Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2060/14.8YYPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
MASSA INSOLVENTE
BENS PRÓPRIOS
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
Nº do Documento: RP201605192060/14.8YYPRT.P1
Data do Acordão: 05/19/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 60, FLS.245-250)
Área Temática: .
Sumário: I - Por efeito da declaração de insolvência, o insolvente é privado da posse material e dos poderes de administração e de disposição, quer em relação aos bens possuídos à data da declaração de insolvência, quer dos bens e rendimentos que futuramente obtenha.
II - Tal privação não abrange, todavia, os bens excluídos da massa insolvência, pelo que o insolvente não está impedido da prática de actos de carácter patrimonial, apenas lhe sendo vedada essa prática se os actos se reflectirem sobre a massa insolvente.
III - Resultando dívidas dos actos do insolvente, cuja prática, nos termos referidos, não lhe está vedada, por elas respondem exclusivamente os bens próprios, que não integrem a massa insolvente.
IV - De acordo com o artigo 88º do CIRE, a declaração de insolvência apenas determina a suspensão – não a impossibilidade, nem a inutilidade, pelo menos de forma definitiva, da lide - das execuções pendentes que afectem os bens da massa insolvente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 2060/14.8YYPRT.P1
Comarca do Porto
Porto – Inst. Central – 1ª Secção Execução – J4

Relatora: Judite Pires
1º Adjunto: Des. Aristides de Almeida
2º Adjunto: Des. Teles de Menezes

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO.
A. A 9 de Junho de 2014 B… apresentou requerimento executivo contra C… e D…, pretendendo deles obter o pagamento coercivo da quantia global de 200.241,10€ (capital e juros vencidos).
Alega, para tanto, que “é dono e legítimo portador de letra, emitida a seu favor pelo executado marido e avalizada pela executada mulher, no valor de 200.000,00€, a qual titula dívida de ambos para com aquele, tendo sido emitida com vista a pagar a mesma.
Solicitado o seu pagamento na data do vencimento, a mesma não foi liquidada por um ou por outro, pelo que se vê o exequente forçado a intentar a presente execução como forma de efectivar o seu direito.
Sobre o capital em dívida, recaem juros de mora, desde 30/05/2014, à taxa de juro legalmente prevista para as dívidas tituladas por letras, até efectivo e integral pagamento”.
A 2 de Fevereiro de 2016 foi proferida a seguinte decisão: “Como resulta da informação prestada a fls. 39 e da certidão da sentença de insolvência, os executados foram declarados insolventes em 16 de Novembro de 2007 por sentença transitada em julgado, proferida no Processo de Insolvência que correr termos actualmente na Instância local - secção cível - J1 da Comarca do Porto, sob o n.º 1505/07.8TJPRT, a qual se encontra ainda pendente.
Verifica-se, pois, que à data em que o exequente instaurou a execução demandando os aqui executados os mesmos tinham já sido anteriormente declarados insolventes, estando o processo ainda pendente.
A declaração de insolvência, nos termos do art. 88.º, n.º 1, do CIRE, obsta à instauração da execução.
Não há aqui impossibilidade superveniente da lide – esta pressupõe que a insolvência seja posterior à instauração da execução (por isso é que é superveniente).
A acção executiva em causa não podia assim ser instaurada, já que à data em que o foi os executados haviam sido declarados insolventes, sentença essa que foi objecto de publicidade nos termos do art. 37.º, n.º 6, do CIRE.
A decisão em causa podia assim ser conhecida e, por conseguinte, o exequente promoveu um procedimento judicial que não estava autorizado a desenvolver, do que podia ter conhecimento, atenta a publicidade da sentença.
A instauração da execução não é, assim, legalmente admissível, atento o disposto no 88.º, n.º 1, do CIRE, o que constitui excepção dilatória de conhecimento oficioso que obsta ao prosseguimento da execução art. 576.º do Cód. Proc. Civil e determina, nos termos do art. 726.º, n.º 2, al. b), e art. 734.º, n.º 1, ambos do Cód. Proc. Civil, a rejeição liminar do requerimento executivo.
Pelo exposto, ao abrigo das citadas disposições legais, rejeito a execução.
Registe e notifique (sendo o exequente ainda com cópia de fls. 40 a 44), incluindo o Sr. Administrador de Insolvência nomeado no processo de insolvência e o Ilustre Advogado mandatado a fls. 32 verso - em requerimento dirigido ao Sr. AE)”.
