Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3005/17.9T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: DANO NÃO PATRIMONIAL
DANO PATRIMONIAL
TEORIA DA DIFERENÇA
Nº do Documento: RP202103093005/17.9T8PRT.P1
Data do Acordão: 03/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O dano, como elemento integrante da responsabilidade civil, não decorre duma escolha do lesado, antes lhe sendo imposto, como desvalorização patrimonial, por circunstâncias que ele não quis.
II - Tendo a autora adquirido bens para um estabelecimento que não chegou a abrir em consequência do acidente, vindo a doar esses bens, fica impedida de peticionar o seu valor contra a ré.
III - Situação diversa seria a autora ter alienado esses bens, ainda que por um valor inferior ao de mercado – dadas as circunstâncias do acidente – e vir depois peticionar a diferença traduzida num dano decorrente do acidente de viação.
IV - Optando por doar os bens, a autora fê-lo no exercício de um direito – porque os mesmos lhe pertenciam – não legitimando, no entanto, esse gesto altruísta, a condenação da ré a pagar o valor dos bens (de que a autora prescindiu).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3005/17.9T8PRT.P1

Sumário do acórdão:
………………………………
………………………………
………………………………

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
Em 16.02.2017, B…, por si e em representação da sua filha menor C…, intentou ação declarativa com processo comum contra D…, Companhia de Seguros, SA., pedindo a condenação da ré:
«a) a pagar à demandante B…e a quantia de 17.860,16 €, a título de danos patrimoniais (10.000,00+7.500,00+315,25+44,91);
b) a pagar à demandante B… a quantia de 10.000,00 €, a título de danos não patrimoniais;
c) a pagar à demandante B… a quantia que se vier a apurar em momento posterior à fixação da IPP.
d) a pagar à demandante C… a quantia de 10.000,00 €, a título de danos não patrimoniais,
e) a pagar os juros de mora contados desde a citação, com custas, procuradoria e demais de lei.»
Como fundamento da sua pretensão, alegam as autoras em síntese: no dia 5.12.2014 ocorreu um acidente de viação na cidade do Porto, no qual foram intervenientes: o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula OQ-..-.., propriedade de E… e por ele conduzido, e as autoras; a autora B… seguia a pé, empurrando o carrinho de bebé que transportava a sua filha C…, com apenas um ano de idade, tendo sido ambas colhidas pelo veículo OQ-..-..; a ocorrência do acidente deveu-se a culpa exclusiva do condutor do veículo; à data do acidente, a responsabilidade civil emergente da circulação do OQ-..-.. encontrava-se válida e eficazmente transferida para a demandada, através de contrato de seguro titulado pela apólice nº …….; as autoras sofreram danos correspondentes às indemnizações que peticionam.
Citada, a ré deduziu contestação, alegando em síntese: desconhece os factos relativos ao acidente, por não serem factos pessoais ou que neles tenha participado e por isso mesmo, insuscetíveis de serem confessados; admite, contudo, que o condutor da viatura segura na ora contestante, pela sua conduta, tenha contribuído para a eclosão do referido acidente; a imputabilidade do evento, a título de culpa, ao condutor da viatura segura na ora contestante é, no entanto, uma questão de direito; como é seu dever e prática, a ora contestante, por diversos meios e por diversos contactos, tentou chegar a um acordo extrajudicial relativamente ao cômputo indemnizatório relativamente aos danos em causa; não tendo, os mesmos, surtido o efeito desejado; situação que se pode alterar no decurso do processo, como será desejável; contesta os valores peticionados, considerando-os sem fundamento.
Realizou-se audiência prévia em 16.10.2017, na qual, conforme consta da respetiva ata: se fixou à ação o valor de € 37.860,16; se consideraram verificados todos os pressupostos formais que permitem o conhecimento do mérito da ação; se definiu o objeto do litígio, se enunciaram os temas de prova; e se admitiram os meios probatórios apresentados pelas partes.
Em articulado apresentado em 8.11.2019, vieram as autoras requerer a ampliação do pedido nestes termos:
«Deve a demandada D… ser condenada a pagar à demandante B…:
A) a título de danos patrimoniais, a quantia que se corrige de 17.859,91 € para 17.920,16 €, porquanto em sede de PI este valor encontra-se incorrectamente calculado, considerando os seguintes valores (10.000,00+7.560,00+315,25+44,91);
B) a título de danos não patrimoniais, a quantia de 20.000,00 €;
C) a título dos danos patrimoniais derivados da IPP de 4 pontos, a quantia de 20.000,00 €,
D) (…) à demandante C… (…)
E) Todas as quantias acrescidas de juros de mora à taxa legal a contar da data da citação até efectivo e integral pagamento.».
A requerida ampliação foi admitida por despacho de 9.12.2019.
Realizou-se a audiência de julgamento em duas sessões [9.09.2020 e 6.10.2020], após o que, em 17.11.2020 foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Nestes termos, julgando a presente ação parcialmente procedente, por provada, decido:
a) condenar a ré a pagar à 1.ª autora a quantia global de €31,326,74 bem como juros de mora à taxa legal, aplicável aos juros civis, desde a presente decisão, até efetivo e integral pagamento.
b) condenar a ré a pagar à 1.ª autora a quantia que se apurar em liquidação posterior por danos patrimoniais sofridos em consequência da inutilização da roupa que seria vendida no estabelecimento comercial da autora (até ao montante de €10.000,00);
c) condenar a ré a pagar à 2.ª autora a quantia global de €4.000,00 bem como juros de mora à taxa legal, aplicável aos juros civis, desde a presente decisão, até efetivo e integral pagamento.
d) condenar autoras e rés nas custas respetivas, na proporção do respetivo decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário.».
Não se conformou a ré e interpôs recurso de apelação, apresentando alegações que culmina com as seguintes conclusões:
I - É necessário, colocar alguns parâmetros uniformes ou cautelas na determinação das indemnizações atenta a divergência jurisprudencial, quando estão em causas lesões e sequelas.
II – A abissal desconformidade de critérios e fixação de montantes indemnizatórios para casos de natureza idêntica, reconduz à insegurança jurídica e à aplicação da equidade.
III - A apreciação da questão é necessária, pois, são dispares, diríamos abissais os montantes fixados pelos Tribunais de 1ª Instância quando está em causa a determinação do quantum indemnizatório por danos patrimoniais e o quantum indemnizatório por danos não patrimoniais.
IV - Afirmar que a apreciação da questão não é necessária seria concluir que a aplicação do Direito se adaptaria à Justiça e a Injustiça, condicionando-se a decisão a um a espécie de “jogo de fortuna ou azar” muitas vezes subjetivada na “sorte” de se encontrar um julgador que siga este ou aquele “rol de decisões” mais apropriado à fixação dos valores independentemente da insegurança jurídica na fundamentação de qualquer decisão.
V - Nas decisões a proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito tal como decorre do artigo 8º nº 3 do Código Civil (vidé, também, artigo 672 nº 1 alínea a) do Código de Processo Civil) e ainda artigo 496º nº 1 do Código Civil), o que não foi o caso sub judice.
VI - A manifesta disparidade de critérios jurisprudenciais em matéria de fixação de valores indemnizatórios para os danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes da responsabilidade civil extracontratual que servem como elementos de consulta fundamentais para determinar valores de reserva para sinistros, determina a maior das inseguranças financeiras na gestão dos riscos decorrentes da circulação rodoviária quando estão em causa sinistros que envolvam lesões corporais e sequelas.
VII - A questão não é insignificante uma vez que bastará o recurso a um certo “rol de decisões”, para colocar em causa a sua solvabilidade com as consequências ao nível das suas reservas e indiretamente, na manutenção e garantia de valores indemnizatórios para todos os sinistrados dependentes, sem prejuízo do agravamento dos prémios de seguro de determinada comunidade de Tomadores de Seguros.
VIII - A flexibilidade da lei (artigos 564º e 566º nº 3) não reconduz o critério da fixação do montante indemnizatório apenas à equidade: em primeiro lugar, deve atender-se aos pressupostos legais determinados em função do caso concreto, isto é, idade do lesado, tempo de vida ativa e tempo de vida provável, o seu modo de vida e as repercussões que as lesões e sequelas têm a esse nível; em segundo lugar, determinar-se-á um valor, ainda que como mera referência; em terceiro lugar, pondera-se o caso concreto, e “ajusta-se” o valor encontrado, segundo os juízos de equidade.
