Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
682/10.5TAVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO
Descritores: NULIDADE DO INQUÉRITO
RAI
ELEMENTO SUBJECTIVO
INADMISSIBILIDADE LEGAL DA INSTRUÇÃO
Nº do Documento: RP20160113682/10.5TAVFR.P1
Data do Acordão: 01/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 980, FLS.155-167)
Área Temática: .
Sumário: I – A omissão de diligências para apuramento do movimento bancário dos sócios gerentes de uma sociedade declarada insolvente e para junção das declarações de IRS dos mesmos, com vista a esclarecer o destino dado às quantias recebidas, não integra qualquer nulidade processual, já que não se trata de diligências de realização obrigatória, isto é, legalmente impostas.
II – O assistente, ao requerer a abertura da instrução após despacho de arquivamento do inquérito, tem de estruturar o seu requerimento em termos equivalentes aos de uma acusação e, nessa medida, está sujeito ao mesmo regime jurídico.
III – Se os factos em que se traduz o dolo ou qualquer outro elemento subjetivo do tipo de ilícito não constarem do RAI, não poderão ser incluídos no despacho de pronúncia.
IV – Não se pode, através da instrução, alcançar os objetivos próprios do inquérito, nem transferir para o juiz de instrução o exercício da ação penal.
V – Em tais condições, não pode conhecer-se do RAI e, consequentemente, não pode ser admitida a abertura da instrução, constituindo um dos casos de inadmissibilidade legal da instrução.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal 682/10.5TAVFR.P1

Acordam na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
1.1. A assistente nos autos acima referenciados, “B…, LIMITADA”, inconformada com o despacho que indeferiu o seu requerimento para abertura de instrução relativamente à sociedade C… & FILHOS, D… e E…, recorreu para este Tribunal da Relação, terminando a motivação do recurso com as seguintes conclusões (transcrição):
“56.1 O Juiz de Instrução do Tribunal a quo, apesar de admitir que no requerimento de abertura de instrução se procedeu “a uma narração circunstanciada – com indicação de tempo, modo e lugar – dos factos passíveis de integrar os tipos legais de crime a que faz referência, os factos que seriam susceptíveis de fundamentar a aplicação aos arguidos de uma pena ou de uma medida de segurança e bem assim a indicação das disposições legais aplicáveis”, rejeitou a abertura da fase de instrução nestes autos.
56.2. O fundamento utilizado para a rejeição foi a suposta não alegação de factos capazes de integrar o elemento subjectivo do tipo legal do crime de insolvência dolosa, o que, salvo o devido respeito não sucedeu porquanto a ora recorrente caracterizou a culpa dos agentes do crime.
56.3. O crime de insolvência dolosa, previsto no art. 227.º n.º 1 do Código Penal caracteriza-se pela criação de estratégias ou de esquemas, por parte de um devedor, ou dos seus representantes (face aos arts. 227.º n.º 3 e 12.º do Código Penal), que permitam o seu enriquecimento, à custa da diminuição real ou fictícia do património do mesmo devedor, que fica numa situação de incapacidade de satisfazer as suas obrigações jurídicas.
56.4. O bem jurídico-penal tutelado é, portanto, o património dos credores, que não necessita de ser afectado efectivamente para que haja punição, já que o mero perigo de que isso venha a acontecer é suficiente para a punição das condutas tipificadas no art. 227.º n.º 1 do Código Penal.
56.5. O crime de insolvência negligente tutela o mesmo bem jurídico-penal, que também é colocado em perigo quando ocorre a mera violação de deveres de prudência na gestão e conservação do património do devedor, garantia geral do cumprimento das suas obrigações jurídicas (art. 601.º do Código Civil).
56.6. Tanto um como o outro crime exigem que o agente do crime tenha tido a intenção de praticar as condutas proibidas, excepto no caso de devedores comerciantes em que a negligência grosseira é suficiente para a punição (art. 228.º n.º 1 do CP).
56.7. Estão em causa crimes de perigo abstracto, uma vez que a sua consumação não se verifica com a violação, efectiva, do bem jurídico tutelado (património dos credores), sendo suficiente o perigo de que venha a ser afectado por ser também afectada a garantia geral da satisfação dos direitos de crédito, constituída pelo património do devedor – cfr. secções 4 a 12 das presentes alegações cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
56.8. As condutas descritas no requerimento de abertura de instrução foram imputadas a D… e E… representantes da sociedade “C… & Filhos, Limitada”, agora insolvente, a título de dolo.
56.9. Conforme decorre do alegado nas secções 13 a 27 das presentes alegações, a ora recorrente cumprido todos os requisitos legais relativamente à alegação e preenchimento do tipo subjectivo do crime de insolvência dolosa.
56.10. A recorrente referiu e descreveu a existência de um acordo ou de uma actuação concertada dos sócios gerentes, D… e E…, que revelam a intenção clara de enriquecer à custa do prejuízo dos credores da sociedade “C… & Filhos, Limitada” – cfr. secções 16 a 19 destas alegações que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
56.11. A assistente, ora recorrente, alegou e demonstrou uma motivação que justifica uma maior censura jurídico-penal, que era, através de esquemas de subfacturação, a de favorecer uma sociedade de que eram sócios e gerentes únicos (a “F…, Limitada”), em prejuízo da sociedade “C… & Filhos, Limitada”, cujo capital e lucros sociais tinham que dividir com outros três irmãos (G…, H… e I…) – ver secções 20 a 22 das presentes alegações que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais.