2. Insurgindo-se contra o decidido, interpôs o exequente recurso de apelação para esta Relação, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:
“1ª O crédito exequendo nos presentes autos, constituído em Maio de 2014, não é subsumível na noção de crédito sobre a insolvência, uma vez que, tendo esta sido declarada em Novembro de 2007, uma vez que o fundamento da execução é posterior à declaração da insolvência dos executados.
2ª O exequente não detém a qualidade de credor da insolvência, nem tal condição está demonstrada nos autos, pelo que não se aplica o disposto no n.º 1 do artigo 88.º do CIRE.
3ª Face ao disposto no artº 8 a) do artº 81 CIRE, pela dívida exequenda nos presentes autos, contraída após a declaração de insolvência não respondem os bens integrantes da massa insolvente.
4ª O exequente não tem a qualidade de credor da insolvência, nem a dívida exequenda tem a natureza de dívida da insolvência, nem tão- pouco a execução atinge bens integrantes da massa insolvente.
5ª Não violando a instauração e prosseguimento da presente execução o artº 88-1 CIRE, não se verificam os pressupostos da exceção dilatória inominada considerada na decisão recorrida.
6ª A penhora que se pretende é a do saldo credor que eventualmente venha a existir, após o encerramento do processo e após a satisfação de todos os credores da insolvência.
7ª Foram violados os seguintes dispositivos legais: artigos artº 47 CIRE, artº 88-1 CIRE, nº 8 a) do artº 81 CIRE, 576 -2, 571-2, 726-2 b), 734, todos do CPC.
Termos em que,
Com o douto suprimento que se invoca, deverá ser admitido o presente recurso, revogando-se a douta Sentença recorrida, com as legais consequências, designadamente o prosseguimento dos termos da execução, assim se fazendo JUSTIÇA”.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO.
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar da admissibilidade legal de execução instaurada contra executados que foram declarados insolventes por sentença prévia, transitada em julgado, achando-se pendente o processo de insolvência.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
Além do narrado no relatório introdutório, mostra-se ainda documentalmente comprovado:
- C… e D… foram declarados insolventes por sentença de 16 de Novembro de 2007, transitada em julgado, proferida no Processo de Insolvência que corre termos actualmente pela Instância Local - Secção Cível - J1, da Comarca do Porto, sob o n.º 1505/07.8TJPRT.
- Da letra junta com o requerimento executivo consta como local e data de emissão “Porto 2014.05.06”, como vencimento “2014.05.30”, como valor “200.000,00 €”, como assinatura do sacador “B…”, no lugar reservado ao aceite consta a assinatura de “C…”, tendo no verso uma rubrica sob a expressão “por avale à aceitante”.

IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
Tendo o exequente B… instaurado, a 9 de Junho de 2014, execução contra C… e D…, apresentando como título executivo uma letra do aceite e aval dos executados, com vencimento a 30.05.2014, tal execução viria a ser rejeitada, por decisão de 02.02.2016, com fundamento no facto de a execução não ser legalmente admissível, por o artigo 88º, n.º 1 do CIRE obstar à sua instauração, dado que os executados foram declarados insolventes por anterior sentença, transitada em julgado, achando-se pendente ainda o processo de insolvência.
Dispõe o artigo 88º, nº 1, do CIRE - Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas- que “a declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência; porém, se houver outros executados, a execução prossegue contra estes”.
A solução nele acolhida difere da que o CPEREF - Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência- consagrava, prevendo o artigo 154º deste último diploma apenas que, após a declaração da falência, a impossibilidade de prosseguimento ou de instauração das acções executivas. A suspensão do processo era consequente do despacho de prosseguimento da acção, como preceituado no seu artigo 29º.
Como se anota no ponto 2. do Preâmbulo ao Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março, que instituiu o CIRE, a reforma nele empreendida “não se limita à colmatação pontual das deficiências da legislação em vigor, antes assenta no que se julga ser uma mais correcta perspectivação e delineação das finalidades e da estrutura do processo, a que preside uma filosofia autónoma e distinta”, sendo que “o objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores” – ponto 3.
