Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
15764/17.4T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANTÓNIO ELEUTÉRIO
Descritores: INTERVENÇÃO PRINCIPAL PROVOCADA
Nº do Documento: RP2018092415764/17.4T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 09/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º680, FLS.2-5)
Área Temática: .
Sumário: I - Dispõe o nº 2 do art. 140º do RJCS que o contrato de seguro pode prever o direito de o lesado demandar directamente o segurador, isoladamente ou em conjunto com o segurado.
II - Estipulando o contrato de seguro celebrado que “o terceiro lesado pode demandar directamente o Segurador, em conjunto com o Segurado”, tal significa que existe situação de litisconsórcio voluntário entre o Recorrido e a Seguradora chamada, podendo esta intervir nos autos como parte principal da acção, tendo um interesse directo em contradizer os factos alegados na mesma.
III - Pelo que tem a C…, Companhia de Seguros, SA, um interesse igual ao do réu, aqui recorrente, nos termos do disposto no art. 32º do CPC, o que conformemente com o disposto no art. 140º do RJCS e nos artigos 311º e 316º do CPC permite a intervenção da chamada seguradora a título principal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 15.764/17.4T8PRT-A.P1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto.
*
Foi proferida a seguinte decisão:
(…)
Relativamente ao incidente de intervenção, mostrando-se efetuada a notificação à parte contrária, que nada disse, importa agora decidir o requerido, seguindo a jurisprudência já vigente neste J4 pela meritíssima juíza minha antecessora.
A questão que se coloca é a de saber se o incidente de intervenção principal provocada é o adequado para chamar à ação, como associada do réu, a seguradora para quem foi transferida a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros derivados da atividade profissional de medicina exercida pelo réu, enquanto médico. A referida questão não tem tido um tratamento unívoco nem na jurisprudência, nem na doutrina, sendo frequentemente convocada quando se analisa qual o tipo de incidente suscetível de fazer intervir na ação a seguradora, nas situações para as quais inexiste seguro obrigatório.
A propósito, assinale-se que esta questão é diferente daquela que consiste em saber se um terceiro lesado, estranho a um contrato de seguro facultativo de responsabilidade civil, pode demandar diretamente a seguradora pedindo que esta o indemnize do dano causado pelo segurado e que se encontra incluído no risco coberto pelo seguro.
Ora o RJCS aprovado pelo Decreto - Lei nº 72/2008 tomou posição expressa sobre a intervenção da seguradora em qualquer processo judicial em que se discuta a obrigação de indemnizar cujo risco assumiu (artigo 140º nº1) determinando que a demanda direta da seguradora fica, em princípio, dependente da existência de previsão contratual ou do início de negociações estabelecidas com o lesado, factor que é necessariamente posterior à ocorrência do sinistro que deveria servir para fixar o pressuposto processual da legitimidade passiva.
E, apesar de se concordar com a posição de António Abrantes Geraldes, in “O Novo Regime do Contrato de Seguro Antigas e Novas Questões” no sentido de que, em termos substantivos ou em termos processuais, não foi adotada a melhor opção, ficando por clarificar qual é efetivamente a posição jurídica da seguradora em face da relação material controvertida, resulta da lei que o RJCS admite expressamente a responsabilidade direta da seguradora, quer individualmente, quer em regime de litisconsórcio com o segurado, nos casos em que o contrato o preveja ou em que se tenham iniciado negociações com o lesado, o que nos reconduz à figura da legitimidade a título de parte principal.
Além disso, pode intervir em qualquer processo judicial em que se discuta a obrigação de indemnização, o que nos reconduz à figura do assistente em relação ao segurado ou ao tomador, tendo tal intervenção como objetivo auxiliá-lo na sua defesa, nos termos do art. 335º do CPC, acautelando, por esta via, os interesses decorrentes da transferência do risco.
Mas, considerando que o segurado poderá exercer o direito de regresso se vier a ser reconhecida a sua responsabilidade pelo sinistro, a intervenção da seguradora pode ser alcançada através do incidente de intervenção acessória provocada, nos termos dos arts. 321º e segs. do CPC, permitindo estender-lhe, desde logo, os efeitos do caso julgado que se formar com a eventual sentença condenatória, nos termos previstos no artigo 323º nº 4, do CPC.
