Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2529/21.8T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JERÓNIMO FREITAS
Descritores: FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
INTEGRAÇÃO DE LACUNAS
SÓCIO GERENTE DE SOCIEDADE POR QUOTAS
COEXISTÊNCIA DE CONTRATO DE TRABALHO
CADUCIDADE DO VÍNCULO LABORAL
Nº do Documento: RP202302272529/21.8T8MTS.P1
Data do Acordão: 02/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; CONFIRMADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - Para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito.
II - A integração de lacunas pela aplicação do princípio da analogia reclama a verificação de um pressuposto fundamental, em concreto, a própria existência de lacuna.
III - Não há lugar à aplicação analógica do disposto no artigo 398 do C.S.C. às sociedades por quotas.
IV - Resultando provado que o autor passou de facto, enquanto sócio gerente, a exercer em toda a plenitude funções tipicamente de gerência, tornou-se praticamente incompatível a manutenção, em coexistência, do contrato de trabalho subordinado que até então existia entre si e a Ré, levando à caducidade desse vínculo laboral, por confusão, nos termos do art.º 868.º.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO n.º 2529/21.8T8MTS.P1
SECÇÃO SOCIAL

ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I.RELATÓRIO
I.1 No Tribunal da Comarca do Porto – Juízo do Trabalho de Matosinhos, AA instaurou a presente acção emergente de contrato individual de trabalho, com processo declarativo comum, a qual veio a ser distribuída ao Juiz 1, contra A..., L.da, pedindo que julgada a acção procedente, em consequência seja:
- Reconhecida a existência do contrato de trabalho entre o A. e a Ré., desde 01/02/1988 até á data em que lhe foi comunicado que já não era trabalhador da empresa, ou seja, 8/02/2021;
- Declarada a ilicitude do despedimento promovido pela Ré e, em consequência, ser esta condenada a:
- A Ré condenada a pagar uma indemnização ao A. em substituição da reintegração, calculada em montante nunca inferior a 30 dias de retribuição base, por cada ano completo ou fracção de antiguidade, ou seja, em montante não inferior a € 40.590,00, não podendo, contudo, ser inferior a 3 meses de retribuição base, nos termos do artigo 391º do CT;
- A Ré condenada a pagar ao A. todas as retribuições vencidas e vincendas, desde a data do despedimento, ou seja, 8/02/2021, até ao trânsito em julgado, nos termos do artigo 390º do CT;
- A Ré condenada a pagar ao A. as quantias relativas aos créditos retributivos, vencidos e não pagos, correspondentes às quantias discriminadas no item 103.º desta P.I., no montante total de €6.544,26;
- A Ré condenada a pagar ao A. a quantia de € 2.500,00 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais;
- A Ré condenada a pagar juros de mora sobre todas as quantias peticionadas, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
Alega, em síntese, que foi admitido ao serviço da R. no dia 1 de Fevereiro de 1988, para, sob as suas ordens, direcção e subordinação, desempenhar as funções correspondentes à categoria profissional de empregado de escritório.
No dia 12/12/2003, adquiriu uma quota no capital social da sociedade Ré. Por deliberação da assembleia geral da Ré, tomada nessa mesma data, foi nomeado gerente da sociedade Ré, tendo também sido deliberado que seria remunerado pelo exercício da gerência.
Atenta a incompatibilidade do exercício das funções de gerente com o exercício das funções de trabalhador subordinado no seio da mesma sociedade, não mais prestou as funções de empregado de escritório, tendo-se suspendido o contrato de trabalho.
Manteve as funções de gerente até Setembro de 2019, quando foi vítima de um enfarte do miocárdio. Na sequência daquele evento, em 13/11/2019, comunicou à sociedade a sua renúncia ao exercício da gerência. E, em 20/11/2019, cedeu a totalidade das suas quotas mediante a celebração do devido contrato.
Entende que manteve o estatuto de trabalhador da sociedade R., uma vez que o seu contrato se encontrava suspenso até à data em que renunciou à gerência e cedeu as quotas. Para sustentar a suspensão do contrato de trabalho, invoca aplicar-se o disposto no art.º 398.º, n.º1, do Código das Sociedades Comerciais, relativo às sociedades anónimas, mas que no seu entender é também aplicável analogicamente às sociedades por quotas.
Defende que essa causa suspensiva do vínculo laboral manteve-se até à produção de efeitos da renúncia à gerência, em Novembro de 2019, data a partir da qual o contrato de trabalho retomou a sua normal execução, mas ficando de novo suspenso, agora em consequência da sua incapacidade para o trabalho devido ao enfarte de miocárdio, e nos termos do artigo 296.º n.º1 do CT.
Mais alega que o contrato veio a cessar em 08-02-2021, por despedimento ilícito da Ré, por efeito da comunicação desta dizendo-lhe já não ser seu trabalhador, em resposta a uma sequência de interpelações suas reclamando créditos laborais.
Realizada a audiência de partes, e frustrada que se mostrou a conciliação, foi designada data para a realização da audiência de julgamento e notificada a ré para contestar.
A Ré contestou, contrapondo, no essencial, que a tese construída pelo autor não pode ser acolhida, não tendo ocorrido qualquer suspensão do contrato de trabalho, desde logo, por não ser aplicável o art.º 398.º, n.º 1 do C.S.C. e, por decorrência, não havendo já lugar á aplicação do art.º 294.º do CT.
Alega que em 12 de dezembro de 2003, o Autor, por sua livre vontade e iniciativa, adquiriu quota no capital social da Ré, tendo sido, nessa mesma data, nomeado gerente da sociedade Ré, o que aceitou livremente, bem como a remuneração atribuída a tal título. O contrato de trabalho cessou com o início do vínculo como membro de órgão estatutário, por essa razão, com o pleno conhecimento do A., a Ré comunicou o fim do seu vínculo laboral, como trabalhador por conta de outrem, em 30-11-2003.
Mais alega, que o artigo 398.º do C.S.C., não tem aplicação às sociedades por quotas, como é o caso da Ré. E, também não ocorreu suspensão do contrato nos termos dos artigos 294.º e ss. do C.T., porquanto não se verificou acordo das partes nesse sentido, nem ocorreu nenhum facto não imputável ao trabalhador que assim determinasse.
Não há, pois, despedimento ilícito, nem o Autor tem direito aos alegados créditos laborais que reclama, nem há qualquer fundamento para o pedido de indemnização por danos morais.
Conclui, pedindo a sua absolvição dos pedidos e a condenação do Autor em litigância de má-fé, dado ser manifestamente censurável a conduta com que se apresenta na presente lide.
Foi proferido despacho saneador no qual foi afirmada a validade e regularidade da instância e dispensada a fixação do objecto do litígio e dos temas de prova.
Realizou-se, depois, a audiência de discussão e julgamento.
I.2 Subsequentemente foi proferida sentença, fixando a matéria de facto provada e aplicando o direito aos factos, concluída com o dispositivo seguinte:
-«Em face do exposto julgo a presente ação totalmente improcedente e, em consequência, decido absolver a ré de todos os pedidos contra ela formulados pelo autor.
Custas a cargo do autor.
[..]».
I.3 Inconformado com esta sentença, o autor interpôs recurso de apelação, apresentando alegações finalizadas com as conclusões seguintes:
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Termos em que, e nos melhores de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a sentença recorrida e, em consequência, julgando-se a ação totalmente procedente, por provada, sendo a recorrida condenada nos exatos termos peticionados.
I.4 A Recorrida Ré apresentou contra-alegações, que encerrou com as conclusões seguintes:
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Nestes termos, e nos melhores de Direito aplicáveis, devem as alegações de recurso do Recorrente ser julgadas improcedentes nos termos acima expostos, e, em consequência, deve a decisão recorrida ser mantida nos seus exatos termos.
I.5 O Digno Procurador Geral Adjunto junto desta Relação teve visto nos autos, nos termos do art.º 87.º3, do CPT, tendo-se pronunciado pela improcedência do recurso, no essencial, na consideração do seguinte:
-«[..]
Perante tal factualidade não resulta que o recorrente tenha continuado a prestar idêntico trabalho anteriormente exercido – cfr. Ac. do STJ. de 29-09-1999. Após sua aquisição de quotas, não resulta que o litígio tenha uma efetiva natureza laboral, pelo que nenhuns créditos salariais lhe são devidos – cfr. Ac. do STJ.de 08-07-2020.
É notório que a argumentação da alegação do recorrente não possa subsistir em confronto com a criteriosa fundamentação doutamente expendida na decisão sob recurso.
Como tal, a ilustre julgadora “a quo” estava a habilitada a pronunciar-se sobre o mérito da causa no modo como decidiu.
Improcedem, pois, as conclusões formuladas
[..]».
I.6 Foram cumpridos os vistos legais e determinada a inscrição do processo para julgamento em conferência.
I.7 Delimitação do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento oficioso [artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e artigos 639.º, 640.º, 635.º n.º 4 e 608.º n.º2, do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho], coloca-se para apreciação o seguinte:
i) A arguida nulidade da sentença por falta de fundamentação de facto e de direito, em violação dos artigos 154.º, 607.º, n.º 4 e 615.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código de Processo Civil e, ainda, 205.º, n.º 1 da CRP;
ii) Alegado erro de julgamento na apreciação e decisão sobre a matéria de facto, relativamente aos factos provados A e Z e aos factos não provados indicados na conclusão 6.ª;
iii) Na aplicação do direito aos factos, em razão do Tribunal a quo não ter entendido que o contrato de trabalho esteve suspenso e após a cessação da suspensão veio a cessar por despedimento ilícito.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1 MOTIVAÇÃO DE FACTO
O elenco factual fixado pelo Tribunal a quo é o que segue:
A) O autor foi admitido ao serviço da ré no dia 1 de fevereiro de 1998 para, sob as suas ordens, direção e subordinação, desempenhar as funções correspondentes à categoria profissional de empregado de escritório.
B) Tal admissão foi titulada por contrato de trabalho celebrado entre o autor e a ré a tempo completo mediante a retribuição mensal de 24.970$00 correspondente a € 147.96.
C) O autor adquiriu, no dia 12.12.2003, uma quota no capital da sociedade ré no montante de € 1400,00
D) O autor manteve a prestação normal com a categoria profissional de empregado de escritório até ao referido dia 12.12.2003, momento em que, em assembleia geral e por deliberação ali tomada, foi nomeado gerente da sociedade.
E) Mais foi deliberado na mesma assembleia, para além da nomeação de gerente, que o exercício da gerência pelo autor seria remunerado.
F) O autor passou então a exercer na sociedade ré as funções de gerente com a remuneração mensal no montante de € 813.00 acrescida de subsídio de refeição no valor de € 5,20.
G) O autor não mais prestou as funções de empregado de escritório.
H) O autor permaneceu no exercício das funções de gerente até ao ano de 2019.
I) Em setembro de 2019 autor foi vitima de um enfarte miocárdio.
J) O autor renunciou à gerência por motivos de saúde.
L) Ao autor foi concedida baixa médica por incapacidade temporária para exercer a sua atividade profissional.
M) O autor enviou à ré os certificados de incapacidade temporária.
N) Em 13.11.2019 o autor comunicou à ré a renúncia ao exercício da gerência
O) O autor cedeu a totalidade das suas quotas no valor de € 20.250.00 o que fez por contrato de cessão de quotas celebrado no dia 20.11.2019.
P) O autor interpelou a ré, por carta registada com aviso de receção, em 5/12/2019, entre o mais, para regularização dos créditos laborais vencidos e não pagos, referentes aos duodécimos de subsídio de férias dos anos 2018 e 2019, 11 dias de férias vencidas e não gozadas referentes ao ano de 2018 e duodécimos de subsídio de natal do ano de 2019.
Q) Na ausência de resposta o autor voltou a dirigir à sociedade ré novas interpelações, pelo mesmo meio datadas de 8.1.2020 e 29.5.2020 na qual reiterou o que havia solicitado na comunicação referida em O).
R) Nesta última comunicação solicitou ainda que fosse devolvido o requerimento de prestações compensatórias devidamente preenchido.
S) Em 8.2.2021, após nova interpelação do autor, a ré respondeu ao autor através de carta e na qual refere, designadamente que:

T) Era o autor e os restantes gerentes quem perante os trabalhadores da sociedade davam ordens, instruções e orientações dizendo o que deveria ser feito como, onde e de que forma.
U) Era o Autor quem processava e pagava os salários aos trabalhadores, marcava as suas férias, liquidava impostos e contribuições, quem se deslocava e contactava com as instituições bancárias, repartições e serviços públicos designadamente serviços de finanças, da segurança social, em representação da ré, celebrava acordos de pagamentos
V) O cargo de sócio-gerente e remuneração atribuída a esse título ao autor passaram a constar do recibo de vencimento a partir de dezembro de 2003.