56.12. No requerimento de abertura de instrução foi também cabal e suficiente alegada a ocultação de informação e a adulteração contabilística da insolvente, levada a cabo pelos sócios gerentes D… e E…, com a intenção de esconder dos demais sócios a verdadeira situação contabilística da sociedade e, por conseguinte, ocultar os actos lesivos para a sociedade que praticaram no seu próprio benefício – cfr. secções 23 a 26 supra que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
56.13. Conforme decorre das secções 13 a 27 das presentes alegações, que se dão aqui por integralmente reproduzidas, a intenção e a motivação só podem ser exteriorizadas através de factos concretos, os quais foram devidamente alegados no requerimento de abertura de instrução.
56.14. Estes factos concretos constituem apenas prova mediata ou indícios, já que não é possível vislumbrar, na sua total extensão, o pensamento de quem comete um crime, a menos que ocorra uma confissão, o que não sucedeu no caso concreto.
56.15. Por essa razão é que se tem entendido ser suficiente a alegação de factos que caracterizem, de modo inequívoco, a vontade do agente do crime, para que possa ser alvo de censura jurídico-penal – vide Acórdão da Relação do Porto, de 4-02-2015, proc. n.º 470/13.7PAGDM.P1, Relatora Élia São Pedro, disponível em www.dgsi.pt parcialmente transcrito na secção 34 supra.
56.16. O entendimento de que a culpa só pode ser descrita através de fórmulas pré-definidas, aplicáveis independentemente do caso concreto, não contribui para uma boa caracterização da censura jurídico-penal a que o agente do crime deve estar sujeito e, além do mais, impõe um formalismo ao requerimento de abertura de instrução que o legislador não pretendeu que existisse (art. 287.º n.º 2 do Código de Processo Penal).
56.17. Acresce que, conforme se alegou nas secções 28 a 37 supra, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, o requerimento de abertura de instrução não constitui, formalmente, uma acusação, nem obedece a formalidades especiais: a fase da instrução é uma fase facultativa do processo penal que, quando é iniciada pelo assistente, se destina a controlar a legalidade da decisão do Ministério Público, cabendo-lhe invocar as razões de facto e de direito da sua discordância.
56.18. Trata-se, como refere Germano Marques da Silva, não de uma acusação formal, mas sim de uma acusação implícita, o que foi feito pela ora recorrente – ver, em especial, as secções 30 e 34 das presentes alegações.
56.19. O facto de o Juiz de Instrução ter considerado que na fase de inquérito se realizaram todas as diligências necessárias ao apuramento da prática do crime de insolvência dolosa, considerando não existirem razões para a realização das múltiplas diligências instrutórias requeridas e, inexplicavelmente, esquecidas, não pode conduzir à rejeição da abertura da fase de instrução por inadmissibilidade legal, quando nenhuma das situações próprias desta inadmissibilidade se verificaram, conforme se alegou nas secções 38 a 50 que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais.
56.20. A inadmissibilidade legal da instrução só se verifica quando não se justifica proceder ao controlo da legalidade da decisão do Ministério Público de acusar ou de arquivar, em situações como as referidas na secção 39 das presentes alegações que aqui se dá por integralmente reproduzida.
56.21. O legislador teve a clara intenção de limitar as hipóteses de rejeição da abertura da fase da instrução, em especial os casos de inadmissibilidade legal, pois concebeu esta fase processual como um direito disponível do arguido e do assistente, a quem cabe apreciar da oportunidade do controlo judicial da actuação do Ministério Público.
56.22. Como refere José Souto de Moura: “O n.º 2 do art. 287.º parece revelar a intenção do legislador restringir o mais possível os casos de rejeição do requerimento da instrução. O que aliás resulta directamente da finalidade assinalada à instrução pelo n.º 1 do art. 286.º: obter o controle judicial da opção do Mº Pº. Ora, se a instrução surge na economia do código com o carácter de direito, e disponível, nem por isso deixa de representar a garantia constitucional, da judicialização da fase preparatória. A garantia constitucional esvaziar-se-ia, se o exercício do direito à instrução se revestisse de condições difíceis de preencher, ou valesse só para casos contados.”
56.23. Pelas razões invocadas nas secções 41 a 43 supra, que aqui se dão por reproduzidas, a inadmissibilidade legal da instrução não pode ser confundida com a não delimitação do objecto do processo, que constitui pressuposto processual da instrução.
56.24. A alteração substancial dos factos ocorre quando, ao longo da instrução, devido às diligências instrutórias realizadas, se vêm a apurar factos que, além de consubstanciarem a prática de um tipo legal de crime diverso, ofendem um bem jurídico-penal também diverso – ver secções 44 a 46 destas alegações.
56.25. Porém, no requerimento de abertura de instrução foram alegados factos que integram, indiscutivelmente, o crime de insolvência dolosa, já que as condutas descritas importam uma diminuição real ou fictícia do património de um devedor, a sociedade “C… & Filhos, Limitada”, provocando uma situação de incapacidade económica, que coloca em perigo a satisfação dos direitos titulados pelos seus credores, assim como a intenção dos seus sócios gerentes D… e E… enriquecerem à custa dessa diminuição.
56.26. As condutas descritas integram-se nos esquemas fraudulentos referidos no art. 227.º n.º 1 e reportam-se a um plano comum dos sócios-gerentes D… e E…, que ultrapassava, em larga medida, os deveres de prudência na gestão e conservação do património, tutelados pelo crime de insolvência negligente.
56.27. Por conseguinte, o tipo legal de crime em causa foi suficientemente especificado, não sendo possível qualquer confusão com outro crime, nem mesmo com o de insolvência negligente.
56.28. A considerar-se omitida a descrição de factos caracterizadores do tipo subjectivo – hipótese que não se aceita – as diligências instrutórias nunca poderiam conduzir à aplicação de um tipo legal de crime diferente do de insolvência dolosa.
56.29. Mas, mesmo que assim não fosse, só poderia ser aplicável o tipo legal de crime de insolvência negligente (art. 228.º do CP), que tutela exactamente o mesmo bem jurídico protegido pelo crime de insolvência dolosa, pelo que não ocorreria qualquer alteração substancial dos factos.
