Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
56/14.9IDAVR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCO MARCOLINO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
CAUÇÃO ECONÓMICA
INQUÉRITO
REMESSA DOS AUTOS PARA JULGAMENTO
Nº do Documento: RP2015111856/14.9IDAVR-A.P1
Data do Acordão: 11/18/2015
Votação: DECISÃO SINGULAR
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
Decisão: DECIDIDO O CONFLITO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: É da competência do JIC a prática de actos jurisdicionais durante o período que decorre entre o encerramento do inquérito e a remessa dos autos para julgamento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 56/14.9IDAVR-A.P1
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DECISÃO NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

Nos autos supra indicados, em 19/05/2015, o Ex.mo Procurador-Adjunto da Comarca de Aveiro – Santa Maria da Feira – DIAP – 1ª Secção, declarou encerrado o inquérito, determinou o seu arquivamento parcial e deduziu acusação contra os arguidos B…, filha de C... e de D..., natural de ..., Santa Maria da Feira, nascida a 26 de Março de 1985, encarregada de costura, residente na Rua ..., ..., n.º ..., ..., .... – ... ...; e “E..., LDA”, sociedade comercial por quotas, NIPC ........., com sede na ..., n.º .., .... – ... ..., Santa Maria da Feira.
Imputa-lhes a prática de um crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo art.º 105º do RGIT.

Ainda em sede de acusação, requereu o Digno Magistrado do MP:
“Face ao expendido, atentos os valores em causa nos autos e os fortes indícios da prática pelas arguidas do sobredito tipo de ilícito em apreço nos autos, afigura-se-nos existir o fundado receio de que faltem ou, pelo menos, diminuam substancialmente as garantias de pagamento da pena pecuniária, das custas do processo, pelo que se requer à Mma. Juiz de Instrução Criminal que as arguidas prestem caução económica, nos termos do disposto no artigo 227.º, n.º 1 e n.º 2 do Código de Processo Penal.
Ao abrigo do disposto no artigo 227.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, mais requer o Ministério Público que as arguidas prestem solidariamente caução económica por depósito bancário.
Remeta os autos à Mma. Juiz de Instrução Criminal, a quem, desde já, se promove se proceda à audição dos arguidos, nos termos do disposto no artigo 194.º, n.º 4 do Código de Processo Penal”.

A Senhora Juiz de Instrução Criminal, depois de ter determinado a audição dos arguidos, declarou-se incompetente para decidir com o seguinte argumentário:
“Veio o Ministério Público, na parte final da acusação deduzida contra a arguida B... e contra a sociedade arguida “E..., LDA”, requerer que as arguidas prestem caução económica, ao abrigo do disposto no artigo 227º do Código de Processo Penal.
Para o efeito, determinou fossem os autos remetidos ao Juiz de Instrução Criminal, com a promoção de audição dos arguidos nos termos do artigo 194º, n.º 4 do Código de Processo Penal, o que foi por nós determinado, no despacho de fls. 289.
No entanto, e melhor compulsados os autos, afigura-se-nos, salvo o devido respeito, que, estando encerrado o inquérito, e não vindo invocada urgência na prática do ato promovido, a quem caberá apreciar o assim requerido e promovido será ao Juiz que vier a presidir à fase subsequente do processo.
Ou seja, ao Juiz de Instrução, se os autos prosseguirem para a fase, que é facultativa, de instrução, ou ao Juiz do Julgamento, no ato de recebimento da acusação, se prosseguirem logo para essa fase processual.
Com o efeito, a intervenção do Juiz de Instrução restringe-se à prática de atos que nos termos do artigo 268º do Código de Processo Penal sejam da sua exclusiva competência durante o inquérito.
Esse inquérito, no presente caso, foi previamente declarado encerrado e deduzida acusação com remessa dos autos para julgamento, pelo que não se divisa fundamento para que seja o Juiz de Instrução a apreciar o requerimento formulado em sede de aplicação de medidas de garantia patrimonial.
De resto, a não se entender assim, poderia abrir-se a porta a um infindável e injustificável protelar da remessa dos autos a juízo para Julgamento (até, porventura, com riscos de prescrição), enquanto se não dirimisse e decidisse o referido incidente.
Assim e por tudo o exposto, por entendermos não ser o ato promovido da nossa competência, não se toma conhecimento da promoção em apreço”.
O despacho transitou em julgado em 6/7/2015.

