Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
12208/22.3T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FÁTIMA ANDRADE
Descritores: MAIOR ACOMPANHADO
AUTORIZAÇÃO JUDICIAL DE ATO
Nº do Documento: RP2024021912208/22.3T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 02/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Dispõe o artigo 150º do CC que o acompanhante deve abster-se de agir em conflito de interesses com o acompanhado (nº1). Requerendo ao tribunal a autorização das medidas tidas por convenientes quando a sua atuação seja necessária numa situação em que tal conflito surja (nº 3 deste artigo 150º).
II - Este dever de abstenção de atuação em conflito de interesses e consequente obrigação de solicitar ao tribunal a autorização para a prática de atos concretos, aplica-se ao acompanhante, quer se trate de casos de representação legal quer de assistência.
III - Através da autorização judicial de venda solicitada pretende-se concretizar a venda de um imóvel, cujo produto da venda reverterá, em última análise, para as herdeiras – requerente e beneficiária - na proporção dos respetivos quinhões.
A pretensão formulada representa, nesta medida, uma utilidade económica imediata correspondente ao valor de venda do imóvel, na proporção do respetivo quinhão da beneficiária.
Pelo que a aplicação do critério previsto no artigo 296º do CPC para a fixação do valor da ação se apresenta como correto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 12208/22.3T8PRT-A.P1

3ª Secção Cível

Relatora – M. Fátima Andrade

Adjunto – Carlos Gil

Adjunta – Eugénia Cunha

Tribunal de Origem do Recurso - Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Jz. Local Cível do Porto

Apelante/ AA

Sumário (artigo 663º nº 7 do CPC)

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I- Relatório

AA instaurou a presente ação especial para autorização judicial de ato - venda do quinhão no imóvel identificado nos autos e pertença da maior acompanhada BB requerendo que pela sua procedência, seja:

“concedida à aqui requente autorização para, em representação da Maior Acompanhada e sua irmã BB:

a) proceder à venda da sua quota parte no imóvel constituído pelo prédio urbano sito na freguesia ..., ... e ..., concelho do Porto, inscrito na matriz sob o art. ..., descrito na conservatória do registo predial sob o nº ...;

b) aplicar o valor recebido com a venda, em obras de restauro e melhoria da casa onde vão viver que é bem da herança de que são ambas titulares, prédio sito na freguesia ..., ... e ..., concelho do Porto, inscrito na matriz sob o art. ..., descrito na conservatória do registo predial sob o nº ...;

c) aplicar o valor que possa sobejar, depois de pagos os impostos, na compra de um imóvel, seja um apartamento ou loja, que ficará na titularidade de ambas as duas herdeiras, ena proporção dos seus quinhões na herança;

d) autorização para celebrar quaisquer contratos que sejam adequados ou necessários as estas mencionadas finalidades para cuja prossecução foi pedida autorização.”

Para tanto alegou em suma

- ter sido nomeada, por sentença – esta proferida em 22/12/2022 no âmbito dos autos principais de que estes são apenso - acompanhante da sua irmã maior BB – nascida a ../../1968.

Tendo-lhe sido conferidos poderes para assistir a maior acompanhada em quaisquer atos de disposição ou oneração de bens imóveis ou direitos sobre bens imóveis.

Carecendo, no entanto, de autorização do tribunal para proceder à alienação e ou aquisição de bens ou direitos de que a maior acompanhada é titular;

- A requerente e a maior acompanhada são as únicas herdeiras de seus pais, falecidos em 2002 e 2022, os quais deixaram bens, nomeadamente bens imóveis.

Encontrando-se a respetiva herança (de ambos) indivisa, pois ainda não foram realizadas partilhas;

- Da herança fazem parte dois imóveis descritos no artigo 13º da p.i., os quais são entre si contíguos e confrontantes. No 1º residindo a requerente com seu marido e filha. E no segundo residiam os pais da requerente e requerida. A qual após a morte destes, passou a ali residir sozinha;

- É inviável manter as duas habitações, não tendo a maior acompanhada rendimentos para fazer face às despesas de manutenção da casa que habita, nem para prover ao seu próprio sustento.