IX - Da abstração da lei pode resultar desajustamentos entre o que é a justiça decorrente dessa lei e a justiça que é desejável no caso concreto.
X - Nessa ponderação residual é que terá sentido o recurso à equidade.
XI - A apreciação dos critérios da equidade, no que concerne à determinação dos valores indemnizatórios decorrentes de danos não patrimoniais e danos patrimoniais é, por isso, claramente necessária, para melhor aplicação do Direito, sobe pena de cairmos no livre arbítrio, em subjetivismos do julgador, enfim, na aplicação de princípios que apenas encontram raízes na Escola dos defensores do Direito Livre.
XII - A Douta Sentença, não atendeu à tendência dos nossos tribunais para lançar mãos de critérios quantitativos com o objetivo de tornar o mais possível justas, atuais e minimamente discrepantes as indemnizações.
XIII – A Douta Sentença transformou a equidade “adaptativa” ou “corretiva” em livre arbítrio na determinação dos valores indemnizatórios.
XIV - Tendo em atenção o exposto e porque a questão em “apreciação é claramente necessária para melhor aplicação do direito”, a Douta Decisão do Tribunal a quo, deveria ter tido em conta, no computo indemnizatório relativo ao dano não patrimonial da menor C…, o seu inexistente reflexo lesivo do qual não resulta, obviamente, qualquer dano digno de tutela do direito
XV – O Tribunal a quo fixou em 4.000,00 euros o dano não patrimonial da menor C…, mas este valor é manifestamente exagerado, tendo em conta os factos provados; que a menor … logo após o acidente foi transportada para o Hospital … … onde realizou a primeira avaliação clínica e os exames complementares de diagnóstico; teve alta no próprio dia, sob vigilância aos sinais de alarme; nos momentos e mesmos dias que se seguiram ao acidente, chorava e tinha dificuldade em dormir e não resultou para a autora C… qualquer incapacidade ou afetação da capacidade de trabalho
XVI – O Tribunal a quo fixou em 4.000,00 euros o dano não patrimonial da menor C…, mas este valor é manifestamente exagerado, tendo em conta os factos não provados; A menor C… não apresentou escoriações ao nível da mão esquerda; nos momentos e, mesmo dias que se seguiram ao acidente a afinal a menor não chorava com muita intensidade, principalmente quando ouvia sirenes das ambulâncias; inclusivamente, quando se via na presença de muitas pessoas desconhecidas chorava copiosamente, não conseguindo coabitar com pessoas estranhas, estando totalmente dependente da presença da autora B… enquanto progenitora.
XVII – O Douto Tribunal “a quo” decidiu fixar em 3.281,83 euros o montante indemnizatório relativo a “supostas” perdas decorrentes da sua atividade profissional da autora B… citando: “Relativamente aos danos patrimoniais, verificando que a autora se propunha iniciar uma nova atividade profissional, a qual teve de abandonar em resultado do acidente, e muito embora não seja possível calcular os montantes que supostamente iria auferir, entendo adequado supor que ao menos seria legítimo esperar o valor mensal equivalente ao salário mínimo nacional” (sublinhado apenas de realce).
XVIII – O eventual dano emergente da autora B… determinar-se-ia pelo valor exato de perdas e não por suposições, uma vez que no caso concreto, a loja poderia ser um êxito como poderia ser um fiasco;
XIX - A Sentença é injusta nesta determinação valorativa, porque fixou um montante indemnizatório por perdas que supostamente poderia não existir, tendo em conta que não ficou provado que a autora naquele ano, mais concretamente em 28 de setembro de 2014 abriu uma loja de artigos de vestuário, bijuteria e algum calçado (ponto 7º e artigo 65º da petição inicial); e, nessa sequência, depois de reunir todas as suas poupanças que tanto lhe custaram a ganhar (ponto 8º e artigo 66º da petição inicial) onde iria desenvolver e desenvolveu apenas durante um mês e alguns dias a sua atividade profissional e comercial por conta própria (ponto 9º e artigo 67º da petição inicial) e que a autora B… havia iniciado uma atividade empresarial no comercio do vestuário há pouco mais de um mês relativamente à data do acidente (ponto 10º e artigo 69º da petição inicial) e, por fim, a autora não fez prova que durante o mês em que o estabelecimento se encontrou aberto, a autora conseguiu um rendimento equivalente ao salário mínimo nacional, isto é, cerca de 540.00 euros (ponto 12º e artigo 72º da petição inicial) e que esteve sem trabalhar por um período nunca inferior a um ano (ponto 13º e artigo 73º da petição inicial).
XX – Contraria as mais elementares regras de direito que o Exmº Senhor Juíz do Tribunal a quo tenha considerado que não ficou provado que “durante o mês em que o estabelecimento se encontrou aberto, a autora conseguiu um rendimento equivalente ao salário mínimo nacional, isto é, cerca de 540.00 euros e não se provou que a autora esteve sem trabalhar por um período nunca inferior a um ano resolva no seu livre arbítrio condenar a ora recorrente no montante indemnizatório de 3.281,83 euros por hipotéticas perdas decorrentes da atividade profissional da autora.
XXI – A Justiça não deve ser nem otimista nem pessimista e se condena por dano emergente, esse dano tem de ser demonstrado e não “suposto”.
XXII - A extensão do dano é matéria de facto e da mesma não resulta que a autora B… tenha tido uma perda ou desfalque de valores que constituiriam o seu património, daí que a fixação da indemnização em 3.281,83 euros, sendo matéria de direito é INJUSTA porque ilegítima. (cfr Acórdão do STJ nº 074359 do longínquo ano de 1987 25.07, mas sempre foi assim).
XXIII - Se se pretende condenar a ora apelante com base no pressuposto do “Lucro Cessante”, então, é ainda mais injusto porque da matéria de facto, não resulta a existência de perda real equivalente ao salário mínimo nacional «Nos lucros cessantes pressupõe-se que o lesado tinha, no momento da lesão, um direito ao ganho que se frustrou, ou melhor, a titularidade de uma situação jurídica que, mantendo-se, lhe daria direito a esse ganho.» - cfr. Acórdão do S.T.J de 23/5/78., B.M.J. nº 277; pág. 258.
XXIV - Na fixação do montante indemnizatório por dano não patrimonial da autora C…, a Douta Sentença, mais uma vez o que se fez foi fixar um valor arbitrário, como se o arbítrio substituísse a equidade e esta substituísse a lei.
XXV – A indemnização arbitrada de 20.000,00 euros é elevada e desajustada da realidade, assim violando princípios como o a equidade, da igualdade e da certeza e segurança jurídicas.
XXVI - O valor arbitrado de €20.000,00 a título de danos não patrimoniais afronta manifestamente as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das regras da vida, devendo por isso o mesmo ser alterado para o valor de 8.000,00 euros.
XXVII - Para o efeito cita-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de fevereiro de 2018, processo nº 3901/10.4TJNF.G1.S1
XXVIII – O Tribunal a quo fez uma errada interpretação e aplicação da lei, arbitrando quantia manifestamente alta para compensar o designado “dano não patrimonial” da autora C….
XXIX – O montante da indemnização deverá ser fixado equitativamente, tendo em atenção, em qualquer caso, o disposto nos artigos 494º, 496º, 562º, 564 nº 1 e 2 e 566º nº 3 e 4 e ainda o artigo 8º nº 3 todos do Código Civil, tendo de ser, por isso, alterada a Douta Sentença em conformidade com o disposto no artigo 615º alínea b) do Código de Processo Civil.
XXX - Uma liquidação de sentença destina-se tão somente a obter a concretização do objeto de condenação da mesma, com respeito do caso julgado formado pela sentença liquidanda, não sendo permitido às partes tomar uma posição diferente ou mais favorável do que a já assumida na ação declarativa. Uma liquidação de sentença destina-se, portanto, a concretizar em objeto e quantidade uma condenação genérica.
XXXI - Decidiu a Douta Sentença do Tribunal a quo, “condenar a Ré a pagar à 1ª autora a quantia que se apurar em liquidação posterior por danos patrimoniais sofridos em consequência da inutilização da roupa que seria vendida no estabelecimento comercial da autora (até ao montante de 10.000,00 euros)”.
XXXII – Não é legitimo que a autora não fazendo prova do que pretendia vir o Exmo. Senhor Juiz do Tribunal a quo, possibilitar que a autora apresente nova prova que colmate essa deficiência.
XXXIII – O incidente de liquidação não e o meio adequado à reabertura do processo principal, no sentido de tornar possível dar como provado factos que não se conseguiram provar em sede de processo principal.
