Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5826/17.3T8PRT-E.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: VENDA DE IMÓVEL EM EXECUÇÃO
DIFERIMENTO DE DESOCUPAÇÃO
Nº do Documento: RP202402055824/17.3T8PRT-E.P1
Data do Acordão: 02/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O diferimento de desocupação previsto nos artigos 864.º e 865.º do CPCivil constitui um meio de tutela excecional, estando assim reservado aos casos nele previstos, ou seja, de execução para entrega de casa de habitação arrendada e, por força da remissão operada pelo art.º 150.º, n.º 5 do CIRE, também aos casos de entrega da casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente a massa insolvente ou ao adquirente, estando vedada a sua aplicação analógica a outras situações que não as especificamente previstas, ou mesmo a sua interpretação extensiva.
II - O fiel depositário de imóvel penhorado nos autos de execução e aí objeto de venda, não pode lançar desse incidente para obstar a sua entrega ao comprador ainda que alegue que é titular de um contrato de arrendamento em relação ao mesmo imóvel.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 5826/17.3T8PRT-AP1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo de Execução do Porto-J1
Relator: Des. Dr. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Drª. Ana Olívia Silva Loureiro
2º Adjunto Des. Dr. Miguel Baldaia
Sumário:
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I-RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
A Banco 1..., com sede na Av. ..., Lisboa intentou a presente execução sumária contra AA e BB residentes Rua ..., ...-1, D-Trás, ....
No âmbito da referida execução foi penhorada fração autónoma designada pela letra "J", do prédio urbano inscrito na respetiva matriz sob o artigo ... da Freguesia ... e sido nomeado seu fiel depositário o ora recorrente CC.
A mencionada fração foi depois vendida e adjudicada a A..., Unipessoal Lda.
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Em 21/06/2023 conclusos os autos foi proferido o seguinte despacho:
“Nos termos dos artigos 757.º, n.º 4 do Código de Processo Civil, autorizo a requisição do auxílio da força pública, no sentido da A.E. tomar posse efetiva da fração penhorada e vendida, após transito em julgado deste despacho.
Deve a Sr.ª AE notificar do despacho, incluindo a notificação pessoal do fiel depositário nomeado CC”.
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Em 10/07/2023 o fiel depositário CC apresentou nos autos o seguinte requerimento:
“CC, residente na Rua ..., ..., 1.º Dt.º Traseiras–... ..., fiel depositário nomeado nos autos de execução supra identificados, notificado do despacho de fls., vem deduzir Oposição de tal despacho, a abrigo do disposto no artigo 863.º e seguintes do Código de Processo Civil, nos termos e com os fundamentos seguintes:
1.º
O douto despacho de fls. autoriza, ao abrigo do disposto no artigo 757.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, a requisição do auxílio da força pública para que a Sr.ª Agente de Execução possa efetivar a desocupação da fração penhorada e vendida após trânsito em julgado desde despacho.
2.º
Ocorre que nesta ocasião o Tribunal não deve permitir à Sr.ª Agente de Execução que tome posse da fração em causa,
3.º
Porquanto, na referida fração, para além do fiel depositário, reside a sua mãe, Exma. Sr.ª D. DD,
4.º
Sendo que a Sr.ª D. DD padece de várias doenças graves descritas no Atestado Médico de Incapacidades Multiuso, emitido em 16/05/2023 pela ARS ACES Norte, .../..., atestado Médico que lhe confere uma incapacidade permanente global de 92% (noventa e dois por cento).
5.º
Sendo certo que o seu estado de saúde se tem agravado nos últimos tempos, o que complica a vida familiar do fiel depositário em organizar a desocupação da fração de pessoas e bens e reorganizar as condições de habitabilidade do seu agregado familiar, pelo que não tem de momento condições para desocupar a fração.
6.º
Pelo que a situação exige um diferimento da desocupação por tempo a definir em Tribunal, mas nunca inferior a um ano, o que requer que lhe seja concedido, ao abrigo do disposto nos artigos 863.º e 864.º do Código de Processo Civil.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exa. se dignará suprir, deve ser recebida a presente oposição e em consequências, deve a tomada de posse efetiva da fração penhorada e vendida ser diferida pelo prazo que se julgue necessário a apurar pelo Tribunal, mas nunca inferior a um ano”.
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Sobre o assim impetrado recaiu o seguinte despacho:
“O imóvel penhorado e vendido nestes autos de execução era de propriedade da executada AA e BB.