X) Posteriormente foi alterado no recibo a designação da categoria do autor para escriturário (janeiro 2007).
Z) A ré - com o conhecimento do autor – comunicou à segurança social o fim do vínculo laboral deste, como trabalhador por conta de outrem, em 30.11.2003.
AA) E o início do vínculo como membro do órgão estatutário em 28.12.2003 o qual findou em 28.11.2019.
BB) Os duodécimos de férias relativos ao ano de 2018 (outubro, novembro e dezembro) encontram-se pagos.
CC) O subsídio de férias do ano de 2019 foi pago pela ré em duodécimos.
DD) O subsídio de natal relativo aos meses de outubro e novembro de 2019 foi liquidado pela ré em duodécimos.
EE) Em 24 de setembro de 2020 a ré rececionou a notificação do ACT para apresentação de documentos, nomeadamente:
- declaração de remunerações à Segurança Social de outubro de 2019;
- certidão permanente;
-comunicação da cessação do vínculo contratual à Segurança Social;
-renúncia à gerência por parte do autor.
FF) Após análise da documentação remetida e pagamento da quantia em dívida de € 286,90 o ACT promoveu o arquivamento do processo inspetivo.
*
Factos não provados
Não se provaram mais nenhuns factos com relevo para a decisão da causa e que estejam em contradição com os dados como provados, sendo designadamente factos não provados que:
- o autor deixasse de exercer as sua funções de empregado de escritório por incompatibilidade com o exercício das funções de gerente;
- o autor deixasse de receber qualquer contraprestação por força do vínculo laboral que ainda estava em vigor com a sociedade ré que viu a sua execução suspensa em virtude da nomeação para o exercício das funções de gerente;
- o despedimento de que o autor foi alvo provocou-lhe e continua a provocar angústia e perturbação do equilíbrio físico, psíquico resultando ablação da sua qualidade de vida;
- até setembro de 2019 o autor mantinha uma vida profissional intensa que o tornava uma pessoa preenchida e estimulada profissional e emocionalmente;
- mantinha a expetativa de que assim que fosse autorizado a voltar ao trabalho sentir-se preenchido do ponto de vista profissional e pessoal;
- com o despedimento o autor perdesse o ânimo o orgulho e viu-se angustiado, deprimido e envergonhado o que lhe causou sofrimento;
- o autor não tenha gozado os 11 dias de férias relativas ao ano de 2018
- o autor não tenha gozado as férias vencidas referentes ao ano de 2019.
II.2 NULIDADE DA SENTENÇA
Alega o recorrente que a presente decisão está ferida de nulidade por falta de fundamentação de facto e de direito, pois inexiste motivação quanto ao facto provado sob a alínea Z), em violação dos artigos 154.º, 607.º, n.º 4 e 615.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código de Processo Civil e, ainda, 205.º, n.º 1 da CRP.
Contrapõe a recorrida que não lhe assiste razão, pois nem existe absoluta falta de fundamentação, nem a fundamentação aduzida é ambígua ou obscura, sendo certo que: por um lado esclarece a motivação da sentença em crise que “O elenco dos factos acima consignados como provados e não provados é o resultado da análise crítica e ponderação conjunta de todas as provas produzidas nos autos (...)” e, por outro lado, bem sabe o Recorrente qual a prova que sustenta tal facto, atento o que refere nas página 17, último parágrafo das alegações de recurso. Acrescenta, que o facto encontra-se documentalmente provado, cf. resulta do documento junto aos autos pela Ré em 13/01/2022, através de requerimento com a ref. 40987380 e ainda do documento n.º 1 junto à contestação.
Vejamos então.
O artigo 154.º n.º1, do CPC, sob a epígrafe “Dever de fundamentar a decisão”, dispõe no seu n.º1, que “As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”.
Por seu turno, o art.º 607.º do CPC, que rege sobre a elaboração da sentença, impõe ao juiz o dever de “discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final” (n.º3).
Decorrendo depois, do art.º 615.º, no n.º1 al. b), 1, que a sentença é nula quando “não especifique os fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão”.
A propósito do sentido e alcance desta norma, provinda do CPC de 1939 e mantendo o mesmo conteúdo, o Professor Alberto dos Reis, elucidava “Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto” [Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, Reimpressão, 1984, pp. 140].
Esse mesmo entendimento vem sendo acolhido, unânime e pacificamente, pela doutrina e jurisprudência.
Assim, na mesma linha e apoiando-se em Acórdão no Supremo Tribunal de Justiça, de 5-1-1984 [BMJ 333, 398] o Professor Antunes Varela escreve o seguinte:
- “Para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito.
(..)
Para que haja falta de fundamentação, como causa de nulidade da sentença, torna-se necessário que o juiz não concretize os factos que considera provados e coloca na decisão.
Relativamente aos fundamentos de direito, dois pontos importa salientar.
Por um lado, o julgador não tem que analisar todas as questões jurídicas que cada uma das partes invoque em abono das suas posições, embora lhe incumba resolver todas as questões suscitadas pelas partes; a fundamentação da sentença contenta-se com a indicação das razões jurídicas que servem de apoio à solução adoptada pelo julgador.
Por outro lado, não é indispensável, conquanto seja de toda a conveniência, que na sentença se especifiquem as disposições legais que fundamentam a decisão: essencial é que se mencionem os princípios, as regras, as normas em que a sentença se apoia” [Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1985, pp. 667 a 669].
O mesmo autor esclarece, ainda, que a necessidade de fundamentação da sentença assenta em duas ordens de razões. A primeira, tem em vista a persuasão das partes sobre a legalidade da solução encontrada, procurando convencer a parte vencida através da argumentação. A segunda, prende-se directamente com a recorribilidade das decisões: “(..) para que a parte lesada com a decisão que considera injusta a possa impugnar com verdadeiro conhecimento de causa, torna-se de elementar conveniência saber quais os fundamentos de direito em que o julgador se baseou” [Op. cit., ibidem].
Na mesma linha de entendimento pronuncia-se José Lebre de Freitas, escrevendo que “[H]á nulidade quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão, não a constituindo a mera deficiência de fundamentação”, assinalando igualmente que “[A] fundamentação da sentença é, além do mais, indispensável em caso de recurso: na reapreciação da causa, a Relação tem de saber em que se fundou a sentença recorrida” [A Acção Declarativa Comum, À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2013, p. 332].
No caso concreto, o Tribunal a quo fixou a matéria de facto provada e cuidou de deixar expressas na fundamentação, diga-se até, com referência detalhada aos diversos meios de prova, as razões que levaram à formação da sua convicção.
É certo que no respeitante ao facto provado Z, e apenas quanto a esse ponto, não encontramos as mesmas referências precisas aos meios de prova que levaram a considerá-lo provado, apenas ficando coberto pela menção referida pela recorrida, ou seja, onde se lê que “O elenco dos factos acima consignados como provados e não provados é o resultado da análise crítica e ponderação conjunta de todas as provas produzidas nos auto”.
Mas como flui do que se começou por explicar, essa deficiência na indicação mais concreta e precisa sobre a convicção do juiz quanto a esse facto provado, não gera a nulidade da sentença por falta de fundamentação. Parafraseando o Ac. do STJ de 03-03-2021 [Proc.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1, Conselheira Leonor Cruz Rodrigues, disponível em www.dgsi.pt], “Só a absoluta falta de fundamentação – e não a errada, incompleta ou insuficiente fundamentação – integra a previsão da nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil”.
Improcede, pois, a arguida nulidade da sentença.
II.2.1 Retomando a questão relativa à insuficiente fundamentação sobre o facto Z, este tipo de situações podem enquadrar-se é no disposto no art.º 662.º n.º 2 al. d), do CPC, estabelecendo que a Relação deve “Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados”.
Note-se, que esse dever só se impõe caso se mostre necessário, ou seja, quando não se logre perceber quais os meios de prova que determinaram a prova de determinado facto. Com efeito, importa não esquecer que o mesmo artigo, começa por estabelecer que [1]“A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Ou seja, vale isto por dizer, que a Relação pode constatar, designadamente, com o contributo das posições assumidas pelas partes, estarem disponíveis os meios de prova que levaram a 1.ª instância a dar como provado, bem ou mal, determinado facto.
No ponto provado Z, consta o seguinte: A ré - com o conhecimento do autor – comunicou à segurança social o fim do vínculo laboral deste, como trabalhador por conta de outrem, em 30.11.2003.
Ora, como observa a recorrida Ré, atento o que refere nas alegações de recurso, bem como nas conclusões 16.ª a 19.ª, percebe-se que o Recorrente sabe qual a prova que levou o Tribunal a quo a considerar esse facto provado. Basta atentar no que consta naquela última conclusão: “É, por isso, inaceitável que a sentença recorrida estribe o seu entendimento na conclusão de que o documento constante de fls. 224, junto aos presentes autos, que consubstancia um mero “print” do sistema informático da segurança social seja suscetível de fazer prova da cessação da relação laboral que vinculava as partes na data daquela comunicação/alteração do enquadramento”.
Para além disso, como também observa a recorrida, sucede que são dois os documentos que respeitam a esta matéria, dado que para prova do que alegou e foi considerado provado no facto Z, com a contestação juntou uma cópia de consulta on line [Doc. 1], nos serviços da Segurança Social Directa, na área de registos respeitantes aos trabalhadores da Ré, e em concreto o relativo ao autor, onde constam, sob a menção “Período e taxas de carreira contributiva”, duas situações distintas e respectivos períodos, nomeadamente, as seguintes: i) como “trabalhador por conta de outrem”, de 01-01-1992 a 30-11-2003; e, como “Membro de órgão estatutário”, de 18-12-2003 a 28-11-2019.
Questão diferente é a de saber se houve acerto, ou não, em considerar o facto provado, dependendo essa indagação da devida impugnação da decisão sobre a matéria de facto quanto ao ponto. Outra questão também diferente, é a de saber quais os efeitos jurídicos que podem decorrer desse facto, mas que já se colocará a jusante.
No que agora nos ocupa, importa afirmar que não vimos razões que justifiquem fazer uso do disposto no art.º 662.º n.º 2 al. d), do CPC.
II.3 IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
O recorrente impugna a matéria de facto, discordando da decisão proferida pelo Tribunal a quo quanto aos factos provados A e Z, e os não provados que discrimina na conclusão 6.
Como sabido, pretendendo a parte impugnar a decisão sobre a matéria de facto, deve observar os ónus de impugnação indicados no art.º 640.º do CPC, ou seja, é-lhe exigível a especificação obrigatória, sob pena de rejeição, dos pontos mencionados no n.º1 e n.º2, enunciando-os na motivação de recurso, nomeadamente os seguintes:
- Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
- Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
- A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
- Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
A propósito do que se deve exigir nas conclusões de recurso quando está em causa a impugnação da matéria de facto, sendo estas não apenas a súmula dos fundamentos aduzidos nas alegações, mas atendendo sobretudo à sua função definidora do objeto do recurso e balizadora do âmbito do conhecimento do tribunal, é entendimento pacífico que as mesmas devem conter, sob pena de rejeição do recurso, pelo menos uma síntese do que consta nas alegações da qual conste necessariamente a indicação dos concretos pontos de facto cuja alteração se pretende e o sentido e termos dessa alteração [cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça: de 23-02-2010, Proc.º 1718/07.2TVLSB.L1.S1, Conselheiro FONSECA RAMOS; de 04/03/2015, Proc.º 2180/09.0TTLSB.L1.S2, Conselheiro ANTÓNIO LEONES DANTAS; de 19/02/2015, Proc.º 299/05.6TBMGD.P2.S1, Conselheiro TOMÉ GOMES; de 12-05-2016, Proc.º 324/10.9TTALM.L1.S1, Conselheira ANA LUÍSA GERALDES; de 27/10/2016, Proc.º 110/08.6TTGDM.P2.S1, Conselheiro RIBEIRO CARDOSO; e, de 03/11/2016, Proc.º 342/14.8TTLSB.L1.S1, Conselheiro GONÇALVES ROCHA (todos eles disponíveis em www.dgsi.pt)].
Para além disso, exige-se também que o recorrente fundamente “em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa” [cfr. Ac. STJ de 01-10-2015, Proc.º n.º 824/11.3TTLRS.L1.S1, Conselheira Ana Luísa Geraldes, disponível em www.dgsi.pt].
No que respeita ao facto Z), opõe a recorrida que não foi observado o ónus de impugnação, nos termos do artigo 640.º do C.P.C., sendo irrelevante, para este efeito, o que o Recorrente discorreu a propósito deste facto quer no capítulo da nulidade da sentença, quer no capítulo da “errada aplicação do direito”.