Tendo como único rendimento uma renda mensal no valor de € 550,00 pelo arrendamento de um imóvel de que é proprietária e que a seu favor foi adquirido pela sua mãe, já viúva.

Mãe que em testamento, por conta da quota disponível, doou à aqui requerente o quinhão hereditário que lhe pertencia na herança indivisa e ilíquida aberta por óbito de seu marido falecido em 2002, bem como a meação nos bens comuns do casal.

Com o encargo de a donatária cuidar da sua irmã, BB até à morte, provendo ao seu sustento, cuidados médicos e assistência de que careça;

- Com o rendimento mensal de € 550,00 a BB não consegue manter e cuidar da casa, nem pagar os impostos, necessitando para tanto da ajuda da irmã aqui requerente;

- A requerente necessita de vender um dos imóveis para diminuir a despesa com a conservação e manutenção do património e sobejando algum valor aplicar esse dinheiro na compra de um imóvel que permita obter um rendimento para si e sua irmã BB;

- Pretende assim a requerente vender a sua quota parte no imóvel onde reside a sua irmã e com o produto da venda aplicar parte na renovação e melhoria da casa onde atualmente reside e que também em parte é propriedade da acompanhada. A qual carece de obras profundas.

Destinando ali um espaço para um pequeno estúdio onde sua irmã passaria a residir, assim em melhores condições podendo dela cuidar.

No que tem o acordo da acompanhada;

- A aqui requerente pretende, portanto, proceder à venda da sua quota parte no imóvel e obter a autorização do tribunal para representar a sua irmã na venda do quinhão desta nesse mesmo imóvel. Para o efeito contratando uma empresa imobiliária;

- Imóvel que terá um valor de mercado de cerca de € 700.000,00, pretendendo com o valor de venda proceder a obras de melhoria na casa que é bem da herança de que a requerente e sua irmã são titulares.

Aplicando o valor que sobejar na compra de um imóvel em nome de ambas as herdeiras para que possam obter um rendimento e designadamente a maior BB que se encontra numa situação de maior debilidade económica.


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Conclusos os autos e apreciada a pretensão da requerente, foi proferida decisão liminar, tendo em suma decidido o tribunal a quo:

“(...) a acompanhante não tem poderes para, em representação da beneficiária, propor a competente ação especial de autorização para a prática de ato.

Assim, apresentando-se em juízo a representar a beneficiária quem não tem poderes para o fazer, nem condições para, por ato próprio, suprir essa falta de representação, impõe-se indeferir liminarmente a ação, de acordo com o disposto nos arts. 278.º, n. º1, al. e), 577.º, 578.º e 590.º, n. º1, do nCPC.

(...)

Pelo exposto, indefiro liminarmente a presente ação.”

Mais fixou o tribunal a quo à ação o valor de € 427.777,77, justificando-o nos seguintes termos:

“Atento o pedido e a causa de pedir, cumpre atribuir à ação o valor da quota parte da beneficiária no valor do imóvel indicado como o preço de venda. 

Assim, perante os elementos de facto alegado, concretamente o quinhão da beneficiária e o valor do imóvel, bem como o disposto nos arts. 296.º, n. º1, 297.º, n. º1, 2.ª parte, e 306.º, n. º1 e 2, do nCPC, cumpre fixar à ação o valor de 427.777,77€.”


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Do assim decidido interpôs a requerente AA recurso, oferecendo alegações, a final tendo formulado as seguintes

Conclusões:

“1. Vem o presente recurso interposto da sentença na parte em que indeferiu liminarmente a ação por julgar verificada a exceção da ilegitimidade da autora, e na parte em que a condenou em custas e fixou o valor da ação em 427.777,77 €.