A propósito, entende-se que a formulação normativa vertida no RJCS supra referida não colide com a manutenção da solução que já anteriormente era defensável relativamente à outra questão (que consiste em saber se se um terceiro lesado, estranho a um contrato de seguro facultativo de responsabilidade civil, pode demandar diretamente a seguradora pedindo que esta o indemnize do dano causado pelo segurado e que se encontra incluído no risco coberto pelo seguro) através do recurso à figura do contrato a favor de terceiro, designadamente naqueles casos em que, da previsão contratual, a prestação, pela sua própria natureza, só possa ser paga a terceiro beneficiário, como sucede nos casos de responsabilidade civil ou de seguro de vida, com indicação de beneficiário diverso do segurado.
Nos contratos de seguro de responsabilidade civil, o objeto do seguro é a responsabilidade que pode vir a onerar o património do segurado, nos casos em que em virtude da verificação do risco coberto pelo contrato o segurado fica incurso na obrigação de reparar os danos causados a terceiro. Este retira do contrato uma vantagem que sem ele não teria, qual seja a vantagem de pelo ressarcimento dos seus danos responder também o património da seguradora.
A outra questão que se colocava era se a posição jurídica do terceiro lhe confere a faculdade de demandar diretamente a seguradora para obter daquela a indemnização ou se ele apenas pode exigir a indemnização do segurado, cabendo a este a faculdade de posteriormente, em ação de regresso, exigir da seguradora o pagamento da indemnização que haja satisfeito ao terceiro.
Para quem vê no contrato de seguro de responsabilidade civil um contrato a favor de terceiro a resposta àquela interrogação é simples.
O terceiro é o beneficiário da promessa feita pela seguradora e, por isso, como adquiriu o direito à prestação, pode exigir diretamente da seguradora promitente o cumprimento da sua promessa, leia-se o pagamento da indemnização dos seus danos.
A jurisprudência tem seguido maioritariamente esta orientação, defendendo que o contrato de seguro de responsabilidade civil é um contrato a favor de terceiro, podendo o lesado demandar diretamente a seguradora para exigir o ressarcimento do seu dano na medida do consentido pelo objeto do seguro. São disso exemplo os inúmeros acórdãos consultáveis nas bases de dados do ITIJ em que seguradoras são demandadas e condenadas a pagar indemnizações a terceiros estranhos ao contrato, na maioria das vezes sem que esta questão seja sequer suscitada pelas seguradoras e tratada nas decisões.
Na doutrina, pronunciaram-se nesse sentido, entre outros, Leite de Campos, in Contrato a Favor de Terceiro, 2ª edição, Coimbra, 1991, pág. 36, Mota Pinto, in Cessão da Posição Contratual, Coimbra, 1970, pág. 33. Em sentido contrário se pronunciaram F. Albuquerque Matos, in O Contrato de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, in BFDUC, 77 (2001), pág. 394 e seguintes, e J. C. Moitinho de Almeida, in O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, Lisboa, 1971, pág. 291.
E de acordo com este entendimento, atenta a natureza do contrato de seguro de responsabilidade civil como um contrato a favor de terceiro (art. 444º CC), a seguradora obriga-se, também, para com o lesado a satisfazer a indemnização devida.
Feitas estas considerações a propósito da natureza do contrato de seguro, as quais considero pertinentes, e no que concerne à questão essencial decidenda, ou seja, a de saber se o incidente de intervenção principal é o adequado para chamar à lide, como associada do Réu, a seguradora para quem foi transferida a responsabilidade civil pelos danos emergentes para terceiros derivados da atividade profissional de medicina exercida pelo réu, enquanto médico, dir-se-á o seguinte, seguindo de perto a argumentação expendida no Acórdão da Relação do Porto, proferido no processo nº 2499/10.8TVCD-A.P1 em 31-01-2013: A configuração subjetiva inicialmente desenhada pelo autor, partindo do respetivo objeto (pedido de indemnização com fundamento em responsabilidade civil extracontratual por danos), colocou do lado passivo, apenas, a primeira Ré, alegadamente a causadora culposa dos prejuízos invocados e a 2ª Ré.