XXXIV - Quanto a este aspeto salienta-se o facto provado (único): Facto provado F)’
– “Com o acidente dos autos e por causa deste a autora B… não podendo trabalhar, viu-se na contingência de encerrar o seu estabelecimento comercial, sendo certo que, se viu igualmente na contingência de dar as peças de vestuário que tinha em stock e armazém a instituições de caridade”
XXXV – Se a autora doou as peças de vestuário que tinha em stock e armazém a instituições de caridade não é legítimo pretender que lhe seja pago o eventual valor dessas peças de vestuário doadas.
XXXVI - Se a autora doou, não poderá agora vir cobrar o seu valor à ora apelante. E se pretende receber o valor dessas peças doadas, as mesmas devem pertencer a quem as paga. Ou seja, mesmo considerando como verdadeiro o facto F)’ a mercadoria pertencerá à ora apelante que a paga e se a autora já não a tem porque doou as peças que tinha em stock e armazém terá que devolver á ora apelante o valor da dita mercadoria, e com isso, fica sanada a situação que será igual a 0 (zero) considerando o “Deve” e o “Haver”.
XXXVI - A autora, na ação principal, não fez prova (não ficou provado) que: o Que naquele ano, mais concretamente em 28 de setembro de 2014 abriu uma loja de artigos de vestuário, bijuteria e algum calçado (ponto 7º e artigo 65º da petição inicial); o E, nessa sequência, depois de reunir todas as suas poupanças que tanto lhe custaram a ganhar (ponto 8º e artigo 66º da petição inicial); o Onde iria desenvolver e desenvolveu apenas durante um mês e alguns dias a sua atividade profissional e comercial por conta própria (ponto 9º e artigo 67º da petição inicial); o Que a autora B… havia iniciado uma atividade empresarial no comercio do vestuário há pouco mais de um mês relativamente à data do acidente (ponto 10º e artigo 69º da petição inicial);
XXXVII - E, também, não ficou provado que “esses bens não representarão um montante inferior a 10.000,00 euros (artigo 71º da petição inicial)”
XXXVIII - A autora não fez prova de que abriu uma loja de artigos de vestuário, bijuteria e algum calçado; não fez prova de que, nessa sequência, depois de reunir todas as suas poupanças que tanto lhe custaram a ganhar, iria desenvolver e desenvolveu apenas durante um mês e alguns dias a sua atividade profissional e comercial por conta própria¸ não fez prova de que havia iniciado uma atividade empresarial no comercio do vestuário há pouco mais de um mês relativamente à data do acidente vem agora o Tribunal a quo possibilitar á autora que desvirtua toda esta factualidade não provada e faça nova prova para conseguir receber mais algum montante indemnizatório das roupas que doou.
XXXIX - A sentença, quando à decisão sobre a liquidação em execução de sentença, além do mais, está obscura e ambígua em resultado da contradição que se encontra entre o facto F)’ (provado) e os pontos 7º a 11º (não provados), pelo que deve ser considerada a nulidade prevista no artigo 615º nº1 alínea c) do Código de Processo Civil.
Em face do exposto, não tem qualquer fundamento a condenação da ora apelante como pretende o Exmo. Senhor Juiz do Tribunal a quo.
Perante todo o supra exposto, A Recorrente pugna pela revogação da Douta Sentença e a sua substituição por Decisão que, tendo em conta os factos provados, decida em conformidade com as Conclusões descritas e faça a acostumada JUSTIÇA.
As autoras responderam às alegações de recurso, pugnando pela sua total improcedência.

II. Do mérito do recurso
1. Definição do objeto do recurso
O objeto dos recursos delimitados pelos recorrentes nas conclusões das suas alegações (artigos 635.º, n.º 3 e 4 e 639.º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 3.º, n.º 3, do diploma legal citado), consubstancia-se na apreciação das seguintes questões:
1.1. Apreciação da nulidade suscitada;
1.2. Apreciação e reponderação dos danos não patrimoniais
1.2.1. Indemnização por danos não patrimoniais da autora C…
1.2.2. Indemnização por danos não patrimoniais da autora B…
1.3. Aferição dos danos patrimoniais
1.4. Apreciação da condenação em montante sujeito a posterior liquidação

2. Fundamentos de facto
É a seguinte factualidade relevante provada vertida na sentença recorrida:
A) No dia 05 de dezembro de 2014, cerca das 09H15, ocorreu um acidente de trânsito na Rua …, junto ao entroncamento com a Rua …, nesta cidade do Porto.
B) Nesse acidente foram intervenientes: - o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula OQ-..-.., de marca BMW, e - os peões B… e a sua filha menor C….
C) O veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula OQ-..-.., era propriedade de E….
D) E, na altura do acidente de trânsito, era por ele próprio conduzido.
E) A autora B…e desenvolvia a sua marcha, apeada, empurrando o carrinho de bebé que transportava a sua filha C…, que, na altura, tinha apenas 1 ano de idade (2ª autora).
F) À data do acidente, a responsabilidade civil emergente da circulação do OQ-..-.. encontrava-se válida e eficazmente transferida para a demandada, através de contrato de seguro titulado pela apólice nº ……..
G) Logo após o acidente, as autoras foram transportadas para o Hospital …, nesta cidade e comarca, onde realizaram a primeira avaliação clínica e os exames complementares de diagnóstico.
H) A autora C… teve alta no próprio dia, sob vigilância aos sinais de alarme.
I) Nos momentos e, mesmo dias, que se seguiram ao acidente, a menor C… chorava e tinha dificuldades em dormir;
J) Não resultou, para a autora C…, qualquer incapacidade ou afetação da capacidade de trabalho (doc. de fls. 33 e ss – 1º exame preliminar já realizado no IML, no âmbito do inquérito nº 370/15.6SJPRT – 7ª SECÇÃO – DIAP do Porto).
L) Por sua vez, a autora B… apresentava dores ao nível dos membros inferiores e superiores direito e tornozelo esquerdo.
M) Realizou radiografia ao membro superior e inferior que não revelaram fraturas ósseas.
N) Apresentava, ainda, escoriações ao nível da coxa e punhos, vários hematomas a nível da porção interna do cotovelo direito com escoriações; hematoma na superior lateral da coxa direita e porção inferior interna da coxa esquerda.
O) Teve alta no próprio dia, bem como com encaminhamento para o médico de família.
P) A autora B… teve, todavia, de recorrer ao Centro de Saúde por várias vezes, doc. 9.
Q) Por chorar muito e não conseguir dormir.
R) Apenas conseguia sair de casa para ir às consultas, e na companhia de familiares.
S) Sempre que se aproximava das passadeiras, entrava em pânico.
T) A autora B… padecia de síndrome depressivo (com início em data anterior ao acidente) associado a quadro de fobias.
U) Foi-lhe prescrita, pelo médico de família, medicação para a depressão, para dormir, conforme melhor resulta dos registos clínicos do Centro de Saúde … – Porto.
V) Foi, também, seguida desde janeiro de 2015, pelos serviços médicos da ora demandada D…, na consulta externa de ortopedia/fisiatria nos Hospitais F… – Porto.
X) A autora B… realizou, também, através dos serviços clínicos da ora demandada, trabalho de reabilitação/fisioterapia durante quatro meses (de janeiro a abril de 2015).
Z) Em resultado do acidente, a autora B… sofreu as seguintes lesões físicas: Membro inferior direito: área de depressão do tecido subcutâneo, com 1,5 cm de diâmetro, na face lateral do terço médio da coxa, com dor à palpação.
A)’ A autora B… esteve em ITA desde a data do acidente (05/12/2014); tendo sido dada alta pela demandada seguradora até 21/04/2015.
B)’- Posteriormente a essa data, o seu médico de família atribui ainda à autora B… baixa por doença pelo menos até 18/06/2015.
C)’ O quadro de fobias e depressão (síndrome depressivo associado a quadro de fobias) manteve-se, pelo menos, até dezembro de 2015, altura em que vê obrigada a deixar a medicação por se encontrar grávida da sua terceira filha.
D)’ A autora pretendia abrir uma loja de roupa, pelo que conseguiu arrendar um estabelecimento comercial sito na Rua …, …, em …, nesta Comarca, tendo celebrado um contrato de arrendamento com início a 01/11/2014, como melhor comprovam os docs. juntos sob os nºs 12 e 13.