2. Na decisão de que ora se recorre entendeu-se que a demandante não tem legitimidade para instaurar a presente ação e assim para representar a Maior Acompanhada em juízo, desde logo porque na sentença em que se decretaram as medidas de acompanhamento não lhe foram atribuídos tais poderes, ou seja não foram atribuídos poderes de representação geral ou a medida de representação especial para a propositura desta ação.

3. Discordamos deste entendimento por entender que a Acompanhante da Maior tem poderes e legitimidade para instaurar uma ação de autorização para a vendas de bens imóveis, mesmo sem ter poderes de administração dos seus bens.

4. A norma do art. 145.º do C. Civil que regula as atribuições do Acompanhante do Maior não distingue nenhuma modalidade ou tipo de poderes/funções atribuídas ao acompanhante, pelo que da mesma se deve concluir que a obrigação nela contida, de obter autorização, é aplicável a qualquer acompanhante de Maior Acompanhado.

5. Por outro lado a norma do art. 150 nº 3 do C.Civil expressamente reconhece ao Acompanhante o poder de, sendo necessário, requerer ao tribunal autorização ou as medidas consideradas concretamente convenientes.

6. O Acompanhante do Maior tem interesse em demandar, como se estatui no art. 30.º do C.C, pelo que é parte legitima.

7. A decisão de rejeitar liminarmente a presente ação com fundamento na ilegitimidade da requente, que atua nos presentes autos na condição de acompanhante da Maior Acompanhada, e, portanto, no interesse desta, fez uma errada interpretação e aplicação do direito, tendo violado o disposto nos art. 30, 145 e 150, nº 3 do C.Civil.

8. Na presente ação a demandante, na qualidade de Acompanhante, veio solicitar ao tribunal que confira autorização para a prática de atos para os quais se alegou que a Maior Acompanhada não teria capacidade e para cuja venda necessitaria de autorização.

9. Trata-se de uma ação em que, para efeitos de atribuição do valor da ação, estão em causa interesses imateriais, e, consequentemente, o valor da ação não deve corresponder valor da quota parte da beneficiária no valor do imóvel indicado, como a sentença decidiu, fazendo uma errada aplicação do direito aos factos.

10. Padece ainda a sentença recorrida de um erro de cálculo pois a quota da beneficiária no valor do imóvel não é de 427.777,77 €, como se fixou na sentença, mas sim de 272.222,22 €, pelo que mesmo no critério da sentença o valor da ação está incorreto.

11. Na presente ação não se pretende obter nenhuma quantia em dinheiro nem outro benefício que possa ser avaliado monetariamente. O que se pretende é suprir uma limitação e obter uma autorização. A causa de pedir não está centrada no imóvel nem no quinhão que a Maior e Beneficiária detém sobre esse imóvel.

12. A causa de pedir na ação é a limitação da Maior e a autorização para a prática dum ato.

13. Com a ação que a recorrente instaurou não se pretende obter, nem dela resulta, nenhuma utilidade económica IMEDIATA, como exige o critério de aplicação do art 297.º do CPC, e que foi o aplicado na sentença recorrida.

14. Caso se entende que o valor da ação deve corresponder ao valor do quinhão da Beneficiária, e atendendo a que o imóvel para cuja venda foi pedida autorização é de apenas 106.372,00 €, como resulta do doc. nº 11 junto com a PI (certidão matricial),

15. Então e nesse caso, como o quinhão da maior/beneficiária é de 7/18 avos deste valor, o valor da ação deveria ser de apenas 41.366,88 €.

16. A este mesmo valor se poderia e deveria chegar por recurso a critérios de equidade para a fixação do valor da causa, em plena harmonia com a regra geral ínsita no artigo 566º, nº 3, do Código Civil, avocando a oportuna ponderação, prudencial e casuística, das circunstâncias do caso,

17. Alterar o valor da ação de 30.000,01 € para 427.777,00 € redunda num profundo gravame económico, através do valor excessivo de pagamento de custas que implicará.

18. Por todos estes motivos poderia e deveria fixar-se-á à causa, com recurso a critérios de equidade e tomando por referência os interesses em causa, o valor de € 41.366,88.