Devendo embora a instância, por regra, manter-se estável quanto às pessoas, ela pode, excecionalmente, modificar-se pela intervenção de novas partes, nos termos dos artºs 261º e 262º, seja para suprimento da ilegitimidade verificada, seja em substituição imposta pela sucessão na relação substantiva em litígio de alguma das partes (inter vivos ou mortis causa), seja, ainda, por virtude dos incidentes de intervenção de terceiros. É esta a forma aqui suscitada.
A intervenção de terceiros a título principal, ou seja, aquela em que o interveniente faz valer um direito próprio, paralelo ao do autor ou do réu (arts 311º e 312º CPC.), pode ocorrer por iniciativa espontânea daquele que, em relação ao objeto da causa, tiver um interesse igual ao do autor ou do réu, interesse este definido nos termos dos artigos 32º e 33º, ou, ainda, aquele que pudesse coligar-se com o autor, nos termos do artº 36º (desde que não se coloquem os obstáculos previstos no artº 37º) - arts 311º, 312º, 313º, 314ºCPC.
E pode, ainda, ocorrer por chamamento de qualquer das partes, como seu associado ou como associado da parte contrária, consoante a natureza do interesse que lhe confira o direito a intervir, desde que o chamante alegue a causa do chamamento e justifique o interesse que,através dele, pretende acautelar – artº 316º.
A intervenção aqui em apreço foi provocada pelo réu B… e destina-se a fazer intervir a empresa seguradora como sua associada (lado passivo). Deixando agora de parte a hipótese de coligação, atentemos que, estando na origem do chamamento, em regra, as situações previstas nos artºs 32º e 33º, é necessário que uma das previstas nesse âmbito normativo se verifique para a intervenção ser admissível, seja a espontânea ou a provocada.
Tendo por base a legitimidade das partes, possibilita-se que a acção seja proposta por todos os interessados ou contra todos eles, se a relação material controvertida respeitar a várias pessoas; ou, sendo a lei ou o negócio omisso a tal propósito, por um só ou contra um só desses interessados – devendo o tribunal, nesta hipótese, conhecer apenas da respetiva quota-parte do interesse ou da responsabilidade, ainda que o pedido abranja a totalidade (artº 32º.).
Uma vez que a pluralidade ou singularidade é facultativa, a legitimidade fica, em qualquer das opções, assegurada.
No litisconsórcio voluntário, há uma simples acumulação de ações, conservando cada litigante uma posição relativamente independente perante os seus compartes – artº 32º.
Se, para assegurar a legitimidade, a lei ou o negócio exigirem a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, ou, ainda, se for necessária a intervenção de todos para que, em função da própria natureza da relação jurídica, a decisão a obter produza o seu efeito útil normal, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade, e, então, está-se diante de caso de litisconsórcio necessário.- art. 33º CPC. Neste, há uma única ação com pluralidade de sujeitos.
A tal luz, não se vê como, no caso concreto, face aos termos dos contratos de seguro em causa e inexistindo lei que sobre tal disponha expressamente, a situação possa enquadrar-se na previsão do litisconsórcio (ainda que voluntário) de modo a justificar a intervenção da empresa seguradora nos termos e com os efeitos próprios que lhe adviriam da qualidade de parte principal.
É que a relação jurídica fundamental – a relação material controvertida – coloca, de um lado, o sujeito lesado, o ora autor, e, do outro, o sujeito alegadamente lesante, o réu B…. A seguradora só indiretamente surge com ela conexionada por ter assumido, mediante o contrato de seguro, a eventual responsabilidade deste último, garantindo-o a ele e ao seu património, mas não se constituindo como garante direto perante aquele terceiro lesado.
E no caso, a seguradora nenhum direito próprio (ainda que de defesa) tem na relação material litigada perante o autor. Esse direito próprio advém-lhe, sim, da qualidade de seguradora e funda-se no contrato de seguro. Não deriva da qualidade de lesante nem se funda na responsabilidade pelo evento danoso enquanto sujeito dele ou seu substituto e que, nos mesmos termos daquela (paralelos), possa contestar - (artº 314ºnº1, e 319º, nº 3).
