Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
343/09.8TBILH-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI MOREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
DIREITO DE RETENÇÃO
CONSUMIDOR
FACTO CONSTITUTIVO
DIREITOS
Nº do Documento: RP20161025343/09.8TBILH-B.P1
Data do Acordão: 10/25/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 736, FLS. 155-166)
Área Temática: .
Sumário: I - A solução decretada pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014 deve ser alvo de uma aplicação restritiva, nos termos da qual o direito de retenção do promitente-comprador, nos termos da al. f) do nº 1 do art. 755º do C. Civil, em caso de insolvência do promitente-vendedor, depende, além da tradição do imóvel negociado, da sua qualidade de consumidor.
II – Por ser facto constitutivo do seu direito, é ao promitente-comprador que cabe a alegação e prova dessa qualidade de consumidor, a aferir em face do n.º 1 do art. 2.º da Lei n.º 24/96, de 31-07.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. 343/09.8TBILH-B.P1
Comarca de Aveiro - Aveiro
Inst. Central - 1ª Sec. Comércio - J2

REL. N.º 364
Relator: Rui Moreira
Adjuntos: Fernando Samões
Vieira e Cunha
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

1. - RELATÓRIO

A requerimento da própria, foi declarada a insolvência de B…, LDA., por decisão proferida a 12/3/2009, que transitou em julgado a 27/4/2009.
O Sr. administrador de insolvência juntou a relação de créditos reconhecidos, que posteriormente corrigiu, constando a lista definitiva e rectificada a fls. 123ss deste apenso.
C… deduziu impugnação à referida lista, afirmando a incorrecção da natureza e do valor do crédito que lhe foi reconhecido.
Para o efeito, afirmou que celebrou com a insolvente um contrato promessa de permuta, prometendo a transmissão de um lote de terreno para aquela, que por sua vez lhe prometeu a entrega de uma moradia, constituída pela fracção autónoma “A” de um prédio a edificar no dito terreno e a constituir em regime de propriedade horizontal
Mais, declarou que a insolvente abandonou a empreitada, nos finais de 2007 e ainda constituiu depois hipoteca sobre o imóvel, assim inviabilizando o cumprimento da sua parte no contrato-promessa, apesar de ter recebido o lote de terreno e de a ter notificado exigindo a conclusão dos trabalhos e a emissão da licença de habitabilidade. A tal notificação seguiu-se a instauração de uma execução para prestação de facto, com o valor atribuído de € 108.920,00.
Invocou, finalmente, que possui as chaves do imóvel desde pelo menos 2007, entregues pela insolvente, tendo ali fixado a sua residência, ainda que precariamente, e liquidado os correspondentes impostos. Em consequência, requereu que o seu crédito seja considerado como garantido, por beneficiar de direito de retenção, e pelo montante de € 108.920,00 (que depois esclareceu corresponder a € 100.000,00), atribuído à fracção, acrescido de juros de mora.
O D… SA respondeu à mencionada reclamação, impugnando a factualidade alegada pelo referido credor e rejeitando que ele disponha do invocado direito de retenção, por nunca ter tido a posse sobre a moradia referida no contrato-promessa, já que essa posse foi mantida pela insolvente e, em qualquer caso, teria na data da apreensão levada a efeito pelo Sr. administrador da insolvência.
Também a insolvente apresentou resposta à impugnação, contrariando parte da matéria factual invocada naquela e defendendo que: a) não existe mora, nem direito a juros, por se tratar de uma obrigação sem prazo certo e já cumprida, b) alguns dos trabalhos necessários para a obtenção da licença de habitabilidade e não realizados eram da responsabilidade do impugnante, c) apenas entregou as chaves ao impugnante para efeitos de realização desses trabalhos, e não para outros efeitos, não tendo existido tradição do imóvel, tendo a insolvente mantido as demais chaves do imóvel e, no interior deste, matérias-primas que a si pertenciam, ali se deslocando livremente; e d) a intenção do impugnante foi sempre a de alienar o imóvel, a fim de receber o seu preço. Concluiu pela improcedência da impugnação.
Foram tramitados e decididos os incidentes de habilitação do respondente, cuja posição passou a ser ocupada por BANCO E… SA e F… SA
Foi realizada a audiência de julgamento, no termo da qual foi proferida sentença que concluiu pela procedência parcial da impugnação deduzida por C… e qualificou o seu crédito como garantido, por direito de retenção, em relação ao imóvel da verba nº14 do auto de apreensão, identificado como fracção A, com o valor de € 100.000,00, acrescido de juros de mora, vencidos desde o início de Maio de 2008 até ao final do prazo para a reclamação de créditos. Mais o graduou, quanto a esse imóvel, em conformidade com tal decisão.
É contra esta decisão que BANCO E… SA e F… SA vem deduzir o presente recurso, pretendendo a revogação da decisão no que respeita ao reconhecimento do direito de retenção do referido credor.
Terminam esse recurso, que desenvolvem num articulado com 86 itens, com um elenco de 83 itens que apelidam de conclusões, nos termos que se passam a transcrever:
1. Entendem os Apelantes, salvo o devido respeito, que a sentença recorrida, na parte em que julgou parcialmente procedente a impugnação deduzida por C… e reconheceu o crédito deste como garantido, por direito de retenção, em relação ao imóvel da verba n.º 14 do auto de apreensão, não fez correta aplicação da prova produzida e do direito.
I. DOS FACTOS
Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto
2. Analisada a matéria de facto dada como provada na douta sentença por contraposição com a prova produzida nos autos, designadamente dos depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento, verifica-se que ocorreu erro de julgamento notório e grave, que conduz à alteração da matéria de facto e impõe uma decisão diversa da proferida, nos termos do artigo 640.º do Código de Processo Civil (doravante CPC).
3. A douta sentença em crise dá como provado que “13) Em princípios de 2008, a insolvente abandonou a execução da construção da fracção designada pela letra A do referido empreendimento, que não concluiu (BI/1-5).”
4. Na motivação, fundamenta o tribunal a quo que “o legal representante da insolvente, embora com alguma flutuação no seu depoimento, acabou por reconhecer o abandono da obra, que atribuiu a falta de capacidade financeira”.
5. Do depoimento prestado pelo legal representante da insolvente, o Sr. G…, verifica-se que o mesmo admitiu a possibilidade de o atraso na conclusão das obras que lhe cabia efetuar na fração A se dever a falta de capacidade financeira, mas esta hipótese foi-lhe sugerida e, conforme referido pelo próprio, o seu depoimento encontra-se prejudicado pelo facto de terem decorrido vários anos desde o acontecimento dos factos.
