Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
142046/08.3YIPRT.P3
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: CONTRATO DE EMPREITADA
DEFESA POR EXCEPÇÃO
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
PERDA DO BENEFÍCIO DO PRAZO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RP20151028142046/08.3YIPRT.P3
Data do Acordão: 10/28/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O contrato mediante o qual uma das partes se vincula a executar “a feitio” peças de vestuário com utilização de tecidos e demais acessórios fornecidos pela outra, a troco do pagamento de um preço fixado em função das peças executadas, é um contrato de empreitada.
II - Numa acção em que a empreiteira demanda a dona da obra para que lhe pague o preço das peças executadas e entregues na sequência de anteriores encomendas já satisfeitas e a ré invoca a excepção da compensação alegando um crédito por danos pelo incumprimento de uma encomenda posterior, cabe ao dono da obra o ónus de provar os factos constitutivos do direito em que funda a excepção, ou seja, que a empreiteira incumpriu a sua prestação e causou-lhe danos.
III - A ré defende-se por excepção quando alega factos novos com a intenção de os mesmos servirem de fundamento jurídico impeditivo do direito do autor, independentemente de os factos poderem ser insuficientes ou de o excepcionante ter qualificado os factos incorrectamente do ponto de vista jurídico ou não lhes ter atribuído de forma expressa o nome típico pelo qual são designados.
IV - Apesar de não prevista no artigo 780.º do CC, deve entender-se, por maioria de razão, que importa a perda do benefício do prazo a circunstância de o devedor assumir antecipadamente que não irá satisfazer o crédito, caso em que o credor pode invocar a excepção de não cumprimento para recusar a sua prestação que deveria ser cumprida primeiramente.
V - Face à ameaça do devedor de que não irá cumprir a sua prestação se o credor não aceitar uma redução da contraprestação, o credor pode recusar-se a entregar novo fornecimento sem que o pagamento seja feito, ainda que no acordo firmado o pagamento não tivesse de ser feito aquando das entregas.
VI - Actua em abuso de direito por desequilíbrio no exercício jurídico o devedor que ameaça o credor de não cumprir a sua prestação se o credor não aceitar uma redução da contraprestação e depois pretende que seja ilegítima a recusa deste em entregar novo fornecimento sem o pagamento imediato.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
Processo n.º 142046/08.3YIPRT.P3 [Comarca de Porto Este/Inst. Central/Penafiel/Sec. Cível]

Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.
B…, Lda., com sede em … – …, Lousada, instaurou procedimento de injunção, depois convertido em acção declarativa, contra C…, Lda., …, …, Paredes, com vista a obter a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de €48.630,12, acrescida de juros vencidos no valor de €1.249,32 e vincendos até integral pagamento.
Alegou para o efeito que no âmbito do seu objecto social de confecção de vestuário, a pedido da ré, prestou-lhe os serviços de confecção a feitio das peças de vestuário constantes das facturas que descrimina, as quais deveriam ser pagas na data delas constante, o que não sucedeu.
A acção foi contestada, por impugnação e excepção, pedindo a ré, em sede de reconvenção, a condenação da autora a pagar-lhe a quantia de €34.656,37, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a citação, até integral e definitivo pagamento.
Para o efeito alegou basicamente que a autora não cumpriu os termos das encomendas que lhe foram feitas e que aceitou, designadamente no tocante aos prazos de execução, e que em consequência disso a ré se viu obrigada a resolver o contrato. Mais alegou que o incumprimento da autora lhe causou prejuízos de diversa ordem e dos quais pretende ser ressarcida, operando a compensação em parte com o crédito da autora.
A acção prosseguiu até julgamento, findo o qual foi proferida sentença julgando a acção parcialmente procedente, condenando a ré a pagar à autora o capital de €48.630,12, acrescido de juros de mora desde a citação até integral pagamento, e julgando a reconvenção improcedente, absolvendo a autora do pedido reconvencional.
Do assim decidido, a ré interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
Quanto à questão de Facto:
III. A matéria constante dos artigos (quesitos) 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 12º, 13º, 18º, 21º, 22º, 29º, 31º e 56º está mal julgada e representa manifesta e errada decisão sobre a questão de facto, por erro na apreciação da prova.
IV. Desde logo impõe a rectificação do erro material escrita constante do artigo 22º da BI nos termos expostos.
V. Nos termos expostos na motivação, a resposta aos quesitos 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 9º, 12º, 13º, 18º, 22º, 31º, deveria ter sido positiva no sentido da matéria constante dos mesmos ser dada como provada.
VI. Tal matéria, ainda que com algumas diferenças contextuais e temporais, tem como base essencial a questão do prazo efectivamente contratado com a Autora para a execução dos serviços em questão.
VII. Prazo esse que constituiu sempre questão nuclear da contratação, em especial no contexto do sector têxtil, e que o foi nos casos dos autos existindo até prova documental que confirma o prazo contratado e a suas sucessivas alterações.
VIII. Vejam-se as comunicações electrónicas de fls. 20 e 23 em que claramente a Autora é informada dos prazos de resto conforme reunião havida momentos antes.
IX. À matéria do artigo 8º da BI, impugna-se a sua resposta restritiva, no sentido de que o Tribunal deveria ter dado como provado que a Ré, a expensas suas colocou à disposição da Autora todas as matérias primas necessárias à confecção dos artigos de H) al. c) (Parkas), dado que a Autora iria apenas confeccionar “a feitio”.
X. Quanto à matéria do artigo 21º deve a mês a ser alterada no sentido de se considerar provado que: “Em Dezembro de 2007, a R. iniciou a colocação nas instalações da A. das matérias-primas e acessórios para a confecção dos artigos de H), als. b) e c) o que concluiu em 12 de Fevereiro de 2008”
XI. No que concerne ao artigo 29º da base instrutória o mesmo deveria ter merecido resposta positiva (ainda restritiva nos termos expostos) no sentido de se considerar provado que “….no dia 04.04.2008 a Autora não tinha pronta para entrega a encomenda n.º881 (619 Parkas) referida em H al. c)
XII. Tal matéria é relevante quando relacionada com a resposta dada ao quesito 25º tendo ficado provado que “após diversas interpelações por parte da Ré, a Autora assumiu que entregaria a totalidade das peças no dia 04.04.2008
XIII. A reapreciação à resposta dada a tais artigos (referidos em VIII[1]) e a sua modificação, impõe-se pela análise crítica e adequada dos documentos de fls. 20, 23, 24, 25, 27, 29, 32, 38, 73, 74, 75º a 82º, 276, 284, 286, 288 e 360 dos autos, dos depoimentos das testemunhas, D…, E…, F…, G… e H… e a ainda da resposta dada à matéria do quesito 61º.
XIV. Contrariamente a matéria constante do artigo 56º da BI deveria ter sido considerada como não provada.
XV. Aliás, do próprio relatório fundamentação da matéria de facto resulta que o Tribunal incorreu em manifesto lapso.
XVI. Uma vez que interpretou erradamente o documento de fls. 21 e 22 o qual não se refere à encomenda 881 (parkas) mas sim com a encomenda 877 (calças).
XVII. Tal documento foi junto pela própria Ré para prova da matéria do artigo 38º da oposição (fls. 7 dos autos) onde se refere exclusivamente a encomenda 877 (calças).
XVIII. Não estando demonstrado nem provado que em 13 de Março de 2008 a Ré tenha entregado à Autora quaisquer acessórios para produção da encomenda 8811- Parkas.
XIX. Pelo que tais artigos deveriam ter sido dado como não provado conforme resulta de fls. 7, dos documentos de fls. 21, 22, 286, 288 dos autos, dos depoimentos das testemunhas, G… e H….
XX. Igual resultado, de resposta de provados a esses respectivos quesitos, impunha, se necessário, o recurso às presunções judiciais e à mais elementar experiência de vida, sendo que, alguns destes factos são até factos notórios, do conhecimento geral, para que a lei não exige alegação nem prova.
XXI. Sendo que assiste à Veneranda Relação o direito e o dever de alterar o sentido de tais respostas, nos termos do antigo artigo 712.º do CPC e artigo 662.º, da redacção actualmente em vigor.
Quanto à questão de direito:
XXVII. O tribunal errou também quanto à decisão de Direito.
XXVIII. Antes de mais corrigindo-se as respostas negativas ou restritivas à matéria de facto deve ser correspondentemente alterada a decisão de Direito.
XXIV. Em todo o caso, todas as soluções de direito defendidas na sentença recorrida, são erróneas e, mesmo em função da matéria dada como provada na 1ª instância a solução de direito, face à adequada aplicação da lei só pode ser a contrária.
XXV. No caso, entende a Ré que o que contratou com a Autora foram várias empreitadas
XXVI. O seu cliente “I…” não é dono da obra nem tem sobre esta qualquer poder nem exerce qualquer direito, para mais, quando é (foi) a Ré que adquire, a expensas suas, e por isso é proprietária de todos os materiais, acessórios que constituíram tal bem.
XXVII. A Autora comprometeu-se a prestar um serviço à Ré consubstanciado na realização de uma obra mediante o pagamento de preço.
XXVIII. Na empreitada os direitos essenciais do Dono da Obra traduzem-se na aquisição e recepção da obra ou seja a obtenção de um resultado, no prazo acordado e nos moldes convencionados.
XXIX. Ao dono da obra assiste ainda o direito de a fiscalizar quer durante a sua execução quer após a sua entrega decidindo se a aceita ou não.
XXX. No que concerne aos seus deveres, incumbirá ao Dono da Obra proceder ao pagamento do preço estipulado, que deve ser realizado, salvo cláusula ou uso em contrário, no acto da aceitação da mesma.
XXXI. São deveres do empreiteiro a realização da obra – artigo 1207 do CC- de acordo com o que foi convencionado entre as partes – artigo 406 do CC- e de acordo com o princípio da boa-fé- artigo 762º n.º 2 do CC- a sua entrega - e no prazo estipulado.
XXXII. No caso o Tribunal não retirou dos factos provados as necessárias ilações de direito, por forma a concluir (como devia) que a Autora, particularmente no que concerne às obrigações assumidas relativas à confecção da encomenda 881 (Parkas) não cumpriu as suas obrigações.
XXXIII. Desde logo não cumpriu o prazo de entrega a que se vinculou conforme matéria provada sob a al. Y dos factos dados como provados.
XXXIV. Ora do teor de tal matéria resulta claramente a interpelação da Ré para que a Autora finalizasse a encomenda 881 e a entregasse.
XXXV. E que a Autora se obrigou (assumiu) que entregaria tal encomenda à Ré, a encomenda 881 constituída por 896 parkas (b) e c) da al. H dos factos assentes) em 04 de Abril de 2008.
XXXVI. Existiu assim, vinculação a nova prazo, ou seja, nova condição pactuada a aceite entre as partes.
XXXVII. Entregar é um acto positivo cuja prestação efectiva incumbe à Autora.
XXXVIII. A Autora não demonstrou que na data de 04.04.2008 entregou a encomenda 881 à Ré nem que a mesma estivesse sequer concluída.
XXXIX. Nem provou que naquela data -04.04.2008- tenha comunicado à Ré de que as parkas (encomenda 881) estariam prontas para ser entregues.
XL. A prestação devida pelo empreiteiro, no caso a Autora, é instantânea ou momentânea, visto que o seu cumprimento se traduz na entrega da obra por ele realizada – artigos 1228 e ss.
XLI. A Autora não cumpriu a sua prestação por culpa sua que no caso até se presume.
XLII. E entrou em incumprimento que veio a verificar-se definitivo perante a sua recusa expressa em entregar a encomenda à Ré.
Depois,
XLIII. A Autora alterou unilateralmente, abusiva e ilegitimamente, as condições do pagamento do preço que não era a pronto pagamento.
XLIV. E daí que a possibilidade da prestação ser realizada ou exigida em momento posterior constitui um benefício do devedor, neste caso, da Ré
XLV. A Autora ao exigir o pagamento a pronto, à vista – no acto da entrega, sem que à Ré fosse dada sequer a possibilidade de verificar a obra com vista á sua aceitação (direito que na qualidade de dono de obra/empreiteiro lhe assiste e sem que o respectivo preço fosse liquidado (a factura não havia sido sequer emitida, enviada ou remetida à Ré – violou o pactuado entre as partes uma vez que a Ré sempre beneficiou (e beneficiava nos termos da lei) do benefício do deferimento do praz.
XLVI. De resto, o preço devido, tendo em causa o contrato em questão – empreitada – apenas se vence na falta de da cláusula ou convenção em contrário no acto da aceitação.
XLVII. Ou pelo menos 30 dias após a entrega da factura.
XLVIII. O princípio da pontualidade (art. 406º C.Civil), vector fundamental em matéria de cumprimento das obrigações, proíbe qualquer alteração à prestação devida.
XLIX. Inequivocamente no caso a Autora não actuou de boa-fé impondo à Ré uma “nova” condição contratual que não estava pactuada.
L. Actuando até em manifesto abuso de direito que a lei proíbe - artigo 334 do Código Civil.
Finalmente
LI. Ao reconhecer à Autora o direito de retenção, o Tribunal conheceu de questão nova de que não podia tomar conhecimento, questão essa nunca alegada pela Autora nos autos, nem alegados factos que a pudessem consubstanciar.
LII. Pelo que nesta medida a sentença recorrida é nula, nos termos do artigo 615.º, n.º1 al. d), 2.ª parte.
LIII. Depois, o Tribunal conhecendo de tal questão, como visto erradamente, fê-lo sem a adequada e necessária fundamentação de facto e de direito, não fazendo um exame crítico das provas e dos factos por forma a justificar, nos termos da lei, a verificação dos requisitos do exercício de tal direito de retenção.
LIV. Pelo que nesta parte a sentença, também enferma de nulidade por falta de fundamentação, nos termos do artigo 615.º, n.º1, alínea b) do CPC, por violação do 607.º, n.º 3 e 4 do mesmo CPC.
LV. A Autora exerceu ilegitimamente o pretenso direito de retenção ao recusar-se a entregar a encomenda 881.
LVI. O Tribunal erra desde quanto à eventual questão da “redução do preço” justificativa do receio da Autora e assim “legitimante” da retenção.
LVII. A redução de preço apenas pode ter por base ou fundamento o próprio objecto da prestação, caso o mesmo apresente defeitos, não seja prestado ou entregue nos termos convencionados no que concerne às suas características e aptidões.
LVIII. Dos autos resulta que a Autora, aceitando receber o preço dos serviços que prestou e das obras que realizou após a entrega da mercadoria e após a emissão de facto correspondente, renunciou ou abdicou ao direito de retenção.
LIX. O direito de retenção constitui uma garantia cujo exercício era e é incompatível com o acordado entre as partes ou pelo menos com a presunção de deferimento de prazo para cumprimento da obrigação de que a Ré beneficia o qual só poderia ser admitido caso o acordado tenha sido o pagamento a pronto ou à vista no acto da entrega.
LX. A Autora, então, não detinha sobre a Ré qualquer crédito como requisito para o exercício do seu direito.
LXI. A Autora não havia ainda liquidado e comunicado à Ré o preço de tais serviços prestados o qual é feito mediante o envio da factura correspondente.
LXII. No caso da empreitada, salvo disposição em contrário, o preço vence-se e deve ser pago na data da aceitação da obra – n.º 2 do artigo 1211 do CC.
LXIII. Ora a obra não tinha sido aceite, nem expressa nem tacitamente, uma vez que a mesma não tinha sequer sido recebida.
LXIV. Não existia então qualquer facto ou circunstância que implicasse, face ao que acima se disse, a perda por parte da Ré do benefício do prazo nos termos dos artigos 757 n.º 1 e 780 do CC.
LXV. Nem existia qualquer incumprimento por parte da Ré das obrigações assumidas quanto à encomenda 881 (Parkas) ao contrário era a Autora que registava incumprimento das obrigações a que vinculou.
LXVI. Tal comportamento da Autora consubstancia inequívoco incumprimento definitivo do negócio, com culpa (que se presume) e até dolosa e excessivamente por relação ao pseudo crédito que quis acautelar e com manifesto abuso de direito.
LXVII. Com, a consequente obrigação de indemnizar a Ré pelos danos provocados correspondentes ao montante de €38.598,95 (custos das matérias primas e a acessórios) e €7.282,34 + IVA (lucro cessante) danos que o Tribunal deu como provados - al. AG e AL dos factos dados como provados.
LXVIII. Emergindo na esfera jurídica da Ré um direito de crédito sobre a Autora no valor de € 45.880,34 ao qual acrescerá IVA à taxa legal em vigor no montante de €47.556,22.
LXIX. Tal crédito deve ser reconhecido e ainda reconhecido à Ré o direito que tinha então e tem fazer operar - como fez - a compensação no crédito reclamado pela Autora no âmbito dos presentes autos nos termos dos artigos 846.º e ss do CC.
LXX. Violou a sentença recorrida por erro de interpretação os artigos 5.º, n.º2 alínea b), 607.º, 615.º e 655.º do CPC e os artigos 217.º, 218.º, 224.º, 334.º 342.º, 406.º, 428.º, 734.º, 754.º, 755.º, 757.º, 762.º, 763.º, 773.º, 777.º, 779.º, 780.º, 798.º, 799.º 834.º, 846.º, 847.º, 848.º, 1155.º, 1157.º, 1207.º, 1208.º, 1211.º, 1212.º, 1213.º, 1221.º, 1222.º e 1223.º do CC.
Termos em que deve dar-se provimento ao presente recurso com todas as consequências da lei,
- Revogando-se a sentença recorrida, se necessário for alterando-se a decisão quanto à questão de facto, reapreciando a veneranda Relação do Porto a prova dos autos alterando-se a resposta dada aos quesitos 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 12º, 13º, 18º, 21º, 22º, 29º, 31º e 56º nos termos expostos, substituindo-se a mesma por outra que absolva a Ré dos pedidos formulados pela Autora.
- Revogando a sentença recorrida e substituindo-se a mesma por outra que reconheça e declare o incumprimento definitivo da Autora no que concerne às obrigações que assumiu, e considera a recusa de entrega da obra respeitante à encomenda 881 ilegal e ilegítima
- Revogando a sentença recorrida e substituindo-se a mesma por outra que reconheça que a Ré é credora da Autora no montante de €47.556,22 reconhecendo-lhe ainda o direito de fazer operar a compensação quanto ao crédito reclamado pela Autora nos presentes autos.