56.30. A conclusão a que se chega é a de que a alegada omissão dos elementos subjectivos do crime não conduz à falta do objecto da instrução, seu pressuposto processual.
56.31. Não se vislumbrando qualquer nulidade insanável e de conhecimento oficioso, o Juiz de Instrução do Tribunal a quo não poderia recusar, como recusou, a abertura de uma fase processual que está na inteira disponibilidade do arguido e, como acontece neste caso, do assistente, correspondendo à garantia constitucional da judicialização da fase preparatória do processo penal (art. 32.º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa).
56.32. Ao fazê-lo, o Juiz de Instrução construiu um entrave que não foi querido pelo legislador, rejeitando a intervenção processual do ofendido, que encontra assento constitucional no art. 37.º n.º 7 da CRP e denegando a aplicação da lei neste caso concreto (art. 20.º nºs 1 e 4 da CRP).
56.33. O despacho de que se recorre padece de uma nulidade insanável, que expressamente se invoca, ao recusar a abertura da fase de instrução quando era legalmente obrigatória (art. 119.º, al. d)), violando, assim, os arts. 286.º e 287 (em especial os seus nºs 2 e 3) do CPP, pois não impõem o formalismo que o despacho recorrido considera existir.
56.34. É inconstitucional a interpretação do art. 287.º n.º 2 e art. 283.º n.º 3, al. b), ambos do Código de Processo Penal, quando efectuada no sentido de que deveria ser indeferido o requerimento de abertura de instrução caso não sejam utilizadas fórmulas pré-definidas na descrição dos elementos subjectivos do crime imputado aos arguidos, por violação do art. 20.º nºs 1 e 4 e art. 32.º n.º 7 da Constituição da República Portuguesa
56.35. Para além disso, a insuficiência dos actos de inquérito realizados pelo Ministério Público e que foram manifestamente insuficientes para o apuramento da verdade (art. 120.º n.º 2, al. d) do CPP), constitui uma nulidade que também expressamente se invoca – cfr. arts. 221.º a 228.º do requerimento de abertura de instrução.
56.36. Nulidade que, a ser julgada procedente, como se espera, obrigará o Ministério Público a realizar as diligências omitidas, independentemente da abertura da fase da instrução.
56.37. As diligências que se afiguram essenciais para a descoberta da verdade foram elencadas nos antecedentes secções 51 a 55, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, no art. 228.º do requerimento de abertura de instrução.
56.38. Todas elas são impostas pelo princípio do inquisitório e dever de descobrir a verdade, que dominam a fase de inquérito, dirigida pelo Ministério Público, que não respeitou estes postulados.
56.39. Ao decidir como decidiu, o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 20.º nºs 1 e 4 e 37.º nºs 4 e 7 da Constituição da República Portuguesa e nos artigos 119.º, al. d), 120.º, n.º 2, al. d), 262.º, 267.º, 286.º e 287.º do Código de Processo Penal e, pelas razões invocadas nas secções 47 e 48 supra, fez uma errada interpretação do disposto no Acórdão Uniformizador n.º 7/2015, DR n.º 212, Série I-A, de 4 de Novembro de 2005.
Nestes termos, e nos melhores de direito aplicáveis, deve ser concedido provimento ao presente recurso, e, por via disso, deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que admita a abertura de instrução requerida pela assistente, ora recorrente, assim se fazendo justiça.
Sem prejuízo, sempre deverá ser julgada procedente a invocada nulidade, prevista no art. 120.º n.º 2, al. d) do código de processo penal, ordenando-se, nos termos do art. 122.º n.º 2 do mesmo diploma legal, a realização das diligências probatórias referidas nas secções 51 a 55 das presentes alegações.”.
1.2. Respondeu o MP junto do Tribunal “a quo”, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
1.3. Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
1.4. Deu-se cumprimento ao disposto no artigo 417º, 2 do CPP, tendo a assistente respondido, mantendo a posição assumida em recurso.
1.5. Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
2. Fundamentação
2.1. Matéria de facto
O despacho que rejeitou liminarmente o requerimento para abertura de instrução (ora recorrido) é do seguinte teor (transcrição):
“ A) Da nulidade decorrente da insuficiência do inquérito:
No seu requerimento de abertura de instrução, a assistente “B…, LDA” invoca, para além do mais, a nulidade prevista na alínea d) do n.º 2 do artigo 120º do Código de Processo Penal, alegando para tanto que não foram praticadas no inquérito todas as diligências necessárias e essenciais à descoberta da verdade, e que foram omitidas perguntas também essenciais à descoberta da verdade, pelo que a posição assumida pelo arguido no final do inquérito se revela desajustada da legalidade e da realidade dos factos.
O Digno Procurador da República pronunciou-se pelo indeferimento da arguida nulidade.
Cumpre apreciar e decidir:
Decorre do disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 120º do Código de Processo Penal que constitui nulidade dependente de arguição a insuficiência do inquérito, por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios, ou por terem sido omitidas diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.
Tal nulidade pode ser arguida até ao encerramento do debate instrutório, como dispõe a alínea c) do n.º 3 do mesmo artigo 120º.
No caso em apreço, a nulidade foi arguida pela assistente no requerimento de abertura de instrução, pelo que tempestivamente.
Afigura-se-nos, no entanto, que não se verifica qualquer nulidade.
Com efeito, compulsados os autos de inquérito, tendo em conta os factos denunciados e as diligências praticadas pelo Ministério Público, nomeadamente as testemunhas que foram inquiridas, bem como a prova documental que foi junta e devidamente analisada, não se vislumbra em que medida fora omitidas diligências e perguntas essências para a descoberta da verdade, diligências essas que a assistente também não concretiza.