Foram habilitados como herdeiros dos executados primitivos, falecidos na pendencia da execução: EE, FF, GG, HH, II, JJ, e KK.
O imóvel em causa-fração autónoma designada pela letra "J", do prédio urbano inscrito na respetiva matriz sob o artigo ... da Freguesia ..., concelho de Valongo-foi adjudicado nesta execução a A..., Unipessoal Lda.
CC foi nomeado fiel depositário do imóvel, na qualidade de arrendatário do imóvel (cfr. auto de tomada de posse de 7.12.2021 junto aos autos a 10.12.2021) e veio a estes autos requerer o incidente de deferimento de desocupação pelos fundamentos constantes do r de 10.7.2023, invocando que na referida fração, para além do fiel depositário, reside a sua mãe, Exma. Sr.ª D. DD, que padece de várias doenças. Que conforme atestado Médico que tem uma incapacidade permanente global de 92% (noventa e dois por cento); Que o seu estado de saúde de agravou.
Prevê o artigo 864º, nº 1, do C.P.Civil, sob a epígrafe “Diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação”, o seguinte:
“No caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo de oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três”.
Fulmina ainda o nº 2 do citado normativo que 2 - O diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos:
a) Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção;
b) Que o arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.
Ora, o requerente não é executado, é apenas fiel depositário do imóvel não podendo lançar mão deste incidente.
Por outro lado, não se encontra o fiel depositário em nenhum das situações a que aludem as alíneas a) e b) supra transcritas, não se vislumbrando fundamento legal para deferir a sua pretensão.
Indefere-se, pois, o requerido pelo fiel depositário, devendo encetar-se diligencias para entrega ao adquirente da fração em causa, já se tendo nos autos deferido o auxilio à força publica para o efeito, após o transito em julgado deste despacho.
Notifique”.

nomeadamente requisite de imediato à entidade patronal (“B...,
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Não se conformando com o assim decidido veio o Requerido interpor o presente recurso rematando com as seguintes conclusões:
1.ª Na aplicação do Direito, o Tribunal interpreta os factos provados para depois indagar, interpretar e aplicar as regras de Direito.
2.ª O Tribunal a quo fez uma errada interpretação da situação factual e verdadeira apresentada e comprovada pelo fiel depositário e igualmente, fez uma incorreta interpretação jurídica do artigo 864.º, ao caso aplicável.
3.ª Prevê o artigo 864.º, n.º 1 e n.º 2 do Código de Processo Civil sob a epígrafe “Diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação”, o seguinte:
1 - No caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo de oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três.
2 - O diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos:
a) Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção;
b) Que o arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.
(…)
4.ª O incidente de diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação, que se justifica por razões humanitárias, é uma opção do legislador ordinário na tentativa de otimização das soluções de harmonização entre o direito fundamental à habitação e o direito fundamental à propriedade privada, sendo aquela medida, por isso, uma limitação do direito de propriedade.
5.ª Isto significa que aquele incidente só pode proceder em casos excecionais.
6.ª Existem duas leituras possíveis sobre os fundamentos que concedem o diferimento, e que se acham previstos no n.º 2 do artigo 864.º do Código de Processo Civil:
a) Uma primeira leitura, e porventura a que maior acolhimento tem na jurisprudência, é a de que o pedido de diferimento da desocupação só pode ser concedido nas duas situações previstas nas alíneas a) e b) daquele normativo, vale dizer, tratando-se de resolução do contrato de arrendamento por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deva a carência de meios económicos do arrendatário, ou sendo o arrendatário portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%;
b) A outra interpretação é no sentido de considerar que o legislador estabeleceu uma otimização apriorística (ex ante) dos dois direitos fundamentais, de modo que o pedido de diferimento é automaticamente concedido no caso de se comprovar uma das hipóteses previstas nas alíneas a) e b) do referido preceito legal.
7.ª Esta solução não obsta, porém, a que também o Juiz faça uma otimização dos dois direitos fundamentais referidos, tendo em conta os critérios de racionalidade previstos no corpo do n.º 2 do artigo 864.º do Código de Processo Civil.
8.ª A bem dizer: de acordo com esta segunda interpretação, é menor o esforço de fundamentação do Juiz em termos de racionalidade jurídica quando o fundamento do diferimento é alguma das situações previstas nas alíneas a) e b), sendo mais exigente a fundamentação para decretar o diferimento nos demais casos em que, ainda por razões humanitárias, se justifica decretar o diferimento da desocupação.