19. A decisão de atribuir á ação valor de 427.777,77 €, e condenar a requente nas custas violou, pois, o disposto nos art. 303 nº 1 do CPC, e fez uma errada interpretação e aplicação do disposto nos art. 296. nº 1 e art. 297, no 1, 2ª parte do CPC.

Com o douto suprimento de V. Ex.ªs, deve ser concedido provimento ao recurso e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida, admitindo-se a ação e julgando a demandante parte legitima e mantendo-se o valor da ação atribuído na petição inicial, tudo com as legais consequências, assim se fazendo JUSTIÇA!”

Apresentou o MºPº contra-alegações, tendo em suma concluindo pela total improcedência do recurso, face ao bem decidido pelo tribunal a quo.


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O tribunal a quo admitiu o recurso interposto como de apelação, com subida imediata e nos próprios autos, com efeito devolutivo da decisão.

Foram dispensados os vistos.


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II- Fundamentação

Para a apreciação do presente recurso, importa considerar, para além das vicissitudes processuais acima enunciadas no relatório, o decidido na sentença proferida nos autos principais, quanto à nomeação da requerente como acompanhante de sua irmã maior.

Consta desta decisão (processo principal):

“julgo a ação parcialmente procedente e designo, como acompanhante da beneficiária BB, AA, conferindo-lhe as seguintes atribuições:

- De representar a beneficiária perante a Segurança Social, o serviço de Finanças e o “Banco 1..., S.A.”, incluído com poderes de movimentar as contas;

- De assistir a beneficiária em quaisquer atos de disposição ou oneração de bens imóveis ou direitos sobre bens imóveis e na celebração de contrato com vista a contrair empréstimos ou adquirir bens ou serviços com recurso a crédito;

- De representar judicialmente, apresentando queixa por atos de natureza criminal de que a beneficiária seja ofendida, constituindo-se assistente e deduzindo pedido de indemnização civil, bem como em ação de natureza civil respeitante a atos de administração dos bens da beneficiária, podendo constituir mandatário para o efeito em representação da beneficiária ou requerendo apoio judiciário para a patrocinar.

- De administrar quaisquer rendimentos ou prestações sociais que a beneficiária receba.

Fixo a data do início da conveniência das medidas decretadas em 29 de dezembro de 1988.

Não há registo de que a beneficiária tenha outorgado testamento vital ou procuração de cuidados de saúde.

As medidas devem ser revistas no prazo de cinco anos.”


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III- Âmbito do recurso.

Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC – resulta das formuladas pela apelante serem questões a apreciar:

- se a recorrente carece de poderes para a instauração da presente ação;

- se padece de erro o valor fixado à ação.

Cumpre em primeiro lugar apreciar da questão relacionada com os poderes da requerente e ora recorrente para intentar a presente ação.

O regime do maior acompanhado destina-se (cfr. artigo 138º do CC) a beneficiar das medidas de acompanhamento previstas neste Código o “(…) maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres”.

Visando este acompanhamento do maior assegurar “o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença.”

O mesmo é dizer que o interesse que este processo especial de maior acompanhado visa garantir é o do beneficiário de tais medidas de acompanhamento.

Sendo com tal fito que são tomadas as medidas julgadas necessárias e indispensáveis à proteção dos interesses do acompanhado, respeitando a sua vontade até ao limite do possível.

Como resulta do relatório supra a requerente e recorrente foi nomeada acompanhante da maior BB, sua irmã.

Tendo-lhe sido conferidas (ao abrigo do disposto no artigo 145º do CC) as seguintes atribuições:

- representar a beneficiária perante a SS; Serviço de Finanças e o “Banco 1..., S.A.” incluindo poderes para movimentar as contas;

- assistir a beneficiária em quaisquer atos de disposição ou oneração de bens imóveis ou direitos sobre bens imóveis (entre o mais);

- representar a beneficiária judicialmente (entre o mais) em ações de natureza civil respeitante a atos de administração dos bens da beneficiária, podendo constituir mandatário para o efeito em representação da beneficiária.