Atentos os princípios enunciados, importa, pois, começar por verificar se a impugnação é admissível, designadamente, quanto ao ponto provado Z.
No que concerne às conclusões, decorre das conclusões 6.º, 7.ª e 8.ª, que o recorrente cumpre o que se entende exigível quanto ao facto provado A. e quanto aos factos não provados, delas decorrendo que os impugna e quais as respostas alternativas que pretende sejam dadas. Assim não acontece já quanto ao facto provado Z, apenas se retirando que o recorrente discorda do que consta provado, mas não constando indicada resposta alternativa, desenvolvendo o recorrente várias considerações [conclusões 14.ª e segts], mas sem concretizar o que deveria passar a contar provado.
Por conseguinte, quanto a este ponto provado Z, a falta de cumprimento dessa indicação é quanto basta para determinar a inadmissibilidade da apreciação.
Recorrendo agora às alegações, quanto aos demais factos impugnados verifica-se que há indicação do meio de prova e, no caso dos testemunhos – indicados quanto aos factos não provados -, que é feita a devida referência aos tempos da gravação onde se encontram os extractos invocados e transcritos. Para além disso, existe também a formulação de juízos críticos para evidenciar o alegado erro do tribunal a quo.
Concluímos, pois, que excepto quanto ao ponto provado Z, nada obsta à apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
II.3.1 Passando à apreciação, no que se refere ao facto provado A, alega o recorrente que há um mero lapso - o Tribunal a quo refere que: “o autor foi admitido ao serviço da ré no dia 1 de fevereiro de 1998…” quando pretendia dizer 1 de fevereiro de 1988, como se constata da própria motivação, devendo, por isso, ser corrigido.
A recorrida concorda tratar-se de um mero lapso.
Lê-se no facto em causa: O autor foi admitido ao serviço da ré no dia 1 de fevereiro de 1998 para, sob as suas ordens, direção e subordinação, desempenhar as funções correspondentes à categoria profissional de empregado de escritório.
Na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, quanto a este ponto o Tribunal a quo consignou o seguinte: “A afirmação do facto constante da alínea A) resulta do acordo das partes sendo que quanto à data consideraram-se os documentos emitidos pela Segurança Social de fls. 23 v , 24 e 25 e ss. que permitem aferir a data de inscrição do autor na Segurança Social – no documento de fls. 24 consta o dia 1.2.1988 - como trabalhador da ré e assim fazer coincidir o início da sua admissão com esta data”.
É, pois, inequívoco que o Tribunal a quo mencionou 1998, por mero lapso de escrita quanto a um algarismo.
Assim, altera-se esse ponto, apenas nessa parte, para ficar consignada a data correcta “1988”.
Avançando para os factos não provados, o recorrente coloca em causa os seguintes:
- o autor deixasse de exercer as sua funções de empregado de escritório por incompatibilidade com o exercício das funções de gerente;
- o autor deixasse de receber qualquer contraprestação por força do vínculo laboral que ainda estava em vigor com a sociedade ré que viu a sua execução suspensa em virtude da nomeação para o exercício das funções de gerente;
- o despedimento de que o autor foi alvo provocou-lhe e continua a provocar angústia e perturbação do equilíbrio físico, psíquico resultando ablação da sua qualidade de vida;
- até setembro de 2019 o autor mantinha uma vida profissional intensa que o tornava uma pessoa preenchida e estimulada profissional e emocionalmente;
- mantinha a expetativa de que assim que fosse autorizado a voltar ao trabalho sentir-se preenchido do ponto de vista profissional e pessoal;
- com o despedimento o autor perdesse o ânimo o orgulho e viu-se angustiado, deprimido e envergonhado o que lhe causou sofrimento;
Sobre esta matéria não provada, o Tribunal a quo justificou a sua convicção nos termos seguintes:
No que concerne à matéria de facto considerada não provada, a prova produzida revelou-se claramente insuficiente, considerando, designadamente:
- as testemunhas, BB, CC e DD não tinham conhecimento direto de como era efetuada a gestão da ré – para se poder afirmar da incompatibilidade de facto do cargo de gerente com as funções que o réu desempenhava anteriormente como escriturário – sendo que do depoimento do pai do autor, a testemunha EE resulta claro que não há um relacionamento próximo com o autor e que houve um afastamento da sociedade da qual foi sócio a partir do momento em que o deixou de ser ( 2003). Do depoimento da testemunha FF apesar de se poder concluir que houve uma efetiva alteração das funções desempenhadas pelo autor a quem ficou entregue o pelouro administrativo da gerência também não resulta que estas fossem incompatíveis com as de empregado de escritório. Por outro lado, deste depoimento não resulta que tivesse havido qualquer suspensão do contrato de trabalho do autor;
- dos depoimentos das testemunhas, CC ( esposa do autor) e DD ( filho do autos) assinala-se que a relação de proximidade com o autor comprometeu, em nosso entender, a sua isenção e imparcialidade e, ainda que, dos documentos de fls. 32 e 33 dos autos ( nota da alta e relatórios médicos) resulta já o diagnóstico de que o autor padecia de “ síndrome depressivo/ansioso” o que não permitiu ao Tribunal afirmar que o quadro emocional do autor relatado pelas testemunhas tivesse origem no alegado despedimento ilícito ou fosse por este agravado e em que medida;
[..]».
Quanto ao primeiro dos factos, alega o recorrente “estranhamos como não foi este facto dado como assente e provado pelo Tribunal a quo”, sustentado que conjugando-o, respetivamente, com os factos D, E, F, G, H, T e U, dados como provados, ficou assente que a partir do momento em que o Autor iniciou funções no órgão da gerência, a sua atividade no seio da sociedade Ré sofreu modificações de relevo. O Autor deixou de receber ordens, comandos e instruções, passando a ser ele próprio, em conjunto com os restantes membros do órgão da gerência, a emitir tais ordens, comandos e instruções aos trabalhadores da sociedade, o que reflete a sua função de hétero conformação da atividade desempenhada pelos funcionários da sociedade. Deste quadro factual resulta “uma alteração no âmbito funcional da sua inserção e posição na sociedade, a qual obsta a que o contrato de trabalho que o vinculava à Ré pudesse desempenhar a sua normal execução, na ausência do requisito nevrálgico do contrato de trabalho, i.e, a subordinação jurídica do empregador perante a entidade patronal (sociedade comercial) - cfr. art. 11.º do Código do Trabalho”.
Contrapõe a recorrida que resultou demonstrado que as funções do A. não eram incompatíveis com o exercício das funções de gerente, apenas tendo sido vontade das partes a não cumulação de tais funções com o exercício da gerência, invocando o testemunho de FF, nos extractos que indica.
O Autor procura sustentar a sua posição sugerindo uma aparente contradição entre o facto não provado e os factos provados que inova. Acontece, porém, que o caminho que percorre para chegar à resposta que defende não assenta apenas e exclusivamente na matéria de facto, ou sequer na prova produzida, antes consubstanciando uma clara construção jurídica, para chegar ao resultado que defende seja considerado provado.
Mas se atentarmos com a devida atenção na petição inicial, percebe-se a razão subjacente a esse percurso. Com efeito o autor alegou que “Tendo em consideração a incompatibilidade do exercício das funções de gerente com o exercício das funções de trabalhador subordinado no seio da mesma sociedade, o A. não mais prestou as funções de empregado de escritório“ [art.ºs 9. º a 13.º], defendendo que “[..]o contrato de trabalho suspendeu-se, pelo facto de esse conflito de posições no seio da sociedade se revelar juridicamente incompatível, [E]m consonância com o preceituado no art. 398.º, n.º1, do Código das Sociedades Comerciais” [art.ºs 50.º e 51.º].
Ou seja, para sustentar a aplicação a suspensão do contrato de trabalho nos termos do art.º 398.º do CT, o autor partiu da consideração de ser incompatível a coexistência da situação de sócio gerente com a de trabalhador subordinado no seio da mesma sociedade, o que consubstancia uma alegação conclusiva de natureza jurídica e não de matéria de facto.
Ora, conforme é entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores, mormente do Supremo Tribunal de Justiça, as conclusões apenas podem extrair-se de factos materiais, concretos e precisos que tenham sido alegados, sobre os quais tenha recaído prova que suporte o sentido dessas alegações, sendo esse juízo conclusivo formulado a jusante, na sentença, onde cabe fazer a apreciação crítica da matéria de facto provada. Dito de outro modo, só os factos materiais são susceptíveis de prova e, como tal, podem considerar-se provados. As conclusões, envolvam elas juízos valorativos ou um juízo jurídico, devem decorrer dos factos provados, não podendo elas mesmas serem objecto de prova [cfr. Acórdão de 23.9.2009, Proc. n.º 238/06.7TTBGR.S1, Bravo Serra; e, mais recentemente, reiterando igual entendimento jurisprudencial: de 19.4.2012, Proc.º 30/08.4TTLSB.L1.S1, Pinto Hespanhol; de 23/05/2012, proc.º 240/10.4TTLMG.P1.S1, Sampaio Gomes; de 29/04/2015, Proc .º 306/12.6TTCVL.C1.S1, Fernandes da Silva; de 14/01/2015, Proc.º 488/11.4TTVFR.P1.S1, Fernandes da Silva; 14/01/2015, Proc.º 497/12.6TTVRL.P1.S1, Pinto Hespanhol; todos disponíveis em http://www.dgsi.pt/jstj].
Segundo elucida Anselmo de Castro “são factos não só os acontecimentos externos, como os internos ou psíquicos, e tanto os factos reais, como os simplesmente hipotéticos”, depois acrescentando que “só, (…), acontecimentos ou factos concretos no sentido indicado podem constituir objecto da especificação e questionário (isto é, matéria de facto assente e factos controvertidos), o que importa não poderem aí figurar nos termos gerais e abstractos com que os descreve a norma legal, porque tanto envolveria já conterem a valoração jurídica própria do juízo de direito ou da aplicação deste” [Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, Coimbra, vol. III, 1982, p. 268/269].
Em linha com esse entendimento, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-03-2014, afirma-se que “Só acontecimentos ou factos concretos podem integrar a seleção da matéria de facto relevante para a decisão, sendo, embora, de equiparar aos factos os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum, verificado que esteja um requisito: não integrar o conceito o próprio objeto do processo ou, mais rigorosa e latamente, não constituir a sua verificação, sentido, conteúdo ou limites objeto de disputa das partes” [Proc.º n.º 590/12.5TTLRA.C1.S1, Conselheiro Mário Belo Morgado, disponível em www.dgsi.pt].
No recente Acórdão do STJ de 14 de Julho de 2021, citando-se Helena Cabrita [A Fundamentação de Facto e de Direito da Decisão Cível, Coimbra Editora, Coimbra, 2015, pp. 106-107], afirma-se que “[o]s factos conclusivos são aqueles que encerram um juízo ou conclusão, contendo desde logo em si mesmos a decisão da própria causa ou, visto de outro modo, se tais factos fossem considerados provados ou não provados toda a acção seria resolvida (em termos de procedência ou improcedência) com base nessa única resposta” [Proc.º 19035/17.8T8PRT.P1.S1. Conselheiro Júlio Gomes, disponível em www.dgsi.pt].
Assim, as afirmações de natureza conclusiva devem ser excluídas do elenco factual a considerar, se integrarem o thema decidendum, entendendo-se como tal o conjunto de questões de natureza jurídica que integram o objeto do processo a decidir, no fundo, a componente jurídica que suporta a decisão. Daí que, sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas a decidir, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, tal ponto da matéria de facto deve ser eliminado [Ac. STJ de 28-01-2016, Proc. nº 1715/12.6TTPRT.P1.S1, António Leones Dantas, www.dgsi.pt.].
Significando isto, que quando tal não tenha sido observado pelo tribunal a quo e este se tenha pronunciado sobre afirmações conclusivas, deve tal pronúncia ter-se por não escrita. E, pela mesma ordem de razões, que deve ser desconsiderado um facto controvertido cuja enunciação se revele conclusiva, desde que o mesmo se reconduza ao thema decidendum”, não podendo esquecer-se que o juiz só pode servir-se dos factos alegados pelas partes e que “Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir (..)” [art.º 5.º 1 do CPC].
Na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto o Tribunal a quo refere que “a prova produzida revelou-se claramente insuficiente, […] para se poder afirmar da incompatibilidade de facto do cargo de gerente com as funções que o réu desempenhava anteriormente como escriturário”, a esse propósito referindo o que resultou da prova, máxime, que “Do depoimento da testemunha FF apesar de se poder concluir que houve uma efetiva alteração das funções desempenhadas pelo autor a quem ficou entregue o pelouro administrativo da gerência também não resulta que estas fossem incompatíveis com as de empregado de escritório”.