Como faz notar o mesmo Preâmbulo – ponto 5 -, “os sistemas jurídicos congéneres do nosso têm vindo a unificar os diferentes procedimentos que aí também existiam num único processo de insolvência, com uma tramitação supletiva baseada na liquidação do património do devedor e a atribuição aos credores da possibilidade de aprovarem um plano que se afaste deste regime, quer provendo à realização da liquidação em moldes distintos, quer reestruturando a empresa, mantendo-a ou não na titularidade do devedor insolvente”, destacando que “o novo Código acolhe esta estrutura, como logo resulta do seu artigo 1.º e, por outro lado, do artigo 192.º, que define a função do plano de insolvência”, [...] “fugindo da errónea ideia afirmada na actual lei, quanto à suposta prevalência da via da recuperação da empresa, o modelo adoptado pelo novo Código explicita, assim, desde o seu início, que é sempre a vontade dos credores a que comanda todo o processo” – ponto 6.
Ressalta ainda que “o conteúdo do plano de insolvência é livremente fixado pelos credores” - ponto 9 - e que “a afirmação da supremacia dos credores no processo de insolvência é acompanhada da intensificação da desjudicialização do processo”, sendo que “ao juiz cabe apenas declarar ou não a insolvência” - ponto 10 -.
Da enunciação destes princípios, duas consequências se extraem:
- a declaração de insolvência, cujos pressupostos e processado encontram a sua disciplina nos artigos 27º a 35º do CIRE, revela-se hoje com acto mais sumário e de consequências menos determinantes do que a anterior declaração de recuperação ou de falência.
- aos credores foi concedida uma maior amplitude nas soluções a encontrar para satisfação dos seus direitos, podendo as mesmas contemplar a manutenção da faculdade de prosseguirem as execuções de créditos sobre o insolvente.
Como se retira do acórdão da Relação de Coimbra de 3.11.2009[1], “poderão os credores decidir o modo de satisfação dos seus créditos, através do plano da insolvência, que poderá ou não contemplar a recuperação da empresa insolvente e as respectivas condições, que poderão passar ou não pela faculdade de os credores executarem créditos após o cumprimento do plano (artigo 1º, 156 nº3 e 192º e seguintes do CIRE).
Poderá o plano de insolvência prever a não exoneração do devedor da totalidade das dívidas da insolvência remanescentes (artigo 197º c) do CIRE), podendo, após o cumprimento do plano de insolvência, ser executadas as dívidas em que não se verificou a exoneração (artigo 233 nº1 c) e d) do CIRE).
Também poderá acontecer que, já depois da declaração de insolvência, o processo seja encerrado nos termos do artigo 230º nº1 c) do CIRE, a pedido do devedor, quando deixe de se encontrar em situação de insolvência ou todos os credores prestem o seu consentimento.
Por outro lado, verificando-se a liquidação da massa insolvente, o seu encerramento não é prejudicado pela circunstância de a actividade do devedor gerar rendimentos que acresceriam à massa (artigo 182º do CIRE), património este que poderá oportunamente ser alvo de execução pelos credores cujos créditos não foram satisfeitos na insolvência e em relação aos quais não houve exoneração”.
De acordo com o artigo 88º do CIRE, a declaração de insolvência apenas determina a suspensão – não a impossibilidade, nem a inutilidade, pelo menos de forma definitiva, da lide - das execuções pendentes que afectem os bens da massa insolvente.
Como flui do quadro circunstancial descrito nos autos, o exequente veio instaurar contra os executados acção executiva em momento posterior à declaração de insolvência dos mesmos – por sentença transitada em julgado, achando-se pendente o respectivo processo de insolvência -, visando a satisfação de crédito sobre os mesmos, constituído após proferida sentença que decretou a insolvência.
Como vimos, a execução foi instaurada depois de proferida sentença declaratória de insolvência – muitos anos depois -, destinando-se à cobrança de dívida alegadamente constituída/garantida pelos insolventes muitos anos decorridos sobre a sentença que os declarou insolventes, sendo eles os executados na referida acção executiva.
Da declaração de insolvência resultam diversos efeitos, os quais se reflectem quer na situação jurídica do insolvente, e que se traduzem em várias limitações à sua capacidade, quer no seu património.