Invocando a qualidade em que foi investida de acompanhante de sua irmã, requer esta lhe seja concedida autorização para em representação da sua irmã – maior acompanhada – vender o quinhão desta no imóvel que descreveu nos autos, do qual declara também pretender vender a sua quota parte.

Justificando o interesse da venda nos termos que descreveu e que acima já deixámos alinhados.

Da factualidade apresentada pela requerente é manifesto o interesse – pela mesma aliás declarado – que a própria tem na venda do bem em causa.

Bem que faz parte das heranças indivisas dos seus pais, igualmente pais da acompanhada.

Como supra já referido, a requerente e a acompanhada são as únicas herdeiras das heranças indivisas de ambos os seus pais, nas quais se integra o imóvel que a requerente declara pretender vender.

Venda com cujo resultado mais declara a requerente, pretende fazer obras na casa onde reside e que também em parte é propriedade da acompanhada. Passando a acompanhada a viver na casa onde reside a requerente, num estúdio que para o efeito afirma ali irá construir.

Aplicando o dinheiro eventualmente sobrante na aquisição de um imóvel em nome da ambas as herdeiras, com vista à obtenção de um rendimento.

Dispõe o artigo 150º do CC que o acompanhante deve abster-se de agir em conflito de interesses com o acompanhado (nº1). Requerendo ao tribunal a autorização das medidas tidas por convenientes quando a sua atuação seja necessária numa situação em que tal conflito surja (nº 3 deste artigo 150º). Sob pena de, atuando em violação de tais deveres, ser o negócio anulável nos termos previstos para o negócio consigo mesmo regulado no artigo 261º do CC (vide nº 2 do artigo 150º).

Este dever de abstenção de atuação em conflito de interesses e consequente obrigação de solicitar ao tribunal a autorização para a prática de atos concretos, aplica-se ao acompanhante quer se trate de casos de representação legal quer de assistência[1].

A requerente, ora recorrente e acompanhante, encontra-se na situação pela mesma descrita nos autos numa posição de manifesto conflito de interesses com a sua irmã, de quem foi nomeada acompanhante.

Pelo que legitimamente e aliás cumprindo um dever que a lei lhe impõe, requereu a autorização – para si própria - para a prática de atos relacionados com a venda do imóvel descrito nos autos, integrante das heranças indivisas de que a própria e a acompanhada são herdeiras.

Em situação de conflito de interesses entre acompanhante e acompanhado, tem o primeiro que requerer ao tribunal a autorização para a prática de ato que se revele necessário aos interesses do acompanhado, esteja em causa uma situação de representação ou de assistência.

Sendo este um processo de jurisdição voluntária, rege-se o mesmo, não por critérios de estrita legalidade, mas antes por juízos de equidade e oportunidade com vista à tutela dos interesses que visam salvaguardar. Pelo que o juiz deve tomar em cada caso a solução que julgue mais oportuna (vide artigo 987º do CPC).

Entendendo o tribunal a quo que a concreta pretensão formulada não é a mais conforme com os poderes que à requerente foram atribuídos, deve em função do que vier a apurar tomar a solução que ao caso entender como a mais oportuna – o que se refere atendendo a que o tribunal a quo assinalou na decisão recorrida não terem sido atribuídos poderes de representação à requerente/recorrente para atos relacionados com a alienação de imóveis.

Tal não retira, contudo, pertinência na pretensão formulada por quem tem a obrigação de a deduzir – a acompanhante, nos termos assinalados e ao abrigo do previsto no artigo 150º do CC, com vista a obter autorização para ela mesma na qualidade que foi nomeada e no exercício dos seus deveres prestar oportunamente a assistência de que foi incumbida.

Perante o exposto e ao abrigo do previsto no artigo 150º do CC formulou a requerente pretensão legítima e própria, implicando por este motivo a revogação do decidido, devendo os autos prosseguir a sua normal tramitação.