Mas com o devido respeito, do alegado pelo autor na petição inicial não resulta que tenha alegado factos para sustentar a existência de eventual “incompatibilidade de facto do cargo de gerente com as funções que o réu desempenhava anteriormente como escriturário”, mas antes que essa incompatibilidade se colocava noutro plano, ou seja, a de coexistência da qualidade de sócio gerente com uma situação de subordinação jurídica que caracteriza o contrato de trabalho, caso continuasse a exercer as funções de empregado de escritório/escriturário.
Ora, colocando o autor a questão no plano jurídico, acrescendo que essa é uma das questões controvertidas de direito fulcrais que se coloca na acção, não podia o Tribunal a quo dá-la como provada, ou não provada.
Diga-se, ainda, que ao considerar não provado que “o autor deixasse de exercer as sua funções de empregado de escritório por incompatibilidade com o exercício das funções de gerente”, o Tribunal a quo usou uma formulação conclusiva e equívoca, que tão pouco espelha a “incompatibilidade de facto” a que alude na fundamentação.
Por conseguinte, este ponto não provado deve ser eliminado. Mas pelas mesmas razões, também não poderia considerar-se provado como pretende o recorrente.
Daí que, quanto a este ponto a impugnação apenas proceda parcialmente, na medida em que o Tribunal a quo errou nos termos apontados.
Quanto ao segundo ponto não provado acima transcrito, alega o recorrente que “Também se estranha não ter sido este facto dado como provado”, referindo constarem dos autos todos os recibos de vencimento relativos aos pagamentos das retribuições auferidas por si, deles resultando que a partir do momento em que assumiu as funções de gerente, a sua retribuição passou a ser apenas a devida pelo exercício dessa função na sociedade Ré.
O facto em causa, decorrente de alegação do autor, contém três afirmações distintas: i) uma primeira relativa ao não recebimento de qualquer contraprestação por força do vínculo laboral; uma segunda, afirmando que o contrato “ainda estava em vigor”; e, uma terceira, afirmando que o contrato “viu a sua execução suspensa em virtude da nomeação para o exercício das funções de gerente”.
As segunda e terceiras afirmações consubstanciam conclusões jurídicas, ademais relativas à matéria de direito controvertida e fulcral para a apreciação da causa.
Assim, pelas mesmas razões que acima deixámos enunciadas, o Tribunal a quo nem podia dar como provada aquela alegação no seu todo, em concreto, abrangendo as duas afirmações conclusivas de direito, nem tão pouco a devia ter levado aos factos não provados sem a expurgar das partes conclusivas.
Assim, pretendendo o recorrente que se considere provado toda aquela alegação, por identidade de razões, também tal está vedado a este Tribunal de recurso. Acresce dizer que também não cumpre ao Tribunal de recurso elaborar respostas diversas das que são indicadas pela parte na impugnação.
Por conseguinte, quanto a este ponto improcede a impugnação.
Seguimos para os demais factos não provados impugnados, estribando-se o recorrente nos testemunhos de BB, CC e DD.
Alega que estas testemunhas referiram o seguinte:
i) BB: que o Autor era bastante ativo; que o litígio o abalou até pela forma como ele estava ligado à empresa.
ii) CC: que depois de renunciar à gerência voltaria a ser funcionário apesar de estar de baixa; que sempre enviou as baixas e que uma vez que a baixa terminasse voltava a trabalhar; que o marido tomou consciência por carta ou email em que lhe disseram que já não era funcionário; que depois de ter sido informado que já não pertencia à empresa começou a ficar cada vez mais deprimido; que ele queria manter o vínculo com a empresa como funcionário; após ter sido comunicado que já não pertencia à empresa que teve de aumentar a medicação (para a depressão).
iii) DD: que a partir do momento em que recebeu a carta era literalmente proibido falar de trabalho em caso pois “afetou muito o meu pai”; que o pai ficou muito em baixo, que era a vida dele (a empresa) porque trabalhava lá desde muito novo e que o afetou muito até porque foi surpreendido (porque “não estava a contar”) com a carta; que depois de o pai receber a carta este não o conhecia; soube que o pai recebeu a carta pela mãe; que ainda não está recuperado.
Defende o recorrente o seguinte:
i) estas testemunhas referiram que o despedimento abalou muito o autor, devendo se dado como provado que “o despedimento de que o autor foi alvo provocou-lhe e continua a provocar angústia e perturbação do equilíbrio físico, psíquico resultando ablação da sua qualidade de vida”.
ii) o depoimento da testemunha BB é suficiente para se dar como provado que “até setembro de 2019 o autor mantinha uma vida profissional intensa que o tornava uma pessoa preenchida e estimulada profissional e emocionalmente”.
iii) todas as testemunhas referiram que o Autor não pretendia cessar o vínculo aquando da renúncia à gerência sendo que pretendia voltar a trabalhar na empresa depois de recuperar do problema de saúde (assim que terminasse a baixa), devendo ser dado como provado que “ mantinha a expetativa de que assim que fosse autorizado a voltar ao trabalho sentir-se preenchido do ponto de vista profissional e pessoal”.
Contrapõe a recorrida que “A força probatória dos depoimentos das testemunhas é apreciada livremente pelo tribunal” e esses testemunhos não foram valorados. Ainda que o fossem, deles não resultam factos ou a adequada descrição de quaisquer danos.
Quanto ao facto aqui referido em i), cabe sublinhar que se inicia dizendo “o despedimento de que o autor foi alvo”, nesse pressuposto depois estabelecendo-se um alegado nexo causal relativamente aos alegados efeitos produzidos. Aquela afirmação inicial é conclusiva e respeita ao ponto fulcral em discussão, ou seja, saber se houve um despedimento ilícito. Logo, valendo aqui o que se deixou acima exposto, não pode também essa alegação ser dada como provada, nem cumpre a este Tribunal de recurso elaborar resposta diversa da que o recorrente pretende ver provada com a impugnação.
Ainda que assim não se entendesse, cabe relembrar o que refere o Tribunal a quo na fundamentação, ou seja, que “ dos depoimentos das testemunhas, CC (esposa do autor) e DD (filho do autor) assinala-se que a relação de proximidade com o autor comprometeu, em nosso entender, a sua isenção e imparcialidade e, ainda que, dos documentos de fls. 32 e 33 dos autos (nota da alta e relatórios médicos) resulta já o diagnóstico de que o autor padecia de “síndrome depressivo/ansioso” o que não permitiu ao Tribunal afirmar que o quadro emocional do autor relatado pelas testemunhas tivesse origem no alegado despedimento ilícito ou fosse por este agravado e em que medida”.
Daí decorre, desde logo, que o Tribunal a quo não ficou convencido quanto à isenção destes testemunhos, valoração que fez atendendo aos mesmos na sua globalidade e apreciados numa relação imediata. Mas para além disso, o Tribunal a quo refere também outros meios de prova, explicando que deles, «(nota da alta e relatórios médicos) resulta já o diagnóstico de que o autor padecia de “síndrome depressivo/ansioso” o que não permitiu ao Tribunal afirmar que o quadro emocional do autor relatado pelas testemunhas tivesse origem no alegado despedimento ilícito ou fosse por este agravado e em que medida”.
Neste quadro, com o devido respeito, não pode o recorrente pretende fazer prevalecer a sua própria convicção, para que este Tribunal de recurso a acolha em detrimento da convicção da Senhora Juíza, sustentando-se apenas em extractos pontuais desses testemunhos, tanto mais que há outros meios de prova, diga-se, idóneos, que apontam em sentido contrário, sendo pelo menos para criar a dúvida quanto ao alegado.
Quanto a este ponto improcede, pois, a impugnação.
Passando ao segundo destes pontos, o Recorrente sustenta a sua posição apenas no testemunho de BB, que disse que o A. era bastante activo.
Ora, como refere a Recorrida, dessa afirmação conclusiva não resultam factos para se poder concluir que “até setembro de 2019 o autor mantinha uma vida profissional intensa que o tornava uma pessoa preenchida e estimulada profissional e emocionalmente”. Ser “activo” não é de todo suficiente para dar como provada a realidade afirmada na alegação.
Daí que, necessariamente, também quanto a este ponto improceda a impugnação.
Quanto ao último destes pontos, começamos por assinalar que a testemunha BB nada disse. Restam, pois, os testemunhos de CC (esposa do autor) e DD (filho do autor), que o Tribunal a quo entendeu estarem comprometidos quanto à sua isenção e imparcialidade, atendendo a relação de proximidade com o autor.
Valem aqui as considerações que deixámos acima. Não deve este Tribunal a quo fazer prevalecer a convicção do recorrente quanto à credibilidade desses testemunhos, baseando-se apenas em extractos pontuais dos mesmos, quando o Tribunal a quo entendeu diversamente com base numa apreciação e valoração global, formada com a imediação directa proporcionada pelo julgamento.
Por conseguinte, também quanto a este ponto improcede a impugnação.
II.4 MOTIVAÇÃO DE DIREITO
O recorrente autor insurge-se contra a sentença, defendendo que o tribunal a quo errou na aplicação do direito aos factos, em razão de não ter entendido que o contrato de trabalho esteve suspenso e após a cessação da suspensão veio a cessar por despedimento ilícito.
Na fundamentação da sentença, na vertente da aplicação do direito aos factos, o Tribunal a quo pronunciou-se nos termos seguintes:
-«[..]
No caso em apreço, a questão fulcral que se impõe decidir contende com a alegada suspensão do contrato de trabalho celebrado pelo autor com a ré, determinada pela aquisição de quota da empresa ré e da posição de sócio gerente.
Como é sabido o contrato de trabalho encontra-se previsto e definido no artigo 1152.º do Código Civil (CC), cujo texto foi quase integralmente reproduzido no artigo 11.º do Código de Trabalho (CT), nos seguintes termos: Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas.
São, pois, elementos do contrato de trabalho a subordinação económica, que se concretiza pelo pagamento do trabalho, e a subordinação jurídica, que se manifesta pelo poder que a entidade empregadora tem de dar ordens e instruções para a execução do trabalho, as quais são vinculativas para o trabalhador. A subordinação jurídica, com a qual está relacionado o poder disciplinar, constitui o elemento fulcral do contrato de trabalho, o que o distingue dos contratos afins, designadamente o de prestação de serviços e o de mandato.
Se relativamente ao sócio não gerente de uma sociedade por quotas não se suscitam dúvidas quanto à possibilidade da existência de um vínculo laboral entre um e outra, apresentando-se aquele como trabalhador desta, já no que se refere ao sócio-gerente existe divergência entre o entendimento de haver incompatibilidade da cumulação na mesma pessoa das posições jurídicas emergentes do contrato de trabalho e da qualidade de sócio-gerente e defesa da compatibilidade entre essas posições jurídicas desde que haja uma relação de subordinação entre o sócio-gerente e a sociedade por quotas – cfr., dentre outros, o Ac. do S.T.J. de 29/09/1999, in C.J., Acs. do S.T.J., ano VII, Tomo III-1999, págs. 248-251, cujo texto integral pode ser consultado in www.dgsi.pt – Processo 98S364 (Consº. José Mesquita), com referências jurisprudenciais num e noutro sentido, e perfilha a segunda tese. Perfilharam ainda esta tese, além dos ali mencionados, os Acs. do mesmo Tribunal de 12/06/2003, in Acórdãos Doutrinais, nº. 506, págs. 334 sgs; de 07/07/89, na mesma publicação nº. 335º., págs. 1432 sgs.; e de 30/09/2004, Procº. 03S2053 (Consº. Vitor Mesquita), in www.dgsi.pt; e, ainda os Acs. da Rel. de Lisboa de 13/07/1988, in C.J., ano XIII – 1988, Tomo 4, págs. 150-151, e da Rel. do Porto de 24/01/2005, Procº. 0414989, (Desemb. Machado da Silva), in www.dgsi.pt..
Aceita-se o entendimento de que um sócio-gerente de uma sociedade comercial por quotas possa ser simultaneamente seu trabalhador ficando a compatibilidade entre estas posições jurídicas dependente da prova da existência de uma relação de subordinação jurídica do sócio-gerente, pois o exercício da gerência pode ser de tal modo condicionado (designadamente por um sócio-gerente maioritário) que os poderes que são próprios da entidade patronal não sejam verdadeiramente partilhados.
No caso sub judice resulta incontroverso que o autor foi trabalhador da ré desde 1 de fevereiro de 1998 a 12.12 2003 altura em que adquiriu uma quota da sociedade e foi nomeado gerente.
Não foi demonstrado nos autos qualquer factualidade da qual se pudesse concluir que a aquisição da categoria de sócio-gerente e o exercício efetivo do cargo de sócio gerente resultasse numa incompatibilidade com o exercício das funções de empregado de escritório (escriturário).