E)’ Em consequência do acidente descrito nos autos, a autora esteve impossibilitada de exercer qualquer atividade durante o período em que esteve de baixa médica, ou seja, até 21/04/2015, e foi forçada a encerrar a loja e devolver o arrendado ao senhorio.
F)’ Com o acidente dos autos e por causa deste a autora B… não podendo trabalhar, viu-se na contingência de encerrar o seu estabelecimento comercial, sendo certo que, se viu igualmente na contingência de dar as peças de vestuário que tinha em stock e armazém a instituições de caridade.
G)’- A autora B…, ainda durante todo o período de baixa médica e porque não se encontrava capaz de desempenhar as tarefas domésticas, mercê da situação clínica em que se encontrava, necessitou do auxílio de uma terceira pessoa nos cuidados das suas duas filhas, marido e ainda da sua habitação.
H)’- Quase diariamente, uma amiga, G…, deslocava-se a casa da autora B….
I)’- A autora B… teve ainda a seu cargo as despesas de farmácia e consultas médicas no Centro de Saúde …- Porto e que totalizam a quantia de 44,91 €, quantia que igualmente se reclama da demandada (doc. 15 e 16).
J)’ A autora B… não apresentava à data do acidente qualquer defeito físico.
L)’ Receou sair à via pública.
M)’ No dia do acidente, a autora B… ia levar a sua filha C… ao infantário que ficava situado na Rua …, no Porto.
N)’ A autora B… desde essa altura nunca mais conseguiu levar a sua filha C… para aquele infantário.
O)’ A autora B… ficou a padecer de um dano estético correspondente à cicatriz no membro inferior direito em resultado do acidente.
P)’ O que lhe causa mau estar e dores constantes e afeta socialmente, pois tem vergonha de exibir o corpo nas partes afetadas.
Q)’- Em resultado das sequelas supra descritas sente dificuldade em executar as tarefas diárias, o que não sentia antes do acidente.
R)’ A autora B… necessitará de continuar a depender futuramente da ajuda de medicamentos, tais como analgésicos e anti-inflamatórios.
S)’ A 1.ª autora apresenta as seguintes «Lesões e/ou sequelas relacionáveis com o evento (…) Membro superior direito: ombro sem alterações objetivas, com mobilidade e força conservadas (bem como restante membro), referindo dor (sem reação de defesa) na sua superfície anterior, na região acrómio-clavicular nos movimentos de rotação e na abdução, especialmente em esforço ou contra resistência; Membro inferior direito: ausência de atrofias musculares valorizáveis; área de depressão do tecido subcutâneo, com sensivelmente 1,5 cm de diâmetro, na face lateral da transição dos terços superior e médio da coxa, com dor à palpação; anca com mobilidade mecânica conservada, demonstrando dor e defesa acima dos 90- 100º de flexão, na quase totalidade da rotação interna e a partir dos 20-30º da rotação externa; mobilidade do joelho conservada; força muscular dos movimentos dependentes da coxo-femural de avaliação difícil devido às queixas dolorosas, admitindo-se alguma diminuição da força nesse sentido».
T)’ A autora «não apresenta afetação permanente da sua integridade psíquica. (…) É de admitir considerar um período de dano temporário, na forma de reação de adaptação ansioso-depressiva, que decorreu entre a data do acidente e junho de 2015, altura em que terá ocorrido a cura daquela situação clínica.».
U)’ «2. A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 25-06-2015, tendo em conta os seguintes aspetos: o tipo de lesões resultantes, o tipo de tratamentos efetuados e data a partir da qual não se regista evolução positiva do quadro clínico nos elementos documentais fornecidos.
3. No âmbito do período de danos temporários são valorizáveis, entre os diversos parâmetros do dano, os seguintes: - Défice Funcional Temporário (corresponde ao período durante o qual a vítima, em virtude do processo evolutivo das lesões no sentido da cura ou da consolidação, viu condicionada a sua autonomia na realização dos atos correntes da vida diária, familiar e social, excluindo-se aqui a repercussão na atividade profissional).
Considerou-se o: Défice Funcional Temporário Total (anteriormente designado por Incapacidade Temporária Geral Total e correspondendo com os períodos de internamento e/ou de repouso absoluto), que se terá situado em 05-12-2014, sendo fixável num período de 1 dia.; Défice Funcional Temporário Parcial (anteriormente designado por Incapacidade Temporária Geral Parcial, correspondendo ao período que se iniciou logo que a evolução das lesões passou a consentir algum grau de autonomia na realização desses atos, ainda que com limitações), que se terá situado entre 06-12-2014 e 25-06- 2015, sendo fixável num período de 202 dias; Repercussão Temporária na Atividade Profissional (correspondendo ao período durante o qual a vítima, em virtude do processo evolutivo das lesões no sentido da cura ou da consolidação, viu condicionada a sua autonomia na realização dos atos inerentes à sua atividade profissional habitual).
Considerou-se a: Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total (anteriormente designada por Incapacidade Temporária Profissional Total, correspondendo aos períodos de internamento e/ou de repouso absoluto, entre outros), que se terá situado entre 05-12-2014 e 25-06-2015, sendo fixável num período total de 203 dias; - Quantum doloris (corresponde à valoração do sofrimento físico e psíquico vivenciado pela vítima durante o período de danos temporários, isto é, entre a data do evento e a cura ou consolidação das lesões); fixável no grau 4 numa escala de sete graus de gravidade crescente, tendo em conta as lesões resultantes, o período de recuperação funcional, o tipo de traumatismo, os tratamentos efetuados e o relatório de Psiquiatria Forense, que especifica dano temporário durante esse período.
4. No respeitante a danos permanentes são valorizáveis, entre os diversos parâmetros de dano, os seguintes: (…) Mf1202 - considerando queixas dolorosas a nível do ombro sem bloqueio mecânico; 1 ponto; Mf1302 - por analogia, considerando queixas dolorosas a esse nível, secundários a cicatriz de hematoma, com maior repercussão que a nível do ombro – 3 pontos. (…) Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-psíquica fixável em 4 pontos. Repercussão Permanente na Atividade Profissional (corresponde ao rebate das sequelas no exercício da atividade profissional habitual da vítima - atividade à data do evento, isto é, na sua vida laboral, para utilizar a expressão usada na Portaria nº 377/2008, de 26 de maio, tratando-se do parâmetro de dano anteriormente designado por Rebate profissional).
Neste caso, as sequelas são compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares no sentido de compensar as queixas funcionais.
Dano Estético Permanente (corresponde à repercussão das sequelas, numa perspetiva estática e dinâmica, envolvendo uma avaliação personalizada da afetação da imagem da vítima quer em relação a si próprio, quer perante os outros). É fixável no grau 1, numa escala de sete graus de gravidade crescente, tendo em conta os seguintes aspetos: a cicatriz da coxa.
Repercussão Permanente na Atividade Sexual (correspondendo à limitação total ou parcial do nível de desempenho/gratificação de natureza sexual, decorrente das sequelas físicas e/ou psíquicas, não se incluindo aqui os aspetos relacionados com a capacidade de procriação; trata-se do dano anteriormente designado por Prejuízo Sexual) É fixável no grau 1, com base em afetação, pelas dores, na qualidade das relações sexuais».
Factos não provados:
1.º- A menor C… apresentava algumas escoriações ao nível da mão esquerda (artigo 35.º da petição inicial).
2.º- Nos momentos e, mesmo dias, que se seguiram ao acidente, a menor C… chorava com muita intensidade, principalmente quando ouvia sirenes das ambulâncias (artigo 37.º da petição inicial).
3.º- Inclusivamente, quando se via na presença de muitas pessoas desconhecidas, chorava copiosamente, não conseguindo coabitar com pessoas estranhas, estando totalmente dependente da presença da autora B…, enquanto progenitora (artigo 38.º da petição inicial).
4.º- «sob vigilância» (43.º da petição inicial).
5.º- Para a dores (artigo 49.º da petição inicial).
6.º- Mobilidade da anca – flexão entre 0º - 90º por dor (0º - 120º à esquerda), rotação interna entre 0º - 10º e rotação externa entre 0º - 30º - rotações mantidas indolores à esquerda, conforme resulta do 2º exame preliminar realizado no IML (artigo 53.º da petição inicial).
7.º- Com efeito, a autora B… naquele ano, mais concretamente em 28 de setembro de 2014, abriu uma loja para venda de artigos de vestuário, bijuteria e algum calçado (artigo 65.º da petição inicial).
8.º- E, nessa sequência, depois de reunir todas as suas poupanças, que tanto lhe custara a ganhar (artigo 66.º da petição inicial).