6. O legal representante da insolvente disse, de forma taxativa e espontânea, que os trabalhos de acabamento, não estavam terminados, estando dependentes do Sr. C… terminar a parte dele.
7. A Insolvente não abandonou a execução da construção em “princípios de 2008”, limitou-se antes a aguardar que o Impugnante concluísse os trabalhos de carpintaria e outros a que se obrigou por via do contrato promessa celebrado entre as partes em 04 de Fevereiro de 2005 (facto provado n.º 5) e sem os quais a primeira não poderia concluir a sua parte e providenciar pela emissão da respetiva licença de habitabilidade.
8. No contrato promessa celebrado entre as partes em 04 de Fevereiro de 2005, as mesmas acordaram que a transmissão da fração A (bem futuro) para a propriedade do Impugnante ocorreria após a emissão da respetiva licença de habitabilidade, o que se previa que ocorresse até 05 de Fevereiro de 2008, mas não tinha prazo fixado.
9. A emissão da mencionada licença de habitabilidade estava dependente da conclusão da construção, sendo que existiam trabalhos que eram da responsabilidade da Insolvente e outros da responsabilidade do Impugnante.
10. Por um lado foi dado como provado que o Impugnante requereu, a 10 de Março de 2008, a notificação avulsa da insolvente para que procedesse, em quinze dias, ao acabamento da obra e à entrega da documentação necessária no sentido de realizar a escritura definitiva de dação em pagamento (facto provado 10).
11. Também foi dado como provado (facto provado 12) que, a insolvente, em resposta, requereu a 30 de Abril de 2008, a notificação avulsa do Impugnante para que, além do mais, concluísse a aplicação das madeiras e colocação dos armários e electrodomésticos na cozinha.
12. Não se verificou o abandono da construção por parte da Insolvente, mas tão só o desacordo entre as partes sobre as fases da construção e conclusão da fração em causa, sendo que a questão ficou por resolver em face da declaração de insolvência.
13. Face aos elementos de prova produzidos, deve o quesito 1 da base instrutória ser julgado como não provado e apenas ser dado como provado o quesito 5 da base instrutória (a insolvente não concluiu a construção da fração).
ACRESCE QUE,
14. O facto dado como provado em 16) e referente ao quesito 6 da base instrutória - “A insolvente não entregou ao impugnante os documentos que este solicitou” - carece de resposta explicativa na motivação.
15. Embora seja referido na respetiva motivação que o legal representante da Insolvente reconheceu a ausência de pedido de licenciamento da fração designada pela letra A e que a Insolvente não correspondeu à solicitação da conclusão das obras e de documentação para a obtenção da licença de habitabilidade (o que resultou também da notificação judicial avulsa com cópia inclusa a fls. 46ss), a verdade é que a douta sentença ignora o facto dado como provado em 12), ou seja, que à mencionada notificação judicial avulsa requerida pelo Impugnante, respondeu a Insolvente de imediato, com a notificação avulsa requerida em 30 de Abril de 2008, para que o Impugnante, além do mais, concluísse a aplicação das madeiras e colocação dos armários e eletrodomésticos na cozinha.
16. O reconhecimento que consta da resposta dada em 12), assim como a Insolvente requereu, em 30 de Abril de 2008, a notificação avulsa do impugnante para que, além do mais, concluísse a aplicação das madeiras e colocação dos armários e eletrodomésticos na cozinha, vem contrariar essa conclusão.
17. Na mencionada notificação avulsa requerida pela Insolvente (a fls. 105ss) é referido, no seu art. 5.º, que “Invocando o sobredito contrato promessa e a (falsa) circunstância da ora requerente ter injustificadamente abandonada a obra, o aqui requerido promoveu a sua notificação judicial para que proceda ao acabamento da obra e à entrega, no prazo de 15 dias da documentação necessária, no sentido de obviar à outorga da escritura”.
18. Mais é referido na mencionada notificação judicial, designadamente nos seus artigos 12.º e seguintes, que “para que a edilidade emita a licença de ocupação ou de habitabilidade é necessário que a construção esteja terminada”, o que não se verifica por exclusiva responsabilidade do Impugnante, uma vez que, até ao dia 27 de Abril de 2008, este não havia colocado os móveis de cozinha, nem os eletrodomésticos, nem concluiu as carpintarias, faltando a aplicação dos puxadores das portas, ou seja, não concluiu os trabalhos que lhe incumbiam e a que se tinha obrigado a realizar.
19. Conclui a aludida notificação judicial com o pedido de notificação do Impugnante a fim de ficar bem ciente de que é intenção da Insolvente realizar, integral e perfeitamente, a sua prestação, mas para que isso possa acontecer, ou seja, para que a Insolvente possa terminar os trabalhos de construção necessários à emissão da licença de habitabilidade da identificada fração, deverá o Impugnante concluir a aplicação das madeiras e colocar os armários e eletrodomésticos na cozinha.
20. Resulta do depoimento do legal representante da Insolvente resposta nos mesmos termos.
21. Com efeito, não é verdade que a matéria da falta de licenciamento da fração A não foi contrariada pelo legal representante da insolvente ou outro meio de prova, bem pelo contrário como se demonstrou.
22. Do mesmo modo que não ficou provado o quesito 2 da base instrutória, que questionava se a Insolvente havia inviabilizado intencionalmente a emissão da licença de habitabilidade da fração em causa, não pode a sentença recorrida ser omissa, já que existe prova nesse sentido, no que diz respeito às razões que estão na base da falta do pedido de emissão da licença de habitabilidade da fração A pela Insolvente.
23. Com efeito, deve a resposta ao quesito 6 (presente na alínea 16 dos factos provados), ser complementada no sentido de que a Insolvente não entregou ao Impugnante os documentos que este solicitou, uma vez que a emissão dos mesmos estava dependente da conclusão da construção, o que não se verificava por culpa exclusiva do Impugnante.
24. Tendo em conta os mesmos elementos de prova acima elencados, deve ainda ser dada como provada a factualidade resultante do quesito 15 da base instrutória, no sentido de que não foi emitida a licença de habitabilidade da fração A em consequência da falta de realização das obras de construção da mesma.