Não foi, assim, omitida a prática de qualquer diligência que se repute essencial para a descoberta da verdade.
Termos em que, por todo o exposto, decido indeferir a nulidade arguida pela assistente “B…, LDA”, relativa à insuficiência do inquérito.
B) Da inadmissibilidade legal da instrução:
Concluído o inquérito, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento por entender que não se recolheram indícios da verificação de qualquer crime.
Inconformada, veio a assistente requerer a abertura de instrução, nos termos do disposto no artigo 287.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal.
Para o efeito, expõe as razões de discordância em relação ao despacho de arquivamento e tece considerações sobre os elementos probatórios constantes do inquérito, nos termos constantes do requerimento de fls. 1198 a 1234, assim como alega os factos que entende que se encontram suficientemente indiciados, nos artigos 35º a 119º do requerimento de abertura de instrução, e que entende consubstanciar um crime de insolvência dolosa.
Omite, no entanto, a alegação dos elementos subjetivos do crime de insolvência dolosa que pretende imputar à sociedade “C… & FILHOS, LDA” e aos seus sócios e gerentes D…e E….
Cumpre apreciar e decidir:
Decorre do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 287º do Código de Processo Penal que o assistente pode requerer a abertura de instrução, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
Acrescenta ainda o n.º 2 que o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283º.
Não tendo sido proferido despacho de acusação pelo Ministério Público, o requerimento de instrução está sujeito ao formalismo da acusação, ao abrigo do disposto no artigo 283º, n.º 3, do Código de Processo Penal, designadamente além do mais terá de constar do mesmo a identificação do arguido, a narração ainda que sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o tempo, o lugar, a motivação da prática e grau de participação e a indicação das disposições legais aplicáveis.
Neste sentido veja-se o Acórdão da Relação de Lisboa de 12 de Maio de 1999 (in BMJ 477, página 554) que estabelece que é juridicamente inexistente o pedido de abertura de instrução feito pelo assistente sem integração fáctica que permita integrar um ilícito criminal, quer do ponto de vista objetivo, quer subjetivo, e a aplicação de uma pena e sem que indique quais as normas violadas.
Ora, nas palavras de Germano Marques da Silva (in Curso de Processo Penal, volume III, 1994, página 175) sem “acusação formal o juiz está impedido de pronunciar o arguido, por falta de condição de prosseguibilidade do processo, ligada à falta do seu objeto, e, mercê da estrutura acusatória em que repousa o processo penal, substituindo-se o juiz ao assistente no colmatar da falta de narração dos factos, enraizaria em si uma função deles indagatória, num certo pendor investigatório, que poderia ser acoimado de não isento, imparcial e objetivo (…) implicando uma desnecessária e desproporcionada diminuição das garantias de defesa do arguido”, o que importaria a violação dos artigos 18º e 32º, nºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa.
Mais se salienta que nestes termos não é possível o convite à correção do requerimento de instrução à semelhança do que se verifica com o despacho de acusação, nos termos do disposto no artigo 287º, n.º 1, do Código de Processo Penal, pois tal convite violaria as garantias de defesa do arguido tal como observa o Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 27/2001, de 30 de Janeiro, publicado pelo DR, 2ª Série, de 23 de Março de 2001 e o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 7/2005, de 12 de Maio de 2005, DR n.º 212, Série I-A, de 04 de Novembro de 2005.
Ora, no caso dos autos, a assistente, no seu requerimento de abertura de instrução, ainda que proceda a uma narração circunstanciada – com indicação de tempo, modo e lugar - dos factos passíveis de integrar os tipos legais de crime a que faz referência, os factos que seriam suscetíveis de fundamentar a aplicação aos arguidos de uma pena ou de uma medida de segurança e bem assim a indicação das disposições legais aplicáveis, omite pura e simplesmente os factos descritivos dos elementos subjetivos de tais crimes, pelo que tal requerimento não reveste a forma de um despacho de acusação que serviria, em caso de pronúncia, de base ao julgamento dos arguidos por tais factos, os quais, assim, se fixariam como o objeto do processo.
Não o tendo feito, como resulta da simples leitura do requerimento de abertura de instrução, padece o mesmo de nulidade nos termos previstos no nº 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal ex vi do art. 287º, n.º 2, parte final, do mesmo diploma.
Tal nulidade tem como consequência a não admissão do requerimento de abertura de instrução, estando excluída a possibilidade de se dirigir à assistente um convite ao aperfeiçoamento, segundo jurisprudência uniformizadora vertida no acórdão nº 7/05, já aludido supra.
Destarte, e por tudo o exposto, por inadmissibilidade legal e inobservância das formalidades legais previstas no artigo 287º, n.º 2, in fine, decido rejeitar o requerimento de abertura de instrução.
Sem custas – artigo 515º “a contrario” do Código de Processo Penal.
Notifique.
Oportunamente arquive.”
2.2. Matéria de Direito
2.1. Objecto do recurso
A assistente – B…, LIMITADA – requereu (i) a abertura da instrução com vista a serem pronunciados a sociedade “C… & Filhos, Limitada” e os seus dois sócios gerentes, D… e E…, pela prática de um crime de insolvência dolosa, previsto e punível pelo art. 227º do Código Penal e (ii) arguiu a nulidade processual de insuficiência de inquérito
Por decisão proferida em 13 de Julho de 2015, o Juiz de Instrução da Comarca de Aveiro – Santa Maria da Feira – Instância Central – 3ª Secção de Instrução Criminal – J1 – julgou que se não verificava a arguida nulidade processual e indeferiu liminarmente o requerimento para abertura de instrução, por inadmissibilidade legal.