A recorrida respondeu a estas alegações, defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e apresentando as seguintes conclusões:
I – A Recorrente considera que a resposta dada aos artigos da BI sob os nºs 3 a 9, 12, 13, 18, 21, 22, 29, 31 e 46 foi mal julgada por manifesta violação do mais elementar senso comum e da mais elementar experiência de vida, posição com a qual a Recorrida discorda totalmente.
II - A Recorrida considera ter resultado provado, quanto a prazos, que apenas assumiu o compromisso de ir produzindo as encomendas o mais rapidamente possível.
III - Todavia, como se demonstrou, a Recorrida entregou, ou tinha pronto para entrega, todas as encomendas dentro dos prazos que a Recorrente negociou com a I….
IV - Pelas razões apontadas, a frase que a Recorrente retirou do documento constante de fls 25, email que a Autora enviou à Ré em 17 de Março de 2008, não tem o valor de reconhecimento expresso por parte da Ré do incumprimento de prazos.
V – O conteúdo de tal documento foi devidamente explicado por quem o redigiu, a testemunha D… e, conjugando-se todo o seu conteúdo com toda a restante prova produzida, não resta dúvidas, como não restou ao Tribunal “ a quo” de que tal não expressa a assunção de incumprimento de qualquer prazo.
VI - A encomenda 877 foi cancelada por razões estranhas à Recorrida – erro no plano de corte.
VII – A Recorrida comprometeu-se a entregar à Recorrente a encomenda 881 no dia 4 de Abril de 2008 e no dia 1 de Abril de 2008 a mesma estava pronta para entrega.
VIII – A Recorrente não levantou a referida encomenda em nenhum desses dias por simples falta de espaço para a armazenar nas suas instalações.
IX - A Recorrida provou que a Recorrente não entregou em devido tempo todos os materiais necessários para a produção das ditas encomendas.
X – Logo, as respostas dadas quanto à matéria de facto deverão manter-se inalteradas.
XI – A douta sentença proferida deverá manter-se, porque o Tribunal aplicou aos factos provados o necessário e correcto direito.
XII - A Recorrida cumpriu com todas as suas obrigações contratuais.
XIII – Consta da matéria assente, em momento algum impugnada – alínea N – no dia 21 de Abril de 2008, em reunião nos escritórios da Autora, a legal representante da Ré, D. G…, acompanhada da sua funcionária, Sra. Eng. H…, propuseram à Autora um desconto de 50% no valor da facturação das parkas, sendo que, caso não aceitasse tal redução, não pagaria nenhuma das facturas, acordo que não foi aceite pela Autora.
XIV – Assim sendo, quem, unilateralmente e de forma ilegítima, alterou as condições contratuais foi a Recorrente, que já tinha na sua posse, àquela altura a maior parte da encomenda, e tinha, inclusive, já recebido pela mesma o pagamento devido pela I….
XV – Sendo imenso e compreensível o receio da Recorrida de nada receber pelos serviços que executou para a Recorrente, exerceu o direito de retenção sobre a encomenda 881, única que tinha em sua posse, só a entregando mediante o seu pagamento.
XVI - Estando verificados os pressupostos previstos nos artigos 754º e ss do Código Civil, andou bem o Tribunal ao reconhecer este direito à Autora, que também se aplica à empreitada, nunca a Autora, em momento algum, tendo renunciado a tal direito.
XVII - Pelo que a subsunção jurídica dos factos traduzida na douta sentença agora recorrida, deverá manter-se inalterada, sendo negado total provimento a todas as pretensões da Recorrente.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.
As conclusões das alegações de recurso colocam este Tribunal perante o dever de resolver as seguintes questões:
i) Se a matéria de facto deve ser alterada quanto aos pontos concretos impugnados pela recorrente.
ii) Se a autora invocou e pretendeu exercer alguma excepção, designadamente o direito de retenção ou a excepção de não cumprimento do contrato.
iii) Se a autora ao condicionar a entrega das mercadorias ao pagamento do preço incumpriu culposamente as obrigações a que se vinculou no contrato celebrado com a ré.

III.
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
A) A Autora dedica-se com intuito lucrativo à actividade de confecção de vestuário.
B) A Ré é uma sociedade comercial que se dedica, além do mais, à produção e comercialização de peças de vestuário.
C) No âmbito da sua actividade a Autora prestou à Ré os serviços de confecção a feitio das peças de vestuário discriminados nas facturas n.os 602, 605, 611, 616 e 620, num total de € 48.236,80, valor esse que a Ré não pagou.
D) As peças de C) foram entregues à Ré sem qualquer reparo ou reclamação e entregues por esta ao seu cliente “I…” e recebido pela mesma o correspondente preço.
E) Nos vários contactos havidos entre o cliente espanhol “I…” e a Ré, inclusive por sugestão do próprio cliente, acordaram as partes que a confecção “do feitio” de diversos artigos de vestuário fosse entregue à Autora em subcontratação da responsabilidade da Ré.
F) Incumbiria à Ré adquirir as matérias-primas para o efeito e colocar tais produtos à disposição da Autora, recebendo-os depois já confeccionados.
G) No âmbito dos contactos de E), Autora e Ré acordaram, designadamente, na produção de 2 modelos: a) um modelo de calças (25072); b) um modelo de parkas (32021), não obstante em duas cores distintas.
H) Em reunião havida entre a Autora e a Ré, com o perfeito conhecimento do cliente “I…”, para o qual a Autora já havida trabalhado por diversas vezes, a Ré solicitou à Autora a confecção “a feitio” dos seguintes artigos: a) 951 calças do modelo 25072.30128.200, que corresponde à encomenda n.º 877; b) 343 parkas do modelo 32021.25013.400, que corresponde à encomenda 881; c) 619 parkas do modelo 32021.25013.711, que corresponde igualmente à encomenda n.º 881.
I) Tratava-se em ambos os casos, mas em especial quanto à encomenda n.º 881, de artigos de custo elevado não só quanto aos materiais a incorporar mas também quanto à confecção propriamente dita.
J) A Autora aceitou a confecção de tais artigos, foi fixado o preço a pagar pela Ré à Autora, sendo que toda a produção dos artigos em questão seria acompanhada pela Ré e pelo próprio cliente final (I…) na pessoa do seu representante/controlador.
K) Acordaram as partes que, quanto aos artigos referidos em H), al. a), a Autora faria uma amostra do produto o qual, após aprovação, seguiria para produção total.
L) No sector em questão é consabido que a Páscoa é uma altura de muita procura dos artigos têxteis daí que as grandes empresas espanholas aumentem consideravelmente as suas produções vendas em tal período, devendo os artigos a vender estar disponíveis nas lojas antes da Páscoa.
M) Não obstante as diligências da Ré junto do seu cliente, este acabou por cancelar a encomenda referida em H), al. a).
N) No dia 21 de Abril de 2008, em reunião nos escritórios da Autora, a representante legal da Ré, D. G… acompanhada da sua funcionária, Sra. Eng. H…, propuseram à Autora um desconto de 50% no valor da facturação das parkas, sendo que, caso não aceitasse tal redução não pagaria nenhuma das facturas, acordo que não foi aceite pela Autora.
O) Em Agosto/Setembro de 2007 a Ré recebeu do seu cliente espanhol “I…” várias encomendas para a produção de vários artigos de vestuário, em sistema de “full price”, o que representaria que à Ré fosse entregue a responsabilidade pela produção total dos referidos artigos.
P) A R., a expensas suas, colocou à disposição da A. todas as matérias-primas necessárias à confecção dos artigos de H), b) e c).
Q) Quanto a alguns artigos, o cliente I…, a esforço da Ré, aceitou a sua entrega fora de prazo.
R) Quanto aos modelos de H), o cliente cancelou as respectivas encomendas.
S) No dia 4/03/2008 houve uma reunião entre a A. e R., seguida de uma comunicação electrónica do mesmo dia desta àquela donde, com interesse, consta: “Em seguimento à reunião de hoje consigo acordamos os prazos abx: Enc. nr. 877…20-Mar…Enc. nr. 881…20-Mar…Neste momento não sei se a I… aceitará estes prazos, e para q não haja problemas deveríamos entregar tudo a 13/03, pois os cancelamentos estão à porta…”.
T) Em 17/03/2008 a R. enviou à A. uma comunicação donde, com interesse, consta: “…Desde o dia 3/01 q andamos na B… diariamente e foi sempre a B… q deu os prazos q quis para cada modelo. Nunca a forcei a dar prazos, pois repito, em muitos casos até achava pouco por semana, mas com o seu argumento da dificuldade dos modelos, até aceitava. O problema é q nem esses prazos consegue cumprir”.
U) O cancelamento da encomenda de H), a) foi comunicado pela R. à A. por correio electrónico de 25/03/2008.
V) Os custos com a aquisição dos materiais para a confecção da encomenda de H), al. a) ascenderam a €16.363,10, não tendo a R. ganho o seu ágio na venda de tal artigo.
W) Em Dezembro de 2007, a R. iniciou a colocação nas instalações da A. das matérias-primas e acessórios para a confecção dos artigos de H), als. b) e c).
X) A 17/03/2008, a A. ainda não tinha pronta a encomenda de H), als. b) e c).
Y) Após diversas interpelações por parte da Ré, a Autora assumiu que entregaria a totalidade das peças no dia 04.04.2008.
Z) A R. a 25/03/2008 comunicou electronicamente à A. “Infelizmente o q temíamos está a acontecer…a I… quer cancelar tudo o q falta entregar. A D. D… combinou comigo ao telefone que entregaria toda a produção em falta até 4/04. Mesmo assim não sei senão teremos cancelamentos”.
AA) A Ré manteve a encomenda.
AB) O cliente mostrou intenção de cancelar a totalidade da encomenda caso as peças não lhe fossem entregues dentro do prazo.
AC) A 21/04/2008, houve uma reunião entre a A. e a R. durante a qual se falou em a A. suportar parte dos custos das encomendas H), b) e c).
AD) Por correio electrónico de 24/04/2008 a R. comunicou à A., relativamente à encomenda de H) b) e c) o seguinte: “Em seguimento à reunião q tivemos na B… no passado dia 21/04, somos a informar q já obtivemos feed back do cliente I… qto à encomenda 881 do modelo 32021. Como sabemos a B…, adiou vezes sem conta o prazo desta encomenda, sendo q a ultima data limite para a I… p aceitar a encomenda seria 18/04 e essa data não foi cumprida. Conforme vos foi dito, inicialmente o cliente simplesmente dizia q estava canceladas. Depois da nossa insistência diária via telefone e tentativas de visitas pessoais á I…, conseguimos q fossem aceites com 30% de desconto. Dado q entendemos ser da responsabilidade da B… o atraso, o mesmo ser-vos-á imputado…Mais informamos, q iremos levantar a encomenda 881 na 2.ª feira, para q a possamos entregar á I… e não atrasar mais ainda este processo, q já foi muito custoso, termos conseguido com desconto…”
AE) Chegado tal dia, 28/04/2008, a R. dirigiu-se às instalações da A. com vista a levantar a mercadoria respeitantes à encomenda 881 (as parkas) e foi impedida de o fazer.
AF) A Autora, não obstante saber da necessidade de entregar as peças ao cliente, não permitiu o levantamento da encomenda e a Ré viu-se na contingência, ingrata e até humilhante, de comunicar ao cliente I… que, afinal, não lhe entregaria as peças, sendo que o cliente cancelou a encomenda.
AG) Por causa disso, a Ré suportou os custos e prejuízos inerentes a tal cancelamento correspondentes aos gastos efectuados na aquisição das matérias para a sua produção e nos demais materiais a incorporar em tais artigos (no tecido, nas linhas, na estamparia, nos desenhos, no transporte) no valor contabilizado de €38.598,00 e os prejuízos correspondentes ao lucro que deixou de obter com a venda de tais artigos.
AH) Ainda que o fosse agora, o cliente da Ré já não o aceitaria, estando esta impossibilitada de colocar tais parkas no mercado para venda face aos direitos de autor a respeitar.
AI) A Ré liquidou à Autora o valor do seu prejuízo e reclamou o seu pagamento através da emissão das notas de débito n.os 2008/…100 de 24.04.20008 e 2008/…103 de 28.04.2008, liquidação essa relevada contabilisticamente pela Ré e cujo valor foi levado à conta corrente da Autora.
AJ) E comunicada formalmente à Autora por missiva de 30.04.2008.
AK) Com a venda dos artigos referidos em H), al. a), ao cliente “I…” a Ré obteria um lucro (diferença entre o preço global de custo/fabrico e o preço de venda ao cliente) equivalente a €3,58/peça, ou seja, 951 x €3,58, num total de €3.404,58 ao qual acresce IVA à taxa legal em vigor.
AL) Com a venda dos artigos referidos em H), als. b) e c), ao cliente “I…” a Ré obteria um lucro (diferença entre o preço global de custo/fabrico e o preço de venda ao cliente) equivalente a €7,57/peça, ou seja, 962 x € 7,57, num total de €7.282,34 ao qual acresce IVA à taxa legal em vigor.
AM) Os valores de AK) e AL), que ascendem a €12.931,17 foram imputados à Autora e o seu valor foi reclamado através da emissão e envio da nota de débito n.º 2008/…130 de 30.05.2008.
AN) Tratando-se como se trata de empresa conceituada em Espanha, inserida num grande grupo têxtil, cujos níveis de exigência e rigor, nomeadamente com os fornecedores, são por todos conhecidos.
AO) A R. insistiu para que o cliente aceitasse uma mercadoria um mês após o prazo contratado e mais uma vez não conseguiu satisfazer a pretensão do cliente.
AP) O mercado têxtil é um mercado exigente e exausto concorrencialmente.
AQ) Por carta de 30.04.2008 a Ré reclamou da Autora parte dos prejuízos correspondentes aos custos suportados com a aquisição das matérias-primas a incorporar nos artigos de H), no valor de €54.962,00.
AR) E compensou esse crédito no valor em aberto a favor da Autora correspondente às facturas n.os 602, 605, 611, 616 e 620 no valor global de €48.236,80.
AS) A R. entregou à A. alguns acessórios para as parkas em 13/03/2008.
AT) O cancelamento de M) ficou-se a dever a uma deficiência das peças devido a um erro no plano de corte fornecido pela R. detectado após a confecção daquelas.
AU) A Ré confirmou também que a produção não era para prosseguir e solicitou à Autora que aguardasse pelo levantamento dessa encomenda.
AV) Por fax do dia 14/04/2008 a A., referindo-se à encomenda de H), b) e c), solicitou à R. que a fosse levantar e que a mesma já estava pronta desde o dia 1/04/2008.
AW) Depois de receber este fax, a R., por correio electrónico do mesmo dia 14/04/2008, solicitou à A. que “fiquem com as peças pois só a 21/04 as poderei receber”.
AX) A A. sempre esteve em contacto com a R.
AY) A maior parte das peças encomendadas, tais como os vestidos elencados na factura nº 616, os casacos de senhora elencados na factura nº 611, os vestidos elencados na factura nº 605, as blusas elencadas na factura nº 602, foram aceites sem qualquer reclamação pela Ré, entregues à cliente final “I…” e pagas por esta à Ré.
AZ) No momento em que a R. pretendeu levar a encomenda respeitante à factura n.º 632 que consistiu na confecção do feitio de 885 parkas de senhora, e como a R. não procedeu ao pagamento de tais serviços e das facturas de C), a A. informou-a que só com esse pagamento poderia levar a encomenda.
AAA) No que tange aos artigos de H), als. b) e c), a Autora facturou apenas o valor das amostras que confeccionou.