Claro que há interesse prático da chamada em que o réu não seja condenado. Todavia, quanto a este, tal decorrerá da não verificação e reconhecimento dos pressupostos da obrigação de indemnizar que fundamentaram a sua demanda. Quanto àquela, a não responsabilização será consequência indireta ou reflexa da não ocorrência do risco que, em face desta, se obrigou a cobrir e de cujas consequências se obrigou a compensá-la. Ali, trata-se da relação direta lesado-lesante; aqui, da relação (interna) seguradora-segurada.
Em consequência do exposto, é manifesto que a alegação feita pelo 1º réu para fundamentar a requerida intervenção principal provocada da seguradora à luz das normas citadas, não se insere em nenhuma destas hipóteses, mas sim no disposto no art.º 321º do Cód. Processo Civil que estatui que "o réu que tenha ação de regresso contra terceiro para ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a perda da demanda pode chamá-lo a intervir como auxiliar na defesa, sempre que o terceiro careça de legitimidade para intervir como parte principal".
A intervenção acessória provocada destina-se a permitir a participação de um terceiro que é responsável pelos danos produzidos no réu demandado pela procedência da ação, isto é, de um terceiro perante o qual este réu possui, na hipótese de procedência da ação, um direito de regresso.
Por outras palavras, tal instituto jurídico visa tornar indiscutíveis certos pressupostos de uma futura e eventual ação de regresso contra o terceiro, nele repercutindo o prejuízo que lhe cause a perda da demanda (cfr. neste sentido M. Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 178; A. Pais de Sousa e Cardona Ferreira, in Processo Civil, pág. 65).
Analisando a contestação verifica-se que, a ser condenado o requerente-réu, este terá direito de regresso contra a seguradora -chamada por força do contrato de seguro aludido. Ora, face à alegação fáctica supra enunciada mostram-se preenchidos os requisitos enunciados no n.º 1 do art. 321º do Cód. Processo Civil, pelo que, ao abrigo dos artigos 6º e 7º do CPC, convolo oficiosamente o requerimento de intervenção principal provocada apresentado pelo 1º réu para incidente de intervenção provocada acessória, mandando, consequentemente, observar a ritologia estabelecida no art. 321º e ss do CPC, e, assim, admito a intervenção acessória provocada da C…, Companhia de Seguros, S.A., para intervir nos autos como auxiliar na defesa do réu C….
Custas pelo requerente.
(…)
O réu apelou da sobredita decisão concluindo, em suma, que:
.............................................................................................
.............................................................................................
.............................................................................................
(…)
*
O incidente de intervenção principal provocada foi deduzido pelo recorrente na contestação (a título subsidiário solicitou a admissão da Seguradora na qualidade de intervenção acessória) invocando para o efeito, além do mais, as condições particulares da apólice de seguro supra referida (art. 69º nº 2 sob a epígrafe acção directa) donde emana que o terceiro lesado pode demandar directamente o segurador, em conjunto com o segurado ora réu (está em causa a responsabilidade civil por acto médico).
No despacho sob recurso enunciaram-se os contornos gerais sobre a questão em apreço (se a intervenção da seguradora deve ser a título principal ou acessória) pelo que não há necessidade de repisar os conceitos aí referidos (o que seria redundante).
Contudo, dissentimos da decisão tomada pelo tribunal a quo.
Conjugada a cláusula contratual acima referida (cláusula 69º nº 2) que prevê a hipótese da demanda conjunta do segurado e do segurador com o preceituado no art. 32º nº 1 do CPC (litisconsórcio voluntário) conclui-se que o recorrente pode deduzir a intervenção principal provocada da seguradora ao abrigo do preceituado no art. 316º nº 3 al. a) do CPC (o chamamento pode ser deduzido por iniciativa do réu quando mostre interesse atendível no mesmo, o que é o caso).
Conclui-se, por isso, que assiste razão ao recorrente quando argumenta que a intervenção deveria ter sido admitida a título principal e não, como foi decidido, a título acessório.
*
Nestes termos, dá-se provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido e determina-se que seja substituído por outro que admita a intervenção principal provocada da C…, Companhia de Seguros, SA, seguindo-se os respectivos trâmites processuais.
Custas pela parte vencida a final.
*
Porto, 24/9/2018
António Eleutério
Isabel São Pedro Soeiro
Maria José Simões