9.º- Onde iria desenvolver, e desenvolveu apenas durante um mês e alguns dias, a sua atividade profissional e comercial por conta própria (doc. 13) (artigo 67.º da petição inicial).
10.º- A autora B… havia iniciado uma atividade empresarial no comércio do vestuário há pouco mais de um mês relativamente à data do acidente (artigo 69.º da petição inicial).
11.º- Esses bens não representarão um montante inferior a 10 mil euros (artigo 71.º da petição inicial).
12.º- Por outro lado, durante o mês em que o estabelecimento se encontrou aberto, a autora conseguiu um rendimento equivalente ao salário mínimo nacional, isto é, cerca de 540,00 € (artigo 72.º da petição inicial).
13.º- Esteve sem trabalhar por um período nunca inferior a um ano (artigo 73.º da petição inicial).
14.º- «residente em Valongo», a B…e, «pagava-lhe, por conseguinte, as despesas de transporte» (artigo 76.º da petição inicial).
15.º- O somatório destas despesas totalizam a quantia de 315,25 €, quantia que também aqui se reclama (artigo 77.º da petição inicial).
16.º- A autora B…, em resultado do acidente, apresentava e apresenta sintomas depressivos (artigo 79.º da petição inicial).
17.º- A autora era saudável e tinha uma vida social ativa de acordo com a idade (artigo 80.º da petição inicial).
18.º- A autora teve receio de morrer ou que a sua filha C… também viesse a morrer em resultado do acidente (artigo 82.º da petição inicial).
19.º- Durante muito tempo (artigo 83.º da petição inicial).
20.º- Ainda hoje receia sair à via pública sozinha ou com as suas filhas (artigo 84.º da petição inicial).
21.º- Ainda hoje receia atravessar vias de trânsito, só o fazendo na companhia de familiares ou amigos (artigo 87.º da petição inicial).
22.º- Originando um estado de ansiedade constante e elevado (artigo 90.º da petição inicial).

3. Fundamentos de direito
3.1. A invocada “nulidade da sentença”
Alega a recorrente que: «A sentença, quando à decisão sobre a liquidação em execução de sentença, além do mais, está obscura e ambígua em resultado da contradição que se encontra entre o facto F)’ (provado) e os pontos 7º a 11º (não provados), pelo que deve ser considerada a nulidade prevista no artigo 615º nº1 alínea c) do Código de Processo Civil.» [conclusão XXXIX]
Cumpre decidir.
Consta do ponto F)’ da factualidade provada: «Com o acidente dos autos e por causa deste a autora B… não podendo trabalhar, viu-se na contingência de encerrar o seu estabelecimento comercial, sendo certo que, se viu igualmente na contingência de dar as peças de vestuário que tinha em stock e armazém a instituições de caridade.».
Consta dos pontos 7º a 11º dos factos não provados:
«7.º- Com efeito, a autora B… naquele ano, mais concretamente em 28 de setembro de 2014, abriu uma loja para venda de artigos de vestuário, bijuteria e algum calçado.
8.º- E, nessa sequência, depois de reunir todas as suas poupanças, que tanto lhe custara a ganhar.
9.º- Onde iria desenvolver, e desenvolveu apenas durante um mês e alguns dias, a sua atividade profissional e comercial por conta própria.
10.º- A autora B… havia iniciado uma atividade empresarial no comércio do vestuário há pouco mais de um mês relativamente à data do acidente.
11.º- Esses bens não representarão um montante inferior a 10 mil euros.»
Nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil, a sentença é nula sempre que os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
O vício invocado pela recorrente verifica-se sempre que os fundamentos de facto e de direito invocados conduzam logicamente a resultado oposto ou diverso daquele que integra o respetivo segmento decisório[1].
Em suma, os fundamentos de facto e de direito da sentença devem harmonizar-se logicamente com a conclusão ou decisão, o que não se verifica quando haja contradição entre esses fundamentos e a decisão nos quais assenta, não se devendo confundir a contradição lógica apontada no recurso [entre os fundamentos e a decisão da sentença], com o erro de interpretação dos factos ou do direito ou da integração daqueles neste[2].
Analisada a factualidade apontada, não verificamos a apontada contradição. Pelo contrário, o percurso expositivo que culmina no segmento decisório revela-se formalmente coerente, sendo manifesta a harmonia lógica entre os fundamentos e a decisão.
Questão diversa reside em saber se a condenação da ré a pagar à 1.ª autora a quantia que se apurar em liquidação posterior por danos patrimoniais sofridos em consequência da inutilização da roupa que seria vendida no estabelecimento comercial da autora (até ao montante de €10.000,00), face à factualidade provada e à sua integração jurídica, se deverá manter em sede de apreciação do mérito do recurso.
Mas tal questão será objeto de apreciação em momento ulterior.
Decorre do exposto a improcedência da arguição de nulidade pela recorrente.
3.2. Os danos não patrimoniais
Nas conclusões I a XVI, a recorrente insurge-se contra a sua condenação na quantia a título de danos não patrimoniais à autora (menor) C…, alegando que não foi considerada a “tendência dos nossos tribunais para lançar mãos de critérios quantitativos com o objetivo de tornar o mais possível justas, atuais e minimamente discrepantes as indemnizações”, tendo sido transformada a equidade “adaptativa” ou “corretiva” “em livre arbítrio na determinação dos valores indemnizatórios”.
Mais alega que tal valor “é manifestamente exagerado, tendo em conta os factos não provados: “a menor C… não apresentou escoriações ao nível da mão esquerda; nos momentos e, mesmo dias que se seguiram ao acidente a afinal a menor não chorava com muita intensidade, principalmente quando ouvia sirenes das ambulâncias; inclusivamente, quando se via na presença de muitas pessoas desconhecidas chorava copiosamente, não conseguindo coabitar com pessoas estranhas, estando totalmente dependente da presença da autora B… enquanto progenitora.”
Consta da fundamentação jurídica da sentença: «No que se refere à 2.ª autora, tendo em conta a factualidade apurada no que tange a danos não patrimoniais sofridos (v. alíneas H) e I) supra) entendo adequado e proporcional fixar a indemnização em €4.000,00.».
Nas conclusões XXIV a XXX, a recorrente insurge-se contra a sua condenação na quantia a título de danos não patrimoniais à autora B…, alegando que o valor arbitrado - € 20.000,00 - a título de danos não patrimoniais afronta manifestamente as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das regras da vida, devendo por isso o mesmo ser alterado para o valor de 8.000,00 euros.
Consta da fundamentação jurídica da sentença: «Quanto aos danos não patrimoniais, há que ter em conta as dores sofridas, o quantum doloris – 4/7, o condicionamento da autonomia da autora durante 203 dias, o dano estético 1/7; a repercussão permanente na atividade sexual 1/7; o período de adaptação ansiosodepressiva até junho de 2015; fobias; (v. alíneas U)’; L), V)’, L)’, N)’, P) a S), C)’, G)’ e H)’); pelo que tudo ponderado, afigura-se adequado fixar o montante indemnizatório em €20.000,00».
Cumpre decidir.
De acordo com o disposto nos artigos 496.º e 494.º do Código Civil, na fixação da indemnização haverá que atender aos danos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, fixando o valor indemnizatório, com referência à equidade, atendendo ao grau de culpa, à situação económica do lesante e do lesado e às demais circunstâncias do caso que o justifiquem.
É pacífico na doutrina, o entendimento de que o montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa do lesante) segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado, devendo ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.[3]
Conforme entendimento expresso no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17.11.2005[4], na determinação do quantum da compensação por danos não patrimoniais deve atender-se à culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado, tendo em conta as lesões, as suas sequelas e o sofrimento físico-psíquico por ele experimentado, sob o critério objetivo da equidade, envolvente da justa medida das coisas.
A jurisprudência atual é pacífica no sentido de, não obstante a dificuldade em quantificar os danos não patrimoniais, a indemnização a fixar dever ser justa e equitativa, e não com um alcance meramente simbólico, devendo a indemnização ter uma expressão monetária elevada se o dano for muito grave[5].
Um dos critérios a considerar na fixação dos montantes indemnizatórios, com vista à uniformidade da aplicação do direito (artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil), é os dos valores praticados na jurisprudência em casos semelhantes.