ACRESCE AINDA QUE,
25. É dado como provado em 16), na resposta aos quesitos 7 e 14 da base instrutória, que a Insolvente entregou ao Impugnante, em 2007, as chaves da referida fracção autónoma, designada pela letra A, mantendo outra cópia das mesmas para si, mas já não foi dada como provada a segunda parte do quesito 14 da base instrutória que questionava se a entrega dessas chaves ao Impugnante se destinava apenas para que ele executasse as obras da sua responsabilidade.
26. Na sentença recorrida é justificado que tal matéria não ficou demonstrada integralmente nos termos alegados nos articulados de resposta e que foi reconhecido uniformemente por Impugnante e legal representante da Insolvente.
27. Ora, salvo o devido respeito, cremos que em face da prova produzida em sede de audiência de julgamento, designadamente no depoimento do legal representante da Insolvente, a conclusão teria de ser outra.
28. Ao longo do depoimento do legal representante da Insolvente, que se mostrou desinteressado, espontâneo e colaborante com a descoberta da verdade, foi repetidamente afirmado pelo mesmo que a entrega das chaves do imóvel em causa ao Impugnante, se destinou, exclusivamente, para que este último realizasse os trabalhos que se obrigou a efetuar no contrato promessa celebrado em 04 de Fevereiro de 2005.
29. O depoimento do legal representante da Insolvente, complementado com os demais elementos de prova juntos aos autos, designadamente as notificações judiciais requeridas pelas partes e respetivo conteúdo, mostram-se suficientes para que o quesito 14) da base instrutória seja reconhecido como provado na totalidade.
30. Deste modo, o facto provado constante do ponto 17 deve ser complementado com “apenas para que ele executasse as obras da sua responsabilidade?”, dando assim resposta integralmente positiva aos quesitos n.º 7 e 14 da base instrutória.
II. DO DIREITO
31. Entendeu o julgador “a quo” que se verificaram no caso sub judice todos os pressupostos de que a lei faz depender o reconhecimento do direito de retenção ao promitente-comprador, previstos no artigo 755.º, n.º 1, f) do C.C., a saber:
a) Existir uma promessa de transmissão ou constituição de direito real;
b) a tradição da coisa objeto do contrato prometido e,
c) a existência de um crédito, por parte do beneficiário da promessa, resultante do não cumprimento imputável à outra parte nos termos do artigo 442.º do CC.
32. Ora, sendo julgada procedente a impugnação à matéria de facto dada como provada, desde logo, importará decisão diferente da recorrida.
33. Sem prejuízo, permitimo-nos discordar do julgador a quo, para já, quanto à interpretação jurídica que faz de um dos pressupostos da verificação do direito de retenção nos termos do artigo 755.º, n.º 1, f) do C.C. - a tradição da coisa.
34. Sobre este pressuposto, discorre a douta sentença recorrida que, “para o reconhecimento da detenção, necessária para a existência do direito de retenção, é bastante a transmissão legítima da coisa objecto do contrato promessa, e para ela são alheias as exigências inerentes à verdadeira posse”.
35. E conclui que, “tendo obtido as chaves do imóvel, no qual passou, entre o mais, a executar trabalhos de acabamento, o impugnante obteve a tradição do imóvel e, dessa forma, logrou preencher mais um dos requisitos para o reconhecimento do direito de retenção”.
36. Não podemos estar mais em desacordo com a análise e decisão do tribunal à quo sobre a verificação deste pressuposto da tradição da coisa.
37. Conforma acima referido quanto à impugnação da matéria de facto, foi produzida nos autos prova bastante de que a entrega das chaves do imóvel em causa ao Impugnante se destinou, exclusivamente, para que este último realizasse os trabalhos que se obrigou a efetuar no contrato promessa celebrado em 04 de Fevereiro de 2005.
38. Sendo que a entrega das chaves, no sentido da entrega do imóvel (tradição da coisa) ao Impugnante enquanto cumprimento da contraprestação acordada, só ocorreria depois de concluída a construção, depois de obtida a respetiva licença de habitabilidade e após a celebração da escritura de dação em pagamento.
39. Isto retira-se do estipulado no contrato promessa celebrado entre Impugnante e a Insolvente, em 04 de Fevereiro de 2005, do conteúdo das notificações judiciais avulsas consideradas provadas em 10) e 12) dos factos provados na douta sentença e ainda do depoimento prestado pelo legal representante da Insolvente e acima transcrito (art. 29.º) do qual se extrai, sem margem para dúvidas, que este nunca conjeturou que a entrega das chaves ao Impugnante em meados de 2007 configurasse a tradição da coisa objeto do contrato, mas tão só, o acesso para executar os trabalhos a que se obrigou e sem os quais não seria possível cumprir o contrato promessa.
40. A lei não concretiza o conceito de tradição, deixando em aberto a questão de saber se é suficiente a mera tradição simbólica ou se terá de ocorrer a tradição material.
41. A tradição vem regulada no nosso código civil como meio de aquisição derivada da posse e, conforme resulta da al. b) do art. 1263.º, a mesma pode ser material ou simbólica, sendo essencial à aquisição da posse, pelo novo possuidor, a cessação da posse do anterior, como refere Menezes Cordeiro in “A Posse”, 2000, pág. 107.
42. Mais referindo que, a tradição material caracteriza-se pela existência de uma atividade exterior que traduz os atos de entregar e receber, contrariamente à tradição simbólica, na qual não tem lugar uma interferência no controlo material da coisa.
43. Antunes Varela in “Das Obrigações em Geral”, Vol. 2.º, 5.ª ed., 1992, pág. 572, procurou definir este conceito balizado pelos contornos daquele normativo, afirmando ser de retenção o “direito conferido ao credor, que se encontra na posse de certa coisa pertencente ao devedor de, não só recusar a entrega dela enquanto o devedor não cumprir, mas também de executar a coisa e se pagar à custa do valor dela, com preferência sobre os demais credores.”
44. Atento aquele dispositivo temos que, são pressupostos do direito de retenção: a licitude da detenção da coisa, a reciprocidade de créditos, e a conexão substancial entre a coisa retida e o crédito do autor da retenção - neste contexto, a recusa da entrega da coisa ao proprietário é legitimada se o crédito do recusante tiver resultado de despesas feita por causa da (ou de danos causados pela) coisa.
45. Em casos especiais dispõe o art. 755.º, n.º 1, no que ao caso interessa, na al. f), o seguinte: “O beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, goza de direito de retenção sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442.º”.