Sem prejuízo do assim decidido e mesmo que a pretensão formulada pela requerente fosse de apreciar ao abrigo do previsto no artigo 145º do CC, ainda assim não deveria ter sido proferida decisão de indeferimento liminar, considerando as várias soluções plausíveis de direito.

No artigo 145º do CC é definido o âmbito e conteúdo do acompanhamento, em função de cada caso, balizado sempre pelos princípios da necessidade, subsidiariedade e proporcionalidade, em consonância com o já estabelecido na Convenção de Nova Iorque sobre os direitos das pessoas com Deficiência adotada pelas Nações Unidas em 30/03/2007 e aprovada pela Resolução da AR nº 56/2009 de 07/05 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 71/2009 de 30/07 – vide em concreto o artigo 12º nº 4 desta Convenção.

Do seu nº 3 resulta afirmado que “Os atos de disposição de bens imóveis carecem de autorização judicial prévia e específica”.

Para Pinto Monteiro trata-se de norma imperativa[2].

Paulo Mota Pinto, no artigo acima referido na nota 1 (a página 114), refere que a disposição do artigo 145º nº 3 apenas terá “utilidade para o caso de os atos serem celebrados com assistência pelo acompanhado, pois quando sejam celebrados pelo próprio representante legal a necessidade de autorização judicial resultará já do artigo 1889 nº 1 (e do artigo 1935º nº 1) do Código Civil.”

No mesmo sentido se pronunciou Paula Távora Vítor na anotação 10 ao artigo 145º do Código Civil, coordenado por Ana Prata, Volume I, 2ª Edição Revista e Atualizada, 2019, páginas 185 e 186, referindo que  o nº 3 deste artigo faz exigências especiais relativamente aos atos de disposição de bens imóveis, rodeando-os de especiais exigências, nomeadamente demandando a sua prática “autorização judicial (“prévia”) específica” por parte “do acompanhante no âmbito dos poderes que lhe sejam concedidos”. Assumindo como tal esta norma a natureza de “regra especial face aos arts. 1937 e 1938.º do regime da tutela dos menores, que a lei manda aplicar por remissão, e que se impõe ao tribunal, limitando a sua liberdade de modelação dos poderes do acompanhante. Na verdade, se se referisse aos atos do acompanhado, tal implicaria uma restrição adicional da sua capacidade operada por força da lei, sem atenção ao caso concreto, num aceno ao núcleo mínimo de incapacidade previsto para a inabilitação no antigo art. 153.º, que parece ser de afastar."

Seguindo idêntico entendimento, veja-se António Agostinho Guedes e Marta Monterroso Rosas, em anotação ao artigo 145º do CC no Comentário ao Código Civil, Parte Geral, 2ª edição revista e atualizada, UCP Editora 2023, página 366, último parágrafo.

Já em sentido contrário se pronunciou Mafalda Miranda Barbosa, in “O Regime do Acompanhamento: Da Incapacidade à Incapacidade?”[3]

Aqui e diretamente emitindo opinião sobre a necessidade de os autos que são autorizados pelo acompanhante estarem sujeitos à apreciação prévia judicial prevista pelo artigo 145º 3, concluiu esta autora “Se o acompanhado apenas necessita de assistência, isso significa que ele próprio pode funcionar como controlo da atuação do acompanhante. O artigo 145º/3 CC visa isso mesmo: impedir abusos por parte do acompanhante (e não o suprimento de qualquer incapacidade pontual, determinada pelo juiz, uma vez que para tanto bastaria a atuação do próprio acompanhante). Simplesmente, a atuação conjunta nas hipóteses de assistência parece afastar a relevância da intencionalidade normativa.”

Como se referiu a interpretação e âmbito de aplicação do artigo 145º nº 3 não se apresentam lineares, pelo que e como referido, atendendo às diversas soluções plausíveis de direito, nunca o tribunal a quo deveria ter decidido pelo indeferimento liminar.