9.ª Nesta segunda interpretação, que é a nossa, os elementos de racionalidade expressos no corpo do n.º 2 não foram atendidos pelo Juiz do Tribunal a quo, que também são critérios de decisão para conceder o diferimento da desocupação.
10.ª. Não deixamos de atender e entender que o incidente de diferimento da desocupação de imóvel arrendado para a habitação não é um meio de caridade e que, por isso, não pode o Tribunal deixar de atender também a situação socioeconómica do, neste caso, adquirente,
11.ª que, in casu, é uma sociedade comercial,
12.ª que tem por objeto social o negócio da compra e venda de imóveis,
13.ª que não veio aos autos alegar e provar prejuízo ou prejuízos pela, ainda, não entrega do imóvel, sendo certo que, como o mercado imobiliário está em fase de valorização, não terá prejuízo em aguardar um pouco mais.
14.ª Do outro lado há um agregado familiar no qual um membro tem, comprovadamente, um grau de incapacidade permanente global de 92% (noventa e dois por cento), grau definitivo.
15.º Grau de Incapacidade de natureza motora e física ou orgânica.
16.ª O fiel depositário não dispõe, imediatamente, de outra habitação, apesar de incessantemente a ter procurado, e a idade e o estado de saúde da sua mãe, nestes autos comprovado, são argumentos bastantes para se suspender as diligências para entrega ao adquirente da fração em causa pois pelas já invocadas razões de dificuldade de encontrar uma outra habitação e, especialmente, pelas já invocadas razões de saúde da Senhora DD, tal diligência pode por em risco a vida da mãe do fiel depositário.
17.ª e não se diga que houve um amplo espaço de tempo para o fiel depositário/arrendatário resolver o seu problema habitacional, o registo da aquisição desta fração, como consta nos autos, só foi realizado em 23 de março do corrente ano.
18.ª Entre o segundo trimestre de 2010 e o segundo trimestre de 2023, o preço médio das habitações existentes em Portugal aumentou 95,5%.
19.ª É por todos sabido que a dificuldade de acesso à habitação resulta de uma multiplicidade de fatores: Preços altos das casas para arrendar ou comprar, taxas de juro elevadas, o que só encarece os empréstimos, e os baixos salários dos portugueses em geral e do fiel depositário, ora recorrente, em particular.
20.ª E não são apenas critérios de decisão os critérios de racionalidade previstos no corpo do n.º 2 do artigo 864.º do Código de Processo Civil.
21.ª Também são critérios de decisão os princípios fundamentais que constituem a reserva material da Constituição (princípio da proporcionalidade em sentido estrito, princípio da necessidade e princípio da adequação), que o Juiz deve utilizar na busca da otimização de cada um dos direitos fundamentais, por um lado, e procurando alcançar a concordância prática entre os direitos em conflito, por outro (cf. Arts. 2.º, 18.º, n.º 2 e 17.º da Constituição da República Portuguesa e art. 335.º, n.º 1 do Código Civil).
22.ª A ocupação do arrendado foi lícita, beneficiou duas partes, pelo que há proporcionalidade em se exigir um sacrifício, temporário, ao, agora, adquirente para acudir a razões imperiosas do fiel depositário (aqui também se tendo de ter em atenção o princípio da proporcionalidade, previsto no artigo 18.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).
23.ª Aliás, uma interpretação extensiva do artigo 864.º do Código de Processo Civil no sentido de, tendo o legislador ficado aquém do queria legislar, a situação do diferimento da desocupação também deverá ser permitida a um mero detentor e não somente ao arrendatário, a um fiel depositário que embora não seja portador de deficiência com grau de incapacidade superior a 60% (“… pessoas que (com ele) habitam … o seu estado de saúde …” ) , a sua mãe é portadora de deficiência com grau comprovado e definitivo de 92%.
24.ª Aqui os interesses são sociais, o Tribunal não pode permitir que uma pessoa doente, com dificuldades económicas, seja confrontada com a atuação da realização de diligência, para entrega da fração em causa ao adquirente, que põe em risco a sua vida.
25.ª Não há, in casu, uma violação do direito de propriedade.