IV.
A] da questão prévia da junção de documentos:
Com as alegações de recurso a recorrente afirmou juntar um documento constituído por uma cópia de um envelope que lhe foi remetido pela recorrida contendo a factura n.º 632 e a guia de transporte 736, sustentando que a sua junção é necessária em virtude do julgamento da 1.ª instância.
Vendo as alegações constata-se que os documentos que a acompanham são vários mas todos relativos a actos praticados num incidente de prestação espontânea de caução para suspensão da execução da sentença inicialmente proferida nos autos e depois anulada.
Estes documentos não têm qualquer interesse para a matéria do recurso, pelo que a sua junção não pode deixar de ser recusada. Já o documento referido nas alegações de recurso pura e simplesmente não foi junto, pelo que não é possível decidir da regularidade da sua junção.
No caso de esta situação se dever a mero lapso, no que assentimos, cremos que a mesma é neste momento já insanável na medida em que a apresentação das alegações constitui o limite temporal para a junção dos documentos e esse limite se encontra ultrapassado, não podendo a sanação do lapso permitir a recuperação de um direito que se extinguiu pelo decurso do respectivo prazo.
Acresce que tanto quanto resulta das alegações a junção do documento mencionado pela parte visava demonstrar um facto que não foi alegado pela parte nem aquando da dedução da reconvenção, nem no articulado de tréplica, e que constituía um novo e distinto fundamento para a ré se considerar desobrigada de pagar no dia 28.04.2008 o preço da última encomenda.
Estando vedado ao tribunal conhecer agora no recurso de um novo fundamento de facto não alegado nos autos e, como tal, também não apreciado na sentença recorrida, vedado lhe está igualmente admitir o documento junto com esse desiderato pois que a sua junção seria, nessa perspectiva, um acto falhado e inútil, vedado pelo artigo 137.º do Código de Processo Civil.
Pelo exposto, decide-se rejeitar a junção do documento apresentado pela recorrente com as alegações de recurso.