Certo sendo, caber ao acompanhante requerer a autorização em seu nome próprio para a prática dos atos de que tenha por convenientes em cumprimento das funções de que foi incumbido enquanto acompanhante.

Cumprindo ao tribunal aferir no caso concreto qual a medida mais conveniente e oportuna para os interesses da acompanhada.

Anota-se ainda que o já mencionado conflito de interesses entre a acompanhante e a beneficiária e consequências a extrair de tal realidade - atendendo a que são ambas herdeiras da herança indivisa na qual o imóvel identificado como bem a vender se insere e, simultaneamente, a acompanhante declara pretender com o valor da venda efetuar obras na casa onde a mesma reside; bem como a oportunidade de a venda em causa ter lugar sem prévia partilha da herança indivisa - é questão que para os termos do recurso não releva porquanto não faz parte do seu objeto, mas que oportunamente terá de ser apreciado. Aqui se deixando esta menção, atendendo a que o tribunal a quo argumentou poder a beneficiária ser obrigada a vender bem que faz parte de uma herança indivisa em ação própria com intervenção de curador especial e do MºPº.

Concluindo, a pretensão que a requerente formula está contida no âmbito das funções de acompanhante de que foi cometida.

Inexistindo fundamento para o decidido indeferimento liminar.


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Em segundo lugar, insurgiu-se a recorrente contra o valor fixado à ação.

Defendendo estar em causa valores imateriais, entende ser o valor da ação a fixar o por si indicado de € 30.000,01 de acordo com o previsto no artigo 303º nº 1 do CPC.

O tribunal a quo, ao invés entendeu estar em causa ação cujo pedido representa uma utilidade económica imediata – correspondente ao valor da quota parte da beneficiária no valor do imóvel cuja autorização de venda se pretende obter. Para a sua contabilização tendo considerado o valor de venda indicado pela própria requerente.

Concluindo corresponder o valor do quinhão da beneficiária ao valor de € 427.777,77. Assim fixando o valor da ação nesse mesmo valor.

A recorrente, para além de se insurgir nos termos acima assinalados quanto ao critério seguido – o previsto nos artigos 296º nº 1 e 297º nº 1 do CPC, ao invés do por si defendido e previsto no artigo 303º nº 1 do CPC – defendeu ainda, a não ser seguido o critério por si seguido, ter ocorrido erro de cálculo no valor do quinhão da beneficiária o qual afirma ser de 7/18 avos do imóvel. Caso em que então o valor a fixar seria de € 272.222,22.

Para além de defender igualmente ter o tribunal a quo incorrido em erro ao considerar como valor do imóvel um outro valor que não o patrimonial tributário – este de € 106.372,00.

Caso em que o valor correto a fixar à ação seria de € 41.366,88, atento o quinhão da beneficiária de 7/18 avos.

No que respeita aos critérios a ter em atenção para a fixação do valor da ação, entendemos assistir razão ao tribunal a quo.

Através da autorização judicial de venda solicitada pretende-se concretizar a venda de um imóvel, cujo produto da venda reverterá, em última análise, para as herdeiras – requerente e beneficiária - na proporção dos respetivos quinhões.

A pretensão formulada representa, nesta medida, uma utilidade económica imediata correspondente ao valor de venda do imóvel, na proporção do respetivo quinhão da beneficiária.

Pelo que a aplicação do critério previsto no artigo 296º do CPC para a fixação do valor da ação se apresenta como correto[4].

Quanto ao valor do bem em si, considerado pelo tribunal a quo, tampouco merece censura o decidido.

O valor que releva considerar é o valor de mercado do bem, na medida em que este corresponde à utilidade económica do pedido.

E o valor que para o efeito o tribunal a quo considerou, foi precisamente o valor indicado pela própria requerente – a qual inclusive juntou em abono do valor por si indicado, um denominado “Estudo de Mercado”. Sendo o valor indicado pela requerente o único que na fase liminar poderia ter sido levado em consideração.

Nesta medida é de desatender à crítica apontada pela recorrente.