Por seu turno, a M.ª Juiz da Comarca de Aveiro, Santa Maria da Feira – Inst. Local – Secção Criminal – J1, a quem os autos foram remetidos, posteriormente, igualmente se declarou incompetente, assim expendendo:
“A fls. 263 e ss., no respectivo despacho final do inquérito o MP veio promover a audição das arguidas e aplicação de medidas de coacção às mesmas, designadamente medidas de garantia patrimonial, dirigindo tal promoção ao Meritíssimo Juiz de Instrução.
A fls. 315 e ss. veio a Meritíssima Juiz de Instrução declarar-se incompetente atendendo à fase processual em que os autos se encontram.
Nos termos do disposto no artigo 194.º, 268.º e 269.º do CPP - especificamente art. 269.º/1 f) - considera-se que nada autoriza tal interpretação restritiva das funções do Juiz de instrução, pelo que se entende ser este o competente para a apreciação e aplicação de tais medidas de coacção, ou outras tidas por pertinentes.
De igual modo se entende que o art. 17.ºdo CPP em nada contraria este entendimento uma vez que a promoção do MP determina que vão os autos primeiramente ao Meritíssimo Juiz de Instrução, resultando claro que apenas após tal apreciação e decisão é que os autos serão remetidos à distribuição para julgamento.
De facto e nos termos constantes do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 09.10.2012, relator Sérgio Corvacho, entende-se que:
«No segmento processual entre o despacho final do inquérito e a abertura da instrução ou a remessa dos autos para julgamento, a competência do juiz de instrução é exercida na plenitude, nos termos do art. 17.º do Código de Processo Penal e, assim, para o efeito de apreciar requerimento no sentido de alteração de medidas de coacção.»
Igualmente se concorda com o teor do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 09.05.2009, relator Calvário Antunes: «A aplicação das medidas de coacção e de garantia patrimonial, excepto o TIR, é da competência do JIC (…)».
Assim, declaro-me incompetente para a apreciação da promoção do Ministério Público e eventual aplicação da medida de coacção supra referida”.
Este despacho transitou em julgado em 5/10/2015.

Constatado o conflito negativo de competência, foi solicitado a este Tribunal a sua resolução.

Notificadas as entidades em conflito nada disseram.

Nesta Relação, o Ex.mo PGA emite parecer no sentido de que deve ser deferida a competência ao M.º JIC.

Cumpre decidir.

O processo é uma sequência ordenada de actos que tem “por fim obter do tribunal a solução de determinado litígio”[1]. Ou, no dizer de Manuel de Andrade[2], “o processo identifica-se com o conjunto dos actos que hão-de praticar-se em juízo na propositura e desenvolvimento da acção”.
O processo penal é, por definição, um processo.
Que “surge como uma regulamentação disciplinadora da investigação e esclarecimento de um crime concreto, que permite a aplicação de uma consequência jurídica a quem, com a sua conduta, tenha realizado um tipo de crime”[3].
Sendo um todo unitário, o certo é que, tanto no processo civil como no processo penal, o mesmo se divide em fases.
O Processo Penal está regulamentado na Parte Segunda do Código de Processo Penal, e comporta, como se vê da inserção sistemática, quatro fases[4]:
1. A fase preliminar (Livro VI), dividida em 3 subfases:
● A subfase denominada de prévia ao processo, com a notícia do crime, as medidas cautelares e de polícia e a detenção (título I);
● A subfase do inquérito (título II);
● A subfase da instrução (título III).
2. A fase do julgamento (Livro VII);
3. A fase dos recursos (Livro IX);
4. A fase das Execuções (Livro X).

Como é sabido, “A direcção do inquérito cabe ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal” (n.º 1 do art.º 263º do CPP).
O Juiz de Instrução Criminal intervém no inquérito como guardião dos direitos fundamentais. É o Juiz das Liberdades e das Garantias[5]. Tem competência exclusiva para a prática de determinados actos de inquérito (art.º 268º, n.º 1 do CPP), impondo a lei (art.º 269º do CPP) que seja o Juiz de Instrução a ordenar ou autorizar, durante o inquérito, a prática de outros e também determinados actos.
A Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário), no seu art.º 119º, n.º 1, prescreve que “Compete às secções de instrução criminal proceder à instrução criminal, decidir quanto à pronúncia e exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito, salvo nas situações previstas na lei, em que as funções jurisdicionais relativas ao inquérito podem ser exercidas pelas secções de competência genérica da instância local”.
Por regra, em cada Secção de Instrução Criminal há um JIC e, quando não o há, segundo o n.º 1 do art.º 121º da mesma Lei, “pode o Conselho Superior da Magistratura, sempre que o movimento processual o justifique, determinar a afetação de juízes de direito, em regime de exclusividade, à instrução criminal”.