26.ª É de sã Justiça que o fiel depositário, arrendatário com título, tenha uma maior proteção do Estado, à custa do sacrifício, temporário, do direito do adquirente
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Devidamente notificada contra-alegou a compradora do imóvel-A..., Unipessoal, Lda.,-concluindo pelo não provimento do recurso.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação é apenas uma a questão a decidir:
a)- saber se devia, ou não, ter sido diferida a desocupação da fração nos termos requeridos pelo fiel depositário.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A dinâmica factual a ter em consideração para a resolução da questão supra enunciada é a que resulta do relatório supra e que aqui se dá integralmente por reproduzida.
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III. O DIREITO
Isto dito e como supra se referiu é apenas uma a questão que vem posta no recurso:
a)- saber se devia, ou não, ter sido diferida a desocupação da fração nos termos requeridos pelo fiel depositário.
Como se evidencia da decisão recorrida aí se entendeu que, no caso, o alegado pelo apelante não integrava a facti species do artigo 864.º seus nºs 1 e 2 tendo, com base nesse entendimento, sido indeferida a pretensão do apelante.
 Deste entendimento dissente o apelante alegando que o tribunal recorrido fez uma errada interpretação jurídica do artigo 864.º do CPCivil.
Quid iuris?
Estatui o artigo 864.º do CPCivil sob e a epígrafe “Diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação” que:
1 - No caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo de oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três.
 2 - O diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos:
 a) Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção;
 b) Que o arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.
 3 - No caso de diferimento decidido com base na alínea a) do número anterior, cabe ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social pagar ao senhorio as rendas correspondentes ao período de diferimento, ficando aquele sub-rogado nos direitos deste.
Portanto, prevê a lei no n.º 1 do transcrito normativo, para o caso de execução para entrega de coisa imóvel arrendada que, por razões sociais imperiosas, o juiz difira para momento posterior-sendo que o diferimento, nos termos do n.º 4 do artigo 865.º do mesmo diploma legal não pode exceder o prazo de 5 meses a contar da data do trânsito em julgado da decisão que o conceder-a desocupação do imóvel. Tal regime é aplicável “à desocupação da casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente”, por força do disposto no n.º 5 do artigo 150.º do CIRE.[1]
 A lei confia a decisão ao prudente arbítrio do tribunal, apelando assim à sensatez e racionalidade do juiz, mas não deixa de apontar critérios decisórios, prescrevendo que devem ser tomadas em consideração “circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos”.
Acresce que a invocação das referidas “razões sociais imperiosas” não vale, só por si, para obter a tutela legal, que pressupõe a verificação de pelo menos um dos fundamentos condicionantes taxativamente previstos nas als. a) e b) do preceito.
Com efeito, o juiz só será chamado a apreciar as primeiras, no uso do poder discricionário que a lei lhe concede (cf. n.º 4, in fine do artigo 152.º do CPCivil), se verificada uma de duas situações atinentes à pessoa do arrendatário ou, para o que aqui releva, insolvente, a saber: a) carência de meios, a qual se presume relativamente a beneficiário do subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção; b) ser portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60% (cf. n.º 2 do art.º 864.º).
Sendo este, em traços breves, o recorte do regime legal, a questão que agora se coloca é saber se o direito ao deferimento da desocupação poderá ser reconhecido ao apelante.
Ora, importa, desde logo, enfatizar que, tal como se refere na decisão recorrida, o apelante não é executado nos presente autos.
Executados são os proprietários da fração autónoma designada pela letra "J", do prédio urbano inscrito na respetiva matriz sob o artigo ... da Freguesia ..., concelho de Valongo que, tendo sido penhorada, foi objeto de venda na execução.
Portanto, o apelante, no âmbito da execução, foi apenas nomeado fiel depositário da fração em causa.
Desta forma, não sendo o apelante executado na execução, torna-se evidente que não pode lançar mão do incidente previsto no artigo 864.º do CPCivil.
Como decorre dos pontos 1º a 4º do corpo alegatório neles o apelante alega o seguinte:
“1. O imóvel em causa nestes autos foi arrendado por BB, na qualidade de Senhoria a CC, na qualidade de Inquilino, ora recorrente, formalizado por contrato de arrendamento para habitação com prazo certo em 30 de junho de 2013, tendo sido, em 26 de junho de 2013, liquidado o imposto de selo pelo serviço de Finanças de Valongo - 2, validação ..., conforme documento junto aos autos. em 30 de junho de 2013, tendo sido, em 26 de junho de 2013, liquidado o imposto de selo pelo serviço de Finanças de Valongo-2, validação ..., conforme documento junto aos autos.