Resta por último aferir se a redução operada pelo tribunal a quo no valor fixado à ação, por referência ao quinhão da beneficiária merece censura.

De acordo com a escritura pública lavrada em 07/01/2021 pela falecida mãe, desta e sua irmã, aquela declarou doar à recorrente por conta da sua quota disponível a meação nos bens comuns do casal e o quinhão hereditário que lhe pertence na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu marido – correspondendo 3/6 indivisos à meação e 1/6 indiviso ao seu quinhão hereditário (na herança de seu falecido marido), perfazendo 4/6 do valor total a partilhar pela sua morte [tendo por referência a unidade dos bens a partilhar de ambos os progenitores da beneficiária e sua irmã].

A legítima dos filhos (não havendo cônjuge sobrevivo) é de 2/3 da herança.

Sendo a quota disponível, consequentemente de 1/3.

Quer isto significar que a porção de bens destinada aos herdeiros legitimários que não pode ser violada é de 2/3 (vide artigos 2156º e 2159º do CC).

A doação acima mencionada e que foi efetuada por conta da quota disponível da progenitora, excede o 1/3 da quota disponível, implicando a oportuna redução nos termos do artigo 2168º e seguintes do CC.

Para o que ora releva, o quinhão garantido da beneficiária terá de ser sempre de 3/18 da herança de seu pai (ainda indivisa), acrescida de 4/18 da herança de sua mãe por força da quota indisponível. Ou seja, o seu quinhão hereditário total é de 7/18 avos, tal como menciona a recorrente.

Implicando que o valor correto a fixar à ação, em função da alegada utilidade económica do pedido para a beneficiária, é de € 272.222,22.

Sendo este o valor que assim nesta sede se fixa à ação.

Procede assim parcialmente o recurso interposto.

IV. Decisão.

Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar a presente apelação parcialmente procedente, consequentemente revogando a decisão recorrida e decidindo:

- a prossecução dos autos, para apreciação da pretensão da recorrente, de acordo com a tramitação processual que ao caso couber;

- fixa-se o valor da ação em € 272.222,22.

Custas pela recorrente e recorrido na proporção de ½ para cada um (delas estando isento o MºPº que contra-alegou).


Porto, 2024-02-19.
Fátima Andrade
Carlos Gil
Eugénia Cunha
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[1] Sobre o dever de abstenção do acompanhante em atuar em situação de conflito de interesses e da obrigação de requerer autorização ao tribunal para a prática dos atos que se revelem necessários em defesa dos interesses do acompanhado – quando se verifique tal conflito – independentemente de ao acompanhante terem sidos conferidos poderes de representação legal ou de assistência, vide Paulo Mota Pinto in “Valor Jurídico dos Atos do Maior Acompanhado”, p. 116/117 publicado in “Colóquio – O Novo Regime do Maior Acompanhado”, Coordenação de António Pinto Monteiro, Edição Instituto Jurídico da FDUC de 2019.
[2] Cfr. neste sentido António Pinto Monteiro - “Das Incapacidades ao Maior Acompanhado – Breve Apresentação da Lei 49/2018 in EBOOK CEJ de 2019 – O Novo Regime, ali afirmando “Registe-se a imperatividade da disposição que determina a necessidade de autorização judicial prévia e específica para os atos de disposição de bens imóveis (n.º 3 do citado artigo 145.º)”.
[3] Publicado in “Colóquio – O Novo Regime do Maior Acompanhado”, Coordenação de António Pinto Monteiro, Edição Instituto Jurídico da FDUC de 2019, p. 165 e segs., mais concretamente a págs. 177/178. Tendo expresso idêntico entendimento in “Dificuldades Resultantes da Lei nº 49/2018 de 14/08” – publicação de Revista Jurídica Luso Brasileira, ano 5º (2019) nº 1, págs. 1449-1490.
[4] Assim foi já decidido no Ac. TRL de 26/09/2023, nº de processo 2231/21.0T8LSB-C.L1-7, in www.dgsi.pt .