46. Tratando-se de uma questão controversa na doutrina e jurisprudência, defendemos uma parte da doutrina que entende que a tradição, para efeitos desta disposição legal (artigo 755.º, n.º 1, f) do C.C.), vai além da mera entrega da coisa, antes tem de ser aquela que se exige para o corpus na aquisição derivada da posse, conferindo ao adquirente a possibilidade de exercer uma relação material com e sobre o objeto.
47. Torna-se, assim, necessário que o promitente-vendedor pratique atos de efectiva apreensão material da coisa prometida, em nome próprio, intervindo sobre a coisa como se fosse sua (cfr. Maria Conceição Rocha Coelho, in “O crédito hipotecário face ao Direito de Retenção”, Universidade Católica Portuguesa, Dissertação de Mestrado em Direito Privado, 2011, págs. 21 a 23).
48. Na mesma linha, Lebre de Freitas defende um entendimento restritivo do conceito “tradição”, limitado à tradição material e à tradição simbólica que seja seguida de um acto de efetiva apreensão material da coisa prometida (cfr. do autor, “Sobre a prevalência, no apenso de reclamação de créditos, do direito de retenção reconhecido por sentença”, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 66, II, 2006.)
49. Como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Vol. II, 2.ª ed., págs 6/7), “o contrato promessa de compra e venda não é susceptível de transferir a posse ao promitente-comprador. O contrato promessa, com efeito, não é susceptível de, só por si, transmitir a posse ao promitente-comprador. Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário. São concebíveis, todavia, situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche, excepcionalmente, todos os requisitos de uma verdadeira posse”.
50. No caso em apreço ficou cabalmente demonstrado, nomeadamente pelo depoimento do legal representante da Insolvente, que a traditio, traduzida, in casu, exclusivamente na entrega das chaves, tinha como finalidade permitir que o Impugnante efetuasse os trabalhos de carpintaria a que se tinha obrigado no contrato promessa, sendo que o primeiro manteve uma outra chave do imóvel em causa e elaborou trabalhos na mesma após essa entrega.
51. Resultou, ainda, cabalmente provado que o Impugnante nunca habitou a fração; nunca suportou quaisquer despesas relacionadas com o uso e fruição do imóvel, nomeadamente, com água e luz (já que o imóvel não dispõe, sequer de ligações próprias e contadores). Motivo pelo qual, o quesito 17 da base instrutória foi dado como provado (24) e os quesitos 8 e 10 foram dados como não provados.
52. Desta forma, não se vislumbram circunstâncias excepcionais que justifiquem a consagração de uma excepção à regra da qualidade de mero detentor do promitente-comprador.
53. Não foi valorado pelo digníssimo juiz a quo o facto de a tradição, traduzida na mera entrega das chaves, não vir acompanhada da prática de atos que traduzam os poderes materiais que se podem exercer sobre a coisa prometida.
54. Salvo melhor opinião, entendemos que o meritíssimo juiz a quo fez uma interpretação literal do preceito legal, ignorando o espirito da norma, que ditava, que a tradição se consubstanciasse em atos de apreensão material do imóvel.
55. Chegados aqui, podemos afirmar que, ainda que se admitisse que se verificaram, no caso em apreço, todos os pressupostos formais estritos de que a lei faz depender o reconhecimento do direito de retenção, concluindo-se pela suficiência da mera entrega simbólica, traduzida na simples entrega das chaves do imóvel, ainda assim, ficaria por preencher o pressuposto que dita e justifica a tutela excecional conferida pelo legislador ao promitente-comprador.
SEM PRESCINDIR
56. Na análise que é efetuada à verificação dos pressupostos do direito de retenção ao caso concreto, o tribunal a quo tem em conta (e bem) o acórdão uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça que se refere ao promitente-comprador que seja consumidor.
57. Neste seguimento, chama a atenção para o facto de na situação concreta tratada por este aresto, e como resulta da leitura atenta da sua fundamentação, não houve factualidade provada especificamente a respeito do estatuto de consumidor.
58. Refere, contudo, que o objetivo essencial dessa restrição ao consumidor é somente o de excluir da proteção concedida pelo direito de retenção quem utiliza o imóvel para revenda no exercício da sua atividade profissional e não para uso próprio.
59. Prossegue o tribunal a quo por dizer que o que importa é decidir sobre o eventual reconhecimento do direito de retenção a quem, como o impugnante, não se provou que pretendesse o imóvel para uso próprio, mas também não se demostrou que fizesse da compra e venda de imóveis a sua atividade profissional.
60. Ora, acaba o tribunal a quo por concluir que o Impugnante é consumidor para efeitos de reconhecimento da especial proteção que o direito de retenção confere, pois que no acórdão uniformizador, tal como na situação em apreciação, não existe matéria factual específica sobre a qualidade de consumidor, valendo uma presunção natural, e não infirmada, de que, sendo pessoa singular, é consumidor.
61. Acrescenta ainda a sentença recorrida que, por outro lado, e decisivamente, porque a especial proteção que se pretendeu conceder com a atribuição do direito de retenção tem plena correspondência na situação do Impugnante.
62. Ora, face à prova junta aos autos e a produzida em sede de julgamento, não podemos discordar mais sobre a apreciação superficial que o tribunal a quo fez da figura do consumidor no caso concreto.
63. Ouvida a gravação da audiência, são várias as testemunhas que referem que o Impugnante é proprietário de um bloco de apartamentos ao lado do prédio em causa nos presentes autos, sendo que ele reside num dos apartamentos e os outros estão arrendados, de mencionar o depoimento do legal representante da insolvente, onde se refere ter conhecimento que o impugnante é proprietário de um bloco de apartamentos para arrendar, podendo a mencionada moradia ser para arrendar.
64. Conforme resulta dos documentos juntos pelo Impugnante com a sua impugnação e é referido na douta sentença (página 12, 1.º parágrafo), “tomou-se em consideração que o impugnante referiu, embora em documentos não assinados por si, mas pelos quais, face aos princípios que regem a advocacia, deve ser responsabilizado, em dois momentos processuais diversos e muito específicos, que a sua intenção era a de vender a fracção: na notificação avulsa para conclusão da obra (cfr. art. 6, a fls. 47) e no requerimento inicial da execução para prestação de facto (cfr. 4.ª parágrafo de fls. 52), não sendo curial, nem admissível, que alguém possa alterar as afirmações sobre a sua vontade, vertidas em procedimentos judiciais distintos e sucessivos, apenas ao sabor das suas conveniências.”
65. Não obstante o acima transcrito, optou o tribunal a quo por considerar como não provado o quesito n.º 20 da base instrutória (“O insolvente sempre quis a fracção apenas para a alienar?”)