Como se refere no acórdão do STJ, de 5.11.2009[6], a gravidade do dano é um conceito relativamente indeterminado, carecido de preenchimento valorativo a fazer caso a caso, de acordo com a realidade fáctica apurada. Não obstante dever essa apreciação ter em conta as circunstâncias de cada caso, deverá medir-se por um padrão objetivo, devendo, por outro lado, ser apreciada em função da tutela do direito: o dano deverá ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado.
Conforme entendimento expresso no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17.11.2005[7], na determinação do quantum da compensação por danos não patrimoniais deve atender-se à culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado, tendo em conta as lesões, as suas sequelas e o sofrimento físico-psíquico por ele experimentado, sob o critério objetivo da equidade, envolvente da justa medida das coisas.
3.2.1. Indemnização por danos não patrimoniais da autora C…
Definidos os critérios, vejamos a factualidade relevante provada e não provada, relativamente à autora C… (menor):
Provou-se que:
E) A autora C… tinha apenas 1 ano de idade;
G) Logo após o acidente foi transportada para o Hospital …, onde se realizou a primeira avaliação clínica e os exames complementares de diagnóstico.
H) Teve alta no próprio dia;
I) Nos dias que se seguiram ao acidente, chorava e tinha dificuldades em dormir;
J) Não resultou do acidente qualquer incapacidade ou afetação da capacidade de trabalho (futura).
Não se provou que:
1.º- A autora C… apresentava escoriações ao nível da mão esquerda;
2.º- Nos dias, que se seguiram ao acidente, chorava com muita intensidade, principalmente quando ouvia sirenes das ambulâncias;
3.º- Quando se via na presença de muitas pessoas desconhecidas, “chorava copiosamente, não conseguindo coabitar com pessoas estranhas, estando totalmente dependente da presença da autora B…, enquanto progenitora”.
Uma criança com um ano de idade não exprime o seu sofrimento como um adulto. Vive num mundo reservado, ao qual os adultos têm dificuldade em aceder.
Sabemos, no entanto, da sua necessidade de segurança que, quando abalada por uma exposição a elevado perigo, pode determinar uma situação de sofrimento com consequências futuras.[8]
Mas que consequências, se elas ainda nem sequer ocorreram?
Como refere Henri Wallon [Psicologia e Educação da Criança, Edição Vega, Coleção: Vega/Universidade, pág. 202], a partir dos 6 meses de idade desenvolve-se a fase afetiva ou emotiva em que a criança vive quase tanto das suas relações humanas como da sua alimentação material.
É entre um e cinco anos de idade que a criança sofre uma enorme evolução, designadamente na sua arquitetura estrutural, como nos diz o Pedopsiquiatra Mário Cordeiro [O Livro da Criança do 1 aos 5 anos, editora Esfera dos Livros, 5.ª edição, pág. 176].
As crianças estão rodeadas por potenciais perigos todos os dias, mas quando um acontecimento ameaça ou causa dano ao bem-estar emocional e físico de uma pessoa, torna-se uma situação traumática.
Enquanto os sintomas de Stress pós traumático são os problemas mais comuns das crianças que viveram um acontecimento traumático ou catástrofe natural, muitas crianças também desenvolvem sintomas como depressão problemas de comportamento ou ansiedade – vide “Suporte a Crianças após Traumas... Versão traduzida e adaptada... Escola Superior de Educação de Coimbra - http://avipg.org/pdf/suporte-criancas-apos-traumas-catastrofes-morte.pdf.
Na situação sub judice, a prova é escassa, como bem refere a recorrente, mas provaram-se danos - transporte para o Hospital …, onde se realizou a primeira avaliação clínica e os exames complementares de diagnóstico: nos dias que se seguiram ao acidente, a criança chorava e tinha dificuldades em dormir.
Não encontrámos jurisprudência sobre esta matéria, mas entendemos que, considerando a idade da autora (um ano), e a situação traumática que viveu, os danos sofridos mereçam a tutela do direito face ao disposto nos artigos 496.º e 494.º do Código Civil, pelo que, fixando o valor indemnizatório com referência à equidade, atendendo ao grau de culpa, à situação económica do lesante e do lesado e às demais circunstâncias do caso que o justifiquem, consideramos adequado e proporcional a indemnização de € 2.000,00.
Procede assim parcialmente o recurso neste segmento.
3.2.2. Indemnização por danos não patrimoniais da autora B…
Vejamos agora a factualidade relevante provada e não provada, relativamente à autora B…:
Provou-se que:
G) Logo após o acidente, as autoras foram transportadas para o Hospital …, onde realizaram a primeira avaliação clínica e os exames complementares de diagnóstico.
L) A autora B… apresentava dores ao nível dos membros inferiores e superiores direito e tornozelo esquerdo.
M) Realizou radiografia ao membro superior e inferior que não revelaram fraturas ósseas.
N) Apresentava, ainda, escoriações ao nível da coxa e punhos, vários hematomas a nível da porção interna do cotovelo direito com escoriações; hematoma na superior lateral da coxa direita e porção inferior interna da coxa esquerda.
O) Teve alta no próprio dia, bem como com encaminhamento para o médico de família.
P) A autora B… teve, todavia, de recorrer ao Centro de Saúde por várias vezes.
Q) Por chorar muito e não conseguir dormir.
R) Apenas conseguia sair de casa para ir às consultas, e na companhia de familiares.
S) Sempre que se aproximava das passadeiras, entrava em pânico.
T) A autora B… padecia de síndrome depressivo (com início em data anterior ao acidente) associado a quadro de fobias.
U) Foi-lhe prescrita, pelo médico de família, medicação para a depressão, para dormir, conforme melhor resulta dos registos clínicos do Centro de Saúde … – Porto.
V) Foi, também, seguida desde janeiro de 2015, pelos serviços médicos da ora demandada D…, na consulta externa de ortopedia/fisiatria nos Hospitais F… – Porto.
X) A autora B… realizou, também, através dos serviços clínicos da ora demandada, trabalho de reabilitação/fisioterapia durante quatro meses (de janeiro a abril de 2015).
Z) Em resultado do acidente, a autora B… sofreu as seguintes lesões físicas: Membro inferior direito: área de depressão do tecido subcutâneo, com 1,5 cm de diâmetro, na face lateral do terço médio da coxa, com dor à palpação.
A)’ A autora B… esteve em ITA desde a data do acidente (05/12/2014); tendo sido dada alta pela demandada seguradora até 21/04/2015.
B)’- Posteriormente a essa data, o seu médico de família atribui ainda à autora B… baixa por doença pelo menos até 18/06/2015.
C)’ O quadro de fobias e depressão (síndrome depressivo associado a quadro de fobias) manteve-se, pelo menos, até dezembro de 2015, altura em que vê obrigada a deixar a medicação por se encontrar grávida da sua terceira filha.
G)’- A autora B…, ainda durante todo o período de baixa médica e porque não se encontrava capaz de desempenhar as tarefas domésticas, mercê da situação clínica em que se encontrava, necessitou do auxílio de uma terceira pessoa nos cuidados das suas duas filhas, marido e ainda da sua habitação.
J)’ A autora B… não apresentava à data do acidente qualquer defeito físico.
L)’ Receou sair à via pública.
M)’ No dia do acidente, a autora B… ia levar a sua filha C… ao infantário que ficava situado na Rua …, no Porto.
N)’ A autora B… desde essa altura nunca mais conseguiu levar a sua filha C… para aquele infantário.
O)’ A autora B… ficou a padecer de um dano estético correspondente à cicatriz no membro inferior direito em resultado do acidente.
P)’ O que lhe causa mau estar e dores constantes e afeta socialmente, pois tem vergonha de exibir o corpo nas partes afetadas.
Q)’- Em resultado das sequelas supra descritas sente dificuldade em executar as tarefas diárias, o que não sentia antes do acidente.
R)’ A autora B… necessitará de continuar a depender futuramente da ajuda de medicamentos, tais como analgésicos e anti-inflamatórios.
Face ao relatório da perícia realizada nos autos:
S)’ A autora B… apresenta as seguintes «Lesões e/ou sequelas relacionáveis com o evento (…) Membro superior direito: ombro sem alterações objetivas, com mobilidade e força conservadas (bem como restante membro), referindo dor (sem reação de defesa) na sua superfície anterior, na região acrómio-clavicular nos movimentos de rotação e na abdução, especialmente em esforço ou contra resistência; Membro inferior direito: ausência de atrofias musculares valorizáveis; área de depressão do tecido subcutâneo, com sensivelmente 1,5 cm de diâmetro, na face lateral da transição dos terços superior e médio da coxa, com dor à palpação; anca com mobilidade mecânica conservada, demonstrando dor e defesa acima dos 90- 100º de flexão, na quase totalidade da rotação interna e a partir dos 20-30º da rotação externa; mobilidade do joelho conservada; força muscular dos movimentos dependentes da coxo-femural de avaliação difícil devido às queixas dolorosas, admitindo-se alguma diminuição da força nesse sentido».