B] do recurso da decisão sobre a decisão da matéria de facto:
Mostram-se cumpridos pela recorrente os requisitos específicos da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, nada obstando à apreciação desse segmento do recurso.
Na sequência da alegação da ré foram incluídos na base instrutória os seguintes factos:
3º) Inicialmente as encomendas em questão deveriam estar prontas a entregar até finais de Dezembro?
4.º) Por motivos vários, da exclusiva responsabilidade do cliente “I…”, ficou acordado com a Ré adiar a produção, e subsequente entrega de tais modelos, para momento posterior, em princípio para inícios de Março de 2008?
Estes factos foram julgados não provados em 1.ª instância.
No que concerne ao facto do artigo 3.º da base instrutória, deve ter-se presente que foi julgado provado o facto do artigo 2.º da mesma peça, segundo o qual “em Agosto/Setembro de 2007 a Ré recebeu do seu cliente espanhol “I…” várias encomendas para a produção de vários artigos de vestuário, em sistema de “full price”, o que representaria que à Ré fosse entregue a responsabilidade pela produção total dos referidos artigos” [alínea O)].
Ora a folhas 276 e 277 encontra-se juntos dois documentos que constituem as notas de encomenda feitas pela I… à ré com datas de 29 de Agosto e 2 de Setembro de 2007, respectivamente, em cuja descrição se vê a referência aos artigos com os códigos 25072.30128.200 (“pantalon”), 32021.25013.400 e 32021.25013.711 (“parkas”) que correspondem aos artigos cuja execução foi depois negociada com a autora. Estes documentos indicam ainda como data de entrega (“fecha tope/deadline”) o dia 16 de Dezembro de 2007.
Tratando-se de documentos provenientes de um terceiro alheio ao conflito e que era o destinatário da mercadoria, afigura-se-nos que não existe nenhuma razão para rejeitar a suficiência destes documentos para julgar provado o facto do artigo 3.º da base instrutória, pelo que a decisão da 1.ª instância de o considerar não provado é aqui alterada.
Não assim, claramente, no tocante ao facto do artigo 4.º.
Com efeito, para além de não ter sido junto aos autos qualquer documento oriundo do cliente da ré I… a fazer menção a essa alteração do prazo e, muito menos, a que a alteração se devesse a motivos da sua exclusiva responsabilidade, como pretende a ré, certo é que a folhas 214 (original) e 217 (tradução) encontra-se o registo escrito do depoimento da J…, funcionária da I…, a qual à matéria deste quesito respondeu o seguinte: “Não sabe se existia essa convenção, mas acha estranho porque não é habitual e que fosse atrasado até Março parece-lhe ainda mais estranho”.
Esta afirmação é, aliás, corroborada pelo mail junto a folhas 322 no qual J… informa a ré que a I… decidiu não aceitar mais qualquer artigo destinado à temporada de Verão de 2008 que tenha sido prometido “para antes de 1 de Marzo”, indicando a seguir os modelos abrangidos por essa decisão onde se incluem as encomendas 877 e 881 cuja confecção era da autora. Seria absolutamente estranho que a I… tivesse adiado a produção, e subsequente entrega em princípio para inícios de Março de 2008, como alega a ré, e, não podendo deixar de saber que entre o início da produção e o recebimento dos produtos devidamente acabados teriam de passar dias ou mesmo semanas, viesse depois recusar o seu recebimento com a alegação de que os artigos deveriam ter sido entregues antes de 1 de Março, ou seja, ainda antes mesmo da data que tinha fixado para o início da sua produção!
Acresce as testemunhas referidas pela ré, G… e H…, não fizeram afirmações claras e seguras a esse respeito, limitando-se a referir, aliás de forma não espontânea, que depois da encomenda inicial houve reuniões com a I… e a entrega acabou por ser relegada para mais tarde.
A alegação da ré é, aliás, incongruente com aquilo que mais à frente alega a propósito do relacionamento com a autora. Com efeito, no documento de folhas 20 que é um print de um mail enviado à autora logo no dia 4 de Março a ré refere que não sabe se a I… irá aceitar os prazos indicados no próprio mail e que são desse mês de Março, pelo que não se consegue apreender a lógica da alegação – ou a lógica do mail! - de que por razões exclusivamente imputáveis à I… ficou “acordado” entre esta e a ré adiar a “a produção”, e subsequente entrega de tais modelos, para … “em princípio para inícios de Março de 2008”.
E menos ainda se compreende que na actividade económica da produção e comercialização de vestuário que funciona por épocas de Verão e de Inverno, o cliente (I…) tivesse fixado um prazo não peremptório (“em principio”), faculdade que a recorrente não admite à autora e que considera não ser natural nesta área de negócios.
A resposta negativa este facto é, por isso mesmo, a única consentânea com os meios de prova produzidos e, sobretudo, com a ausência dos meios de prova exigíveis para alicerçar uma convicção positiva sobre o facto do artigo 4.º.
Foram ainda incluídos na base instrutória e julgados não provados os seguintes factos:
5.º) Foi acordado o prazo de entrega dos artigos referidos em H) entre Autora e Ré, tendo sido a Autora, dentro dos parâmetros fixados pelo cliente da Ré, que sugeriu e indicou os prazos que se propunha cumprir como sendo os bastantes e necessários à confecção do artigo?
6.º) Ficou logo expressamente acordado entre as partes, sendo inclusive condição essencial da contratação da Autora (e também da encomenda à Ré por parte do seu cliente) que os artigos deveriam estar prontos a entregar no prazo limite de um semana antes da Páscoa, no máximo até 13/14 de Março de 2008?
7.º) A Autora conhecia tal condição e aceitou-a?
12.º) Quanto à encomenda 877-Modelo 25072.30128.200 ficara, desde início, claro e acordado que deveria ficar pronta pelo menos uma semana antes da Páscoa, no máximo até ao dia 13 de Março de 2008?
13º) Este foi o pressuposto da contratação por parte do cliente e foi, por isso, condição essencial da sua aceitação?
22.º) O prazo inicialmente acordado para a entrega dos artigos de H), alíneas b) e c), foi fixado para os dias 13/14 de Abril[2] de 2008 e foi protelado para o dia 20/03/2008?
A Mma. Juíza a quo justificou assim a decisão de julgar não provados estes factos:
“Sobre o estabelecimento de prazos para a execução dos trabalhos relativos às encomendas de H), b) e c) a prova produzida também não foi esclarecedora, posto que inexiste qualquer documento contemporâneo acerca do assunto e cujo conteúdo possa ser imputado à A..
Na verdade, os documentos existentes directa ou indirectamente relacionados com este aspecto são comunicações trocadas entre as partes, e na sua maior parte provenientes da própria R., como seja as de fls. 73/74, de 22/02/2008; fls. 20, de 4/3/2008; fls. 24 e 25 de 17/03/2008; fls. 85 de 28/03/2008; fls. 95 de 24/04/2008, donde, em conjugação com a própria comunicação electrónica de fls. 322 enviada pela cliente I… para a R. a cancelar a encomenda 881, se extrai, assim como do depoimento da testemunha J…, ao tempo funcionária da cliente da R., o compromisso desta prestado à I… no cumprimento de determinados prazos que, contudo, com excepção da data de 4/04/2008, admitida pela A. no próprio articulado da Réplica (art. 35.º - fls. 64), não ficou demonstrado terem sido assumidos por esta (cfr. fls. 87).
Ademais, o teor da comunicação de 17/03/2008 da A. à R. reconhecendo atrasos (fls. 24/25) não é suficientemente claro e concreto sobre os seus prazos nem sobre a assunção desses atrasos, na medida em que ao dizer que “estamos muito atrasados com os prazos” pode dar-se o caso de estar a referir-se ao conjunto das duas “parceiras”, A. e R., em face da cliente I…, posto que a própria G… se referiu a este concreto relacionamento entre a A. e a R. relativamente àquela cliente como um processo de parceria.
Do mesmo passo, nessa sua comunicação à R., a A. apresenta justificações para tais atrasos, que não são propriamente da responsabilidade desta, como seja o próprio atraso na entrega de tecidos (pela R.) e a dificuldade acrescida em relação ao que tinha sido combinado entre ambas. É certo que nesta altura, nada é referido acerca do atraso na entrega dos acessórios, tendo inclusivamente sido juntas a fls. 284 e ss. guias de trânsito relativas a esse tipo de material dirigidas à A., nenhuma delas com data posterior a Fevereiro de 2008. Sucede que a fls. 21 e 22 consta uma guia de trânsito de acessórios, essa sim já com data de 13/03/2008.
Para mais, os depoimentos de D…, E…, esposa e filho do legal representante da A., e os funcionários desta na área da produção e administrativa, respectivamente, F…, fiel de armazém, K…, chefe de linha de confecção, e L…, controladora de qualidade, ao tempo a trabalhar para a R., disseram, não obstante a qualidade daqueles, de forma coerente, credível e espontânea, que a demora na confecção das peças, a que a A. apenas se tinha obrigado no tempo mais breve possível, se ficou a dever ao comportamento da própria R. que, no decurso da confecção, alterou por várias vezes a ordem das prioridades na confecção das encomendas e atrasou a entrega de pelo menos alguns acessórios o que impedia a realização dos trabalhos. Por outro lado, as comunicações de fls. 88 e 92, de 14/04/2008, esta última proveniente da R., deixam antever algumas dificuldades desta última, pelo menos nesta altura, em receber a mercadoria.
Desta maneira, a prova assim produzida, também porque padece das apontadas incongruências, não se mostrou suficiente para criar no Tribunal uma convicção segura acerca do comprometimento da A. com determinados prazos concretos para o cumprimento dos seus trabalhos e, consequentemente, dos atrasos e causas dos mesmos.”
Procedemos à audição da totalidade dos depoimentos produzidos em audiência e lemos todos os documentos juntos aos autos, relacionando entre si estes diversos meios de prova. Em resultado da análise dos meios de prova produzidos nos autos, admitindo embora que a ré alguma prova produziu do que afirma, acompanhamos sem rebuço a motivação da decisão recorrida e não conseguimentos encontrar fundamento bastante para nos afastarmos da conclusão da Mma. Juíza a quo sobre a insuficiência desses meios de prova para se julgarem provados os factos dos artigos 5.º a 7.º, 12.º, 13.º e 22.º, relativos aos prazos essenciais alegadamente fixados à autora e por esta aceites para a produção dos artigos.
Esta alegação só tinha, aliás, sentido no pressuposto de se demonstrar o facto do artigo 4.º. Funcionando a ré como um elo intermédio entre a confecção, a cargo da autora, e o titular da marca e dos direitos de comercialização, I…, a exigência de que a autora entregasse os artigos encomendados em 13/14 de Março e a essencialidade dessa data para a contratação dos serviços da autora faria sentido se fosse esse também o prazo estabelecido entre a I… e a ré.
Ora, como vimos, o facto do artigo 4.º foi julgado não provado e surge desmentido directamente pelo mail de folhas 322. Em função deste mail, só existem duas opções: ou o prazo acordado com a I… já estava esgotado em Março, altura em que se diz que foram acordados prazos com a autora (para meados desse mês), e nessa altura a ré já sabia que estava dependente do que a I… viesse a decidir (caso em que o que era essencial não era o prazo mas a aceitação pela I…), ou o prazo era mais flexível e estava apenas associado à época da Páscoa (que em 2008 ocorreu no dia 23 de Março, dois dias antes do mail de 322 a comunicar a recusa de aceitar “mais nenhum artigo” que deveria ter sido entregue “antes de 1 de Março”).
Nessa medida, tem de se aceitar que a não prova do facto do artigo 4.º (e a prova do facto do artigo 3.º segundo o qual inicialmente as encomendas da I… tinham de estar prontas a entregar até finais de Dezembro, altura em que a ré, confessadamente, ainda não tinha sequer entregue à autora os materiais indispensáveis e tinha apenas ainda uma “reserva” – doc. de folhas 71 e 72 – que logo ficou comprometida pelo atraso da ré na entrega de tecidos), condiciona sobremaneira a resposta a dar aos factos dos artigos 5.º a 7.º, 12.º, 13.º e 22.º e demanda uma prova segura para tais factos poderem ser julgados provados.
Outro aspecto relevante é a circunstância de a prova produzida por iniciativa da ré para demonstração destes factos, em acréscimo aos documentos juntos, se reduzir aos depoimentos de G… e H….
Embora a primeira das testemunhas tenha afirmado, aos costumes, apenas ser “empresária” e “directora geral” da ré, ela surge nos documentos de folhas 39 e 40 a assinar como “gerente” da ré C…, Lda., é referida na alínea N) dos factos provados como “representante legal” da ré e foi identificada como “patroa” pela testemunha L… que foi funcionária da ré.
Esta discrepância, para cuja qualificação não dispomos de mais elementos, obriga, no entanto, o tribunal a ter muito cuidado na apreciação do valor probatório do depoimento por ser manifesto o profundo interesse da testemunha na lide e no seu desfecho, numa situação equiparável na prática aos depoimentos do legal representante da autora e da sua mulher, D…. Só pela referida circunstância não está em causa a honestidade da testemunha, mas está em causa a inevitabilidade de o tribunal não poder aceitar como bastantes as suas declarações para julgar provados factos favoráveis à ré, cujos interesses se confundem manifestamente com os seus.
Outro aspecto igualmente relevante para a avaliação dos factos prende-se com a circunstância, revelado pelas testemunhas G… e H…, de a relação comercial entre a autora e a ré se inserir numa nova forma de organização da I… que até aí contratava directamente com a autora a execução das peças de vestuário e geria toda essa relação sem intermediários e pretendeu que essa tarefa passasse a ser feita em outsourcing, por uma terceira empresa contratada para o efeito que se encarregaria de contratar a execução das peças e de todo o processo dessa fase do negócio recebendo a I… as peças já executadas. A ré pretendeu ser essa terceira empresa e encarregou-se dessa tarefa contratada pela I… e como não tinha meios para executar directamente as peças contactou a autora que já sabia que trabalhava para a I….
Esta mudança de paradigma de funcionamento e o aparecimento no circuito comercial de mais uma empresa a praticar actos que não praticava anteriormente, encerrava, em condições normais o risco de alguma coisa não funcionar correctamente e necessitar de ajustes ou correcções, com inevitáveis percalços e demoras. Ora existem nos autos documentos que revelam desde logo alterações entre o que a ré pretendia em Setembro/Outubro de 2007 que a autora executasse (folhas 71 e 72) e aquilo cuja execução veio a contratar (as parkas não constam daqueles documentos, assim dando razão às queixas da autora de aumento da dificuldade de execução das peças a executar) depois atrasos da ré na entrega, pelo menos, dos tecidos à autora para esta poder executar as peças (logo no documento de folhas 72, e admitido pela própria ré no documento de folhas 24, embora aí a ré o desvalorize com a afirmação de que “faz parte do passado”) e, por fim, um erro da ré no plano de corte de uma referência que atrasou a execução das respectivas peças.
Nesse contexto, impõe-se algum cuidado na interpretação da verosimilhança das situações que é um dos passos decisivos para a formação da convicção relativa aos factos. E isso é assim, sobretudo, vendo que a folhas 100 se encontra um documento da I…, de 12 de Setembro de 2007 (anterior aos factos aqui em discussão, portanto), assegurando que no seu relacionamento com a autora esta sempre lhe prestou serviços totalmente satisfatórios quanto aos níveis de qualidade e cumprimento dos prazos sendo exemplar entre os muitos fornecedores portugueses da I…. E vendo outrossim que, como bem se observa na motivação da decisão recorrida, os documentos juntos são quase todos da autoria da ré, que se quer prevalecer do que neles escreveu, não havendo, infelizmente, da parte da autora a mesma prática de reduzir a escrito todas as vicissitudes da relação entre as empresas.
Tudo sopesado e tendo em conta que as comunicações estão dadas como provadas nas alíneas S) e T) em resposta aos artigos 15º e 16.º da base instrutória, podendo ser objecto de leitura e interpretação próprias, a nossa convicção, em consonância com a da Mma. Juíza a quo que manifestamente conduziu a inquirição das testemunhas com grande cuidado e interesse, vai no sentido de não haver prova suficiente dos factos dos artigos 5.º a 7.º, 12.º, 13.º e 22.º da base instrutória.
Existe prova de que no decurso do mês de Março e com a aproximação do período da Páscoa que representava para a I… a referência temporal para manter interesse nas encomendas, as partes tentaram acelerar a produção e para o efeito estabeleceram metas temporais para a execução das peças, mas não existe prova de que a autora se tenha vinculado previamente a prazos fixos essenciais, o que, como ela afirma e parece verosímil, não é crível que acontecesse antes de ter em seu poder a matéria-prima para as executar e a ré ter cumprido todas as diligências necessárias à sua execução.
A título de exemplo, observamos que enquanto que “reserva” feita em Setembro/Outubro de 2007 se prevê um prazo de 24 dias para a execução das calças, no documento de folhas 20 a ré já pretende que a autora as execute em 15 dias e, no entanto, como resulta do documento de folhas 21, ainda se atrasou mais 9 dias a entregar o tecido necessário, apesar do que logo no dia seguinte se queixou de atrasos – folhas 23 –, daí resultando que a autora, em simultâneo com a execução de centenas de outras peças que a ré queria para o mesmo mês, deveria executar as peças em apenas 7 dias.
Idêntica solução cabe no tocante aos factos dos artigos 9.º [A Autora falhou no cumprimento de todos os prazos de entrega acordados?; julgado não provado] e 18.º [E a própria Autora reconheceu expressamente, por escrito, por comunicação electrónica de 17 de Março de 2008, o incumprimento do prazo de entrega?; julgado não provado] da base instrutória, para cuja alteração a ré invocou os mesmos meios de prova e raciocínios interpretativos que sustentou para alterar a decisão sobre os factos antes mencionados e que acabam de ser afastados.
A ré impugna de seguida a decisão relativa ao facto do artigo 8.º da base instrutória.
Estava alegado e perguntava-se nesse artigo o seguinte: “Aceites as condições da contratação referidas em 5.º, 6.º e 7.º a Ré, a expensas suas, em tempo útil, colocou à disposição da Autora todas as matérias primas necessárias à confecção dos artigos de H), dado que a Autora iria apenas confeccionar “ a feitio”?”.
A 1.ª instância julgou provado apenas que “A R., a expensas suas, colocou à disposição da A. todas as matérias-primas necessárias à confecção dos artigos de H), b) e c)” [alínea P) dos factos provados].
Resulta desta resposta que a 1.ª instância deu como não provada a remissão para as condições de contratação referidas em 5.º, 6.º e 7.º, que como já vimos respeitavam à questão do prazo, e cuja decisão negativa entendemos manter, pelo que se deverá manter outrossim a eliminação da correspondente remissão na resposta a este artigo. Eliminou ainda a expressão “tempo útil”, o que, independentemente dos meios de prova que tivessem sido produzidos, não podia mesmo deixar de fazer porque essa expressão é absolutamente conclusiva, opinativa e não factual e, portanto, nunca poderia ser vertida para a matéria de facto, devendo ser considerada não escrita no caso de ter sido incluída nos factos provados.
Eliminou por fim o enunciado de facto de “que a Autora iria apenas confeccionar «a feitio»”. Neste particular, apenas, a resposta padece de excesso de zelo pois não há qualquer divergência entre as partes de que a autora apenas iria confeccionar “a feitio” – e a Mma. Juíza chegou a fazer perguntas ao legal representante da autora para se elucidar do significado desta expressão –, sendo certo que no meio industrial em que as partes se movimentam a expressão tem um conteúdo factual preciso e conhecido: a autora limita-se a executar a confecção das peças que são idealizadas, projectadas e planeados por outrem, recebendo para a execução do seu serviço todas as matérias-primas, indicações e orientações que o cliente entende que ela deve observar e colocando apenas ao serviço do cliente a sua organização produtiva e os seus conhecimentos de confecção. Deve, portanto, aditar-se ao facto da alínea P) a expressão “… dado que a Autora iria apenas confeccionar “ a feitio”.
Prosseguindo na impugnação, insurge-se a ré com a resposta aos factos dos artigos 21.º e 56.º da base instrutória.
No primeiro desses artigos (21º) perguntava-se o seguinte: “Em Dezembro de 2007, a Ré iniciou a colocação nas instalações da Autora das matérias-primas e acessórios para a confecção dos artigos de H), al.s b) e c) (962 parkas modelos 32021.25013.400 e 32021.25013.711), que concluiu em finais de Janeiro de 2008?”.
A 1.ª instância julgou provado [alínea W)] apenas que “em Dezembro de 2007, a R. iniciou a colocação nas instalações da A. das matérias-primas e acessórios para a confecção dos artigos de H), als. b) e c)”, isto é, julgou não provado que essa colocação tenha sido finalizada em finais de Janeiro de 2008.
No segundo desses artigos (56º), perguntava-se se “em Janeiro de 2008, a Ré limitou-se a começar a entregar tecidos para a confecção, agora de parkas, jaquetas, vestidos, blusas, de confecção muito exigente, tardando na entrega dos correspondentes acessórios”.
A 1.ª instância julgou provado [alínea AS)] apenas que “a R. entregou à A. alguns acessórios para as parkas em 13/03/2008”.
Com toda a sinceridade não conseguimos perceber a coerência da impugnação da decisão relativa ao facto do artigo 21.º e da pretensão de que se julgue provado que a entrega dos materiais e acessórios foi “concluída em 12 de Fevereiro de 2008”.
Recordamos que a ré tinha alegado que havia concluído a entrega à autora de todas as matérias-primas e acessórios para a confecção das parkas (encomenda 881) em “finais de Janeiro de 2008”.
Aquando da sessão de 11.05.2012 da audiência de julgamento, a ré requereu a junção de um documento “composto de cinco páginas tratando-se de guias de transporte (trânsito) relativas à entrega à Autora das matérias-primas e acessórios para a confecção de encomenda n.º 881” consignando ser “para prova nomadamente da matéria do art.º 21º e contra prova da matéria do art.º 56º ambos da base instrutória”.
Esse documento, melhor dizendo, esses cinco documentos, são fotocópias de algumas páginas (e não a totalidade!) de guias de trânsito de entrega de matérias-primas e acessórios. Postos na devida ordem cronológica e não na ordem por que foram juntos, tratam-se das guias n.os 2007/679 de 06.12.2007 (folhas 286), 2007/712 de 11.12.2007 (folhas 288), 2007/741 de 27.12.2007 (folhas 285), 2008/85 de 30.01.2008 (folhas 287) e 2008/93 de 04.02.2008 (folhas 284). Resulta assim destes documentos juntos pela própria ré que a sua alegação não era verdadeira e que em Fevereiro de 2008 ainda estava a enviar à autora matéria-prima com a indicação de que a mesma era para a encomenda 881!
Ao contrário do que agora refere na impugnação, a matéria-prima referida na guia junta com data mais elevada (guia n.º 2008/93 de 04.02.2008 a folhas 284) não são chapas e etiquetas, são fechos, forro e ainda um material designado por “limonta – thalima” que não conseguimos perceber o que é mas cuja quantidade (1.786 metros, segundo a guia) indicia tratar-se por certo de um material importante para a execução.
Mais estranhamente, a ré admite agora no recurso que em 11 de Fevereiro de 2008 ainda estava a entregar materiais para esta encomenda, mas diz tratar-se das chapas e etiquetas referidas no documento de folhas 288, o qual, como vimos, tem data de 11.12.2007 e não de 11.02.2008! Estará a ré a pensar noutro documento que acabou por não juntar?
Indo mais longe na análise dos documentos, somos surpreendidos por outro dado. Na mesma sessão de 11.05.2012 da audiência de julgamento, a ré requereu a junção de outro documento (n.º 3) “composto de 15 páginas tratando-se das facturas e subsequentes lançamentos de pagamento comprovativos de aquisição por parte da ré dos materiais e acessórios destinados à produção da encomenda n.º 881 - modelo parkas”. A ré mencionou que tais documentos eram “para prova da matéria constante dos art.ºs 31º, 37º, 40º, 43º e 44º da base instrutória” mas nada obsta ao seu aproveitamento para a decisão relativa ao artigo 21.º.
Ora pelo menos os documentos de folhas 309, 310 e 321 referem-se a entregas à ré, que depois ainda teve de os entregar à autora, todas posteriores à data da mais recente das guias de trânsito juntas (!) e mesmo, nos dois últimos documentos, à data de 12 de Fevereiro de 2008, que, como referido, desconhecemos onde foi a ré buscar.
Em particular o documento de folhas 310 tem data de 27.02.2008 (e um carimbo com a data de 29.02.2008 cuja origem e significado se desconhece), ignorando-se quando foi entregue à autora, sendo certo que só pode ter sido depois dessa data e que parecem tratar-se de têxteis (não é pois por acaso que a primeira comunicação da ré a referir prazos tem data de 04.03.2008 – folhas 20 – mas nela já a ré menciona a incerteza quanto à aceitação das encomendas pela I…).
Neste contexto probatório a decisão da 1.ª instância em relação ao facto do artigo 21 só pode mesmo ser aqui confirmada. Acresce que pese embora hajam sido feitas diversas encomendas com referências numéricas distintas, nalguns casos a peça de vestuário a executar era comum a várias encomendas, conforme explicou a testemunha H…, pelo que eram igualmente comuns as matérias-primas e os acessórios para a respectiva execução. E que foi igualmente referido e resulta das comunicações entre as partes que a sequência ou ordem de execução das peças era determinada por comum acordo entre a autora e a ré, a qual por diversas vezes determinou a prioridade a dar na execução das encomendas. Nessa medida, a autora podia receber matérias-primas e acessórios para executar uma determinada encomenda e receber indicação para produzir (os mesmos artigos) para outra encomenda, ficando em falta, total ou parcialmente, matérias-primas e acessórios para a outra encomenda … apesar das guias de trânsito.
No que concerne à decisão relativa ao facto do artigo 56.º da base instrutória a recorrente tem inteira razão. Ao dar como provado que “a R. entregou à A. alguns acessórios para as parkas em 13/03/2008”, a Mma. Juíza a quo ateve-se, certamente, ao documento de folhas 21 e 22 (guia de trânsito de entrega à autora) que tem essa data e é referido na motivação da decisão. No entanto, conforme alerta a recorrente, nesse documento as matérias-primas e acessórios entregues à autora são todos referentes à encomenda 877, cujo objecto era a execução de calças e não à encomenda 881 que essa sim tinha por objecto as parkas.
A decisão da 1.ª instância sobre esse facto não pode por isso manter-se. Mas isso não significa que a decisão sobre o mesmo deva ser totalmente negativa como pretende a recorrente. Para o efeito, torna-se necessário compreender donde provém esse facto e o que através do respectivo enunciado se pretendia alegar.
Na réplica, a autora alegou, nos respectivos artigos 5.º a 10.º, que em Setembro de 2007 entre a autora e a ré foi acordada a confecção de 2.000 peças de vestuário, os quais deveriam ser confeccionadas até Dezembro de 2007 devendo a ré para o efeito entregar à autora até Novembro de 2007, os tecidos já cortados e todos os acessórios respeitantes a tais peças, para que a confecção fosse realizada até finais de Dezembro de 2007. Todavia, por motivos alheios à autora, os tecidos e acessórios não foram entregues, nessa data, o que colocou a autora numa situação difícil, pois recusou trabalho a outros clientes, e, a final, a ora ré não entregou à autora a confecção do feitio das peças inicialmente encomendadas, mas sim outras de confecção muito mais exigente. Só em Janeiro de 2008, a ré começou a entregar tecidos para a confecção, mas de peças de vestuário de confecção muito mais exigente. Tal tecido ia chegando aos poucos e os acessórios correspondentes tardavam sempre a ser entregues.
Sendo esta a origem do enunciado do artigo 56º da base instrutória, percebe-se que quando se pergunta se “em Janeiro de 2008, a Ré limitou-se a começar a entregar tecidos para a confecção, agora de parkas, jaquetas, vestidos, blusas, de confecção muito exigente, tardando na entrega dos correspondentes acessórios”, se pretende perguntar se a entrega pela ré dos tecidos e acessórios para as peças a executar pela autora foi feita a partir de Janeiro de 2008 de forma parcelar, ou seja, de modo irregular e para peças que não correspondiam às da reserva de Setembro, não permitindo à autora calendarizar autónoma e antecipadamente o seu trabalho.
Ora a prova produzida permite perfeitamente responder afirmativamente a este facto. Desde logo, os documentos de folhas 71 e 72 permitem apurar que em Setembro e Outubro apenas estava prevista a execução de calças e gabardines para a I…, quando a final, conforme foi admitido pelas testemunhas arroladas pela autora e resulta designadamente do documento de folhas 20, acabaram por ser mandadas executar calças, blusas, vestidos e parkas para esse cliente. Depois os documentos juntos pela própria recorrente na já referida sessão de 11.05.2012 da audiência de julgamento permitem perceber que as encomendas eram em maior número que as referidas no documento de folhas 20 (v.g. encomendas 876, 878 ou 885 referidas naqueles documentos e não elencadas neste) e que ao longo dos meses de Dezembro de 2007, Janeiro e Fevereiro de 2008 (pelo menos; a testemunha F… afirmou, por exemplo, que só recebeu o tecido para executar as calças em Março) a ré foi fazendo entregas parcelares de matérias-primas e acessórios para a execução das peças que a autora se obrigou a confeccionar.
A prova produzida para demonstração do enunciado de facto do artigo 56.º da base instrutória justifica por isso que em substituição da decisão da 1.ª instância se lhe responda da seguinte forma, passando a ser essa a redacção da alínea AS) da matéria de facto:
[provado apenas que] “A partir de Dezembro de 2007 e ao longo dos meses de Dezembro de 2007, Janeiro e Fevereiro de 2008, pelo menos, a ré foi entregando, de forma parcelar, tecidos e acessórios para a confecção de peças de vestuário, nalguns casos diferentes das que havia acordado com a autora em Setembro e Outubro de 2007”.
Prosseguindo na análise da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, centremos a atenção na decisão relativa ao artigo 29.º da base instrutória.
Perguntava-se ali se “no dia 4 de Abril de 2008 a encomenda estava longe de estar pronta”. A 1.ª instância respondeu não provado mas a recorrente defende que se deve julgar provado que “a encomenda 881 não estava pronta em 4 de Abril de 2008”. Descontando o preciosismo da expressão “estava longe de”, que no entanto só constava do quesito por ter sido alegada expressamente pela ré e ora recorrente, o certo é que neste artigo está em discussão saber se na referida data a encomenda 881 (foi por referência a esta que o facto foi alegado pela ré) não estava pronta.
Sustenta a recorrente que do depoimento da testemunha F… resulta que a autora entregou à ré a encomenda n.º 947 no dia 20 de Março, o que está de acordo com a factura que foi emitida no dia 20 de Março de 2008 - fls. 371 – e a encomenda n.º 965 no dia 30 de Março, o que também está de acordo com a factura que foi emitida no dia 01 de Abril 2008 - fls. 372 -. Até aqui concorda-se com a recorrente.
Mas já não se concorda quando afirma que a testemunha “referiu que então (30 de Março) estavam ainda com a encomenda das calças e das parkas (que eram 885)”. O que a testemunha declarou foi que “estávamos em confecção com as calças, com as.. parkas estávamos em acabamentos”. Ora não é a mesma coisa estar tudo por fazer para confecção das parkas e esse trabalho já se encontrar na fase de acabamentos.
Aliás, a referida testemunha também declarou que recebeu indicações da Eng.ª H… que representava a ré, “para utilizar parte da 881 para mandar a 965”, que eram duas encomendas distintas mas relativas à mesma peça de vestuário, indicação a que acedeu passando a encomenda 965 a ter não as 275 peças encomendadas mas sim 340. E fez isso porque já tinha peças da encomenda 881 prontas. Quando foi inquirido pelo ilustre mandatário sobre a razão de ser da indicação da Eng.ª H… para usar parte da 881 na 965, a testemunha respondeu “Foi a ordem que a Eng.ª H… me pediu e eu fiz assim, agora as outras peças estavam prontas ela disse para não…”, momento em que foi interrompido pelo ilustre mandatário que não lhe permitiu concluir a resposta (!).
No seu depoimento a testemunha H… revela de forma inequívoca que não sabe a quantidade de parkas que a autora tinha produzido no início de Abril de 2008, limita-se a especular que se lhe entregaram a encomenda 965 e se as parkas foram a última coisa a entrar em produção (a testemunha F…, como vimos, não confirmou essa ordem e afirmou que a ordem era definida de acordo com as indicações da ré) nessa data não poderia estar concluída a totalidade da encomenda 881 relativa também a parkas.
É certo que na correspondência trocada se detecta que o prazo era muito curto para se concluir uma encomenda de 885 peças, mas tudo depende do estado em que se encontravam os trabalhos de confecção das peças. Da mesma forma que não se encontra a afirmação inequívoca pela autora de que a encomenda 881 estivesse pronta no início de Abril pois o fax de folhas 88/89 faz referência de forma genérica à “encomenda I…” e a “packing list” de folhas 90 foi preenchida pela autora, dela não resultando a certeza de que os dados nela apontados correspondessem à verdade.
Todavia, o valor probatório destes documentos também não pode, sem mais, ser afastado, uma vez que a própria ré, face ao pedido de levantamento da mercadoria da autora, enviou uma comunicação a dizer que não tinha condições para ir levantar a mercadoria e pedindo à autora para a conservar nas suas instalações (folhas 92), assim se colocando numa posição de não ir fiscalizar as peças que a autora tinha efectivamente prontas. Esta situação exclui a incongruência sugerida pela recorrente no facto de no dia 08.04.2008 ter ido levantar a matéria-prima e acessórios das calças que acabaram por não ser confeccionadas e não ter levantado a encomenda 881, como faria se ela estivesse pronta, já se ela mesma reconheceu não ter condições para receber mercadoria pronta para o cliente antes do dia 18 não se vislumbra qualquer incongruência em não o ter feito no dia 8, sendo certo que não é a mesma coisa levantar caixas de tecidos cortados e levantar peças de vestuário prontas para serem encaminhadas para o cliente e este colocar nos postos de venda à disposição dos consumidores.
Em suma, os meios de prova suscitam dúvidas sobre este facto, pelo que em consonância com a decisão de relativa ao facto do artigo 61.º da base instrutória no qual se perguntava se a encomenda das parkas (881) já estava pronta no dia 1 de Abril e se respondeu apenas que a autora informou que sim e pediu à ré para a ir levantar, se considera correcta a decisão de julgar não provado o facto do artigo 29.º em que o mesmo facto se encontra na formulação negativa (pronta/não pronta). Decide-se, pois, confirmar esta decisão da 1.ª instância.
Para terminar, refira-se que no intróito das alegações de recurso e em duas das conclusões de recurso a recorrente inclui entre os factos com cuja decisão não concorda o do artigo 31.º da base instrutória. Contudo, não existe nas alegações de recurso uma única palavra sobre os fundamentos da discordância relativa a esse facto, pelo que se tem de entender que cabendo às alegações de recurso a tarefa de delimitar o objecto do recurso, esse segmento do recurso carece afinal de objecto e fundamentos de que se possa conhecer.