66. Acresce que, na análise da verificação do estatuto de consumidor, embora o tribunal a quo admita que existem dúvidas sobre se o Impugnante merecerá esse estatuto, optou por reconhecê-lo porquanto se trata de pessoa singular e porque “só deve considerar-se excluído do conceito de consumidor quem adquire o bem no exercício da sua actividade profissional de comerciante de imóveis.”
67. Ignorou assim o tribunal a quo as provas e os sinais presentes nos autos, que apontam que o Impugnante, embora exerça atividade de carpinteiro em nome individual (aparentemente), a exerce com carácter altamente profissional, bastando para isso confrontar a carta que este dirigiu à Insolvente em 04 de Janeiro de 2008 (cfr. documento junto aos autos com a resposta apresentada pela Insolvente à impugnação), na qual tem logotipo próprio (“C1…”) e faz referência à atividade desenvolvida de construção civil e carpintaria.
68. Assim, salvo devido respeito, que é muito, o tribunal a quo, ignorou elementos de prova produzidos nos autos e fez uma apreciação genérica e sem correspondência com a doutrina e a jurisprudência, do estatuto do Impugnante enquanto consumidor.
69. Os diplomas legais que introduziram modificações em sede de reconhecimento do direito de retenção ao promitente-comprador - D.L. n.º 236/80 de 18 de julho e D.L. n.º 379/86, de 11 de Novembro - visavam tutelar o promitente-comprador que adquire, em inúmeros casos, para habitação própria permanente.
70. A opção legislativa (em 1980 e 1986) tem uma razão fundamental: proteger os particulares consumidores no mercado da habitação, proteger a estabilidade da habitação.
71. É imperioso trazer à colação o conceito de consumidor estabelecido no artigo 2.º da Lei 24/96, de 31 de julho (Lei de defesa do consumidor), segundo o qual “considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos qualquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.”
72. Nesta senda, entendemos que o Impugnante, que se dedica, há largos anos, à construção e arrendamento de imóveis, não se encaixa no conceito de consumidor, desde logo porque o imóvel em causa (e de acordo com o que resultou do depoimento de parte do próprio Impugnante), alegadamente, está concluído e tem sido arrendado pelo próprio a terceiros (de forma claramente ilegal).
73. O direito de retenção visa a tutela, de forma enérgica, não de qualquer promitente adquirente (na promessa sinalizada com tradição da coisa), mas daquele que seja consumidor. Os outros sujeitos não carecem dessa tutela, podendo negociar os mecanismos adequados à defesa da sua posição, o que dependerá tanto da sua clarividência e preparação técnica, como do seu peso negocial.
74. Esta norma deve ser, atenta a sua ratio, interpretada restritivamente de forma a acolher no seu manto de proteção só quem efetivamente dela precisa: o consumidor (cfr. L. Miguel Pestana de Vasconcelos, in Direito de retenção, contrato-promessa e insolvência, Direito Privado n.º 33, Janeiro/Março 2011, pág. 28).
75. A ratio da lei é a tutela, na promessa sinalizada com tradição da coisa, da posição do promitente-adquirente, na nossa perspectiva, só quando ele seja um consumidor (cfr. Ac. do STJ de 14.06.2011, Proc. n.º 6132/08.0TBBRG).
76. Como se refere no mencionado acórdão de uniformização de jurisprudência “A opção legislativa no conflito entre credores hipotecários e os particulares consumidores, concedendo-lhes o direito de retenção teve e continua a ter uma razão fundamental: a proteção destes últimos no mercado da habitação; na verdade constituem a parte mais débil que por via de regra investem no imóvel as suas poupanças e contraem uma dívida por vários anos, estando menos protegido do que o credor hipotecário (…)”
77. E continua o mui douto acordão “A tudo acresce que o direito de retenção é ainda, acima dos não registáveis, o mais transparente, já que tem, na generalidade dos casos, uma faceta visível em resultado da sua própria natureza; a do uso do objecto sobre que recai (na maioria imóveis para habitação) o que implica naturalmente, dada aquela compleição, a publicidade, que quase sempre funciona como aviso aos restantes credores em ordem a melhor poderem acautelar-se antes de optarem pela concessão de um crédito que comporta sempre certa álea de risco.”
78. O julgador a quo nenhuma referência faz à teleologia da lei centrada na proteção do consumidor, omitindo, na motivação da sentença, qualquer apreciação crítico valorativa.
79. A doutrina e jurisprudência têm convergido quanto à identificação do promitente-comprador a quem deve ser reconhecida a tutela especial conferida pelo artigo 755.º, n.º 1, al. f) do C.C.
80. Salvo melhor entendimento, não cabem na ratio dessa disposição legal promitentes compradores com o perfil do Impugnante, um promitente-comprador que se dedica à construção, ao arrendamento e venda de imóveis e que admitiu em duas peças processuais que o prejuízo que advinha da mora na celebração do contrato definitivo (de dação) correspondia à impossibilidade de vender a moradia em causa.
81. Com toda a certeza, o Impugnante não constitui a tal “parte mais fraca” ou “mais débil” que a norma visa tutelar.
82. O reconhecimento do direito de retenção a promitentes-compradores com as características/posição negocial do Impugnante conduz, certamente, à perversão da teleologia normativa, gerando situações de injustiça, não pretendidas pelo legislador e de grave e injustificável prejuízo dos credores hipotecários.
83. Entendem os Recorrentes que o digníssimo tribunal de primeira instância não fez, quanto ao segmento decisório de que se recorre, a melhor interpretação do direito aplicável, subsumindo a situação sub judice na proteção especial prevista no artigo 755.º, n.º 1, al. f) do Código Civil, ignorando, contudo, factos, resultantes da prova produzida, que determinavam, atenta a ratio deste normativo legal, o não reconhecimento do direito de retenção ao Impugnante.
Nestes termos, e nos demais de direito que Vs. Exas. Doutamente suprirão, deve ao presente recurso ser dado provimento e, assim, ser o segmento decisório recorrido revogado e substituído por outro em que se declare que o Impugnante não goza do direito de retenção sobre o imóvel da verba n.º 14 do auto de apreensão, identificado como fração A. Assim decidindo farão Vossas Excelências INTEIRA JUSTIÇA!”
O recorrido não ofereceu resposta ao recurso.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.
Foi, depois, recebido nesta Relação, considerando-se o mesmo devidamente admitido, no efeito legalmente previsto.
Cumpre decidir.

2- FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (cfr. art. 639º e nº 4 do art. 635º, ambos do CPC).
No caso, são as seguintes as questões a resolver:
1 – alteração da decisão sobre a matéria de facto quanto aos itens 13, 16, 17;
2 – não verificação do pressuposto do direito de retenção correspondente à tradição da fracção negociada;
3 - não reconhecimento do direito de retenção ao impugnante, por não destinar a fracção a uso pessoal, não podendo considerar-se um “consumidor” digno da específica tutela a esta classe conferida.
*
A solução das questões apontadas impõe a ponderação da decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto em discussão que, na parte relevante, se passa a transcrever. Dela se exclui, por falta de interesse, a respeitante à dinâmica do acidente, pois não se mostra controvertida a questão da imputação da respectiva responsabilidade.
1) Por decisão proferida a 12/3/2009, que pacificamente transitou em julgado, foi declarada a insolvência de B…, LDA. (A).
2) Com data de 4/2/2005, a insolvente e o impugnante outorgaram o que denominaram de contrato promessa de permuta, relativo a um lote de terreno para construção sito no lugar de …, freguesia de …, inscrito na matriz rústica sob o nº3182 e descrito na C. R. Predial de Sever do Vouga no nº2378, nos termos que constam da cópia junta a fls. 34/5 e cujo teor restante se dá por reproduzido (B).
3) Nesse contrato, para além do mais, a insolvente declarou prometer transferir para o impugnante (em troca da promessa de transferir o lote de terreno, da parte deste), através de permuta, o direito de propriedade de uma moradia autónoma, que integra o edifício em futura construção acima referido, identificada por “fracção A” (C).
4) Declararam igualmente, os outorgantes, que a referida moradia autónoma é avaliada, para efeito da permuta prometida, em € 100.000,00 (D).
5) Mais declararam que o fornecimento e aplicação de todas as carpintarias, móveis de cozinha e electrodomésticos referentes à dita fracção são da inteira responsabilidade do impugnante, tal como todos os documentos, projectos de arquitectura e especialidades, necessários para a emissão de todas as licenças (E).
6) Consignaram ainda que a escritura pública de permuta será outorgada no prazo máximo de 30 dias após a celebração do presente contrato promessa, devendo a insolvente indicar ao impugnante a data e hora para o efeito, por carta registada, com a antecedência mínima de cinco dias (F).
7) Bem assim, que a escritura pública de dação em pagamento da moradia autónoma será outorgada no prazo máximo de 60 dias após a emissão, pela Câmara Municipal de Sever do Vouga, da respectiva licença de ocupação, prevendo-se que a mesma se realize até 5/2/2008 (G).
8) No dia 15/2/2005, por escritura pública, foi celebrada permuta, entre insolvente e impugnante, nos termos da qual este declarou dar à primeira o prédio rústico referido em 2) e, em troca, a insolvente declarou dar ao segundo “um bem futuro, composto por uma moradia autónoma, identificada pela fracção A (…), à qual atribuem o valor de € 100.000,00”, como consta da certidão inclusa a fls. 37ss, cujo teor restante se dá por reproduzido (H).
9) Com data de 25/10/2005, foi inscrita no registo a constituição de hipoteca sobre o prédio rústico referido, a favor de D…, SA, inscrição que foi convertida em definitiva a 9/12/2005 (I).
10) O impugnante requereu, a 10/3/2008, a notificação avulsa da insolvente para que procedesse, em quinze dias, ao acabamento da obra e à entrega da documentação necessária no sentido de realizar a escritura definitiva de dação em pagamento, notificação, essa, realizada a 16/4/2008 (J).
11) O impugnante intentou, contra a insolvente, execução para prestação de facto, com o valor de € 108.920,00, invocando um prejuízo crescente, que quantificou no requerimento inicial em € 7.500,00, pelo atraso na conclusão e entrega daquela obra, execução que não chegou a ser apreciada, nos termos que constam do apenso A destes autos (K).
12) A insolvente requereu, a 30/4/2008, a notificação avulsa do impugnante para que, além do mais, concluísse a aplicação das madeiras e colocação dos armários e electrodomésticos na cozinha, nos termos que constam da cópia inclusa a fls. 105ss, notificação, essa, realizada a 9/5/2008 (L).
13) Em princípios de 2008, a insolvente abandonou a execução da construção da fracção designada pela letra A do referido empreendimento, que não concluiu (BI/1-5).
14) A insolvente obteve as licenças de habitabilidade das restantes fracções autónomas daquele empreendimento, através do alvará de utilização nº12/07 da Câmara Municipal de Sever de Vouga, não tendo pedido a mesma licença relativamente à fracção designada pela letra A (BI/2-3).
15) O impugnante solicitou à insolvente, mais que uma vez, entre Janeiro e Março de 2008, a conclusão da obra e a documentação necessária para obter a licença de habitabilidade daquela fracção (BI/4).
16) A insolvente não entregou ao impugnante os documentos que este solicitou (BI/6).
17) A insolvente entregou ao impugnante, em 2007, as chaves da referida fracção autónoma, designada pela letra A, mantendo outra cópia das mesmas para si (BI/7-14).
18) Desde o início de 2008, o impugnante passou a ser notificado para pagar o IMI respeitante à fracção, o que fez (BI/10).
19) Na sequência da inscrição da fracção nas finanças, por parte da insolvente, em nome do impugnante, foi atribuído àquela o valor patrimonial tributário de € 101.420,00 (BI/11).
20) Na sequência do que foi consignado no contrato promessa, o impugnante sempre reconheceu que seria da sua responsabilidade o fornecimento e aplicação das carpintarias, móveis de cozinha e electrodomésticos da fracção (BI/12).
21) Faltando à fracção, na data da entrega das chaves, para além desses trabalhos, a aplicação de tomadas, interruptores eléctricos e louças sanitárias (BI/13).
22) Na sequência dessa entrega, o impugnante passou a executar na fracção os acabamentos em falta (BI/9).
23) Após a entrega das chaves, a insolvente ainda se deslocou à fracção, para a execução de trabalhos de electricidade (BI/19).
24) A fracção não tem quadro de electricidade e contador de água próprios (BI/17).
*
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto, tal como pretendem os apelantes, exige a observância de um regime processual específico, descrito nos nºs 1 e 2 do art. 640º do CPC. No presente recurso, é evidente que os apelantes cumpriram tais preceitos, identificando concretamente os pontos da matéria de facto a reapreciar, qual o sentido da decisão pretendida e quais os meios de prova a valorar diferentemente, para que se conclua por tal resultado.