T)’ «É de admitir considerar um período de dano temporário, na forma de reação de adaptação ansioso-depressiva, que decorreu entre a data do acidente e junho de 2015, altura em que terá ocorrido a cura daquela situação clínica.».
[…] «4. No respeitante a danos permanentes são valorizáveis, entre os diversos parâmetros de dano, os seguintes: (…) Mf1202 - considerando queixas dolorosas a nível do ombro sem bloqueio mecânico; 1 ponto; Mf1302 - por analogia, considerando queixas dolorosas a esse nível, secundários a cicatriz de hematoma, com maior repercussão que a nível do ombro – 3 pontos. (…) Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-psíquica fixável em 4 pontos. […]
Dano Estético Permanente (corresponde à repercussão das sequelas, numa perspetiva estática e dinâmica, envolvendo uma avaliação personalizada da afetação da imagem da vítima quer em relação a si próprio, quer perante os outros). É fixável no grau 1, numa escala de sete graus de gravidade crescente, tendo em conta os seguintes aspetos: a cicatriz da coxa.
Repercussão Permanente na Atividade Sexual (correspondendo à limitação total ou parcial do nível de desempenho/gratificação de natureza sexual, decorrente das sequelas físicas e/ou psíquicas, não se incluindo aqui os aspetos relacionados com a capacidade de procriação; trata-se do dano anteriormente designado por Prejuízo Sexual) É fixável no grau 1, com base em afetação, pelas dores, na qualidade das relações sexuais».
O quadro factual descrito não deixa dúvidas quanto ao sofrimento de uma mãe que, circulando na rua, empurrando o carrinho de bebé que transportava a sua filha com apenas 1 ano de idade, a caminho do infantário, é atropelada por um veículo, por culpa exclusiva do condutor, acabando por sofrer graves lesões, que lhe determinaram o sofrimento traduzido na factualidade provada, para além do que decorre da inevitável aflição de ver a bebé envolvida numa situação de elevado risco.
Como se referiu, dada a sua singular natureza, os danos não patrimoniais não são passíveis de reconstituição natural, não sendo, em rigor, indemnizáveis, mas apenas compensáveis pecuniariamente.
A compensação a arbitrar não corresponde diretamente ao preço da dor ou de qualquer outro bem não patrimonial, traduzindo-se antes numa satisfação concedida ao lesado para minorar o seu sofrimento.
Um dos referenciais a ter em conta é a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça sobre esta temática, citando-se alguns arestos:
- No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.11.2019 [processo 107/17.5T8MMV.C1.S1] considerou-se: «… temos no caso, que estão provados danos não patrimoniais com gravidade suficiente para merecerem a tutela do direito. É o caso: (1) [d]as dores físicas e psíquicas desde o acidente até à data da consolidação das lesões avaliadas no grau 4, numa escala de 7 graus de gravidade crescente; (2) [d]as dores sentidas na face superior do ombro direito com as mudanças de temperatura e com os movimentos do braço direito nos últimos graus da abdução/antepulsão e rotação externa do ombro; (3) [d]o dano estético, representado pela cicatriz na omoplata direita, avaliado num grau 2, numa escala de 7 graus de gravidade crescente; (4) [d]o desgosto que a autora sofre pelo facto de ter ficado com a cicatriz na omoplata; (5) [d]as limitações na actividade física e de lazer, resultantes do facto de ter deixado de praticar futsal, actividade que contribuía para o seu bem-estar e satisfação; (6) [d]o condicionamento da sua autonomia na realização dos actos correntes da vida diária, familiar e social, que experimentou desde o acidente até à consolidação das lesões. No entender deste tribunal, é equitativo indemnizar os danos não patrimoniais com o montante de € 20.000,00.».
- No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5.02.2017, citado no acórdão anterior [processo n.º 505/15.9T8AVR.P1.S1], julgou-se equitativo o valor de € 20.000,00, num caso que tem algumas semelhanças com o caso dos autos, quanto à origem dos danos (acidente de viação), quanto à ausência de culpa da vítima, quanto sofrimento físico e psíquico (quantum doloris de grau 4, quanto ao dano estético (grau 3) e quanto à repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer (grau 2)”.
- No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.10.2019 [processo 7614/15.2T8GMR.G1.S1], sumariou-se nestes termos: «IV - Considerando (i) as cinco intervenções cirúrgicas a que o autor se submeteu, (ii) os tratamentos de fisioterapia durante cerca de dois anos, (iii) a dor física que padeceu (grau 4 numa escala de 1 a 7), (iv) o dano estético (grau 3 numa escala de 1 a 7), a afetação permanente nas atividades desportivas e de lazer (grau 3 numa escala de 1 a 7), (v) a limitação funcional do membro superior esquerdo em relação a alguns movimentos, (vi) a dor ligeira da anca no máximo da flexão e ao ficar de cócoras, (vii) a tristeza, a depressão e o desgosto, considera-se adequado compensar estes danos não patrimoniais no montante de € 30.000,00, reduzindo-se, assim, a indemnização fixada pela Relação.».
Pensamos que a situação descrita nos autos, face à sua especificidade, considerando, nomeadamente – o “Dano Estético Permanente”, a “Repercussão Permanente na Atividade Sexual”, o quadro de fobias e depressão (síndrome depressivo associado a quadro de fobias), o padecimento de síndrome depressivo, o facto de a autora apenas conseguir sair de casa para ir às consultas, na companhia de familiares, o facto de ter ficado incapaz de desempenhar as tarefas domésticas durante o período de baixa, o receio com que ficou de sair à via pública, o facto de nunca mais ter conseguido levar a sua filha C… para o infantário – justifica a fixação, como valor proporcional e adequado, do valor de € 20.000,00 a título de danos não patrimoniais, revelando-se manifestamente desadequado o valor de € 8.000,00 preconizado pela recorrente.
Improcede o recurso neste segmento.
3.3. Danos patrimoniais
Nas conclusões XVII a XXII a recorrente insurge-se contra a sua condenação no pagamento da quantia de € 3.281,83 referentes a indemnização por danos patrimoniais, alegando, nomeadamente: «A Sentença é injusta nesta determinação valorativa, porque fixou um montante indemnizatório por perdas que supostamente poderia não existir, tendo em conta que não ficou provado que a autora naquele ano, mais concretamente em 28 de setembro de 2014 abriu uma loja de artigos de vestuário, bijuteria e algum calçado (ponto 7º e artigo 65º da petição inicial)».
Ficou decidido na sentença recorrida: «Relativamente aos danos patrimoniais, verificando que a autora se propunha iniciar uma nova atividade profissional, a qual teve de abandonar em resultado do acidente, e muito embora não seja possível calcular os montantes que supostamente iria auferir, entendo adequado supor que ao menos seria legítimo esperar o valor mensal equivalente ao salário mínimo nacional. Pelo que tendo em atenção tal valor à data do acidente e a repercussão temporária na atividade profissional, fixo em €3.281,83 o montante indemnizatório.».
Vejamos a factualidade provada:
D)’ A autora pretendia abrir uma loja de roupa, pelo que conseguiu arrendar um estabelecimento comercial sito na Rua …, …, em …, nesta Comarca, tendo celebrado um contrato de arrendamento com início a 01/11/2014, como melhor comprovam os docs. juntos sob os nºs 12 e 13.
E)’ Em consequência do acidente descrito nos autos, a autora esteve impossibilitada de exercer qualquer atividade durante o período em que esteve de baixa médica, ou seja, até 21/04/2015, e foi forçada a encerrar a loja e devolver o arrendado ao senhorio.
F)’ Com o acidente dos autos e por causa deste a autora B… não podendo trabalhar, viu-se na contingência de encerrar o seu estabelecimento comercial…
Factualidade não provada:
7.º- Com efeito, a autora B… naquele ano, mais concretamente em 28 de setembro de 2014, abriu uma loja para venda de artigos de vestuário, bijuteria e algum calçado.
8.º- E, nessa sequência, depois de reunir todas as suas poupanças, que tanto lhe custara a ganhar.
9.º- Onde iria desenvolver, e desenvolveu apenas durante um mês e alguns dias, a sua atividade profissional e comercial por conta própria (doc. 13).