Não obstante apurou-se que o autor não mais exerceu as funções de empregado de escritório (alínea D) dos factos assentes) assumindo uma posição de gerente da ré que não era meramente formal.
Entende o autor que tendo assumido o cargo de sócio-gerente e deixando de exercer funções de empregado de escritório o seu contrato de trabalho ficou suspenso por força da aplicação analógica do art. 398º do Código das Sociedades Comerciais (CSC).
Estatui o art. 398º do CSC que:
“1 - Durante o período para o qual foram designados, os administradores não podem exercer, na sociedade ou em sociedades que com esta estejam em relação de domínio ou de grupo, quaisquer funções temporárias ou permanentes ao abrigo de contrato de trabalho, subordinado ou autónomo, nem podem celebrar quaisquer desses contratos que visem uma prestação de serviços quando cessarem as funções de administrador.
2 - Quando for designado administrador uma pessoa que, na sociedade ou em sociedades referidas no número anterior, exerça qualquer das funções mencionadas no mesmo número, os contratos relativos a tais funções extinguem-se, se tiverem sido celebrados há menos de um ano antes da designação, ou suspendem-se, caso tenham durado mais do que esse ano. (anote-se que foi declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, deste artigo, na parte em que determina a extinção do contrato de trabalho celebrado há menos de um ano, de titular que seja designado administrador da sociedade empregadora, por violação do disposto na alínea d) do art. 55º e na alínea a) do n.º 2 do art. 57º da Constituição da República Portuguesa, cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 774/2019, de 27 de janeiro de 2020)
3 - Na falta de autorização da assembleia geral, os administradores não podem exercer por conta própria ou alheia actividade concorrente da sociedade nem exercer funções em sociedade concorrente ou ser designados por conta ou em representação desta.
4 - A autorização a que se refere o número anterior deve definir o regime de acesso a informação sensível por parte do administrador.
5 - Aplica-se o disposto nos n.os 2, 5 e 6 do artigo 254.º”
A questão que se coloca é então a saber se o art. 398 do CSC previsto especificamente para as sociedades anónimas se aplica às sociedades por quotas, porquanto não existe na lei uma norma semelhante à do art. 398º do CSC para as sociedades por quotas.
Para que possa proceder à aplicação analógica de uma norma impõe-se verificar em primeiro lugar se há uma lacuna na lei e depois afirmar-se que, caso omisso procedem as mesmas razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei, cfr. art. 10º n.º 2 do CC.
Seria, no mínimo muito estranho, que o legislador do Código das Sociedades Comerciais, tendo pensado no problema e definindo a solução a tenha consagrado expressamente no artigo 398 para as sociedades anónimas e não tenha adotado o mesmo regime para as sociedades por quotas se desejasse que lhes fosse aplicável.
Ao defendermos a não aplicação analógica do art. 398º do CSC ponderamos que não existe um proibição legal do cúmulo das funções de gerente com outras funções ao abrigo do contrato de trabalho, numa sociedade por quotas (ao contrário do que sucede nas sociedades anónimas ); a realidade prática das sociedades por quotas, normalmente de pequena dimensão nas quais o sócio-gerente exerce outras funções desenvolvendo a atividade objeto da sociedade; o facto de poder ser afastado o princípio da livre destituição dos gerentes podendo estipular-se no contrato de sociedade o direito especial à gerência, cfr. art. 257 n.º 3 do CSC (no caso em apreço a testemunha FF deu conta de que todos os sócios eram gerentes); possibilidade de subordinação jurídica do trabalhador gerente aos sócios maioritários e, ainda, a possibilidade de a sociedade dar instruções vinculativas ao gerente.
Estes argumentos permitem, assim e em nosso entender, ser de afastar a aplicação analógica do art. 398º do CSC.
Mas poder-se-á afirmar que o contrato de trabalho do autor se suspendeu pela impossibilidade temporária de cumprimento da prestação laboral por facto respeitante ao autor, nos termos dos art.s 294 e ss. do CT, considerando por um lado a sua nomeação de gerente e por outro a sua situação de baixa médica?
Afigura-se-nos que a resposta terá de ser negativa.
O art. 333 n.º 1 do CT (CT 2003) estipulava que “determina a suspensão do contrato de trabalho o impedimento temporário por facto não imputável ao trabalhador que se prolongue por mais de um mês, nomeadamente o serviço militar obrigatório ou serviço cívico substitutivo, doença ou acidente.”
Atualmente o art. 296 n.º 1 do CT refere que “determina a suspensão do contrato de trabalho o impedimento temporário por facto respeitante ao trabalhador que não lhe seja imputável e se prolongue por mais de um mês, nomeadamente doença, acidente ou facto decorrente da aplicação da lei do serviço militar.”
No confronto destes normativos temos por certo que há a exigência de que o impedimento seja prolongado – que a sua duração seja efetiva ou previsivelmente superior a um mês e que não seja imputável ao trabalhador.
Ora tendo o autor até 12.12.2003, data em que assumiu as funções de sócio-gerente da sociedade ré sido trabalhador desta não é de considerar o contrato de trabalho suspenso a partir daquela data, por impedimento, uma vez que por motivo que lhe é imputável assumiu voluntariamente as funções de sócio gerente, pelo que o contrato de trabalho cessou naquela data.
Tendo o contrato de trabalho cessado em 12.12.2003 fica prejudicada a apreciação da sua suspensão ao abrigo da situação de incapacidade temporária para o trabalho com fundamento em doença.
A situação do autor perante a ré, após a sua nomeação como gerente, sofreu, pois, modificações relevantes e descaracterizadoras da sua subordinação jurídica à ré e consequentemente, de que tal nomeação produziu a extinção do vínculo de natureza laboral pré-existente.
Com efeito temos que autor não alegou na petição inicial quaisquer factos com vista à demonstração de que após a sua nomeação como gerente, se manteve sujeito às ordens, diretivas ou instruções da ré, designadamente através de outros dos gerentes, já que a gerência era plural, e por outro lado, está provada matéria de facto que aponta no sentido exatamente contrário.
Por outro lado, a partir da sua nomeação como gerente o autor passou a ser remunerado nessa qualidade, verificando-se um incremento da retribuição do autor por mero efeito da sua nomeação como gerente (vencimento mensal de € 513.00 o autor passou a auferir o vencimento de € 813.00 em dezembro de 2003 mas que em janeiro de 2004 se situou em € 1.013,00 como se apreende dos recibos juntos pelo autor com a p.i..).
A circunstância de a partir de determinada altura deixar de constar nos recibos de vencimento do autor a categoria profissional por si efetivamente exercida na prática e passar a constar a categoria de escriturário em nada afeta o que se vem de dizer, porquanto como explicou o autor em sede de declarações de parte tal alteração teve como finalidade a possibilidade de obter benefícios sociais (designadamente subsídio de desemprego) que era à data negado aos membros dos órgãos estatutários.
Sendo assim, importa julgar procedente a exceção arguida pela ré da extinção do contrato de trabalho em 2203, extinção essa prévia à carta da ré enviada ao autor de 8 de fevereiro de 2022 - que numa redação pouco precisa - refere extinção do vínculo contratual, com liquidação e regularização de créditos laborais, quando na realidade a relação laboral entre as partes findou em dezembro de 2003.
Não sendo possível reconhecer a existência do contrato de trabalho entre o autor e a ré a partir de 12.12.2003, improcedem todos os pedidos formulados pelo autor, na medida em que todos tinham como pressuposto necessário a existência de uma relação laboral, ficando prejudicadas as demais questões suscitadas.».
Discorda o recorrente, alegando, no essencial, o seguinte:
i) Há contradição entre a conclusão e afirmação sustentada pelo Tribunal a quo na parte em que refere que “não foi demonstrado nos autos qualquer factualidade da qual se pudesse concluir que a aquisição da categoria de sócio-gerente e o exercício efetivo do cargo de socio gerente resultasse numa incompatibilidade com o exercício das funções de empregado de escritório (escriturário)”, quando dá por assente que o cargo de gerente era exercido sem qualquer restrição, acabando por reconhecer tal incompatibilidade de coexistência entre a posição de gerente e de trabalhador subordinado.
ii) Dos factos resulta uma alteração no âmbito funcional da sua inserção e posição na sociedade, a qual obsta a que o contrato de trabalho que o vinculava à Ré pudesse desempenhar a sua normal execução, na ausência de subordinação jurídica ocorrendo uma impossibilidade temporária da sua normal execução a partir do início do exercício das funções de gerente, na data de 12/12/2003, mantendo-se tal status quo inalterado durante todo o período posterior de exercício de tais funções, que conduziu à suspensão do vínculo laboral durante o período temporal entre 12-12-2003 a 13-11-2019, por aplicação analógica do art.º 398.º do CSC.
ii) Esta causa suspensiva do vínculo laboral manteve-se até à produção de efeitos da renúncia à gerência pelo A., em novembro de 2019; mas o contrato não retomou a sua normal execução, uma vez que com a ocorrência do enfarte sofrido pelo A. e subsequente situação de baixa médica, passou a coexistir, com a primeira causa de suspensão, uma outra legalmente prevista no art.º 296.º1, do CT, desta feita respeitante ao facto de existir uma incapacidade temporária para a prestação de trabalho em virtude de doença.
iii) O A. continuou a ser trabalhador da Ré mesmo depois de ter renunciado à gerência e cedido as participações sociais que detinha na sociedade, apenas não prestando o seu trabalho em virtude da situação de incapacidade temporária para o efeito.
iv) A R. não podia proceder ao despedimento do A. sem a existência de uma causa justificativa, nem desencadeou o competente procedimento legalmente previsto com vista à efetivação de tal despedimento. A conduta da R. configura, assim, uma situação de despedimento ilícito, nos termos do art. 381.º do CT.
v) A sentença é omissa quanto à forma mediante a qual entende que o contrato de trabalho cessou no dia 12-12-2003.
Contrapõe a recorrida, também no essencial, o seguinte:
- O teor do artigo 398.º do C.S.C. encontra a sua razão de ser nas especificidades das sociedades anónimas. A nomeação de gerente não determina a suspensão do contrato, porquanto não se aplica às sociedades por quotas o artigo 398.º do C.S.C..
- Caso fosse essa a vontade das partes, poderia o Recorrente ser nomeado gerente – e possuir a qualidade de sócio – mantendo as suas funções de trabalhador, na medida em que a gerência era plural e sempre poderia receber ordens e instruções dos outros dois gerentes [FF e GG], obrigando-se a sociedade com a intervenção conjunta de dois gerentes, cf. documento n.º 2 junto à contestação (escritura pública), pelo que a sua nomeação como gerente não era incompatível com a sua posição de trabalhador.
- Mesmo que se entendesse que não era essa a vontade das partes sempre teria cessado o contrato de trabalho com a aquisição das quotas.
II.4.1 Como já deixámos referido na apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, na petição inicial o autor alegou que “Tendo em consideração a incompatibilidade do exercício das funções de gerente com o exercício das funções de trabalhador subordinado no seio da mesma sociedade, o A. não mais prestou as funções de empregado de escritório“ [art.ºs 9. º a 13.º], defendendo que “[..]o contrato de trabalho suspendeu-se, pelo facto de esse conflito de posições no seio da sociedade se revelar juridicamente incompatível, [E]m consonância com o preceituado no art. 398.º, n.º1, do Código das Sociedades Comerciais” [art.ºs 50.º e 51.º].
É, no essencial, essa a posição que veio reiterar no recurso, defendendo que desde 12-12-2003, data em que adquiriu uma quota na sociedade Ré e foi nomeado gerente por deliberação da assembleia geral, até à renúncia dessas funções de gerência por motivos de saúde, em 13-11-2019, o contrato de trabalho esteve suspenso por aplicação analógica do art.º 398.º n.ºs 1 e 2, do CSC.
O artigo 398.º do CSC, com a epígrafe “Exercício de outras actividades, na parte que aqui releva, estabelece o seguinte:
1 - Durante o período para o qual foram designados, os administradores não podem exercer, na sociedade ou em sociedades que com esta estejam em relação de domínio ou de grupo, quaisquer funções temporárias ou permanentes ao abrigo de contrato de trabalho, subordinado ou autónomo, nem podem celebrar quaisquer desses contratos que visem uma prestação de serviços quando cessarem as funções de administrador.
2 - Quando for designado administrador uma pessoa que, na sociedade ou em sociedades referidas no número anterior, exerça qualquer das funções mencionadas no mesmo número, os contratos relativos a tais funções extinguem-se, se tiverem sido celebrados há menos de um ano antes da designação, ou suspendem-se, caso tenham durado mais do que esse ano.