Nada obsta, por isso, a que se aprecie essa parte inicial do seu recurso.
Neste âmbito, a primeira questão a resolver refere-se à factualidade constante do item 13 da sentença, com o seguinte teor: “Em princípios de 2008, a insolvente abandonou a execução da construção da fracção designada pela letra A do referido empreendimento, que não concluiu”. Referem os apelantes que, contrariamente ao ajuizado pelo tribunal recorrido, não se pode sustentar tal afirmação no depoimento de parte do legal representante da insolvente, pois que o que ele afirmou é que a insolvente não concluiu os seus trabalhos porque o próprio impugnante, que deveria fazer os trabalhos de carpintaria, os não fez, prejudicando a realização daqueles outros, necessariamente ulteriores. Assim, dever-se-ia dar por provado, apenas, que a obra não foi concluída.
Ouvido tal depoimento, constata-se que o representante legal da insolvente explicou que só poderia fazer os acabamentos na fracção quando o próprio impugnante C… fizesse os seus trabalhos de carpintaria, designadamente móveis de cozinha. Sem isso, não só não poderia acabar os seus trabalhos, como nem poderia pedir a licença de habitabilidade, pois a vistoria da Câmara jamais o autorizaria.
E também admitiu que o impugnante lhe dirigiu cartas a exigir a conclusão da obra. Mas, sucessivamente, afirmou desconhecer se o referido C… terminou ou não os seus próprios trabalhos antes de lhe enviar as referidas cartas. Admitiu que, inicialmente, acabou as outras moradias e não a do impugnante C…, pois faltava que este terminasse os seus próprios trabalhos. Mas depois, até por não conseguir situar bem as coisas no tempo, admitiu que já não conseguiu acabar os trabalhos na referida fracção por a empresa não ter dinheiro, não sabendo se entretanto o C… tinha ou não acabado os tais trabalhos de carpintaria.
Compaginando esse depoimento com os documentos de fls. 101 (notificação judicial avulsa) e 104, não parece poder imputar-se, pelo menos numa fase mais adiantada, a não conclusão dos trabalhos pela insolvente à pré-existência de uma omissão do próprio Madail – como depois a B… fez constar da notificação judicial avulsa que lhe dirigiu em 2/5/2008 (fls. 105). Por outro lado, o depoente admitiu também que chegou a acordar verbalmente como o C… que acabaria a outras 4 fracções, as venderia e com o dinheiro assim conseguido obteria o distrate da hipoteca da fracção A, que lhe era destinada. Mas isso gorou-se com a insolvência. Desta justificação, que o C… em qualquer caso negou, se retira, pois, que a não conclusão das obras se deveu à incapacidade da B…, tendo a alegação da falta de conclusão de trabalhos pelo próprio C… constituído um mero ensaio de justificação para o não cumprimento do contrato, ainda antes da insolvência, mas quando as condições da insolvente já não permitiriam concluir a obra, obter a licença e transferir a respectiva propriedade para o impugnante.
Por outro lado, prestando depoimento, o referido Madail afirmou que as condições da sua fracção já habilitavam ao pedido de licenciamento, pois as obras feitas ao nível de carpintaria eram suficientes, mesmo quanto a mobiliário de cozinha. De resto, as outras fracções também não estavam totalmente acabadas e a B… pediu licenças de habitabilidade para elas, não pedindo para a “sua”. Não foi, pois, por causa de quaisquer trabalhos seus que a B… deixou de terminar quaisquer outros trabalhos e, mais do que isso, de pedir a licença de habitabilidade. E tudo explicou de forma sincera e convincente.
Pelo exposto, entendemos inexistir fundamento para a alteração da decisão da matéria de facto nesta parte.

Por outro lado, o que acaba de referir-se responde igualmente à apelação, quanto à pretensão de alteração do teor do item 16. Pretendia a apelante que aí se explicasse que a insolvente não entregou ao impugnante Madail os documentos por este solicitados, que eram os necessários à celebração da escritura de transmissão da propriedade da fracção, “uma vez que a emissão dos mesmos estava dependente da conclusão da construção, o que não se verificava por culpa exclusiva do Impugnante.” Assim se responderia positivamente ao item 15 da base instrutória.
Do que antes se expôs já resulta que esta versão, além de ser conclusiva, não é a que resulta da compaginação dos referidos meios de prova. As declarações do impugnante, sinceras e convincentes, esclareceram, por exemplo, que a não requisição da licença de habitabilidade para a fracção que lhe era destinada foi uma perfeita escolha da B…, já que as demais fracções não estavam mais prontas que a “A”, tendo sido requeridas as licenças com base em termo de responsabilidade do engenheiro da obra.
Pelo exposto, também quanto a esta matéria, entendemos inexistir fundamento para a alteração da decisão da matéria de facto nesta parte.

Para além disso, insurgem-se os apelantes quanto à decisão de comprovação da matéria constante do item 17, referente à entrega das chaves da fracção “A” a C…, pretendendo que se dê igualmente por provado que tal entrega teve exclusivamente por fim permitir-lhe aceder à fracção para realizar os trabalhos de carpintaria que lhe incumbiam.
Ouvidos os depoimentos de ambos – impugnante e representante da insolvente – a conclusão que se extrai é a de que, no próprio momento da entrega das chaves, esse acto visou facultar ao primeiro o acesso à fracção, para que ali executasse as obras a seu cargo, designadamente de carpintaria. Todavia, o que o devir revelou é que a situação se prolongou de tal forma que redundou na incapacidade de a insolvente terminar os trabalhos a seu cargo, e deixando que a situação se prolongasse com as chaves entregues ao C… e em circunstâncias por via das quais este passou a desenvolver um efectivo e exclusivo domínio sobre a fracção. Por outro lado, em coerência com isso, tal como consta dos itens 18 e 19, foi a própria insolvente que desenvolveu a iniciativa de fazer inscrever a propriedade da fracção em nome do impugnante, nas Finanças, o que levou a que passasse a ser ele a pagar o correspondente IMI.
Neste contexto, a alteração do teor do facto descrito sob o item 17 no sentido pretendido pelos apelantes seria restritiva em relação à globalidade da situação, que não se reduz ao puro momento da entrega das chaves.
Por conseguinte, afigura-se-nos ser adequada a enunciação do facto constante do item 17 realizada na sentença, pelo que também nessa parte se conclui pela confirmação do decidido, na improcedência dos argumentos dos apelantes.