O presente recurso tem como objecto a referida decisão instrutória, considerando a recorrente que (i) está suficientemente caracterizada a culpa dos agentes do crime; (ii) a decisão instrutória padece de nulidade insanável, ao recusar a abertura de instrução quando a mesma era legalmente obrigatória; (iii) é inconstitucional a interpretação dos arts. 287º, 2 e 283º, 3, b) do CPP, no sentido de que deve ser indeferido o requerimento para abertura de instrução quando não sejam usadas fórmulas pré-definidas na descrição dos elementos subjectivos do tipo, por violação dos artigos 20º,n.º 1 e 4 e art. 32º, 7 da CRP; (iv) verifica-se a insuficiência dos actos de inquérito – nulidade que, para todos os efeitos, também invoca.
Apreciaremos as questões suscitadas, começando pelas nulidades, dado que a sua procedência prejudica o conhecimento das demais.
Assim, e em primeiro lugar, impõe-se conhecer a nulidade decorrente da alegada insuficiência dos actos de inquérito e, de seguida, a nulidade decorrente da falta de instrução legalmente devida. Caso se não verifiquem tais nulidades, apreciaremos então o mérito da decisão recorrida (falta de indicação do elemento subjectivo e suas consequências) e, caso a mesma se mantenha, a constitucionalidade das normas aplicadas, na interpretação seguida pelo Tribunal.
2.2. Apreciação das questões suscitadas
(i) Nulidade do inquérito
Começamos por esta primeira questão - nulidade do inquérito - dado que, a ocorrer, se localiza em momento processual anterior ao próprio requerimento para abertura de instrução. No entanto, deve desde logo referir-se que, em bom rigor, é objecto de recurso a decisão instrutória que não reconheceu existir a nulidade de insuficiência de inquérito, uma vez que essa questão fora colocada no requerimento para abertura de instrução e foi efectivamente conhecida (indeferida) na decisão recorrida.
Na verdade, a decisão recorrida decidiu a questão nos seguintes termos:
“ (…)
A) Da nulidade decorrente da insuficiência do inquérito:
No seu requerimento de abertura de instrução, a assistente “B…, LDA” invoca, para além do mais, a nulidade prevista na alínea d) do n.º 2 do artigo 120º do Código de Processo Penal, alegando para tanto que não foram praticadas no inquérito todas as diligências necessárias e essenciais à descoberta da verdade, e que foram omitidas perguntas também essenciais à descoberta da verdade, pelo que a posição assumida pelo arguido no final do inquérito se revela desajustada da legalidade e da realidade dos factos.
O Digno Procurador da República pronunciou-se pelo indeferimento da arguida nulidade.
Cumpre apreciar e decidir:
Decorre do disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 120º do Código de Processo Penal que constitui nulidade dependente de arguição a insuficiência do inquérito, por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios, ou por terem sido omitidas diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.
Tal nulidade pode ser arguida até ao encerramento do debate instrutório, como dispõe a alínea c) do n.º 3 do mesmo artigo 120º.
No caso em apreço, a nulidade foi arguida pela assistente no requerimento de abertura de instrução, pelo que tempestivamente.
Afigura-se-nos, no entanto, que não se verifica qualquer nulidade.
Com efeito, compulsados os autos de inquérito, tendo em conta os factos denunciados e as diligências praticadas pelo Ministério Público, nomeadamente as testemunhas que foram inquiridas, bem como a prova documental que foi junta e devidamente analisada, não se vislumbra em que medida foram omitidas diligências e perguntas essências para a descoberta da verdade, diligências essas que a assistente também não concretiza.
Não foi, assim, omitida a prática de qualquer diligência que se repute essencial para a descoberta da verdade.
Termos em que, por todo o exposto, decido indeferir a nulidade arguida pela assistente “B…, LDA”, relativa à insuficiência do inquérito.
(…) ”
A assistente insurge-se contra esta decisão, por entender que as diligências elencadas nas secções 51 a 55 eram essenciais para a descoberta da verdade. Tais diligências visavam, no essencial, apurar (i) o destino das quantias recebidas das companhias de seguros pela sociedade insolvente e que ascendiam a € 2.551.906,28; (ii) múltiplos esquemas de subfacturação; (iii) solicitação ao Banco de Portugal dos extractos das contas bancárias dos gerentes da sociedade insolvente e respectivas declarações de IRS.
A nosso ver, a assistente não tem razão, desde logo pelas razões referidas pelo Ex.º Procurador-geral Adjunto no seu parecer, ou seja, porque a omissão de tais diligências pelo MP não integra qualquer nulidade processual, já que não se tratam de diligências de realização obrigatória, isto é, legalmente impostas.
Com efeito, como pode ler-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Maio de 2012, proferido no processo 687/10.6TAABF.S1, “ (…) o entendimento jurisprudencial e doutrinal comum (…) é que apenas a falta de inquérito e se omita acto que a lei prescreve como obrigatório, como seja o interrogatório de arguido quando seja possível notificá-lo podem consubstanciar a nulidade de insuficiência de inquérito prevista na al. d) do n.º 2 do art. 120 do CPP. A omissão de diligências, nomeadamente de produção de prova cuja obrigatoriedade não resulte de lei não dá origem àquela nulidade”.
Como exemplos de diligências que não são legalmente impostas (obrigatórias) o referido acórdão refere a inquirição de testemunhas e a realização de perícias, razão pela qual a omissão de tais diligências não configura a referida nulidade.
No mesmo sentido decidiu o acórdão da Relação de Lisboa de 17-12-2008, proferido no processo 10876/2008-3 (citado pelo Ex.mo Procurador Geral Adjunto, a fls. 1577), segundo o qual “na fase de inquérito, o único acto legalmente obrigatório é o interrogatório do arguido, se se verificarem as circunstâncias previstas no n.º 1, do artigo 272º do CPP, ou seja, se o inquérito correr contra pessoa determinada em relação à qual haja fundada suspeita da prática do crime e desde que seja possível notificá-lo”.