Assim, como resulta dos nºs 1 e 2 do artigo 81º CIRE, por efeito da declaração de insolvência, fica o insolvente imediatamente privado, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência. Ao devedor fica interdita a cessão de rendimentos ou a alienação de bens futuros susceptíveis de penhora, qualquer que seja a sua natureza, mesmo tratando-se de rendimentos que obtenha ou de bens que adquira posteriormente ao encerramento do processo, prevendo o nº 6 do mesmo normativo que são ineficazes os actos realizados pelo insolvente em violação dessas regras, respondendo a massa insolvente pela restituição do que lhe tiver sido prestado apenas segundo as regras do enriquecimento sem causa, salvo se esses actos, cumulativamente, forem celebrados a título oneroso com terceiros de boa fé anteriormente ao registo da sentença da declaração de insolvência e não forem de algum dos tipos referidos no n.º 1 do artigo 121.º, sempre havendo que notar que “as limitações impostas ao agir jurídico do insolvente, não têm, porém, o carácter absoluto de que revestiam no CPEREF, que só em casos muito particulares (nº 2 do seu art.º 148º) admitia o afastamento da sua inibição para o exercício do comércio ou de qualquer cargo de titular de cargos de certas pessoas colectivas”[2].
Segundo os mesmos autores[3], “o efeito primordial da declaração de insolvência, quanto ao devedor, é de natureza patrimonial e reflecte-se nos seus poderes de actuação nesse domínio da sua esfera jurídica.
Na verdade, por força do nº 1 da norma em anotação [artigo 81º], quanto aos bens compreendidos na massa insolvente, tal como a define o art.º 46º, o devedor fica privado dos poderes de administração e de disposição. No sentido de a tornar plenamente eficaz, esta limitação respeita tanto ao devedor como aos seus administradores, no sentido do art.º 6º.
A contrario sensu, quanto aos bens patrimoniais não incluídos na massa insolvente, o devedor mantém os seus poderes de administração e de disposição.
Esta afirmação tem, porém, que ser testada por referência ao disposto no n.º 2, que interdita ao devedor certos actos relativos a bens futuros susceptíveis de penhora, mesmo se obtidos ou adquiridos após o encerramento do processo”.
Deste modo, por efeito da declaração de insolvência, o insolvente é privado da posse material e dos poderes de administração e de disposição, quer em relação aos bens possuídos à data da declaração de insolvência, quer dos bens e rendimentos que futuramente obtenha, conforme ressalta do artigo 46º do CIRE[4].
Tal privação não abrange os bens excluídos da massa insolvente, em relação aos quais o insolvente conserva poderes de administração e de disposição. Significa tal que o insolvente, pessoa singular, não está impedido da prática de actos de carácter patrimonial, apenas lhe sendo vedada essa prática se os actos se reflectirem sobre a massa insolvente. Como se afirma no acórdão da Relação do Porto de 05.02.2013[5], “Em rigor, a massa não abrange a totalidade dos bens do devedor susceptíveis de avaliação pecuniária, mas apenas os que forem penhoráveis e não excluídos por disposição especial, acrescidos dos que, não sendo penhoráveis, sejam voluntariamente oferecidos pelo devedor, conquanto a sua impenhorabilidade não seja absoluta. Igualmente os bens advenientes ao devedor no decurso do processo, seja a que título for, integrarão a massa insolvente se penhoráveis ou se decorrerem da sua oferta voluntária. Claro que se o devedor insolvente apresentar voluntariamente os bens relativamente impenhoráveis, eles passarão a integrar a massa definitivamente e não mais poderão ser desafectados enquanto decorrer o processo [...].
Considerações que facultam a conclusão de que o devedor, não obstante a sua declaração de insolvência, pode administrar e dispor dos seus bens desde que não integrem a massa insolvente, o que equivale a afirmar que o devedor insolvente não sofre quaisquer limitações aos poderes de administração e até de disposição de bens não compreendidos na massa insolvente e que, em princípio, esses actos são válidos e eficazes[...]”.
Resultando dívidas dos actos do insolvente, cuja prática, nos termos referidos, não lhe está vedada, por elas respondem exclusivamente os bens próprios, que não integrem a massa insolvente.
A generalidade dos efeitos da insolvência são instrumentais em relação ao próprio processo de insolvência. Como explica Luís Manuel Teles de Menezes Leitão[6], “a razão de ser do processo de insolvência é a de fazer com que todos os credores do mesmo devedor exerçam os seus direitos no âmbito de um único processo e o façam em condições de igualdade (par conditio creditorum), não tendo nenhum credor quaisquer outros privilégios ou garantias, que não aqueles que sejam reconhecidos pelo Direito da Insolvência, e nos precisos termos em que este os reconhece.