Embora sem relevo para o caso, como referiu o Tribunal a quo, é de referir que o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 774/2019, de 27-01, declarou “a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 2 do artigo 398.º do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de setembro, na parte em que determina a extinção do contrato de trabalho, celebrado há menos de um ano, de titular que seja designado administrador da sociedade empregadora, por violação do disposto na alínea d) do artigo 55.º e na alínea a) do n.º 2 do artigo 57.º da Constituição, na redação vigente a data em que a norma foi editada (Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de setembro)”.
Retomando o ponto, e servindo-nos precisamente da síntese feita nesse aresto, como ai se observa, é debatida a aplicação analógica deste normativo “a outros tipos sociais - máxime a gerentes de sociedades por quotas. Alguns Autores sufragam dever ser mobilizada no contexto das sociedades por quotas (Paulo de Tarso Domingues, cit., p, 22); outros propõem a sua extensão analógica apenas quanto ao segmento normativo em que se estabelece a suspensão contratual (Ilídio Duarte Rodrigues, cit., p. 314); outra corrente apela a uma ponderação do caso concreto (Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Governo das Sociedades, Almedina, Coimbra, 2017, p. 201; Maria do Rosário Palma Ramalho, Grupos..., cit., p. 521; Luís Brito Correia, "Admissibilidade de remuneração variável de um gerente de sociedade por quotas", Direito das Sociedades em Revista, Ano 1, vol. 2, 2009, p. 14; Acórdão do STJ de 29.09.1999, Acórdãos Doutrinais do STA, n.º 461, p. 762); enquanto que certa doutrina recusa a bondade daquela extensão aplicativa (Luís Miguel Monteiro, "Regime...", cit., p. 512; Alexandra Marques Sequeira, cit., p. 155; António José Sarmento Oliveira, cit., p. 205)”.
O acórdão do STJ de 29-09-1999 [Proc.º 98S364, Conselheiro José Mesquita, disponível em www.dgsi.pt] – invocado na fundamentação da sentença recorrida – pronunciando-se sobre a questão da aplicabilidade, ou não, do art.º 398.º do CSC, aos gerentes das sociedades por quotas, veio a concluir, conforme sintetizado no respectivo sumário o seguinte:
I- Os sócios gerentes, constituindo os órgãos directivos e representativos da sociedade, participam na formação da vontade social, agindo no âmbito de um contrato de mandato (ou de administração) e não de um contrato de trabalho subordinado.
II- Nas sociedades por quotas - ao invés do que sucede nas sociedades anónimas face ao artigo 398 do CSC - as realidades práticas podem reclamar a admissibilidade da acumulação das funções de sócio-gerente e de trabalhador subordinado.
III- No confronto da situação "sócio-gerente/trabalhador" (pelo menos nos casos de sociedades por quotas) são particularmente relevantes os aspectos respeitantes:
1. à anterioridade ou não do contrato de trabalho face à aquisição da qualidade de sócio gerente;
2. à retribuição auferida, procurando surpreender alterações significativas ou dualidade de retribuições;
3. à natureza das funções concretamente exercidas, antes e depois da ascensão à gerência, designadamente em vista a apurar se existe exercício de funções tipicamente de gerência e se há nítida separação de actividade;
4. à composição da gerência, designadamente ao número de sócios gerente e às respectivas quotas;
5. à existência de sócios maioritários com autoridade e domínio sobre os restantes;
6. à dependência, hierárquica e funcional, dos sócios-gerentes que desempenhem tarefas não tipicamente de gerência, relativamente a outras actividade.
O entendimento afirmado neste aresto, tem sido acolhido e reafirmado maioritariamente na jurisprudência dos Tribunais superiores, crendo-se poder até afirmar-se ser unânime no STJ, justificando-se, por isso mesmo, que se deixe aqui transcrito o essencial da fundamentação que o sustenta:
-«[..]
2. - Diz-se - e bem - que os sócios gerentes, constituindo os órgãos directivos e representativos da sociedade participam na formação da vontade social, agindo no âmbito de um contrato de mandato (ou de administração) e não de um contrato de trabalho subordinado.
Este, como já se adiantou, pressupõe a existência de uma situação de dependência (jurídica e económica), resultando impossível de compatibilizar na mesma pessoa as duas qualidades.
Como é possível - dir-se-á - que a mesma pessoa funcione, a um tempo, como fonte de poder e seu destinatário, subordinado de si mesmo, em suma, empregador e empregado?
Todavia, a questão não pode ser resolvida de modo tão simplista - como escreve LUÍS BRITO CORREIA, em "Os administradores de sociedades anónimas", 1993, página 575, acrescentando:
- "Em primeiro lugar, o facto de o administrador representar a sociedade não significa que a sua pessoa se confunda juridicamente com a da sociedade: são pessoas distintas a sociedade e o administrador, podendo aquela ser representada também por outros administradores, ou pela vontade colectiva de vários administradores, em cuja formação o administrador - trabalhador pode não ter um voto decisivo ou até não votar de todo.
E, por outro lado, a lei admite, em certas condições, o negócio consigo mesmo (C.C. artigo 261/II).
De resto, como acentua o mesmo Autor, há interesses atendíveis e razoáveis, quer da sociedade, quer do trabalhador, na cumulação das duas qualidades.
A sociedade, pode ter interesse em aproveitar melhor as aptidões do seu trabalhador, promovendo-o a administrador, sem lhe provocar a perda dos benefícios resultantes da legislação do trabalho ou confiar a um administrador também funções técnicas especiais distintas das funções de administração, em posição de subordinação ao Conselho de Administração.
O trabalhador, solicitado a exercer funções de administração, hesitará se isso implicar a perda das vantagens do estatuto de trabalhador subordinado, designadamente advenientes da sua antiguidade e da protecção contra a destituição sem justa causa.
Além de que - como entre nós acontece com a Lei n. 46/79, de 12 de Setembro - pode aos trabalhadores ser reconhecido o direito de elegerem representantes seus para os Órgãos Sociais da empresa, conservando a sua qualidade de trabalhadores - cfr. o artigo 30 daquela Lei 46/79.
3. - Antes do Código das Sociedades Comerciais - (Decreto-Lei n. 262/86, de 2 de Setembro) - não havia disposição legal expressa sobre o problema, encontrando-se muito dividida a doutrina e a jurisprudência neste ponto.
Assim:
- RAUL VENTURA sustentava "a impossibilidade de um indivíduo funcionar simultaneamente como administrador e trabalhador..." - ut. "Teoria da Relação Jurídica de Trabalho", 1944, volume I, página 299 - adiantando-se que outra é a posição agora exposta a páginas 35 e seguintes do volume III do seu "Comentário ao Código das Sociedade Comerciais" - Sociedades por Quotas -.
- INOCÊNCIO GALVÃO TELES, entendia porém que "... em relação a um administrador pode acontecer e acontece por vezes achar-se investido em funções especiais de natureza executiva, como a de director de serviço, que exerce subordinadamente ao Concelho de Administração, com uma remuneração própria, distinta da do administrador, caso em que está também vinculado por contrato de trabalho. Dá-se então como que um desdobramento de papéis: o de administrador, que concorre para a formação do órgão da sociedade, inserindo-se na estrutura desta, e o de prestador de trabalho subordinado da empresa" - ut. Dir., 104, 1972, página 336.
- ABÍLIO NETO, considera também que - "... não constando do nosso direito positivo (...) a expressa proibição de o gerente ou administrador acumular o exercício das suas funções específicas com as de trabalhador subordinado (v.q. director de determinado departamento da empresa) nada obstará, em princípio, à reunião na mesma pessoa dessa dupla qualidade, mormente quanto ao desempenho de uma e outra função esteja ligada a percepção de retribuições distintas e haja/uma qualquer subordinação ao órgão de gestão". - in "Direito do Trabalho" Separata B.M.J., 1979, página 167.
4. - O problema tem sido colocado aos tribunais com alguma frequência, encontrando-se a jurisprudência profundamente dividida.
Assim:
No sentido da incompatibilidade, podem ver-se:
- os acórdãos do S.T.A. de 18 de Julho de 1950 - 10 de Março de 1953 - 18 de Outubro de 1950 e 1 de Fevereiro de 1966, respectivamente em Col. Ofic. XII, 199 - XV, 134 - XXII, 956 e Ac. Dout., V, 499 - e os acórdãos do S.T.J. de 15 de Outubro de 1980 - 16 de Dezembro de 1983 - 8 de Outubro de 1990 - 25 de Fevereiro de 1993 e 17 de Fevereiro de 1994, respectivamente, em B.M.J. 300, 228 - 332, 418 - Ac. Dout., 360, 1417 - 378, 716 e Col. Jur. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1994, I, 293.
- No sentido da compatibilidade, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 4 de Fevereiro de 1972 - 7 de Fevereiro de 1986 - 23 de Julho de 1982 - 8 de Janeiro de 1992 e 19 de Março de 1992, respectivamente, em B.M.J., 214, 210 - 354, 380 Ac. Dout. 252, 612, B.M.J., 413, 360 e 415, 421.
Desta enumeração, algo exaustiva, parece poder apenas concluir-se a uniformidade da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo - Secção do Trabalho e Previdências -, Toda anterior a 1966, e um visível equilíbrio na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, mesmo depois da entrada em vigor do Código das Sociedades Comerciais, em 1 de Novembro de 1986.
5. - É que este Código contém um preceito específico para as sociedades anónimas, estatuindo no seu artigo 398:
"1. Durante o período para o qual foram designados, os administradores não podem exercer, na sociedade ou em sociedades que com esta estejam em relação de domínio ou de grupo, quaisquer funções temporárias ou permanentes ao abrigo de contrato de trabalho, subordinado ou autónomo, nem podem celebrar quaisquer desses contratos que visem uma prestação de serviço quando cessarem as funções de administrador.
2. Quando for designado administrador uma pessoa que, na sociedade ou em sociedades referidas no número anterior, exerça quaisquer das funções mencionadas no mesmo número, os contratos relativos a tais funções extinguem-se, se tiverem sido celebrados há menos de um ano antes da designação, ou suspendem-se, caso tenham durado mais do que esse ano (...)".
Anote-se que este n. 2 foi julgado inconstitucional pelo acórdão do Tribunal Constitucional n. 1018/96, de 9 de Outubro de 1996 - no D.R., II, de 13 de Dezembro, processo 17305, por violação dos artigos 55, alínea d) e 57, n. 2, alínea a), ambos da Constituição da República, na parte em que considera extintos os contratos de trabalho subordinado ou autónomo.
Ficou, assim, intocada a suspensão dos contratos com mais de um ano, solução que, aliás, já era defendida anteriormente.
6. - Mas o Código não tem qualquer preceito que contemple o problema para os outros tipos de sociedades que regula, o que coloca logo o problema de saber se o preceito lhes deve ser aplicado analogicamente, como bem observa o Professor RAUL VENTURA, a folha 35 da obra citada.
E prossegue:
"Na prática portuguesa existem numerosas pequenas sociedades por quotas em que o sócio gerente exerce funções que não competem aos gerentes: exemplos típicos são o do gerente que vende ao balcão ou trabalha na oficina, ou "está encarregado de ordenhar as vacas" como no caso do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Abril de 1986, acima citado: um preceito legal, que proibisse tal prática seria ridiculamente ineficaz (...).
Como é elementar regra jurídica, para haver contrato de trabalho, é indispensável a verificação de todos os seus elementos típicos: o vínculo de subordinação do trabalhador, digo típicos: ora parece que nestes casos um faltaria sempre: o vínculo de subordinação do trabalhador, que não poderá estar subordinado a si mesmo, na veste de gerente.
Este é o argumento repetido nos acórdãos acima citados (...).
A referida doutrina, mesmo dentro dos seus pressupostos vai longe demais. Inegável é que o vínculo laboral, com a respectiva subordinação se estabelece entre a sociedade-pessoa jurídica e o trabalhador: os gerentes não são a entidade patronal, mas sim órgãos desta. Ora, uma sociedade por quotas pode ter mais do que um gerente, no caso da pluralidade de gerentes haverá quem, representando organicamente a sociedade, exprima as ordens, instruções, fiscalização características do lado activo da subordinação de um gerente-trabalhador (...).
No entanto, no campo dos princípios, o obstáculo da subordinação não me parece intransponível (...).
Por outro lado, não pode alegar-se impossibilidade absoluta do exercício da autoridade patronal. Nas sociedades por quotas a assembleia pode alterar essa situação por duas maneiras; ou destituindo o gerente e elegendo outro (aliás, bastará eleger mais um) que despeça o trabalhador - conselho dos citados autores franceses; ou dando ao gerente-trabalhador instruções vinculativas (artigo 259 C.S.C.) - (...).