In casu, o conflito negativo é suscitado entre o JIC e o Juiz a quem o processo foi remetido para julgamento, denegando ambos a sua competência para aplicação de uma medida de coacção.
Foi suscitado quando já tinha sido declarada encerrada a fase do inquérito, mas ainda não foi aberta a fase de julgamento.
É que esta, como bem refere Germano Marques da Silva[6] só é declara aberta quando for “concluída a instrução com pronúncia ou esgotado o prazo para requerimento da instrução”.
Nem uma e nem outra das situações se verificava no caso em apreço. Consequentemente, os autos ainda estavam na denominada fase preliminar.

A diligência requerida pelo MP, porque contende com direitos e liberdades individuais, é da exclusiva competência de um Juiz.
Ainda não se atingira a fase do julgamento, repete-se.
E isto porque o processo ainda não fora remetido para julgamento.
E nem o podia ser porque decorria o prazo legal em que era possível requerer a instrução.
Assim, a competência para o acto é do JIC, em consonância com o prescrito no art.º 17º do CPP: “Compete ao juiz de instrução proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer todas as funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento, nos termos prescritos neste Código”[7].
Neste sentido decidiu já a Relação de Évora[8] que, com propriedade, recorre ao chamado elemento histórico da interpretação para fundamentar a sua decisão, nestes termos:
“Importa ter presente que a locução «até à remessa do processo para julgamento» foi introduzida no texto da disposição legal transcrita pela reforma aprovada pela Lei nº 48/07 de 29/8, sendo que, na redacção anterior, figurava no lugar dela a expressão «relativas ao inquérito».
A introdução da constatada alteração é reveladora de um propósito inequívoco, por parte do legislador histórico da reforma de 2007 da lei processual penal, de fazer dissipar as dúvidas que até então se vinham suscitando sobre se, no limbo processual antes evocado, a competência do Juiz de Instrução se exercia em toda a sua amplitude ou se, pelo contrário, estava restringida, a certos actos inadiáveis, mormente, os que se prendem com a tutela do direito à liberdade.
A vontade do legislador histórico, declarada ou racionalmente presumida, constitui o elemento privilegiado da interpretação das normas de fonte legal, a menos se revele incompatível com normas ou princípios jurídicos superiores.(…)
Ora, parece-nos que o sentido gramatical do texto do art. 17º do CPP não pode deixar de ser entendido de modo a que a remissão constante da parte final se reporte apenas ao conteúdo material das competências do juiz de Instrução, ou dito por outras palavras os actos que têm de ser praticados, ordenados ou autorizados por esta autoridade judiciária e não às fases e aos momentos processuais em que tais competências se exercem, pois esses são delimitados pela norma do referido artigo.
Nesta conformidade, teremos de concluir que, no segmento processual entre o despacho final do inquérito e a abertura da instrução ou a remessa dos autos para julgamento ou para o arquivo, a competência do Juiz de Instrução é exercida na sua plenitude, não se encontrando restringida a certa categoria de actos”.

Assim é, com efeito.

DECISÃO
Termos em que se resolve o presente conflito negativo de competência, considerando competente para a prática de diligência requerida o M.º Juiz de Santa Maria da Feira – Inst. Central – 3ª S. Instrução Criminal – J1.
Cumpra, de imediato, o disposto no n.º 3 do artigo 36.º do Código de Processo Penal.
Sem tributação.

Porto, 18-11-2015
Francisco Marcolino
__________
[1] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado”, 3ª Edição. Reimpressão, vol. II, pg. 330
[2] Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pg. 13
[3] Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, pgs 293 e 294.
[4] O Livro VIII regulamenta os processos especiais e, por isso, não a consideramos como fase processual
[5] Segundo CORREIA, João Conde, Revista do Ministério Público, Ano 20º, p. 60, “a intervenção do Juiz no decurso do inquérito justifica-se por razões de liberdade, de segurança e de respeito pelos direitos fundamentais dos indivíduos, durante a actividade investigatória, mas também porque as funções materialmente judiciais competem apenas aos juízes, por força da própria Constituição (art.º 202º, n.º 2)”.
[6] Curso de Processo Penal, Editorial Verbo, 2000, pg. 203
[7] Realce nosso
[8] Acórdão de 9/10/2012, tirado no processo 17/12.2JAPTM-A.E1, in www.dgsi.pt