Concluindo, julga-se parcialmente procedente o recurso da decisão sobre a matéria de facto e decide-se introduzir no elenco dos factos provados as seguintes alterações:
1. Acrescenta-se um novo facto, proveniente do artigo 3.º da base instrutória, com o novo número O’ e a seguinte redacção: “Inicialmente as encomendas em questão deveriam estar prontas a entregar até finais de Dezembro.”
2. Adita-se ao facto da alínea P) a expressão final “…dado que a autora iria apenas confeccionar “a feitio”.”
3. Altera-se a redacção do facto da alínea AS) a qual passa a ser a seguinte: “A partir de Dezembro de 2007 e ao longo dos meses de Dezembro de 2007, Janeiro e Fevereiro de 2008, pelo menos, a ré foi entregando, de forma parcelar, tecidos e acessórios para a confecção de peças de vestuário, nalguns casos diferentes das que havia acordado com a autora em Setembro e Outubro de 2007.

Pese embora não venha referido pela recorrente na impugnação da decisão da matéria de facto, existe um ponto desta matéria que necessita de ser corrigido o que aqui julgamos poder fazer oficiosamente, ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do novo Código de Processo Civil, uma vez que além do mais parece tratar-se de um manifesto lapso.
Na alínea AAA) do elenco dos factos provados consta o seguinte: “No que tange aos artigos de H), als. b) e c), a Autora facturou apenas o valor das amostras que confeccionou”. Este facto tem origem na decisão de julgar provado o artigo 66.º da base instrutória, no qual se perguntava precisamente se “no que tange aos artigos de H), al.s b) e c), a Autora facturou apenas o valor das amostras que confeccionou?”.
A remissão para as alíneas b) e c) significa, como já vimos, a remissão para a encomenda 881 relativa a parkas dos modelos 25013.400 e 25013.711. Dado que a factura relativa a esta encomenda é a factura n.º 632 e esta não está a ser pedida na presente acção, mas sim no outro procedimento de injunção apresentado em separado pela aqui autora e a que corresponde o n.º 213517/08.7YIPRT, este facto podia não ter relevância para efeitos da presente acção.
Todavia, face ao valor da referida factura n.º 632 vê-se logo que a decisão só pode enfermar de erro ou lapso. Com efeito, lendo os articulados verifica-se que o artigo 66.º da base instrutória tem origem nos artigos 48.º e 49.º da réplica onde a aqui autora em resposta à contestação alegou o seguinte: “48º No que respeita à encomenda 877- Modelo 25072.30128.200, a mesma não terá sido aceite pelo cliente da Ré por erro no plano do corte, o qual era da sua inteira responsabilidade. 49º Acrescendo que, no que concerne a tal encomenda, a Autora facturou unicamente o valor das amostras que confeccionou…”.
A redacção do artigo 66.º da base instrutória padecia assim de um erro manifesto que depois passou despercebida ao juiz no momento da decisão da matéria de facto. Ao alegar que apenas facturou as amostras, a autora referira-se à encomenda 877, a das calças, a que depois foi vertida para a alínea H)-a) dos factos assentes e por cuja referência passou a ser reportada ao longo da base instrutória, e não à encomenda 881, a das parkas, aquela que se menciona na alínea H)-b) e c) dos factos assentes e assim passou a ser reportada na base instrutória.
Aliás, só podia ser assim mesmo porque a autora não chegou a confeccionar as calças, cuja encomenda foi cancelada após as amostras mas antes do início da confecção das calças, o mesmo não se passando em relação às parkas. Nesse sentido, o facto tem importância para efeitos da presente acção pois permite perceber que no tocante à encomenda das calças, cujo pagamento está em discussão na acção e ao qual a ré quer opor a compensação, a autora não reclama o valor que lhe seria devido se tivesse executado a encomenda mas somente o valor da confecção das amostras executadas para efeitos de aprovação.
Uma vez que se trata de um manifesto lapso e que as facturas juntas pela autora com o requerimento de 24.05.2012 esclarecem devidamente este facto, atenta a relevância que pode ter para o julgamento da acção, decidimos, oficiosamente, reparar o lapso, alterando a redacção do facto da alínea AAA) que passa a ser a seguinte: “No que tange aos artigos de H)-a) a autora apenas facturou o valor das amostras que confeccionou”.

Feitas estas alterações, com vista a uma correcta interpretação dos factos provados, sobre os quais recai em exclusivo a tarefa de subsunção jurídica, julgamos oportuno proceder à recapitulação dos factos, colocando-os agora na sua devida sequência cronológica. Assim[3]:

i) do contexto negocial:
1] A autora dedica-se com intuito lucrativo à confecção de vestuário. (A)
2] A ré dedica-se à produção e comercialização de peças de vestuário. (B)
3] A I… é uma empresa conceituada em Espanha, inserida num grande grupo têxtil cujos níveis de exigência e rigor, nomeadamente com os fornecedores, são por todos conhecidos. (AN)
4] A autora já havida trabalhado, por diversas vezes, para a I…. (H)
5] No sector é consabido que a Páscoa é uma altura de muita procura dos artigos têxteis, daí que as grandes empresas espanholas aumentem consideravelmente as suas vendas em tal período, devendo os artigos a vender estar disponíveis nas lojas antes da Páscoa. (L)
6] O mercado têxtil é um mercado exigente e exausto concorrencialmente. (AP)

ii) da contratação:
7] Em Agosto/Setembro de 2007 a ré recebeu da I… várias encomendas para a produção de artigos de vestuário, em sistema de “full price”, o que representaria que à ré fosse entregue a responsabilidade pela produção total dos artigos. (O)
8] Inicialmente as encomendas em questão deveriam estar prontas a entregar até finais de Dezembro. (O´)
9] Por sugestão da I…, a ré acordou com ela que a confecção “do feitio” de diversos artigos de vestuário fosse entregue à autora em subcontratação da responsabilidade da ré. (E)
10] Incumbiria à ré adquirir as matérias-primas e colocá-las à disposição da autora, recebendo-os depois confeccionados. (F)
11] No âmbito dos contactos da ré com a I…, a autora e a ré acordaram, designadamente, na produção de um modelo de calças (25072) e um modelo de parkas (32021), em duas cores distintas. (G)
12] Em reunião entre a autora e a ré, com o conhecimento da “I…”, a ré solicitou à autora a confecção “a feitio” de : a) 951 calças do modelo …30128.200, que corresponde à encomenda n.º 877; b) 343 parkas do modelo ..25013.400, que corresponde à encomenda 881; c) 619 parkas do modelo ...25013.711, que corresponde igualmente à encomenda n.º 881. (H)
13] Tratava-se em ambos os casos, mas em especial quanto à encomenda n.º 881, de artigos de custo elevado quanto aos materiais a incorporar e à confecção propriamente dita. (I)
14] A autora aceitou a confecção de tais artigos. Foi fixado o preço a pagar pela ré à autora. Foi estabelecido que toda a produção dos artigos seria acompanhada pela ré e pela própria I…, na pessoa do seu representante/controlador. (J)
15] As partes acordaram que a autora faria uma amostra das calças para ser aprovada antes de seguir para produção. (K)

iii) da execução do contrato:
16] A autora sempre esteve em contacto com a ré. (AX)
17] A partir de Dezembro de 2007 e ao longo dos meses de Dezembro de 2007, Janeiro e Fevereiro de 2008, pelo menos, a ré foi entregando, de forma parcelar, tecidos e acessórios para a confecção de peças de vestuário, nalguns casos diferentes das que havia acordado com a autora em Setembro e Outubro de 2007. (AS)
18] Em Dezembro de 2007, a ré iniciou a colocação nas instalações da autora das matérias-primas e acessórios para a confecção das parkas. (W)
19] A ré, a expensas suas, colocou à disposição da autora todas as matérias-primas necessárias à confecção das parkas, dado que a autora iria apenas confeccionar “a feitio”. (P)
20] No âmbito da sua actividade a autora prestou à ré os serviços de confecção a feitio das peças de vestuário discriminados nas facturas n.os 602, 605, 611, 616 e 620, num total de €48.236,80. A ré não pagou esse valor. (C)
21] No que tange às calças a autora apenas facturou o valor das amostras que confeccionou. (AAA)
22]As peças referidas nessas facturas, tais como os vestidos elencados na factura nº 616, os casacos de senhora elencados na factura nº 611, os vestidos elencados na factura nº 605, as blusas elencadas na factura nº 602, foram aceites sem qualquer reclamação pela Ré, entregues à I… e pagas por esta à ré. (D e AY).

iv) das vicissitudes da execução do contrato:
23] No dia 4/03/2008 houve uma reunião entre a autora e a ré, seguida de uma comunicação electrónica do mesmo dia desta àquela donde, com interesse, consta: “Em seguimento à reunião de hoje consigo acordamos os prazos abx: Enc. nr. 877…20-Mar…Enc. nr. 881…20-Mar…Neste momento não sei se a I… aceitará estes prazos, e para q não haja problemas deveríamos entregar tudo a 13/03, pois os cancelamentos estão à porta…”. (S)
24] A 17/03/2008, a autora ainda não tinha pronta a encomenda das parkas. (X)
25] Em 17/03/2008 a ré enviou à autora uma comunicação donde, com interesse, consta: “…Desde o dia 3/01 q andamos na B… diariamente e foi sempre a B… q deu os prazos q quis para cada modelo. Nunca a forcei a dar prazos, pois repito, em muitos casos até achava pouco por semana, mas com o seu argumento da dificuldade dos modelos, até aceitava. O problema é q nem esses prazos consegue cumprir”. (T)
26] Após diversas interpelações por parte da ré, a autora assumiu que entregaria a totalidade das peças no dia 04.04.2008. (Y)
27] A ré manteve a encomenda. (AA)
28] A ré a 25/03/2008 comunicou electronicamente à autora “Infelizmente o q temíamos está a acontecer…a I… quer cancelar tudo o q falta entregar. A D. D… combinou comigo ao telefone que entregaria toda a produção em falta até 4/04. Mesmo assim não sei senão teremos cancelamentos”. (Z)
29] Não obstante as diligências da ré junto do seu cliente, este acabou por cancelar a encomenda das calças e depois a das parkas. (M e R).
30] O cancelamento da encomenda das calças ficou-se a dever a uma deficiência das peças devido a um erro no plano de corte fornecido pela ré detectado após a confecção daquelas. (AT)
31] A ré confirmou também que a produção das calças não era para prosseguir e solicitou à Autora que aguardasse pelo levantamento dessa encomenda. (AU)
32] O cancelamento da encomenda das calças foi comunicado pela ré à autora por correio electrónico de 25/03/2008. (U)
33] Por fax do dia 14/04/2008 a autora, referindo-se à encomenda das parkas, solicitou à ré que a fosse levantar e que a mesma já estava pronta desde o dia 1/04/2008. (AV)
34] Depois de receber este fax, a ré, por correio electrónico do mesmo dia 14/04/2008, solicitou à autora que “fiquem com as peças pois só a 21/04 as poderei receber”. (AW)
35] A I… mostrou intenção de cancelar a totalidade da encomenda caso as peças não lhe fossem entregues dentro do prazo. (AB)
36] Quanto a alguns artigos, o cliente I…, a esforço da ré, aceitou a sua entrega fora de prazo. (Q)
37] No dia 21/04/2008, em reunião com a autora, a representante legal da ré, D. G…, acompanhada da sua funcionária, Sra. Eng. H…, propuseram à autora um desconto de 50% no valor da facturação das parkas, sendo que, caso não aceitasse tal redução não pagaria nenhuma das facturas, acordo que não foi aceite pela autora. (N e AC)
38] Por correio electrónico de 24/04/2008 a ré comunicou à autora, relativamente à encomenda das parkas o seguinte: “Em seguimento à reunião q tivemos na B… no passado dia 21/04, somos a informar q já obtivemos feed back do cliente I… qto à encomenda 881 do modelo 32021. Como sabe-mos a B…, adiou vezes sem conta o prazo desta encomenda, sendo q a ultima data limite para a I… p aceitar a encomenda seria 18/04 e essa data não foi cumprida. Conforme vos foi dito, inicialmente o cliente simplesmente dizia q estava canceladas. Depois da nossa insistência diária via telefone e tentativas de visitas pessoais á I…, conseguimos q fossem aceites com 30% de desconto. Dado q entendemos ser da responsabilidade da B… o atraso, o mesmo ser-vos-á imputado…Mais informamos, q iremos levantar a encomenda 881 na 2.ª feira, para q a possamos entregar á I… e não atrasar mais ainda este processo, q já foi muito custoso, termos conseguido com desconto…” (AD)
39] No dia 28/04/2008, a ré dirigiu-se às instalações da autora com vista a levantar a mercadoria respeitantes à encomenda 881 (as parkas) e foi impedida de o fazer. (AE)
40] No momento em que a ré pretendeu levar a encomenda respeitante às parkas, e como a ré não procedeu ao pagamento de tais serviços e das facturas de C), a autora informou-a que só com esse pagamento poderia levar a encomenda. (AZ)
41] A ré insistiu para que o cliente aceitasse uma mercadoria um mês após o prazo contratado e mais uma vez não conseguiu satisfazer a pretensão do cliente. (AO)