Também GERMANO MARQUES DA SILVA – Curso de Processo Penal II, Editorial Verbo 2002, pág. 84 sufraga o mesmo entendimento: “(…) A insuficiência do inquérito é uma nulidade genérica que só se verifica quando se tiver omitido a prática de um acto que a lei prescreve. Assim, só se verifica esta nulidade quando se omita acto que a lei prescreve como obrigatório e desde que para essa omissão a lei não disponha de forma diversa. A omissão de diligências não impostas por lei não determina a nulidade do inquérito por insuficiência pois a apreciação da necessidade dos actos de inquérito é da competência do MP
No presente caso, as diligências requeridas pela assistente traduziam-se na investigação e apuramento do movimento das contas bancárias dos sócios gerentes da sociedade declarada insolvente e a junção das declarações de IRS dos mesmos, com vista a esclarecer o destino dado às quantias recebidas das Seguradoras. Tais diligências não eram legalmente impostas pelo que, de acordo com o entendimento jurisprudencial e doutrinal dominante, não se verifica a arguida nulidade.
Verifica-se assim que a decisão recorrida decidiu com acerto, pelo que o recurso deve, neste segmento, ser julgado improcedente.
(ii) Nulidade da falta de instrução
A arguida nulidade decorrente da falta de instrução legalmente devida é, no presente caso, manifestamente improcedente. Com efeito, a falta de instrução, enquanto nulidade insanável prevista no art. 119º, al. d) do CPP, só se verifica quando o processo tenha prosseguido para julgamento sem essa fase. Nos casos em que o processo é arquivado, sem chegar à fase de instrução, não pode (como é óbvio) existir esse vício.
Assim, e sem necessidade de mais considerações, é óbvio que, no presente caso, em que foi rejeitada a sua abertura, se não verifica o invocado vício de falta de instrução,
(iii) Mérito da decisão recorrida - a concreta indicação do elemento subjectivo do tipo de ilícito.
A decisão de não pronúncia, relativamente a este ponto, entendeu:
“ (…)
Ora, no caso dos autos, a assistente, no seu requerimento de abertura de instrução, ainda que proceda a uma narração circunstanciada – com indicação de tempo, modo e lugar - dos factos passíveis de integrar os tipos legais de crime a que faz referência, os factos que seriam suscetíveis de fundamentar a aplicação aos arguidos de uma pena ou de uma medida de segurança e bem assim a indicação das disposições legais aplicáveis, omite pura e simplesmente os factos descritivos dos elementos subjetivos de tais crimes, pelo que tal requerimento não reveste a forma de um despacho de acusação que serviria, em caso de pronúncia, de base ao julgamento dos arguidos por tais factos, os quais, assim, se fixariam como o objeto do processo.
Não o tendo feito, como resulta da simples leitura do requerimento de abertura de instrução, padece o mesmo de nulidade nos termos previstos no nº 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal ex vi do art. 287º, n.º 2, parte final, do mesmo diploma.
Tal nulidade tem como consequência a não admissão do requerimento de abertura de instrução, estando excluída a possibilidade de se dirigir à assistente um convite ao aperfeiçoamento, segundo jurisprudência uniformizadora vertida no acórdão nº 7/05, já aludido supra (…). ”
A assistente insurge-se contra este entendimento, quer na sua construção jurídica, quer na sua aplicação concreta.
Quanto ao entendimento jurídico, ou seja, quanto à necessidade de o assistente, (ao requerer a abertura da instrução) estruturar o seu requerimento em termos equivalentes aos de uma acusação e, nessa medida, sujeito ao seu regime jurídico, a decisão recorrida deve manter-se, pois acolheu o entendimento praticamente uniforme da doutrina e da jurisprudência.
O n.º 2 do art. 287º do CPP diz-nos em que termos deve ser elaborado o requerimento para abertura da instrução. Do referido preceito resulta que as formalidades desse requerimento são diferentes consoante seja formulado pelo arguido ou pelo assistente. O requerimento para abertura de instrução formulado pelo assistente deve obedecer ao disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do art. 283º. Esta remissão da parte final do art. 287º, 2 para o art. 283º, b) e c) do CPP significa que o requerimento para abertura de instrução do assistente reveste a natureza jurídica de uma acusação, com todas as suas consequências delimitadoras do objecto do processo, designadamente, a impossibilidade de a decisão instrutória alterar substancialmente esses factos – art. 303º, 3 do CPP.
Deste modo, se os factos em que se traduz o dolo ou qualquer outro elemento subjectivo do tipo de ilícito não constarem do requerimento de abertura de instrução, não poderão ser incluídos no despacho de pronúncia, a menos que essa inclusão possa qualificar-se como uma alteração não substancial de factos.
Ora, este entendimento foi apreciado na decisão recorrida e, a nosso ver, bem apreciado.
Com efeito, no acórdão para fixação de jurisprudência n.º 1/2015, publicado em 27/01/2015, decidiu-se:
A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada em julgamento por recurso ao mecanismo previsto no art. 358º do CPP”.
A doutrina do citado acórdão - que apreciou a possibilidade de alteração dos factos da acusação, em julgamento – é aplicável à alteração dos factos da acusação, na decisão instrutória, uma vez que o regime do artigo 303º, 1, do CPP só permite a modificação da acusação ou do requerimento para abertura de instrução do assistente relativamente a factos que não importem uma alteração substancial.
Ora, se o aditamento dos factos relativos ao elemento subjectivo do tipo não pode ser feito de acordo com o mecanismo do art. 358º do CPP, também não pode ser feito de acordo com o mecanismo do art. 303º,1 do mesmo código, pois a realidade subjacente é a mesma.