Admitida a cumulação das duas espécies de funções, passa-se a outra ordem de problemas, agora a prova da existência do contrato de trabalho subordinado (...).
Na falta de expressas declarações negociais, nomeadamente provadas por escrito, haverá que recorrer a todas as circunstâncias do caso. Assim, pode ser decisivo que o contrato de trabalho seja anterior à designação como gerente, pois não é de presumir que o trabalhador - que continua a prestar o mesmo trabalho - queira, por causa daquela designação, precedida normalmente da aquisição de uma quota na sociedade, perder a sua antiga qualidade".
A transcrição foi longa, porventura excessiva, mas afigurou-se útil e necessária para o tratamento de um problema tão controvertido na jurisprudência portuguesa e sobre o qual o próprio Professor RAUL VENTURA, em tempos muito recuados - 1944 - e muito longe ainda do Código das Sociedades Comerciais, teve posição algo diferente.
Parece, assim, dever concluir-se pela não aplicação analógica do disposto no artigo 398 do C.S.C. às sociedades por quotas, onde as realidades práticas podem reclamar a admissibilidade da acumulação das funções de gerente, melhor, de sócio gerente e de trabalhador subordinado.
Na sugestiva expressão atrás transcrita: "um preceito legal que proibisse tal prática seria ridiculamente ineficaz".
De resto, seria no mínimo muito estranho que o legislador do Código das Sociedades Comerciais, tendo pensado no problema, querido a solução, vazando-a expressamente no artigo 398 para as sociedades anónimas, não tenha adoptado expressamente o mesmo regime para as sociedades por quotas se desejasse que lhes fosse aplicável.
O silêncio é aqui bem o sinal de não ter querido consagrar a proibição, deixando a solução em aberto para a peculiaridade de cada caso concreto, tendo sempre bem presente que para a existência de um contrato de trabalho é imprescindível a verificação de todos os seus elementos típicos, designadamente que seja patente uma situação de subordinação jurídica.
Como a este propósito observa ILÍDIO DUARTE RODRIGUES, em "A Administração de Sociedades", página 304 - "A existência de eventual subordinação jurídica tem de se apurar e medir no terreno concreto da vida".
Na feliz expressão de um autor brasileiro (ARI P. BELTRAN) deve seguir-se o princípio geral da primazia da realidade em matéria trabalhista.
E, assim, a realidade, o terreno da vida, as circunstâncias concretas do caso, que hão-de dizer-nos da coexistência, ou não, das duas qualidades, de sócio gerente e de trabalhador subordinado.
7. - Antes de examinar a matéria de facto que vem provada, é oportuno recordar, conforme resulta do que ficou exposto, que são aqui particularmente relevantes os aspectos respeitantes:
1. - à anterioridade, ou não do contrato de trabalho face à aquisição da qualidade de sócio gerente;
2. - à retribuição auferida, procurando surpreender alterações significativas ou dualidade de retribuições;
3. - à natureza das funções concretamente exercidas, antes e depois da ascenção à gerência, designadamente em vista a apurar se existe exercício de funções tipicamente de gerência e se há nítida separação de actividades;
4. - à composição da gerência, designadamente ao número de sócios gerentes e às respectivas quotas;
5. - à existência de sócios maioritários com autoridade e domínio sobre os restantes;
6. - à dependência, hierárquica e funcional, dos sócios gerentes que desempenham tarefas não tipicamente de gerência, relativamente a estas actividades.
[..]».
Reafirmando este entendimento, no sumário do Acórdão do STJ de 22-04-2010 [Proc.º 506.06.8TTGRD.C1.S1; Conselheiro Mário Pereira, disponível em www.dgsi.pt], deixou-se a síntese que segue:
I – [..]
II - Os elementos essencialmente constitutivos do contrato de trabalho são a subordinação económica – traduzida na existência de remuneração suportada pelo empregador – e a subordinação jurídica do trabalhador ao empregador, traduzida na sujeição daquele, na prestação da sua actividade, às ordens, direcção e fiscalização deste.
III - Para determinar a natureza laboral do vínculo, permitindo também distingui-lo do contrato de prestação de serviço, recorre-se geralmente aos denominados indícios ou índices de subordinação jurídica, a avaliar num juízo global, como sejam: a vinculação a horário de trabalho estabelecido pela pessoa a quem se presta a actividade; a execução da prestação de trabalho em local definido pelo empregador; o modo de prestação da actividade; a obediência a ordens e a sujeição à disciplina imposta pelo empregador; a remuneração em função do tempo de trabalho; a integração do prestador da actividade na organização da empresa.
IV - As particularidades que se podem verificar no âmbito das sociedades por quotas onde realidades práticas podem reclamar a admissibilidade da acumulação de funções de sócio gerente e de trabalhador, afastam a aplicação do disposto no art. 398.º do Código Comercial que, reportado às sociedades anónimas, proíbe a cumulação de funções de administrador e de trabalhador subordinado, admitindo-se, assim, a possibilidade de um sócio gerente de uma sociedade por quotas ser simultaneamente seu trabalhador, desde que, no caso concreto, se verifique a existência de subordinação jurídica.
[..]».
Podendo ler-se na respectiva fundamentação, no que interessa aqui realçar, o seguinte:
-«[..]
Importa também referir, como justamente nos dá conta o mencionado Parecer, que a jurisprudência desta Secção Social vem defendendo a possibilidade de um sócio gerente de uma sociedade por quotas ser simultaneamente seu trabalhador, desde que, no caso concreto, se verifique a existência de subordinação jurídica.
Entende-se, em apoio de tal posição, que as particularidades que se podem verificar no âmbito das sociedades por quotas onde realidades práticas podem reclamar a admissibilidade da acumulação de funções de sócio gerente e do trabalhador, afastam a aplicação do disposto no artigo 398º do Código Comercial que, reportado às sociedades anónimas, proíbe a cumulação de funções de administrador e de trabalhador subordinado.
Nesse sentido, podem ver-se, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 29.09.99 (BMJ nº 489, pág. 232), de 3.11.2009, na Revista n.º 332/98, de 02.10.2002 (A.D., nº 497, pág. 813), e de 30.09.2004, no Recurso n.º 2053/03, dgsi, doc. SJ199909290003644.
Sendo que, no referido acórdão de 29.09.99, se indicaram como índices relevantes no sentido do apuramento, no caso concreto, de eventual subordinação jurídica em cumulação com a situação de sócio gerente, os seguintes aspectos:
- a anterioridade ou não do contrato de trabalho face à aquisição da qualidade do sócio gerente;
- a retribuição auferida, procurando surpreender alterações significativas ou dualidade de retribuições;
- a natureza das funções concretamente exercidas antes e depois da ascensão à gerência, com vista, designadamente, a apurar se existe exercício de funções tipicamente de gerência e se há nítida separação de actividades;
- a composição da gerência, designadamente o número de sócios gerentes e respectivas quotas;
- a existência de sócios maioritários com autoridade e domínio sobre os restantes;
- a dependência hierárquica e funcional dos sócios gerentes que desempenham tarefas não tipicamente de gerência relativamente a tais actividades.
[..]».
Também a Jurisprudência das Relações, pelo menos a mais recente, vêm acolhendo este entendimento, como passamos a ilustrar com os exemplos que seguem [todos disponíveis em www.dgsi.pt]:
- Acórdão do TRE de 06-04-2017 [proc.º -127/15.4T8STR-B.E1, Desembargador Mário Coelho]:
«[..]
2. Nas sociedades por quotas, detendo o gerente poderes de autoridade, direcção, fiscalização e disciplina dos respectivos trabalhadores, ocorre, em princípio, uma situação de incompatibilidade entre o exercício simultâneo dessas funções de gerente e as de trabalhador.
3. Admite-se, porém, que possa ocorrer a coexistência do contrato de trabalho com o exercício das funções de gerente de sociedade por quotas, nomeadamente nas situações de anterioridade do contrato de trabalho face à aquisição da qualidade de sócio-gerente, à existência de sócios maioritários com autoridade e domínio sobre os restantes, e ao exercício de tarefas não tipicamente de gerência.
[..]».
- Acórdão do TRG de 22-09-2022 [Proc.º 2859/20.6T8BCL.G1, Desembargadora Vera Sottomayor]
I – Nas sociedades por quotas, como sucede no caso em apreço, podemos afirmar que da lei não resulta qualquer obstáculo à constituição de uma relação laboral entre a sociedade e um gerente, sendo certo que tal vínculo por impor a existência de subordinação jurídica, apenas se poderá formar se e na medida em que o trabalhador já tivesse um contrato de trabalho antes de ser nomeado gerente, continuando a desempenhar as mesmas funções e nos mesmos moldes; ou se e na medida em que seja contratado de entre não sócios e por outro ou outros gerentes designados no pacto social ou em assembleia de sócios.
II - É sobretudo em relação aos gerentes não sócios, ou aos trabalhadores que passem a sócios-gerentes que tem sido reconhecida a possibilidade de qualificar o seu vínculo como laboral. São assim restritas as hipóteses em que é configurável a possibilidade da mesma pessoa assumir a qualidade de trabalhador e gerente, sendo certo que a titularidade da gerência tanto pode exercer-se na posição de trabalhador subordinado (casos excepcionais) como na posição de mandatário (o que sucede em regra), havendo assim que apurar os termos em que o contrato foi celebrado e é executado para lhe conferir a qualificação, ou de contrato de trabalho, ou de mandato.
[..].
- Acórdão do TRP de 21-01-2019 [Proc.º 12602/16.9T8PRT.P1, Desembargador Rui Ataíde]
I - A qualidade de sócio gerente de uma sociedade por quotas não impede o reconhecimento da qualidade, também, de trabalhador, não vigorando aqui o impedimento estabelecido no art. 398º, n.º 1 do CSC para as sociedades anónimas.
II - Contudo, esse reconhecimento de um vinculo laboral depende sempre da demonstração de indícios relevantes de subordinação jurídica a outros gerentes ou a deliberações da gerência no seu todo, sendo o respectivo ónus de prova do autor.
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É ponto assente na doutrina que a analogia pressupõe a existência de uma lacuna.
A integração de lacunas pela aplicação do princípio da analogia [art.º 10.º do CC], reclama a verificação de um pressuposto fundamental, em concreto, a “própria existência de lacuna. Lacuna não é tudo o que não está na lei. [..] É que não é imediata, perante uma omissão da lei, a inferência de que há lacuna. Porque pode a matéria não estar regulada e não o dever estar” [J. Oliveira Ascensão, Interpretação das leis. Integração das lacunas. Aplicação do princípio da analogia / Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, 57 n.3 (Dez.1997), p.918].
Entendeu o STJ, no Ac. 29-09-1999, por decorrência lógica dos argumentos expressos na fundamentação, “[..] dever concluir-se pela não aplicação analógica do disposto no artigo 398 do C.S.C. às sociedades por quotas, onde as realidades práticas podem reclamar a admissibilidade da acumulação das funções de gerente, melhor, de sócio gerente e de trabalhador subordinado”.
Dito de outro modo, concluiu o STJ não se verificar um caso omisso carecendo de regulamentação, logo, não podendo ter lugar o recurso à analogia para aplicação do art.º 398.º do CSC, às sociedades por quotas.
Entendimento que, como dissemos e ilustrámos, vem sendo acolhido pela jurisprudência dos Tribunais superiores, máxime pelo STJ, cabendo agora acrescentar que também este colectivo, crendo na correcção e razoabilidade dos argumentos que o sustentam, o subscreve.
Embora crendo que a transcrita fundamentação dos acórdãos do STJ é clara e elucidativa, para que não subsista qualquer dúvida, afigura-se-nos pertinente deixar sublinhado que o entendimento afirmado, ou seja, que não há lugar à aplicação analógica do disposto no artigo 398 do C.S.C. às sociedades por quotas, não depende de se apurar em cada caso concreto se há compatibilidade, ou não, entre o leque de poderes de que dispõe um determinado sócio gerente de uma sociedade por quotas e a eventual manutenção de uma situação de contrato de trabalho subordinado.
Assim sendo, concordamos com o Tribunal a quo ao concluir, ancorando-se igualmente na doutrina afirmada pelo Ac. STJ de 29-09-1999, que “Estes argumentos permitem, assim e em nosso entender, ser de afastar a aplicação analógica do art. 398º do CSC.”.
Por conseguinte, contrariamente ao que defende o recorrente, não ocorreu a suspensão do contrato de trabalho até à produção de efeitos da sua renúncia à gerência, em Novembro de 2019, ficando assim necessariamente inviabilizada a possibilidade de suspensão do contrato a partir daquela data, por efeito da situação de incapacidade para o trabalho por doença, nos termos do previsto no art.º 296.º 1 do CT.