10.º- A autora B… havia iniciado uma atividade empresarial no comércio do vestuário há pouco mais de um mês relativamente à data do acidente.
Integração jurídica.
Dispõe o artigo 566.º do Código Civil:
1. A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.
2. Sem prejuízo do preceituado noutras disposições, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos.
3. Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.
Para uma correta e ponderada decisão na situação sub judice - a autora pretendia abrir uma loja de roupa, arrendou um estabelecimento comercial com início a 01.11.2014, mas, em consequência do acidente, esteve impossibilitada de exercer qualquer atividade durante o período em que esteve de baixa médica, ou seja, até 21/04/2015, tendo sido forçada a encerrar a loja e devolver o arrendado ao senhorio – em que se verificou um manifesto prejuízo, não sendo viável a sua quantificação, haverá que recorrer ao critério enunciado no n.º 3 do artigo 566.º do Código Civil.
Como se refere no acórdão do STJ de 7.07.2009[9], o termo “equidade” tem procedência latina (aequitas) com os significados etimológicos e correntes de igualdade, proporção, justiça, conveniência, moderação e indulgência, sendo utilizado na linguagem da ética e das ciências jurídicas sobretudo para designar a adequação das leis humanas e do direito às necessidades sociais e às circunstâncias das situações singulares.
A equidade define-se como a “justiça do caso concreto”, ocupando um lugar muito importante no domínio da experiência jurídica, a ela se apelando para o desempenho de múltiplas funções práticas: interpretação e individualização das normas, correção da lei, moderação da legalidade estrita, humanização do direito e flexibilização dos enunciados normativos (ius aequum).
Na ausência de uma definição legal, a doutrina portuguesa acentua que o julgamento pela equidade “é sempre o produto de uma decisão humana que visará ordenar determinado problema perante um conjunto articulado de proposições objectivas; distingue-se do puro julgamento jurídico por apresentar menos preocupações sistemáticas e maiores empirismo e intuição”.[10]
Dizem-nos a experiência e a intuição, que à exploração de um estabelecimento comercial deverá, no mínimo, corresponder um rendimento equivalente à retribuição mínima garantida para o respetivo titular.
Afigura-se-nos assim correto o critério utilizado pelo julgador de 1.ª instância que, perante a falta de dados objetivos (por via do acidente o estabelecimento não chegou a abrir) considerou como valor referencial a retribuição mínima.
Decorre do exposto a improcedência do recurso neste segmento.
3.4. Condenação em montante sujeito a posterior liquidação
Finalmente, nas conclusões XXXI a XXXIX, insurge-se a recorrente contra a sua condenação na quantia que se apurar em liquidação posterior por danos patrimoniais sofridos em consequência da inutilização da roupa que seria vendida no estabelecimento comercial da autora, até ao montante de €10.000,00.
Alega a recorrente, em abono da sua tese, nomeadamente: «Se a autora doou, não poderá agora vir cobrar o seu valor à ora apelante. E se pretende receber o valor dessas peças doadas, as mesmas devem pertencer a quem as paga. Ou seja, mesmo considerando como verdadeiro o facto F)’ a mercadoria pertencerá à ora apelante que a paga e se a autora já não a tem porque doou as peças que tinha em stock e armazém terá que devolver à ora apelante o valor da dita mercadoria, e com isso, fica sanada a situação que será igual a 0 (zero) considerando o “Deve” e o “Haver”» (XXXVI); «A autora não fez prova de que abriu uma loja de artigos de vestuário, bijuteria e algum calçado; não fez prova de que, nessa sequência, depois de reunir todas as suas poupanças que tanto lhe custaram a ganhar, iria desenvolver e desenvolveu apenas durante um mês e alguns dias a sua atividade profissional e comercial por conta própria¸ não fez prova de que havia iniciado uma atividade empresarial no comercio do vestuário há pouco mais de um mês relativamente à data do acidente …» (XXXVIII).
Consta da fundamentação da sentença recorrida: «No que se refere aos danos decorrente da aquisição de roupa e posterior doação, decorrente da cessação da atividade, não foi apurado o valor do prejuízo. Acresce que se desconhecem, nomeadamente, as quantidades, estado e valor de aquisição, não havendo elementos factuais suficientemente consistentes para quantificar a indemnização devida, pelo que nesta parte se relega para liquidação posterior.».
Concluindo-se no dispositivo pela condenação da ré a pagar à 1.ª autora a quantia que se apurar em liquidação posterior por danos patrimoniais sofridos em consequência da inutilização da roupa que seria vendida no estabelecimento comercial da autora (até ao montante de €10.000,00).
Provou-se a seguinte factualidade relevante:
F)’ Com o acidente dos autos e por causa deste a autora B… não podendo trabalhar, viu-se na contingência de encerrar o seu estabelecimento comercial, sendo certo que, se viu igualmente na contingência de dar as peças de vestuário que tinha em stock e armazém a instituições de caridade.
Não se provou que:
10.º- A autora B… havia iniciado uma atividade empresarial no comércio do vestuário há pouco mais de um mês relativamente à data do acidente.
11.º- Esses bens não representarão um montante inferior a 10 mil euros.
Integração jurídica.
Pensamos, salvo todo o respeito devido, que neste segmento ocorre um manifesto equívoco na sentença recorrida.
Com efeito, tendo a autora adquirido bens para o estabelecimento (em valor que não se apurou), vindo a doar esses bens, não se vislumbra a que título vem depois peticionar o seu valor contra a ré.
O dano, como elemento integrante da responsabilidade civil, não decorre duma escolha do lesado, antes lhe sendo imposto, como desvalorização patrimonial, por circunstâncias que ele não quis.
Situação diversa seria a autora ter alienado esses bens, ainda que por um valor inferior ao de mercado – dadas as circunstâncias do acidente – e vir depois peticionar a diferença traduzida num dano decorrente do acidente de viação.
Optando por doar os bens, a autora fê-lo no exercício de um direito – porque os mesmos lhe pertenciam – não legitimando, no entanto, esse gesto altruísta, a condenação da ré a pagar o valor dos bens (de que a autora prescindiu).
Decorre do exposto a procedência do recurso neste segmento.

III. Dispositivo
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente o recurso, ao qual concedem parcial provimento e, em consequência:
i) em alterar a sentença no segmento em que condena a ré por danos não patrimoniais à autora C…, reduzindo o montante indemnizatório a esse título, para € 2.000,00;
ii) em revogar a sentença no segmento em que condena a ré em quantia que se apurar em liquidação posterior por danos patrimoniais sofridos em consequência da inutilização da roupa que seria vendida no estabelecimento comercial da autora (até ao montante de €10.000,00).
iii) em manter a sentença recorrida em toda a parte restante.
Custas a cargo da recorrente e das recorridas em proporção dos respetivos decaimentos.
*
Porto, 9.03.2021
Carlos Querido
José Igreja Matos
Rui Moreira
____________
[1] Acórdão do STJ, de 30.09.2004, proferido no Processo n.º 04B2894, acessível em http://www.dgsi.pt
[2] Como adverte o Professor Antunes Varela (Antunes Varela Outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2.ª edição, 1985, pág. 686), não se incluem entre as nulidades da sentença, o erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável e o erro na construção do silogismo judiciário, ao contrário do que ocorria no Código de 1867.
[3] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª edição, pág. 501
[4] Processo n.º 05B3436 (disponível em http://www.dgsi.pt)
[5] Vide acórdão da Relação de Coimbra, de 15.06.2004 (processo n.º 1179/04 (disponível no site da DGSI)
[6] Processo n.º 1350/1998.S1 (disponível no site da DGSI)
[7] Processo n.º 05B3436 (disponível em http://www.dgsi.pt)
[8] Como se refere na obra "Trauma infantil e sua associação com transtornos do humor na vida adulta: uma revisão sistemática" - Psicologia em Revista - http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-11682013000300010:
«... o trauma na infância torna o indivíduo vulnerável, de maneira geral, na vida adulta (Monteiro, 2010). O trauma pode ser uma marca para toda vida, tanto no desenvolvimento psicológico como no biológico e neuropsicológico do indivíduo. Nesse sentido, aponta-se ainda para a associação com déficits cognitivos e de memória a partir de um trauma infantil (Grassi-Oliveira, Stein & Pezzi, 2006)....».
[9] Proferido no Processo n.º 704/09.9TBNF.S1, acessível em http://www.dgsi.pt.
[10] Cfr. Menezes Cordeiro, “O Direito”, 122º/272”.