v) dos danos invocados pela ré:
42] A autora, não obstante saber da necessidade de entregar as parkas ao cliente, não permitiu o levantamento da encomenda. A ré teve de comunicar à I… que não lhe entregaria as peças e a I… cancelou a encomenda. (AF)
43] Por causa disso, a ré suportou os gastos na aquisição das matérias para a sua produção e demais materiais a incorporar em tais peças no valor contabilizado de €38.598,00 e deixou de obter o lucro da venda de tais artigos de €7,57/peça, num total de €7.282,34, acrescido de IVA. (AG e AL)
44] A I… já não aceitaria as parkas agora por estar impossibilitada de as colocar no mercado para venda face aos direitos de autor a respeitar. (AH)
45] Os custos com a aquisição dos materiais para a confecção das calças ascenderam a €16.363,10. A ré não obteve o lucro com a venda das mesmas à I… que equivaleria a €3,58/peça, num total de €3.404,58, acrescido de IVA. (V e AK)
46] A ré liquidou à autora o valor do seu prejuízo e em 30/04/2008 reclamou o seu pagamento através da emissão das notas de débito n.os 2008/…100 de 24.04.20008 e 2008/…103 de 28.04.2008, liquidação essa relevada contabilisticamente pela ré e cujo valor foi levado à conta corrente da autora. (AI e AJ)
47] O valor do lucro não obtido pela ré com a venda das calças e parkas, de €12.931,17, foi imputado à autora e o seu valor foi reclamado através da emissão e envio da nota de débito n.º 2008/…130 de 30.05.2008. (AM)
48] Por carta de 30.04.2008 a ré reclamou da autora parte dos prejuízos correspondentes aos custos suportados com a aquisição das matérias-primas a incorporar nas calças e parkas, no valor de €54.962,00. (AQ)
49] E compensou esse crédito no valor em aberto a favor da autora correspondente às facturas n.os 602, 605, 611, 616 e 620 no valor global de €48.236,80. (AR)

C] recurso da matéria de direito:
C.1] a qualificação jurídica da relação contratual
A recorrente insurge-se contra a qualificação jurídica do contrato celebrado entre autora e ré como contrato de subempreitada, defendendo tratar-se antes de um contrato de empreitada uma vez que a sua relação contratual com o cliente para quem ia depois transmitir as peças de vestuário confeccionadas pela autora constitui um contrato de compra e venda e não de empreitada como seria necessário para que o celebrado com a autora fosse de subempreitada.
A matéria de facto é relativamente escassa, mas ainda assim suficiente para permitir a qualificação jurídica do contrato. Na relação que estabeleceu com a ré, a autora obrigou-se apenas a fazer para a ré a confecção de determinadas peças de vestuário, entregando-lhe esta, para o efeito, a totalidade dos materiais e acessórios indispensáveis à execução da referida confecção, e pagando-lhe a final uma retribuição pelo resultado do seu trabalho manual.
Parece, pois, trata-se de um contrato de prestação de serviços, e mais especificamente, uma vez que esse trabalho tinha como resultado um bem móvel destinado a satisfazer uma determinada necessidade e função, ou seja, uma obra, de um contrato de empreitada que é uma das modalidades típicas daquele (artigo 1154.º e 1207.º do Código Civil). Na verdade, o contrato de empreitada encontra-se definido no artigo 1207º do Código Civil, como aquele pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço.
Muito embora existam situações em que a tarefa de qualificar o contrato como compra e venda ou como empreitada encerra alguma dificuldade, cremos que no caso não se pode questionar a qualificação como contrato de empreitada.
Na verdade, a prestação principal a cargo da autora é exclusivamente obrigacional não comportando qualquer transmissão de direitos reais pois tem por objecto a confecção das peças de vestuário, utilizando para o efeito os materiais e acessórios que lhe eram fornecidos pela ré, razão pela qual nos encontramos por uma verdadeira prestação de facere, uma prestação de resultado, qual seja, a execução de uma obra (a peça de vestuário).
Por outro lado, muito embora isso não esteja totalmente exposto na matéria que facto que reflecte apenas os valores globais e conjuntos, o preço foi fixado pelas partes com base no critério do valor do serviço afecto pela autora à realização de cada peça, ou seja, com base no critério do valor do seu trabalho, melhor dizendo, do resultado do seu trabalho, e não o critério do valor ou preço de cada peça uma vez produzida.
Finalmente, resulta ainda da matéria de facto que a produção das peças pela autora seria acompanhada pela ré e ainda pela própria cliente desta, titular da marca e dos direitos de autora da peça a executar, que para o efeito teriam um representante, denominado por controlador, a fiscalizar o trabalho da autora. Ora este poder de fiscalização, orientação e instrução que não existe no contrato de compra e venda é característico da empreitada, de cujo regime jurídico não pode sequer ser afastado pela vontade das partes – cf. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. II, 4ª ed., pág. 870 -, uma vez que tem por objectivo reduzir ao mínimo a possibilidade de a obra apresentar defeitos de dificilmente detectáveis após a sua execução.
Embora questione a qualificação do contrato como de subempreitada, foi a própria recorrente que alegou nos artigos 11.º a 13.º da respectiva contestação que o seu cliente lhe encomendou “a produção de vários artigos de vestuário”, encarregando-a “da responsabilidade pela produção total dos referidos artigos” e que entre ambas ficou acordado “que a confecção “do feitio” de tais artigos” seria entregue à autora “em subcontratação da responsabilidade da requerida”.
De todo o modo, para efeitos da acção não tem muito interesse discutir se na relação autora/ré o contrato tem a natureza de empreitada ou de subempreitada, definido no artigo 121.º do Código Civil como o contrato pelo qual um terceiro se obriga para com o empreiteiro a realizar a obra a que este se encontra vinculado, ou uma parte dela, porquanto sendo este uma espécie particular do subcontrato, em regra são-lhe aplicáveis as mesmas regras jurídicas que regem a empreitada.

C.2] o incumprimento da obrigação da autora de entrega dentro do prazo:
A recorrente sustenta que a autora incumpriu as prestações a que se obrigou no contrato, incorrendo por isso na obrigação de a indemnizar dos danos que esse incumprimento da autora lhe causou.
A este propósito, convém começar por situar o conflito no objecto da acção e da reconvenção. A autora, empreiteira, demandou a ré, dona da obra, pedindo o preço acordado para a execução das peças de vestuário descritas nas facturas n.os 602, 605, 611, 616 e 620. A ré não impugnou a execução dessas peças, nem suscitou em relação aos artigos reflectidos nessas facturas qualquer questão relativa ao preço ou a eventuais defeitos. Muito embora nessas facturas esteja incluída a execução das amostras de peças de outra encomenda que não chegou a ser concretizada, a ré não impugnou a execução daquelas amostras nem o respectivo preço.
Em sua defesa, a ré invocou os contratos de execução de outras peças não compreendidas naquelas facturas e cujo preço, na parte executada, a autora está a reclamar noutra acção judicial pendente. E alegando que esses contratos foram incumpridos pela autora, a ré invocou o direito de indemnização dos danos emergentes desse incumprimento, pretendendo nesta acção fazer valer a excepção da compensação (deduzindo reconvenção em relação à parte do seu crédito que excede o da autora).
Sendo assim, não custa concluir que para efeitos de procedência da acção, a autora não necessita de fazer a prova de qualquer outro facto. Tendo feito a prova de que executou e entregou à ré as peças de vestuário descritas nas facturas cujo pagamento reclama e não tendo a ré suscitado qualquer vício ou incumprimento dos contratos correspondentes, estão provados os factos necessários e suficientes para a demonstração da exigibilidade e vencimento do direito da autora à remuneração pelo seu serviço.
Nesta acção, tal como está configurada, o direito da ré à compensação de um seu crédito sobre a autora com o crédito desta assume a natureza de excepção, de facto novo extintivo do direito invocado pela autora. Como tal, é à excepcionante que cabe a obrigação de fazer a prova dos factos constitutivos do direito de crédito que consubstancia a excepção – artigo 342.º do Código Civil -. Tendo esse direito de crédito origem no direito de indemnização da ré pelo incumprimento de outros contratos celebrado com a autora, a prova daqueles factos compreende a prova de todos os factos constitutivos do direito de indemnização.
Por outras palavras, nesta acção, não é a autora que tem de provar que cumpriu a obrigação de execução das peças cuja remuneração reclama (o que, de todo o modo, está provado sem que haja sido invocada a existência de qualquer incumprimento ou defeitos) e ainda de execução das outras peças em cuja inexecução a ré radica o seu direito de indemnização. A ré, para se fazer valer da excepção que deduziu, é que tem de fazer a prova dos factos constitutivos do seu direito de crédito, ou seja, de que houve incumprimento da autora dos contratos para execução das outras peças e que esse incumprimento gerou os danos cuja indemnização forma o seu crédito.
É certo que o cumprimento não se presume e que no domínio da responsabilidade contratual, onde nos encontramos, se presume a culpa do devedor no incumprimento – artigo 798.º do Código Civil –, mas a partir do momento em que a acção não tem por objecto o pedido do empreiteiro de pagamento do preço da obra cuja execução o dono da obra questiona, mas sim de outras obras antes executadas sem vícios ou defeitos, cabe ao dono da obra, para nesta acção poder operar a excepção de compensação que opôs àquela pretensão da autora, provar todos os factos constitutivos do seu direito de crédito, ou seja, que tinha celebrado com a autora outras empreitadas, que esta não cumpriu as suas prestações emergentes desses outros contratos, que esse incumprimento lhe gerou danos.
Esta perspectiva jurídica ajuda a decidir a questão do alegado incumprimento pela autora das obrigações contratuais relativas à encomenda 881 (parkas) que, repete-se, não é aquela cujo preço a autora reclama na acção. Refira-se que nas alegações de recurso, a recorrente não aborda a encomenda 877 (calças) também alegada na oposição como geradora do direito de indemnização, restringindo, assim, de forma expressa, o objecto do recurso ao alegado direito de crédito pelo incumprimento do contrato relativo à encomenda 881.
A recorrente começa por situar o incumprimento da autora na prestação de execução das peças sustentando que estas não foram sequer executadas no último prazo fixado para o efeito.
Não resultou provado que as partes tivessem estabelecido ab initio um prazo para a confecção das peças da encomenda 881. Tão-pouco que esse prazo, a existir, fosse um prazo essencial para esse efeito. De qualquer modo, resultou provado que muito embora a ré tenha comunicado à autora no início de Março de 2008 que esta se havia comprometido a ter as peças confeccionadas no dia 20 de Março (o que podia encerrar a formação implícita de um acordo das partes com esse objecto, atenta a circunstância de nada obstar que no decurso de um contrato as partes estabeleçam, de comum acordo, novas condições para a sua execução e não se ter apurado que a autora rejeitou o teor dessa comunicação), posteriormente a autora comprometeu-se a ter as peças confeccionadas no dia 4 de Abril e a ré manteve a encomenda nessas condições.
Por conseguinte, ainda que eventualmente a autora estivesse obrigada a cumprir a sua prestação contratual no dia 20 de Março, a ultrapassagem desta data apenas a faria incorrer em mora e, em qualquer circunstância, tendo as partes acordado depois nova data, aquela eventual mora ficou sanada e o cumprimento passou a ser exigível à autora apenas na nova data acordada, ou seja, no dia 4 de Abril. A recorrente parece, aliás, aceitar esta interpretação, ao questionar somente se a autora executou os artigos até esta data.
Na base instrutória foram incluídos dois artigos (29.º e 61.º) inquirindo em simultâneo se as peças dessa encomenda não estavam prontas do dia 4 de Abril (facto negativo; alegação da ré na contestação) e se já estavam prontas (facto positivo; alegação da autora na réplica). Ambos os factos foram julgados não provados, tendo-se provado somente que no dia 14 de Abril a autora comunicou à ré que as peças estavam prontas desde o dia 1 de Abril, pedindo-lhe que as fosse levantar.
Sendo assim e como já referido, recaindo sobre a excepcionante, na presente acção, o ónus da prova dos factos fundantes da excepção que pretende opor à autora, a circunstância de não se ter provado que a autora faltou ao cumprimento da sua prestação de confecção das peças desta encomenda até ao limite temporal fixado pelas partes obriga a decidir esta questão jurídica em prejuízo da recorrente, ou seja, a considerar não demonstrado o incumprimento imputado à autora que podia gerar o direito de indemnização da ré que permitiria a compensação.
Refere a recorrente que a obrigação da autora não era somente a de confeccionar as peças, mas ainda a de as entregar à ré, o que não sucedeu pois apenas em 14 de Abril a autora comunicou à ré que elas estavam prontas pedindo que a ré as fosse levantar.
Todavia, resulta da matéria de facto que a entrega das peças era feita nas instalações da autora onde a ré se deslocava para com os seus próprios meios para as recolher e transportar para as suas instalações para depois as entregar ao seu cliente, o que significa que para que a prestação de entrega pudesse ser cumprida pela respectiva devedora era necessário que a ré praticasse determinados actos. Nessa medida, tem de se entender que só estaria demonstrado que a entrega não teve lugar se estivesse demonstrado que a ré praticou os actos indispensáveis à entrega e apesar disso a devedora não a efectuou, ou seja, que a ré se deslocou às instalações da autora para recolher os artigos e a autora não lhos entregou.
E se é certo que a comunicação da autora para a ré ir levantar as peças foi efectuada depois de ultrapassado o para a execução das mesmas, não é menos certo que em resposta a essa comunicação a ré logo informou a autora que não tinha condições para ir recolher as peças e transportá-las para as suas instalações, pedindo-lhe para as manter em seu poder durante mais 14 dias, pois só nessa altura as poderia ir levantar.
Seria um manifesto abuso permitir à ré arguir que a comunicação não lhe foi feita dentro do prazo, quando a obrigação da autora era a de confeccionar as peças dentro do prazo e não se demonstrou que não o tivesse feito, e ainda quando, de acordo com a sua resposta ao pedido de levantamento das peças, ela logo admitiu que não tinha sequer condições para recolher as peças e só por essa razão o levantamento das mesmas e a subsequente entrega à cliente foi retardado ainda mais 14 dias.
Afigura-se-nos, portanto, que de acordo com a matéria de facto provada não é possível defender que antes de 28 de Abril de 2008 já a autora tinha incorrido em incumprimento da sua obrigação contratual.