Por outro lado, é entendimento jurisprudencial generalizado que a falta de indicação de factos, designadamente os relativos ao elemento subjectivo do tipo de ilícito, no requerimento para abertura de instrução deduzido pelo assistente, tem como consequência a sua rejeição por inadmissibilidade legal:
- Não pode através da instrução alcançar os objectivos próprios do inquérito e entender de outro modo era subverter os princípios constitucionais ou no dizer do Ac. RL 25/06/2002, CJ 2002 11/, 143 " (...) estar-se-ia a transferir para o juiz o exercício da acção penal, contra todos os princípios constitucionais e legais em vigor e a transformar a natureza da instrução que passaria de contraditória a inquisitória";
Por outro lado, e apesar de não haver uniformidade quanto à natureza do vício de que padece o R.A.I, nessas circunstâncias - nulidade de conhecimento oficioso (Ac. RG 17/5/2004, proc. 777/04-1), nulidade por falta de objecto (Ac. RC 27/9/2006, proc. 60/03.2TANLS.C1), inexistência (Ac. RL de 7/2/2006, proc. 7649/05-5.ª), equiparação à acusação manifestamente infundada (Ac. RP 21/06/2006, proc. 0611178) in Ac.R.P.14/7/2010 www.dgsi.pt/jtrp), existe consenso quanto à sua consequência, isto é, a rejeição do requerimento de abertura de instrução.
Julgamos todavia que deve seguir-se o entendimento acolhido no acórdão desta Relação, de 18-12-2013, proferido no processo 745/12.2TAMAI.P1, segundo qual “(…) sendo nulo o requerimento apresentado e a lei não permitindo a prática de actos nulos ou o seu aproveitamento, o acto é inválido não se podendo dele conhecer, afigurando-se-nos correcto o entendimento do STJ, expresso no Ac. 12/3/2009 www.dgsi.pt/jstj (…) - No conceito de “inadmissibilidade legal da instrução”, haverá, assim, que incluir, além dos fundamentos específicos de inadmissão da instrução qua tale, os fundamentos genéricos de inadmissão de actos processuais em geral.”, e não se podendo conhecer do RAI não pode ser admitida a abertura da instrução, porque a lei não o admite, e consequentemente deve ser rejeitado por inadmissibilidade legal.”
Daqui decorre que a nulidade do requerimento para abertura de instrução – por falta de indicação dos elementos subjectivos do tipo de ilícito - constitui um dos casos de inadmissibilidade legal da instrução, fundamento do despacho de rejeição;
Em suma, deve manter-se o entendimento jurídico acolhido no despacho recorrido, por se tratar de entendimento jurisprudencialmente consolidado.
Resta saber se o referido entendimento jurídico foi adequadamente aplicado no presente caso.
Vejamos então este ponto.
A assistente discorre longamente sobre os factos que, a seu ver, evidenciam os elementos subjectivos do crime imputado aos arguidos.
Todavia, e como muito bem refere o Ex.mo Procurador-geral Adjunto nesta Relação, em parte alguma diz que os arguidos actuaram ou deixaram de actuar voluntariamente, agiram deliberadamente, de forma livre, nem se fez qualquer referência à consciência da ilicitude dos seus actos.
Na verdade, lendo a extensa argumentação da assistente/recorrente, e lendo o seu requerimento de abertura de instrução, designadamente os artigos 35º a 119, verifica-se que não estão alegados os factos concretos de onde resulte a imputação aos arguidos de factos ilícitos praticados voluntariamente e com consciência dessa ilicitude.
Tanto é assim que, no presente recurso, a assistente não indica os trechos do seu requerimento para abertura de instrução onde imputa aos arguidos (pessoas físicas) os elementos subjectivos do ilícito que entende que os mesmos cometeram.
Na conclusão 56.2 limita-se a negar a falta de indicação do elemento subjectivo do crime de insolvência dolosa; desenvolve esta conclusão (56.2) referindo-se genericamente ao crime previsto no art. 227º, n.º 1 do C.P (conclusão 56.3); continua referindo-se ao bem jurídico protegido (conclusão 56.4); refere-se ao crime de insolvência negligente (conclusão 56.5); afirma que tanto um como outro exigem que o agente tenha tido a intenção de praticar condutas proibidas, excepto no caso de comerciantes (conclusão 56.6); alega estarem em causa crimes de perigo abstracto (conclusão 56.7); refere que as condutas descritas no requerimento de abertura de instrução foram imputadas a D… e E…, representantes da sociedade insolvente (conclusão 56.8) e, na conclusão 56.9, remete para o alegado nas secções 13 a 27, concluindo de seguida que referiu e descreveu a existência de um acordo ou de uma actuação concertada dos gerentes que revela a clara intenção de enriquecer à custa do prejuízo dos credores da sociedade – secções 16 a 19.
Como se vê, a assistente entende que da sucessão de factos que descreveu (no RAI) pode inferir-se a existência de uma actuação concertada (dos arguidos) e a clara intenção de enriquecimento à custa do prejuízo dos credores da sociedade insolvente. Ou seja, é efectivamente verdade que o elemento subjectivo não foi concretamente alegado no requerimento para abertura de instrução, na medida em que se não imputou a cada um dos sócios gerentes a representação do ilícito e a vontade de o praticar, bem como a consciência de que estava a agir ilicitamente.
Como já referimos, a acusação (ou o requerimento para abertura de instrução) não pode limitar-se a indicar um acervo de factos dos quais se possa inferir a culpa ou o dolo, uma vez que tal elemento (essencial na teoria da infracção) é matéria de facto e, portanto, deve ser imputado claramente ao arguido, pois estão em causa não só garantias fundamentais do arguido em processo penal (direito de defesa dos factos que constam da acusação e só desses), como a própria estrutura acusatória do processo e a correspondente vinculação temática do objecto do processo.