2. O teor da sua cláusula 1.ª “1º - O contrato de arrendamento é com prazo certo nos termos do artigo 1095º do Código Civil, pelo prazo de 5 anos, que se inicia a 1 de Julho de 2013 e termina a 30 de junho de 2018.”.
3. Teor da sua cláusula 2.ª: “2ª – No fim do prazo convencionado, o contrato de arrendamento renova-se por períodos sucessivos de um ano enquanto não for denunciado pela Senhoria ou Inquilino.”.
4. Além do mais se clausulava que a renda é de 300,00 € a ser paga, por cheque ou dinheiro, no domicílio da Senhoria e o local arrendado destina-se exclusivamente a habitação do Inquilino”.
Perante esta alegação poder-se-ia argumentar que o apelante, por mor do alegado contrato de arrendamento, seria detentor, no âmbito da presente execução, da fração em causa e como tal, poderia usar o incidente em causa, desde que, cumprisse ele algum dos critérios previstos nas als. a) e b) do n.º 1 do citado artigo 864.º.
Mas a resposta é, a nosso ver, salvo melhor entendimento, claramente negativa.
Quer o arrendatário quer o insolvente, ambos perdem o direito que fundava a ocupação da casa onde habitavam: no primeiro caso, o direito contratual ao gozo do arrendado; no segundo o direito de propriedade.
Trata-se, contudo, em ambas as situações, de um regime jurídico de exceção, porquanto a regra é a de que, mediante circunstâncias que constituem o pressuposto da obrigação de entrega do imóvel, este seja efetiva e imediatamente entregue, ao senhorio exequente, no caso do fim do arrendamento; ora ao administrador da insolvência, no caso da perda de propriedade, por apreensão para a massa insolvente, ora ao adquirente, no caso da sua venda ou adjudicação.
E porque se trata de normas excecionais, elas não permitem aplicação analógica, estando assim vedada a sua aplicação a situações nelas não previstas (cf. art.º 11.º do CC).
Podia questionar-se ainda se a situação em causa não poderia considerar-se coberta pela previsão normativa pelo recurso à interpretação extensiva, sabendo-se que nesta, ao invés da analogia, que pressupõe uma lacuna, o legislador disse menos do que aquilo que pretendia, de modo que por via interpretativa e pela extensão da letra da lei é possível colocar sob a alçada do regime uma situação não expressamente prevista, mas cuja inclusão estava na mente do legislador e foi por este querida.
Ou seja, será que pela via da interpretação extensiva será possível estender o regime excecional do diferimento da ocupação do imóvel a um simples detentor?
A resposta é também, quanto a nós, negativa.
Efetivamente, não se descortina que o texto da citada norma tenha atraiçoado o pensamento do legislador e que este, ao redigi-la, disse menos do que efetivamente pretendia dizer.
Antes pelo contrário, entendemos que o legislador disse, de forma precisa, o que queria dizer, daí resultando que só o arrendatário habitacional executado e o insolvente poderão lançar mão do incidente de diferimento da desocupação do imóvel. Não há assim norma que, perante os poderes do proprietário, acautele a posição do possuidor ou detentor sem título, mesmo que se trate de pessoa a atravessar fase de grandes dificuldades económicas.
Importa sopesar que o fundamento da tutela legal conferida e consequente limitação do direito de propriedade do senhorio ou adquirente no processo de insolvência é apenas o prolongamento (a curto prazo) de um direito anteriormente reconhecido em face da boa-fé do respetivo titular e das suas necessidades bem como das pessoas que vivem consigo sendo, pois, esse o significado da referência à boa-fé constante do n.º 2 do citado artigo 864.º.
Ou seja, dada a boa-fé, a legítima confiança na produção dos efeitos desse direito anterior por parte do arrendatário ou do insolvente (alicerçada no seu direito contratual de gozo ou de propriedade, respetivamente), designadamente quanto à expectativa de ocupação e habitação no imóvel a entregar, e daí que o legislador tenha querido proteger esses anteriores titulares relativamente a uma perda súbita do seu direito, em determinadas circunstâncias. Faculta-lhes mais algum tempo para que possam suprir a perda do direito à habitação no prédio que legitimamente e de boa-fé ocupavam.