Consequentemente, durante a pendência do processo, os credores apenas poderão exercer os seus direitos no âmbito do processo de insolvência (art. 90.º), deixando [...] de poder instaurar acções independentes ou continuar a prosseguir outros processos à margem do processo de insolvência. Assim se garante a intangibilidade do património do devedor, já que a massa insolvente deixa de poder ser utilizada como garantia geral de outros créditos que não aqueles que sejam exercidos no processo de insolvência”.
A dívida exequenda – resultante do aceite e do aval pelos executados de uma letra que o exequente deu à execução – foi constituída após a declaração de insolvência daqueles, tendo, consequentemente reflexos sobre o poder de actuação dos devedores no domínio das suas esferas patrimoniais, não tendo necessariamente de afectar a massa insolvente.
Accionados os devedores por via do aceite e do aval da letra exequenda, respondem os mesmos, com o seu património, pelo cumprimento da obrigação cambiária, que constitui dívida própria dos executados. Como resulta do artigo 81º, nº 8, a) do CIRE, estando em causa actos praticados pelo insolvente após a declaração de insolvência que não contrariem o disposto no n.º 1, “pelas dívidas do insolvente respondem apenas os seus bens não integrantes na massa insolvente”.
Não tendo os actos praticados pelos insolventes – aceite e aval da letra exequenda após a declaração de insolvência - necessariamente que se reflectir sobre a massa insolvente [de resto, a decisão recorrida nem sequer questiona a eficácia desses actos], respondendo os executados pela dívida [própria] exequenda [exclusivamente] com os seus patrimónios, nenhum obstáculo legal se coloca quanto à admissibilidade da execução nos termos em que foi instaurada, não se configurando a excepção dilatória que ditou a rejeição da execução.
Se a exequente conseguirá ou não obter a satisfação do seu crédito através do património próprio dos executados, sem afectação da massa insolvente, como se exige, é questão que se há-de colocar no decurso da acção executiva, enquanto não ocorrer o encerramento do processo de insolvência[7], mas que não interfere com a admissibilidade da instauração dessa execução.
Mostram-se, assim, fundadas as críticas recursivamente formuladas pelo apelante à decisão aqui sindicada, que, por isso, não é de manter.
*
Síntese conclusiva:
- Por efeito da declaração de insolvência, o insolvente é privado da posse material e dos poderes de administração e de disposição, quer em relação aos bens possuídos à data da declaração de insolvência, quer dos bens e rendimentos que futuramente obtenha.
- Tal privação não abrange, todavia, os bens excluídos da massa insolvência, pelo que o insolvente não está impedido da prática de actos de carácter patrimonial, apenas lhe sendo vedada essa prática se os actos se reflectirem sobre a massa insolvente.
- Resultando dívidas dos actos do insolvente, cuja prática, nos termos referidos, não lhe está vedada, por elas respondem exclusivamente os bens próprios, que não integrem a massa insolvente.
- De acordo com o artigo 88º do CIRE, a declaração de insolvência apenas determina a suspensão – não a impossibilidade, nem a inutilidade, pelo menos de forma definitiva, da lide - das execuções pendentes que afectem os bens da massa insolvente.
*
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando a decisão impugnada, devendo o tribunal recorrido determinar o prosseguimento dos ulteriores termos da acção executiva.
Custas – pelos apelados.

Porto, 19 de Maio de 2016
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
Teles de Menezes
______________
[1] Processo nº 68/08.1 TBVLF-B.C1, www.dgsi.pt.
[2] Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, “Colectânea de Estudos Sobre a Insolvência”, ed. Quid Juris, pág. 183.
[3] “Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, reimpressão, ed. Quid Juris, pág. 339.
[4] Luís Manuel Teles de Menezes de Leitão, “Direito da Insolvência”, 2ª ed., pág. 154.
[5] Processo nº 1433/08.0TBMCN-A.P1, www.dgsi.pt.
[6] “Direito da Insolvência”, 2011, 3ª ed., Almedina, pág. 177.
[7] Sendo que, por regra, com esse encerramento o devedor recupera o poder de disposição sobre os seus bens, nos termos do artigo 233º, n.º 1, a) do CIRE.