Na acusação – refere a este propósito GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo penal I, Verbo, 2000, pág. 361/362 – em processo penal são narrados os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança (art. 283º, 3, al. b)), mas esses factos não são apenas a acção e eventos típicos, antes todo o comportamento que constitui pressuposto da punição; não basta a componente objectiva do comportamento do arguido, importa também que esse comportamento seja culpável e para tanto que o arguido tenha agido com vontade (directa ou indirecta) de praticar o acto ilícito e conscientemente desobedecido ao comando legal que lhe proibia a prática dos actos valorados pela norma como objectivamente ilícitos”.
Ora, contrariamente ao que sustenta a assistente, dizer que alguém agiu deliberada, livre e conscientemente, representando um concreto acervo de factos que integram um tipo de ilícito e que quis praticá-los, não são fórmulas ocas, mas sim factos. São factos psicológicos, é certo, mas traduzidos por actos materiais que os revelam, devendo por isso a acusação fazer referência aos factos objectivos e instrumentais e também aos factos subjectivos, uma vez que cabe à acusação provar uns e outros e o arguido deve poder defender-se deles, tal como foram configurados na acusação.
Por outro lado, também é matéria de facto e, portanto, objecto de prova, a consciência da ilicitude – cfr., neste sentido, GERMANO MARQUES DA SILVA, ob. cit. pág. 367: “ (…) Pode ser maior ou menor a exigência formal de prova da consciência da ilicitude, mas sempre será de exigir a prova dessa consciência, pelo que a consciência da ilicitude é necessariamente objecto de prova, no processo.”
Note-se ainda que aquilo que poderia ser criticável nunca seria a exigência de uma fórmula, mais ou menos genérica, sobre a consciência da ilicitude, mas antes a suficiência de uma fórmula desse tipo (agiu voluntária, livre e conscientemente), na medida em que uma formulação destas parece supor a presunção dessa consciência. O que nunca pode aceitar-se é uma construção – como a suposta pela assistente – da completa desnecessidade de imputar ao arguido esse verdadeiro pressuposto da infracção, devendo a sua imputação ser feita em concreto, por se tratar de matéria de facto que, “deve ser objecto de prova em audiência de julgamento” (GERMANO MARQUES DA SILVA, ob. cit. pág. 364, nota 2). “É que agora – continua o mesmo autor, a pág. 370 - contrariamente ao regime do CP anterior, a consciência da ilicitude é essencial para a punibilidade do facto e, por isso, a existência dessa consciência tem de ser objecto da acusação e de prova, é pressupostos da punição e, portanto, faz parte também do objecto do processo”.
Deste modo, perante a ausência da imputação aos arguidos (pessoas físicas) dos elementos subjectivos do tipo de ilícito em causa (representação, vontade de realizar o ilícito e consciência da ilicitude), impunha-se a rejeição do requerimento para abertura de instrução, devendo em consequência negar-se provimento ao recurso.
(iv) Constitucionalidade do regime aplicado na decisão instrutória.
O entendimento seguido na decisão instrutória (segundo o qual o assistente deve imputar, no requerimento para abertura de instrução, todos os elementos subjectivos do tipo de ilícito, designadamente a culpa e a consciência da ilicitude) não é inconstitucional.
Com efeito, essa interpretação dos arts. 287º, 2 e 283º, b) e c) do CPP tem como justificação o direito de defesa do arguido, consagrado no art. 32º, 1 da CRP. O direito de defesa do arguido compreende, necessariamente, o conhecimento de todos os factos que lhe são imputados, onde se incluem os factos subjectivos, pois só assim se pode defender.
A estrutura acusatória do processo, garantida no art. 32º, 5 da CRP, implica que o objecto do processo fique desde logo definido com a acusação, sendo inaceitáveis as alterações de factos, salvo as excepções dos artigos 258º, 259º e 301º do CPP.
A impossibilidade de a pronúncia aditar à acusação factos que configurem uma alteração substancial está em total sintonia com as garantias de defesa do arguido e a vinculação temática do objecto do processo aos factos constantes da acusação.
A intervenção do ofendido em processo penal – garantida no art. 32º, 7 da CRP – deve portanto adequar-se ou harmonizar-se com os aludidos princípios (garantia de defesa e vinculação temática). Dessa harmonia resulta que a intervenção do ofendido no processo penal deve ser feita com respeito por todas as garantias de defesa do arguido e pelo princípio da vinculação temática. Ou seja, o art. 32º, 7 da CRP garante ao ofendido a intervenção no processo, nos termos da lei, devendo entender-se que a lei não pode regular essa intervenção de modo a violar os artigos 32º, 1 e 32º, 5 da CRP. Portanto, a exigência feita ao MP, ou ao assistente, de indicar todos os factos na acusação, ou no requerimento para abertura de instrução, não viola o art. 32º, 7 da CRP, pois trata-se de uma exigência ditada exclusivamente pela necessidade de garantir princípios essenciais do processo penal.
O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 358/2004 (DR, II, de 28/06/ 2004) disse o seguinte:
«(…)
A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução. Sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objecto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa. Essa definição abrange,… a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, …. Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe, …, uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287º, nº 2, remeta para o artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução. Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre, como se deixou demonstrado, de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada
Daí que o Tribunal Constitucional, aderindo aos fundamentos do seu acórdão nº 636/2011, tenha julgado que não era inconstitucional a norma extraída dos artigos 287º e 283º do CPP, quando interpretados “no sentido de, em caso de narração incompleta dos factos, ser justificada a rejeição do requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal da instrução”.
Nestes termos, não se verifica igualmente a invocada inconstitucionalidade, pelo que o recurso deve ser julgado improcedente, também nesta parte.
3. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pela assistente, fixando a taxa de justiça em 4 UC.

Porto, 13/01/2016,
Élia São Pedro
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