B.3] o incumprimento da obrigação da autora de entrega no dia 28 de Abril:
A recorrente defende que, se não antes, pelo menos no dia 28 de Abril, quando se apresentou nas instalações da autora para levantar as peças de vestuário e a autora se recusou a entregá-las com a exigência de pagamento imediato do respectivo preço, a autora incorreu em incumprimento definitivo da sua prestação e em responsabilidade pelos danos daí resultantes.
Ficou provado que no dia 14 de Abril a ré informou a autora que apenas iria levantar as peças de vestuário da encomenda 881 (as parkas) no dia 21 desse mês. Contudo, só no dia 28 de Abril se dirigiu às instalações da autora para levantar essa mercadoria, mas foi impedida pela autora de o fazer uma vez que a autora só lhe permitiria levantar as peças se efectuasse o pagamento do respectivo preço bem como do valor das facturas 602, 605, 611, 616 e 620 e a ré não aceitou fazê-lo.
Não há dúvidas de que este comportamento da autora traduz um incumprimento da prestação a seu cargo. Com efeito, se as peças estavam confeccionadas, como alega, se o prazo para a sua confecção estava atingido, e se tinha interpelado a ré para vir levantar as parkas, não só lhe era exigível a entrega das mesmas como a ré tinha praticado os actos necessários para tornar viável a entrega.
O que significa que nesse momento a autora faltou ao cumprimento da prestação que lhe era já exigível e a partir daí ficou em mora. Esse atraso no cumprimento tornou-se, aliás, definitivo porque tendo o cliente da ré, para o qual a autora sabia que as peças eram destinadas, cancelado em definitivo a encomenda, a ré perdeu objectivamente o interesse na prestação, convertendo-se a mora em incumprimento definitivo.
A questão que se coloca é a de saber se a autora tinha fundamento legal ou contratual para assumir a atitude que assumiu, isto é, se o fazer depender a entrega do pagamento imediato de facturas anteriores que estavam por pagar e do valor devido pela confecção destas peças tem alguma justificação válida que a legitime.
Esta atitude da autora tem na sua origem e como causa um comportamento da própria ré. Com efeito, em 21 de Abril, antes, portanto, do dia em que a ré se deslocou à autora para levantar as peças de vestuário, a ré reuniu com a autora e confrontou-a com a seguinte alternativa: ou a autora aceitava um desconto de 50% no valor da facturação das parkas ou, se não aceitasse, a autora não pagaria nenhuma das facturas. A autora não aceitou essa proposta.
Ficou ainda demonstrado que dias depois, mas ainda antes da tentativa de levantamento das peças recusada pela autora, a ré informou a autora que ia levantar as peças mas que iria imputar à autora as consequências de ter acordado com o seu cliente um desconto de 30%.
Por outras palavras, antes de procurar obter a entrega pela autora das peças de vestuário da última encomenda, a ré pretendeu impor à autora uma redução para metade do preço a pagar, sob pena de não pagar nenhuma das facturas, ou seja, não apenas a factura relativa a estas peças ainda não entregues mas também as facturas de peças que já tinham sido confeccionadas e entregues mas cujo preço a ré ainda não pagara. E dias depois reiterou que não lhe pagaria uma parte do que lhe era devido pela confecção das peças, dizendo que lhe “imputaria as consequências” de ter acordado com o cliente um desconto de 30%.
A recusa da entrega da mercadoria pela autora surge como reacção a esta posição da ré. Não se tratou de uma pretensão de modificar as condições do contrato, de uma tentativa de impor para futuro novas condições contratuais independentemente das vicissitudes do relacionamento entre as partes, mas de reagir à atitude da ré de afirmar que não pagaria as facturas se a ré não aceitasse, como não aceitou, reduzir para metade o valor da remuneração dos seus serviços de confecção, adoptando a medida de força de recusar a entrega das mercadorias sem que o pagamento delas e de outras mercadorias já antes entregues e não pagas, como forma de procurar garantir que seria concretizado o pagamento acordado inicialmente e na expectativa do qual, naturalmente, a autora entregara já mercadoria sem o pagamento imediato da correspondente remuneração.
Qual o relevo jurídico desta atitude da ré?
Na decisão recorrida entendeu-se que esta atitude da ré permitiu à autora exercer o direito de retenção quanto à prestação da entrega das peças de vestuário da última encomenda. A recorrente insurge-se contra essa interpretação defendendo desde logo que a autora não invocou em momento algum ter actuado no exercício de um direito de retenção, razão pela qual a decisão ultrapassou os limites do seu conhecimento e conheceu de questão de que não podia conhecer, sendo, por isso, nula, além de que não contém a fundamentação necessária, sendo igualmente nula por falta de fundamentação.
No que concerne à nulidade por excesso de pronúncia, entendemos que é necessário distinguir entre a não alegação dos factos necessários para fundamentar uma determinada excepção e a mera falta ou errada qualificação jurídica dos factos alegados.
Para que se deva considerar que determinada defesa foi exercida pela parte, basta que a parte alegue factos jurídicos com intenção de que os mesmos sejam o sustentáculo material da sua defesa, isto é, constituam o fundamento material da vontade de recusar a efectivação da pretensão da parte contrária. Pretendendo a parte opor à pretensão da contraparte uma excepção, isto é, factos impeditivos do direito a que a contraparte se arroga, basta-lhe alegar os factos jurídicos em que faz radicar a sua defesa com a intenção de exercer a excepção, ou seja, como factos que justificam a sua defesa e geraram a consequência jurídica defensiva que pretende demonstrar e cujos efeitos ambiciona.
De forma breve: a excepção foi deduzida quando foram alegados factos que a sustentam com a intenção de servirem essa finalidade. Os factos até podem não ser suficientes, mas tal conduzirá à improcedência da defesa, não à negação de que a excepção haja sido deduzida. Da mesma forma, não obsta à dedução da excepção a circunstância de o excepcionante ter qualificado os factos incorrectamente do ponto de vista jurídico ou não lhes ter atribuído de forma expressa o nome típico pelo qual são designados.
No caso, em resposta à matéria da reconvenção, a autora alegou de forma expressa os factos que constituem a razão de ser da recusa de entrega das peças de vestuário, pretendendo com tais factos justificar a recusa e legitimar o seu comportamento, afastando as consequências do incumprimento que a ré lhe imputa. Logo, independentemente da suficiência dos factos alegados para o sucesso da defesa, deve entender-se que deduziu uma excepção, que se pretendeu fazer valer da excepção que tais factos possam consubstanciar. Se a excepção é composta pelo direito de retenção ou outra figura jurídica é tarefa para o tribunal, no uso da liberdade de qualificação jurídica dos factos alegados e de que lhe é permitido conhecer.
No que tange à nulidade por falta de fundamentação (cuja arguição não tem, aliás, qualquer efeito prático nos autos, atenta a regra da substituição ao tribunal recorrido e a circunstância de o objecto do recurso ser precisamente o questionamento dos pressupostos do instituto), constitui doutrina e jurisprudência uniformes que a nulidade só existe no caso de estarmos perante uma falta absoluta de fundamentação e não quando a fundamentação existe mas é residual, escassa, insuficiente ou, eventualmente, errónea. No caso, afirmou-se na decisão recorrida estarmos perante o exercício de um direito de retenção, que o mesmo se encontra previsto no artigo 754.º do Código Civil, que no contrato de empreitada o empreiteiro pode exercer o direito de retenção e que estão preenchidos os respectivos requisitos. É uma fundamentação frugal, seguramente, mas não uma fundamentação inexistente.
Afastadas, pois, as nulidades da decisão recorrida, cumpre averiguar do mérito da decisão no aspecto que nos vem ocupando. Vejamos pois.
Resulta da matéria de facto que a autora executava a confecção das peças “a feitio”, ou seja, cabendo à ré a obrigação de adquirir e lhe entregar a totalidade dos materiais e acessórios indispensáveis à confecção e acabamento das peças. Nessa medida, tratando-se de um contrato de empreitada subordinado à disciplina dos artigos 1207.º e seguintes do Código Civil, nos termos do n.º 1 do artigo 1212.º, esses materiais e acessórios continuaram a pertencer sempre à ré, tal como passaram a pertencer-lhe as peças de vestuário uma vez confeccionadas. A autora reteve assim a entrega de algo que não lhe pertencia.
Por outro lado, nos termos do n.º 2 do artigo 1211.º do mesmo diploma, o preço da empreitada deve ser pago, não havendo cláusula ou uso em contrário, no acto de aceitação da obra. No caso, a autora alegou que estava convencionado o pronto pagamento, ou seja, o pagamento da remuneração devia ter lugar a troco da entrega das peças confeccionadas, mas esse facto não resultou provado, sendo certo que a não prova de um facto não consente que se possa considerar provado o facto inverso. Também não foi alegada e, como tal, não ficou demonstrada a existência de qualquer outra cláusula relativa ao prazo de pagamento à autora.
Por conseguinte, em princípio, tem aplicação a regra supletiva do n.º 2 do artigo 1211.º do Código Civil. Ao contrário do que sustenta a recorrente, não se tendo provado que a ré dispunha de um prazo convencional após a recepção das peças para efectuar o pagamento à autora, não é possível concluir que a obrigação de pagamento estava sujeita a um prazo e, subsequentemente, também não que esse prazo foi fixado em benefício do devedor.
Também ao contrário do que sustenta, o Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro, que estabeleceu o regime especial relativo aos atrasos de pagamento em transacções comerciais entre empresas, transpondo a Directiva n.º 2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29/07, não define nenhuma regra supletiva especial de que as obrigações pecuniárias relativas a transacções comerciais apenas se vençam 30 dias após o recebimento da factura.
Pelo contrário, o que esse diploma veio prever foi que sempre que do contrato não conste a data ou o prazo de pagamento, são automaticamente devidos juros desde o 31.º dia posterior à data em que o devedor tiver recebido a factura ou documento equivalente. Por outras palavras, o diploma não beneficia o devedor com um prazo supletivo de vencimento da sua obrigação, o diploma, com o objectivo de combater as consequências dos atrasos de pagamento e de prazos excessivamente longos, estabelece que a partir do 30.º dia o devedor é obrigado a pagar juros independentemente de qualquer interpelação para o efeito. Portanto, o regime do artigo 1211.º, n.º 2, do Código Civil, não só não é posto em causa pelo referido Decreto-Lei, como apresenta um regime que é o que mais se adequa às finalidades e objectivos do diploma.
Finalmente, deve referir-se que a autora apenas condicionou a entrega da mercadoria à realização do pagamento por parte da ré, ou seja, não resulta da matéria de facto que a autora tenha impedido a ré de verificar a mercadoria para ver se a mesma tinha defeitos, melhor dizendo, que a ré tivesse querido verificar a mercadoria para ver se ela se encontrava nas condições convencionadas e sem vícios, caso em que efectuaria o seu pagamento para a levantar, e a autora a tenha impedido de também isso fazer.
Acresce que também não foi sequer alegado que a verificação da obra devesse ser feita à posteriori, noutro local e os seus resultados comunicados apenas depois num qualquer prazo posterior à recepção da obra pela ré. Nessa medida, não se pode objectar à conclusão de que o pagamento era devido no momento do levantamento das peças de vestuário, com a afirmação de que só seria devido depois da aceitação das mesmas quando a verificação da obra é uma obrigação do dono da obra, a falta da mesma importa aceitação desta, não resulta da matéria de facto que a não verificação seja imputável à autora e resulta ao invés que esta pediu à ré para levantar a mercadoria fazendo depender esse levantamento apenas do pagamento.
Assentes estes aspectos, estamos em condições de centrar a atenção dos pressupostos do direito de retenção.
Nos termos do artigo 754.º do Código Civil o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados. O n.º 1 do artigo 757.º acrescenta que o devedor goza do direito de retenção, mesmo antes do vencimento do seu crédito, desde que entretanto se verifique alguma das circunstâncias que importam a perda do benefício do prazo.
Como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª ed., pág. 773, “para que exista direito de retenção, nos termos deste artigo 754.º, é necessário, em primeiro lugar que o respectivo titular detenha (licitamente...) uma coisa que deva entregar a outrem; em segundo lugar, que, simultaneamente, seja credor daquele a quem deve a restituição; por último, que entre os dois créditos haja uma relação de conexão («debitum cum re junctum») nas condições definidas naquele artigo – despesas feitas por causa da coisa ou danos por ela causados”. Mais à frente, a pág. 780, estes autores acrescentam que em regra “… enquanto o crédito do detentor não estiver vencido, este não pode invocar o direito de retenção… Se, porém, se verificar algumas das circunstâncias que importam a perda do benefício do prazo, tudo deve passar-se, afinal, como se o crédito já estivesse vencido.”
É relativamente controverso que o empreiteiro tenha direito de retenção sobre a obra realizada enquanto não lhe for pago o preço da empreitada. No entanto, a posição afirmativa é hoje maioritária na doutrina e na jurisprudência como se observa em Galvão Teles, in O direito de retenção no contrato de empreitada, O Direito, 106º-109º, pág. 21 e seguintes, Calvão da Silva, in Cumprimento e sanção pecuniária compulsória, Coimbra, 1987, pág. 339 e seguintes, Ferrer Correia/Sousa Ribeiro, in Direito de retenção do empreiteiro, Colectânea de Jurisprudência, Ano XIII, tomo I, pág. 20 e seguintes, Júlio Gomes, in Direito de retenção, 18-19, e P. Romano Martinez, in Contrato de Empreitada, Almedina, pág. 83 e seguintes.
Distinta do direito de retenção é a chamada excepção de não cumprimento do contrato. Nos termos do artigo 428.º do Código Civil, nos contratos bilaterais, se não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo. Acrescenta o artigo 429.º do mesmo diploma que o contraente tem a faculdade de recusar a respectiva prestação enquanto o outro não cumprir ou não der garantias de cumprimento ainda que esteja obrigado a cumprir em primeiro lugar se, posteriormente ao contrato, se verificar alguma das circunstâncias que importam a perda do benefício do prazo.
A distinção é estabelecida por Pires de Lima e Antunes Varela, in loc. cit. pág. 774, nos seguintes termos: “A «exceptio», que existe nas relações sinalagmáticas, funda-se no não cumprimento de uma das prestações a que os contraentes ficam adstritos; o direito de retenção funda-se no não cumprimento de uma obrigação que, se bem que conexa com aquelas, não se confunde com elas. … Formalmente pode a excepção de não cumprimento apresentar-se como uma retenção, nos casos em que uma das prestações recíprocas tem por objecto a entrega de uma coisa (por ex., a obrigação do vendedor: cfr. art. 879.º). Mas juridicamente não há, neste caso, direito de retenção, porque não há sobre a coisa um direito de garantia ou de preferência em relação aos outros credores.”
Os pressupostos da excepção são os seguintes: i) estar-se perante um contrato bilateral com obrigações sinalgmáticas, na medida em que a excepção só opera relativamente a obrigações correlativas, a prestações interdependentes; ii) não estar o contraente que pretende invocar a excepção obrigado a cumprir antes do outro contraente uma vez que a excepção visa assegurar o cumprimento simultâneo quando ele é devido; iii) não estar o outro contraente em incumprimento definitivo e não oferecer o cumprimento simultâneo da sua contraprestação (cf. José João Abrantes, in A excepção de não cumprimento …, Almedina, 1986).
Face a estes dados, não custa antever a dificuldade em qualificar a atitude da autora como o exercício de um puro direito de retenção, como uma verdadeira excepção de não cumprimento ou como algo que difere de qualquer um desses institutos mas possui ainda assim relevância e cobertura jurídica.
A questão é que a autora não condicionou a entrega das peças ao pagamento do preço da empreitada de confecção das mesmas, condicionou essa entrega igualmente ao pagamento do preço de empreitadas anteriormente realizadas e cujas obras foram entregues à ré mas cujo preço esta não pagou.
Ora se em relação à obrigação de pagamento do preço das últimas peças ainda se pode admitir que estejamos perante um direito de retenção, sustentando que a entrega não seja propriamente uma prestação distinta da prestação de execução do serviço e que o preço cujo pagamento se reclama coincide com o valor das despesas suportadas com a coisa, ou porventura perante uma excepção de não cumprimento do contrato, com a particularidade de ter por objecto uma prestação de entrega de uma coisa, em relação à obrigação de pagamento do preço de anteriores encomendas nenhuma dúvida pode haver de que nenhum destes institutos se aplica.
Com efeito, não existe sinalagma entre a obrigação de pagamento do preço de outros bens antes executados e entregues e a obrigação de entrega de novos bens objecto de uma ulterior encomenda: o preço daqueles é correlativo da entrega daqueles, o preço destes é correlativo da entrega destes. E as despesas suportadas com a confecção das peças de uma encomenda, não são despesas suportadas com a confecção de peças de outra encomenda.
Significa isto que a atitude da autora foi ilegítima? Não cremos. Pelas razões que se seguem.
É importante anotar que no caso em apreço, ainda que cada encomenda da ré possa constituir um distinto contrato de empreitada, as relações entre a autora e a ré foram estabelecidas em Setembro e Outubro de 2007 e tinham por objecto a confecção de um conjunto alargado de peças de vestuário para o mesmo cliente. Ainda que cada encomenda tivesse uma numeração própria e fosse tratada autonomamente porque as peças tinham referências específicas, o processo de execução e o seu acompanhamento e controle por parte da ré e do seu cliente eram sempre os mesmos, não constando que para a contratação de cada encomenda se iniciasse um novo processo negocial e a mesma viesse a estar sujeita a distintas condições. Esta ligação umbilical de cada encomenda ao acordo estabelecido inicialmente justifica, a nosso ver, que se aceite que a sorte de cada encomenda não deva estar totalmente à margem da sorte de outra encomenda.
Por outro lado, estando de boa fé as partes de um contrato aceitam assumir as obrigações resultantes deste por estarem convictas de que a outra também irá cumprir as suas obrigações. Parte nenhuma aceita contratar sabendo de antemão que a outra parte não irá cumprir o contrato. Por sua vez a ordem jurídica intende a esse cumprimento e as suas disposições normativas mais não visam que assegurar o cumprimento das prestações a que as partes se obrigaram. A acção de cumprimento é apenas o último remédio para assegurar esse cumprimento, mas existe toda uma série de mecanismos destinados a afastar o risco de incumprimento (v.g. as garantias). Nessa medida, tudo o que possa contribuir para assegurar o respeito pelo mútuo consenso alcançado e facultar às partes meios para assegurar que a contrapartida da sua vinculação é efectivamente alcançada, deve ser visto como correspondendo ao fim da ordem jurídica no domínio dos contratos.
Já se deixou claro que a atitude da autora foi uma reacção à atitude da ré de lhe impor uma redução para metade do preço das peças da última encomenda sob pena de não lhe pagar “nenhuma das facturas”, ou seja, mesmo as facturas relativas a peças já confeccionadas entregues e aceites mas cujo preço permanecia por pagar. Esta atitude da ré consubstanciou uma declaração antecipada de não cumprimento da sua obrigação pecuniária, pois através dela a ré anunciou antecipadamente à credora que na circunstância que se veio a verificar não iria cumprir a sua obrigação (só cumpriria se a autora aceitasse a sua exigência, o que não sucedeu).
Deve entender-se que se o devedor manifesta antecipadamente a decisão de não cumprir a sua obrigação, o credor pode desonerar-se de imediato da sua contraprestação ainda que a obrigação daquele não se encontre vencida. Com efeito, embora a lei não se lhe refira directamente, nas situações que independentemente do interesse do credor ou da fixação de um prazo admonitório, o devedor declara expressamente que não pretende cumprir a prestação a que está adstrito ou adopta um comportamento manifestamente incompatível com a vontade do cumprimento, é comummente aceite que isso gera uma situação de imediato incumprimento definitivo do sem necessidade de o credor fixar ao devedor um prazo suplementar (cf. Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil, vol. IX, 2014, pág. 143 e seguintes). A declaração ou o comportamento concludente do devedor são suficientes para permitir de imediato ao credor resolver o contrato com fundamento no incumprimento e se nesse caso o credor tem direito à restituição da sua prestação se já a tiver realizado (artigo 801.º do Código Civil) por igualdade de razões lhe deverá ser consentida dispensa da prestação que ainda não realizou.
Como vimos, a excepção de não cumprimento do contrato não está, em regra, à disposição do contraente obrigado a cumprir em primeiro lugar. Isso deixa de ser assim se sobrevier alguma das circunstâncias que importa a perda do benefício do prazo estabelecido a favor do devedor (artigos 428.º e 429.º do Código Civil). O artigo 780.º do mesmo diploma, prescreve que uma vez estabelecido o prazo a favor do devedor, o credor pode, não obstante, exigir o cumprimento imediato da obrigação, se o devedor se tornar insolvente, ainda que a insolvência não tenha sido judicialmente declarada, ou se, por causa imputável ao devedor, diminuírem as garantias do crédito ou não forem prestadas as garantias prometidas. A redacção da norma não contém qualquer expressão da taxitividade da respectiva previsão, daqui que nada obsta a que possa ser objecto de interpretações designadamente teleológicas, analógicas ou extensivas.
Ora se a norma prevê a perda do benefício do prazo nos meros casos de diminuição das garantias do crédito, sem chegar a exigir que a diminuição tenha uma dimensão que ponha em risco a satisfação do crédito, por maioria de razão se deverá entender que a consequência se aplica igualmente às situações em que o devedor assume antecipadamente não querer satisfazer o crédito. Em ambas as situações o que está em causa não é a defesa do crédito (por isso a norma não exige que a diminuição das garantias ponha em risco a satisfação do crédito), é a tutela da reciprocidade das obrigações, a defesa do cumprimento do contrato já que só com o seu efectivo cumprimento recíproco se assegura o fim do contrato.
Não é por o credor ter à sua disposição a acção de cumprimento que lhe deve ser negado o acesso a instrumentos jurídicos (como a suspensão da sua prestação) que possam permitir-lhe evitar o prejuízo que a acção de cumprimento não afasta de todo (basta pensar na hipótese de o devedor não ter bens penhoráveis que respondam ou suficientes para responder pela satisfação do crédito).
A ser assim, como pensamos, podemos considerar que a exceptio se aplica não apenas às situações expressamente previstas no artigo 429.º, mas ainda às situações que a estas sejam equiparáveis, onde se compreende a situação de o devedor declarar antecipadamente não querer cumprir. E essa ideia será válida não apenas em relação a obrigações cujo sinalagma seja directo ou imediato, designadamente por provirem da mesma e única relação jurídica, como ainda em relação a obrigações que têm uma origem contratual idêntica e características contratuais comuns por procederem, designadamente, de uma mesma e única negociação e modo de composição das respectivas condições, sendo cada nova prestação uma réplica de prestações anteriores e todas elas geradas numa mesma relação especial de confiança que deve ser respeitada por ambas as partes.
É necessário não esquecer, com efeito, que, no caso, a ré já recebeu as mercadorias cujo preço não pagou e agora declarou não pretender pagar, enquanto que a autora confeccionou essas mercadorias e entregou-as sem receber o respectivo preço. A autora apenas aceitou as condições comuns a todas as encomendas na pressuposição de que as mesmas iriam ser cumpridas pela ré, pelo que o rompimento desse acordo em relação a encomendas anteriores é uma afectação pela própria ré do acordo inicial, repercutindo-se em todas as obrigações que o tenham na origem. Reconhecer a exceptio com essa amplitude é a forma residual de se alcançar ainda o fim normativo da própria exceptio: assegurar o mais possível que nenhum dos contraentes realiza a sua prestação sem obter da outra parte a prestação a que legitimamente aspirava.
A essa solução se chega, a nosso ver, se mais não for, pela via do abuso do direito.
Como sabemos, o n.º 2 do artigo 762.º do Código Civil impõe a devedores e credores que actuem de boa fé no cumprimento da obrigação e no exercício do direito correspondente. Esta fórmula encerra a compreensão do contrato não como uma realidades simples e fragmentada passível de ser reduzida a um mero dever de prestar e à pretensão creditícia simétrica, mas como realidade complexa, composta por vários elementos jurídicos, encabeçados por cada uma das partes, que se unem para formar uma realidade que deve ser vista como conjunto agregado.
Por sua vez o artigo 334.º do mesmo diploma considera ilegítimo, ou seja, proibido, o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, entendendo-se por esta um padrão de regra de conduta (boa fé objectiva). Entre as situações típicas de exercícios inadmissíveis de posições jurídicas por desconformidade com as regras da boa fé, a doutrina refere o chamado desequilíbrio no exercício jurídico.
Nas palavras de Menezes Cordeiro, in Da Boa Fé no Direito Civil, Almedina. 3.ª reimpr, pág. 853 e seguintes, “a ideia de desequilíbrio no exercício traduz um tipo extenso de actuações inadmissíveis de direitos. Abrigam-se, a ela, subtipos variados de conjunturas abusivas, próximas por, em todas, haver despropósito entre o exercício do direito e os efeitos dele derivados. Fale-se, por isso, em desequilíbrio. Integram a categoria do exercício desequilibrado de direitos três sub-hipóteses de comportamentos inadmissíveis: o exercício inútil danoso, a conjunção de situações implicada no brocardo dolo agit qui petit quod statim redditurus est e a desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem (…). A desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem constitui, por fim, o mais promissor dos subtipos integrados no exercício em desequilíbrio. Integram-se, aqui, situações como o desencadear de poderes-sanção por faltas insignificantes, a actuação de direitos com lesão intolerável de outras pessoas e o exercício jussubjectivo sem consideração por situações especiais. (…) Da ponderação dos casos concretos que deram corpo ao exercício em desequilíbrio, desprende-se a ideia de que, em todos, há uma desconexão – ou, se se quiser, uma desproporção – entre as situações sociais típicas pré-figuradas pelas normas jurídicas que atribuíam direitos e o resultado prático do exercício desses direitos. Parece, pois, haver uma bitola que, transcendendo as simples normas jurídicas, regula, para além delas, o exercício de posições jussubjectivas: essa bitola dita a medida da desproporção tolerável, a partir da qual já há abuso. No campo do exercício em desequilíbrio, o critério do abuso poderia ainda ser precisado com recurso à … tutela da confiança e a ponderação das realidades materiais subjacentes. Na primeira hipótese, dir-se-ia que o exercício danoso inútil iria contundir com a confiança legítima do prejudicado, convicto de que o direito nunca seria exercido em tais moldes; na segunda, afirmar-se-ia, subjacente à permissividade formal, a presença de novos elementos materiais restritivos, ocasionados pela actuação do titular”.
Cremos que a situação que nos ocupa se pode reconduzir a esta situação típica de exercício abusivo do direito. Com efeito, tendo a ré recebido as mercadorias das encomendas anteriores, sem lhes acusar qualquer defeito ou opor qualquer excepção impeditiva da obrigação de pagamento do respectivo preço, o único comportamento que lhe restava era o de pagar o respectivo preço em respeito pelo direito da contraparte e em conformidade com a necessidade de proporcionar à autora as vantagens recíprocas, sinalgmáticas, das vantagens que o comportamento desta lhe proporcionou a si.
Nessa medida, a utilização do poder prático de cumprir ou não cumprir a sua obrigação, sujeitando a outra parte às consequências do atraso no cumprimento e à necessidade de instaurar a acção de cumprimento, para coagir a outra parte a aceitar uma redução do preço contratado para uma encomenda posterior ainda não satisfeita, é absolutamente desproporcionada, excessiva, violadora da confiança concitada na outra parte e em função da qual esta decidiu aceitar a nova encomenda nas condições das anteriores e, sobretudo, geradora de um enorme constrangimento para a outra parte que a priva da liberdade que é própria dos contratos e em função da qual (da formação livre da vontade negocial) as posições das partes são tuteladas pela ordem jurídica.
Não se diga que a ré considerava ter um direito de indemnização sobre a autora com o qual podia compensar o crédito da autora relativo ao preço das encomendas já antes fornecidas e que por via dessa excepção este crédito desapareceria. Tal direito não só carecia de ser demonstrado, como, a existir, estava delimitado pelos factos que o geraram, designadamente pelos danos que lhe sobrevieram.
A ré não podia, sob pena de excesso, de desproporção, de injustificação, impor, a pretexto desse direito, a redução significativa (50%) do preço de uma encomenda já fixada, ultrapassando a necessidade de demonstrar os pressupostos do direito e a dimensão da indemnização, e, sobretudo, coagindo a parte contrária a aceitar sem mais essa exigência sob a ameaça de algo que estava fora do âmbito onde se verificara o incumprimento gerador do eventual direito de indemnização.
Por outro lado, à autora já nada mais restava para contrapor a essa ameaça de consequências práticas, na medida em que tendo entregue as encomendas anteriores não podia servir-se delas para tentar assegurar o recebimento do respectivo preço. A única encomenda que lhe restava entregar era esta, pelo que para se opor à ameaça da ré só podia mesmo utilizar a prestação de entrega desta encomenda, assim se afastando qualquer juízo de desproporção na força utilizada para reagir.
Repare-se que sendo o preço da confecção das parkas da última encomenda de €33.571, conforme resulta do documento relativo ao procedimento de injunção apresentado para obtenção do respectivo pagamento junto com a réplica, a redução a 50% desse preço significava que a ré estimava os seus prejuízos na altura em €16.875, considerando-se ressarcida com a compensação dessa quantia. Apesar disso, pretendeu impor à autora essa redução sob a ameaça de não lhe pagar nenhuma das facturas que estavam por pagar, ou seja, aquelas cujo pagamento é reclamado através da presente acção, isto é, o montante de €48.236,80! Assim se demonstra não apenas a desproporção da atitude da ré, como, sobretudo, a intenção cominatória da ameaça que essa exigência representava na prática.
Repare-se ainda que o direito de indemnização que a ré agora reclama por via de reconvenção, do qual estão definitivamente excluídos os danos relativos à encomenda das calças que eram parte significativa dos danos invocados, tem origem apenas na não entrega da última encomenda e radica na actuação da ré no dia 28 de Abril quando aquela exigência foi colocada anteriormente a essa data e, portanto, não podia basear-se num comportamento ainda não ocorrido!
Em virtude da plasticidade da consequência jurídica do exercício inadmissível (é ilegítimo …) que consente a sua adequação prática à situação concreta em que se verifica, cremos poder entender que face ao desvalor jurídico da actuação da ré, a autora ficou legitimada a recusar o cumprimento da sua prestação sem que a ré efectuasse, em simultâneo, o cumprimento da sua prestação quer na parte relativa às encomendas anteriores já entregues (e em que portanto só o interesse da autora se encontrava por satisfazer) quer em relação à última encomenda.
O fundamento para essa solução alcança-se através do alargamento do âmbito da exceptio como resposta à ilegitimidade do comportamento da ré. No fundo, do que se trata, é de assegurar que só assim, só por essa via, se concretiza o equilíbrio contratual coenvolvido na forma como as partes compuseram os respectivos interesses e definiram os correspondentes direitos e obrigações em relação às anteriores encomendas, repete-se, já entregues e em relação às quais a ré não invocou qualquer defeito ou excepção.
Eis porque entendemos que nas concretas circunstâncias do caso a atitude da autora no dia 28 de Abril de 2008 de apenas aceitar entregar as parkas encomendadas pela ré a troco do pagamento do preço de todas as peças já entregues e a entregar, era legítima e não a fez incorrer em incumprimento contratual. Logo, não faz emergir o direito de indemnização reclamado pela ré e que constituía o objecto da pretendida compensação de créditos. Por isso improcede o recurso da decisão, quer no tocante à acção, quer no tocante à reconvenção.