Mas já não protege esses mesmos interesses, autonomamente, relativamente a quem não tiver sido titular desses direitos, pois em relação a tais terceiros já não se identifica qualquer direito no qual se possa sediar, de per si, a ultra-vigência desses efeitos, a continuidade da tutela desses interesses.[2]
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Mas ainda que assim não fosse, também o alegado pelo apelante, no requerimento que impetrou perante o tribunal recorrido em 10/07/2023, ainda que se viesse a provar, nunca preencheria a facti species de qualquer das citadas alíneas a) e b) do nº 2 do já citado e transcrito artigo 864.º, sendo que, a norma em causa não deixa margem para qualquer dúvida sobre a obrigatória verificação de um dos requisitos taxativamente previstos: “ podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos (…)”(sublinhado nosso).
Por outro lado, e sob este conspecto, não pode ser feita a interpretação extensiva que o apelante advoga na conclusão 23ª, no sentido de que o grau de incapacidade superior a 60% também, se pode verificar não só em relação ao arrendatário (fiel depositário) mas em relação a um familiar que com ele habita, valendo aqui, mutatis mutandis, as mesmas considerações supra expostas.
Na verdade, as circunstâncias pessoais daqueles que residam com o arrendatário ou insolvente, só relevarão na apreciação do eventual direito deste ao diferimento da desocupação do imóvel a entregar, não lhes sendo concedida pela lei uma tutela autónoma.
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Improcedem, desta forma, todas as conclusões formuladas pelo apelante e, com elas, o respetivo recurso.
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Não obstante o supra decidido, sempre se dá nota do seguinte.
Como já noutro passo se referiu, o apelante alega a existência de um contrato de arrendamento válido e em vigor relativamente à fração em causa.
Ora, a jurisprudência do STJ tem vindo a seguir a orientação de que a venda, em processo executivo, de imóvel arrendado para habitação, quando o contrato de arrendamento tenha sido celebrado depois da constituição de hipoteca (como parece ser o caso dos autos) sobre esse imóvel, não faz caducar o arrendamento, como decorre do art. 1057.º do CCivil, não sendo aplicável o artigo 824.º, n.º 2, do mesmo diploma legal.[3]
Posição que se alicerça, fundamentalmente, no AUJ n.º 2/2021, de 5 de agosto publicado no Diário da República n.º 151/2021, Série I de 2021-08-05 do seguinte teor: “A venda, em sede de processo de insolvência, de imóvel hipotecado, com arrendamento celebrado subsequentemente à hipoteca, não faz caducar os direitos do locatário de harmonia com o preceituado no artigo 109.º, n.º 3 do CIRE, conjugado com o artigo 1057.º do CCivil, sendo inaplicável o disposto no n.º 2 do artigo 824.º do CCivil”.
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Como assim, o apelante no ato da entrega do imóvel em questão sempre poderá invocar o referido contrato de arrendamento com assento nessa orientação jurisprudencial, com recurso aos meios processuais que ao caso se venham a ajustar.
Posição, aliás, que, em nosso entender, devia ter defendido no requerimento que introduziu em juízo em 10/07/2023 e depois eventualmente no recurso, em vez de ter optado pelo incidente do deferimento da desocupação da fração.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, por não provada e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
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Custas pelo apelante (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 05 de fevereiro de 2024
Manuel Domingos Fernandes
Ana Olívia Loureiro
Miguel Baldaia de Morais

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[1] Conforme se explanou no Ac. desta Relação 24/11/2011 (proc. nº 1924/10.2TJPRT-C.P1, acessível em www.dgsi.pt) “(…) ao remeter para ali [para o art. 930º-A do CPC em vigor ao tempo], através do respetivo art.º 150º, nº 5, o CIRE não está a pressupor a existência de um contrato de arrendamento, mas simplesmente a determinar que, com as devidas adaptações, se deve seguir aquele regime, numa perspetiva de salvaguarda do mínimo de dignidade humana, permitindo ao insolvente, tal como se permite, no processo executivo para entrega de coisa certa, ao arrendatário habitacional, usar de um prazo de diferimento da desocupação da casa de habitação, tendo designadamente em vista manter as condições de habitação enquanto o necessitado, num prazo definido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, mediante a verificação de requisitos legalmente estabelecidos (como sejam os nºs 2 e 3 ainda do art.º 930º-C), procura novo espaço habitacional.”
[2] No mesmo sentido cfr. Ac. desta Relação de 13/05/2014 in www.dgsi.pt.
[3] Cfr. Acs. do STJ de 03/11/2021-Processos nº 2418/16.8T8FNC.L1.S1 (com um voto de vencido) e 311/12.2TBRDD-B.E1.S2 e de 15/02/2022-Processo nº 718/11.2TBALQ-B.L1.S1.