Para que tal fosse possível era necessário que o contrato de trabalho tivesse estado suspenso até então, mantendo-se a suspensão a partir daí com uma nova causa, ou então que a prestação de trabalho subordinado pelo autor tivesse sempre coexistido com sua a qualidade de sócio gerente. Ora, nem uma coisa nem outra se verifica. A primeira pelas razões que apontámos, a segunda em razão do autor – como alegou na acção e ficou demonstrado - não ter mais prestado a sua actividade como trabalhador subordinado, em concreto, exercendo funções como empregado de escritório [factos E e F].
II.4.2 Concluiu o Tribunal a quo que o vínculo de natureza laboral pré-existente entre A. e Ré, ou seja, o contrato de trabalho em cumprimento do qual exercia as funções de empregado de escritório, cessou / extinguiu-se em 12.12.2003, data em que, por deliberação da assembleia geral da Ré e mediante a sua aceitação voluntária, assumiu as funções de sócio gerente, deixando de exercer aquelas.
Discorda o Autor com o fundamento que já rejeitámos, isto é, a alegada suspensão do contrato de trabalho, mas invocando também que sentença é omissa quanto à forma mediante a qual entende que o contrato de trabalho cessou no dia 12-12-2003.
Percorrida a fundamentação da sentença, retira-se que as razões que conduziram àquele juízo são, no essencial, as seguintes:
- Não haver fundamento legal para se considerar que ocorreu a suspensão do contrato de trabalho e o contrato;
-Estar apurado “que o autor não mais exerceu as funções de empregado de escritório (alínea D) dos factos assentes)” , sendo que o “autor não alegou na petição inicial quaisquer factos com vista à demonstração de que após a sua nomeação como gerente, se manteve sujeito às ordens, diretivas ou instruções da ré, designadamente através de outros dos gerentes, já que a gerência era plural”;
- Estar apurado que assumiu “uma posição de gerente da ré que não era meramente formal”, passando “a ser remunerado nessa qualidade, verificando-se um incremento da retribuição do autor por mero efeito da sua nomeação como gerente”;
- Daí decorrendo que “A situação do autor perante a ré, após a sua nomeação como gerente, sofreu, pois, modificações relevantes e descaracterizadoras da sua subordinação jurídica à ré e consequentemente, de que tal nomeação produziu a extinção do vínculo de natureza laboral pré-existente”.
Há que reconhecer, como aponta o recorrente, que o tribunal a quo não concretizou em que modalidade “cessou” o contrato de trabalho. Não obstante, pelas razões que já de seguida enunciaremos, concordamos com este juízo final, não lhe retirando validade aquela a falta de concretização do fundamento legal.
Uma das modalidades da cessão do contrato de trabalho previstas na lei é a caducidade [art.º 340.º, al. a) do CT].
Dispondo depois o art.º 343.º, com a epígrafe “Causas de caducidade de contrato de trabalho”, o seguinte:
«O contrato de trabalho caduca nos termos gerais, nomeadamente:
a) Verificando-se o seu termo;
b) Por impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva, de o trabalhador prestar o seu trabalho ou de o empregador o receber;
c) Com a reforma do trabalhador, por velhice ou invalidez».
Como elucida Pedro Furtado Martins [Cessação do Contrato de Trabalho, Principia, 3.ª edição, pp. 41/44], «A caducidade é a cessação do contrato de trabalho em virtude da ocorrência de um facto a que o Direito associa a extinção da relação laboral. Na sua fisionomia típica, a extinção resultante da caducidade dá-se automaticamente, por força da lei, independentemente da vontade das partes. Trata-se de uma causa de cessação comum à generalidade dos contratos, entre eles o contrato de trabalho, como se reconhece no art.º 343.º, ao estabelecer-se que “o contrato caduca nos termos gerais”.
Indicam-se, a título exemplificativo, três causas de caducidade:
[..]
Além destas, existem obviamente outras situações de caducidade do vínculo laboral.
[..]
É ainda usual enquadrar na figura da caducidade – amplamente entendida no sentido subjacente à regulamentação inscrita no Código do Trabalho – certas hipóteses atípicas, como sejam a aquisição pelo (ex-) trabalhador da qualidade de empregador, resultante, por exemplo, da compra do estabelecimento em que prestava serviço ou das participações sociais da sociedade empregadora5».
Acolheu este autor o entendimento defendido por Pedro Romano Martinez, conforme se retira da citação na nota para onde remete a final, onde se lê: «5. Segundo Pedro Romano Martinez (Direito do Trabalho, cit. 982, nota 1) haverá aqui um caso de extinção da relação contratual por confusão (art. 868.º do Código Civil), eventualmente enquadrável na “caducidade laboral”.
Pois bem, concordamos com este entendimento e cremos que tem inteira aplicação ao caso concreto.
Refere o Tribunal a quo não estar provada factualidade que permita concluir se haveria, ou não, incompatibilidade entre a qualidade de sócio gerente e o exercício das funções de empregado de escritório. E, como referimos acima, discorda o Recorrente, alegando que em contradição com essa afirmação, o Tribunal a quo dá por assente que o cargo de gerente era exercido sem qualquer restrição, pelo que, acaba por reconhecer tal incompatibilidade fáctica.
Aquela afirmação do Tribunal a quo radica no erro em que incorreu na apreciação da prova, em concreto, ao considerar não provado que “o autor deixasse de exercer as sua funções de empregado de escritório por incompatibilidade com o exercício das funções de gerente”.
Já apontámos as razões desse erro e o consequente efeito, ou seja, a eliminação desse ponto do elenco da matéria não provada. E, como também dissemos, saber se há essa incompatibilidade, ou não, é uma questão com natureza jurídica, logo, a ser apreciada e decidida a jusante, na aplicação do direito aos factos.
Ora, com o devido respeito, mercê do percurso que traçou o Tribunal a quo acabou por incorrer num outro erro, agora na valoração dos factos provados para a aplicação do direito. Com efeito, a matéria provada é suficiente para se concluir que no caso concreto, tal como o autor alegou e defendeu na Pi e aqui reitera, não era viável a coexistência entre as duas qualidades, de sócio gerente e de trabalhador subordinado.
Quanto a este ponto há, pois que reconhecer, reconhecer razão ao recorrente.
Passamos a justificar esta asserção.
É entendimento pacífico que a noção legal do contrato de trabalho [art.º 10.º CT/03 e 11.º CT/09] permite identificar como elementos essenciais deste tipo de contrato, os seguintes: i) a actividade laboral; ii) a retribuição; iii) a colocação do trabalhador sob a autoridade e no âmbito da organização do empregador. O primeiro elemento consiste na natureza da prestação a que o trabalhador se obriga, isto é, a prestação de actividade, que se concretiza em fazer algo, como aplicação ou exteriorização da força de trabalho tornada disponível para a outra parte, através do negócio. O segundo consiste na contrapartida devida ao trabalhador em troca da disponibilidade da força de trabalho, sendo normalmente paga em dinheiro. O último corresponde ao que a doutrina e jurisprudência identificam habitualmente, e a partir da perspectiva do trabalhador, pela expressão “subordinação jurídica”, da sua verificação dependendo o reconhecimento da existência de um contrato de trabalho [Cfr. Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 14.ª ed., Almedina, pp. 127/137; e, Maria do Rosário Palma Ramalho, Direito do Trabalho, Parte II, 3.ª Edição, Almedina, pp. 20 a 37].
A subordinação jurídica é usualmente definida como o dever legal do trabalhador acatar e cumprir as ordens e instruções que, em cada momento, lhe sejam dirigidas pelo empregador, emitidas por este no uso do seu poder de direcção da empresa, directivas essas que são vinculativas para aquele devido à obrigação de obediência consagrada na lei. Segundo Monteiro Fernandes, consiste «(..) numa relação de dependência necessária da conduta pessoal do trabalhador na execução do contrato face às ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, dentro dos limites do mesmo contrato e das normas que o regem (..)»[Op. cit, pp. 136].
Atentando agora nos factos provados, deles resulta que adquirida pelo A. uma quota social da Ré no dia 12.12.2003, nesse mesmo dia, em assembleia geral e por deliberação ali tomada, foi nomeado gerente da sociedade, tendo ainda sendo deliberado que as desempenharia auferindo remuneração mensal no montante de € 813.00 acrescida de subsídio de refeição no valor de € 5,20; a partir dessa nomeação e até Setembro de 2019, o A. permaneceu no exercício das funções de gerente e jamais prestou as funções de empregado de escritório; renunciou àquelas funções em 3-11-2019, e cedeu a totalidade das suas quotas em 21-11-2019, por motivos de saúde, dado ter sido vítima de um enfarte miocárdio em Setembro de 2019 [factos C, D, E, F, G, H, I, J, N e O].
Funções que exercia em todo o seu âmbito, estando provado que na qualidade de sócio-gerente o Autor dava ordens, instruções e orientações aos trabalhadores da sociedade, dizendo o que deveria ser feito como, onde e de que forma; para além disso, era ele quem processava e pagava os salários aos trabalhadores, marcava as suas férias, liquidava impostos e contribuições, quem se deslocava e contactava com as instituições bancárias, repartições e serviços públicos designadamente serviços de finanças, da segurança social, em representação da ré, celebrava acordos de pagamentos [factos T e U].
Retira-se desta matéria provada que deixou de existir prestação pelo autor de actividade como trabalhador subordinado, bem assim a dependência económica em virtude da prestação de trabalho subordinado, e também, a completa ausência de subordinação jurídica.
Ademais, quanto a esta característica essencial do contrato de trabalho, não consideramos que fosse viável manter-se face à amplitude dos poderes atribuídos ao autor como sócio-gerente, desde logo, por dar ordens, instruções e orientações, mas não estar sujeito a ordens, nem se vislumbrar que o pudesse estar atento aquele leque de competências, inclusive, actuando em representação da Ré, ou seja, exercendo funções tipicamente de gerência.
Acresce dizer, que foram juntas, pelo Autor com a PI e pela Ré com a contestação, cópia da escritura publica relativa à compra pelo autor de quota da Ré, dela resultando que após aumento do capital social, o mesmo passou a ser de seis mil euros, detido em 4 quotas: uma de seiscentos euros, pelo sócio EE; outra de mil e quatrocentos euros, pelo sócio AA, o aqui autor; duas outras, cada uma de dois mil euros, pertencentes, respectivamente, aos sócios FF e GG.
Mais consta, que foram nomeados gerentes, os sócios AA, o aqui autor, e FF e GG, obrigando-se a sociedade pela intervenção conjunta de dois gerentes.
Portanto, se é certo que dois outros sócios podiam obrigar a Ré, também não o é menos que o Autor tinha igualmente poderes para obrigar a Ré, desde que em conjunto com qualquer um daqueles dois outros.
Neste quadro, cremos que esta nova realidade decorrente da livre vontade das partes, de onde resulta que o autor passou de facto, enquanto sócio gerente, a exercer em toda a plenitude funções tipicamente de gerência, tornou praticamente incompatível a manutenção, em coexistência, do contrato de trabalho subordinado que até então existia entre si e a Ré, levando à caducidade desse vínculo laboral, por confusão, nos termos do art.º 868.º, onde se dispõe que “Quando na mesma pessoa se reúnam as qualidades de credor e devedor da mesma obrigação, extinguem-se o crédito e a dívida”.
Foi justamente por terem a noção que a situação de sócio gerente se sobrepunha à de trabalhador subordinado e era incompatível com a manutenção desta, que “ [A] ré - com o conhecimento do autor – comunicou à segurança social o fim do vínculo laboral deste, como trabalhador por conta de outrem, em 30.11.2003” [facto provado Z].
Note-se, que não se está a dizer que essa comunicação gerou o efeito da caducidade do contrato de trabalho, mas antes que revela o reconhecimento pelas partes, em termos práticos, dos efeitos gerados por essa nova realidade na relação jurídica entre autor e Ré, agora determinada pela assunção da qualidade de sócio gerente.
Assim, ainda que com fundamentação não totalmente coincidente, conclui-se que o Tribunal a quo decidiu com acerto ao ter concluído que a relação de trabalho laboral se extinguiu em 12.12.2003, não se reconhecendo fundamento ao recorrente, logo, improcedendo o recurso.
III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar o recurso nos termos seguintes:
i) Parcialmente procedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
ii) Improcedente o recurso na vertente do alegado erro na aplicação do direito, em consequência confirmando-se a sentença recorrida.
Custas a cargo do recorrente, atento o decaimento (art.º 527.º CPC).

Porto, 27 de Fevereiro de 2023
Jerónimo Freitas
Nelson Fernandes
Teresa Sá Lopes