento dos créditos garantidos mediante requerimento do trabalhador, do qual constam, designadamente, a identificação do requerente e do respetivo empregador e a discriminação dos créditos objeto do pedido.
2 - O requerimento é instruído, consoante as situações, com os seguintes documentos:
a) Declaração ou cópia autenticada de documento comprovativo dos créditos reclamados pelo trabalhador, emitida pelo administrador de insolvência ou pelo administrador judicial provisório;
b) Declaração comprovativa da natureza e do montante dos créditos em dívida declarados no requerimento pelo trabalhador, quando o mesmo não seja parte constituída, emitida pelo empregador;
c) Declaração de igual teor, emitida pelo serviço com competência inspetiva do ministério responsável pela área do emprego, quando não seja possível obtenção dos documentos previstos nas alíneas anteriores.
3 - O requerimento é certificado pelo administrador da insolvência, pelo administrador judicial provisório, pelo empregador ou pelo serviço com competência inspetiva do ministério responsável pela área do emprego, consoante o caso, sendo a certificação feita:
a) Através de aposição de assinatura eletrónica; ou
b) Através de assinatura manuscrita no verso do documento.
4 - O requerimento é apresentado em qualquer serviço da segurança social ou em www.seg -social.pt, através de modelo aprovado por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas do emprego e da segurança social.