V.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em (i) rejeitar a junção dos documentos apresentados pela recorrente com as alegações de recurso; (ii) alterar a matéria de facto nos termos acima consignados e, no mais, com a fundamentação que acabam de expor, julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.
Condena-se a recorrente nas custas do incidente relativo aos documentos com 1 UC de taxa de justiça. As custas do recurso serão suportadas pela recorrente (tabela I-B).
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Porto, 28 de Outubro de 2015.
Aristides Rodrigues de Almeida (Relator; Rto228)
Teles de Menezes
Mário Fernandes
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[1] É lapso. A recorrente quer dizer “III”.
[2] Existe aqui um lapso como refere a ré. A data alegada e que se quis levar à base instrutória foi o dia “13/14 de Março”.
[3] Para facilitar a leitura dos factos procedemos a nova numeração dos mesmos, indicando no final do facto a alínea por que estavam indicados na sentença recorrida. Com o mesmo objectivo, expurgamos os factos de um ou outro conteúdo inócuo e repetitivo e substituímos as remissões para as alíneas a), b) ou c) da alínea H) dos factos assentes pela concretização das peças de vestuário que lhe correspondem, uma vez que dessa forma se apreendem melhor os factos, esclarecendo-se que sempre que nos referirmos sem mais às calças estaremos a referirmo-nos às peças da encomenda 877 – alínea a) - e no caso das parkas às peças da encomenda 881 - compreendendo os dois modelos; alíneas b) e c) -.