*
Fixada que está a matéria de facto que constituirá o substrato material da decisão, cumpre tratar as restantes questões suscitadas pelos apelantes.
A primeira traduz-se na falência dos pressupostos do direito de retenção reconhecido a C…, por não se dever admitir que ocorreu, da B… para si, a tradição da fracção em questão.
Tal questão assume relevo em face do disposto na al. f) do nº 1 do art. 755º do C. Civil, que confere direito de retenção ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos temos do artigo 442.º
A tradição da coisa prometida é, assim, requisito essencial do reconhecimento de um tal direito de retenção.
Sobre a questão, alegam os apelantes que se apurou que a entrega das chaves do imóvel ao referido C… se destinou exclusivamente a que ele ali executasse trabalhos que, nos termos do contrato entre ambos celebrado, lhe competiam. A tradição ocorreria depois, quando obtida a licença de habitabilidade, fosse feita a seu favor a escritura de transmissão da propriedade, por dação em pagamento.
Cabe, pois, perante o acervo factual que resultou provado, indagar se pode ter-se por entregue a fracção em questão ao impugnante C….
No entanto, tal questão foi já parcialmente analisada, a propósito da discussão da hipótese de alteração da decisão sobre o facto descrito no item 17 da sentença.
Com efeito, poderia parecer que num momento inicial a entrega das chaves da fracção “A” ao referido C… representava apenas a disponibilização de acesso á fracção para execução de trabalhos. Mas a situação alterou-se claramente, não apenas com o alheamento da insolvente em relação ao destino da fracção, que deu por entregue e onde jamais tratou de concluir os trabalhos em falta (sem prejuízo da execução de alguns trabalhos de electricidade, que não incluíram sequer a aplicação do necessário quadro eléctrico) ou para reivindicar a restituição das chaves, mas sobretudo com a participação às Finanças da sua entrega ao impugnante, em termos que determinaram que fosse este a pagar, a partir de início de 2008, o correspondente IMI. Com este acto, se pode identificar uma efectivada vontade de desresponsabilização pelo ulterior destino e custos inerentes à ocupação da referida fracção. De resto, a própria requisição de licenças de utilização para as demais fracções com excepção da que havia sido destinada ao impugnante só contribui para aprofundar ainda mais essa abstenção da insolvente em continuar a actuar sobre a fracção “A” como se esta ainda estivesse sob o seu domínio. Em coerência com isso, só pode concluir-se por uma efectiva tradição da mesma, da insolvente para o impugnante, em momento bem anterior ao da declaração de insolvência.
É certo que uma tal tradição do bem não compreende, desde logo em face dos factos provados, os caracteres (material e intelectual ou volitivo) da posse, tal como definidos no art. 1251º do C. Civil. Porém, o preenchimento do conceito de tradição, usado no art. 755º, nº 1, al. f) do C. Civil, não exige que o promitente adquirente adquira uma tal posse sobre o bem negociado; apenas exige a sua detenção material lícita, aliás como bem salientou a decisão recorrida (neste sentido, cfr. Ac. do TRC de 15/1/2013 (proc. nº 511/10.0TBSEI-E.C1, em dgsi.pt).
No caso em apreço, perante os factos apurados e nos termos antes discutidos, só podemos concluir pela identificação de uma efectiva tradição da fracção prometida: as chaves foram entregues ao promitente adquirente, aqui impugnante; este passou a executar ali as obras que contratualmente lhe competiam; a insolvente alheou-se do ulterior destino da fracção, não mais a exigindo quer para concluir os trabalhos em falta, quer para sobre ela afirmar qualquer direito; e ainda foi participar às Finanças que pelos respectivos encargos fiscais não seria ela própria a responsável, mas sim e já a partir de 1998, isto é antes da insolvência, aquele a quem a destinara. Tudo isto traduz um efectivo domínio material de C… sobre a fracção em causa, que revela a prévia tradição da mesma para si.
Também quanto a esta questão improcederá, pois, a presente apelação, cabendo confirmar a decisão recorrida.
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Por fim, a questão a resolver prende-se com a hipótese de não reconhecimento do direito de retenção ao impugnante, por este não destinar a fracção a uso pessoal, não podendo considerar-se um “consumidor” digno da específica tutela a esta classe conferida
A este respeito, importa afirmar antes de mais que nenhum efeito se reconhece à referência dos apelantes (conclusões 64º e 65º do recurso) a uma incompreensão quanto ao juízo negativo proferido sob o quesito 20º da base instrutória, que resultou em dar-se por não provado que o impugnante sempre quis a fracção em causa para a vender. Com efeito, não foi impugnada a decisão sobre a matéria de facto quanto a tal factualidade, pelo que nada se deve acrescentar a esse respeito, não se devendo considerar esse facto na discussão. Tal como, aliás, se não poderá considerar a afirmação constante da conclusão 72ª, segundo a qual o impugnante C… não poderá ter-se por consumidor por se dedicar há largos anos à construção e arrendamento de imóveis. Tal matéria não consta dos factos provados.
Em qualquer caso, a questão prende-se com a subsunção do caso à solução definida pelo Ac. de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014, de 30/3/2014, que dispôs da forma seguinte: “No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil.”
Todavia, esclareceu-se ulteriormente em sucessivas decisões que tal solução jurisprudencial deve ser alvo de uma aplicação restritiva, fundada no escopo da solução legal em questão, nos termos da qual, para que se reconheça o direito de retenção do promitente-comprador, se tem de exigir que este, além de ter obtido a tradição do imóvel negociado, revista a qualidade de consumidor prevista no n.º 1 do art. 2.º da Lei n.º 24/96, de 31-07. É esse, por exemplo, o caso do Ac. do STJ de 14/10/2014, proferido no processo nº 986/12.2TBFAF-G.G1.S1, onde se afirmou competir ao credor reclamante (promitente-comprador) a alegação e prova da qualidade de consumidor, por aplicação da regra geral do art. 342º, nº 1 do C. Civil (no mesmo sentido, entre outros, cfr. o Ac. do STJ de 25/1/2014, proc. nº 7617/11.6TBBRG-C.G1.S1, em dgsi.pt).
Acresce que, a nosso ver, a asserção constante do Ac. do STJ de 29/5/2014 citado na decisão recorrida, nos termos da qual «do conceito de “consumidor” inserto no texto da uniformização só está excluído aquele que adquire o bem no exercício da sua actividade profissional de comerciante de imóveis» deve ser entendida no contexto da própria decisão, onde se discutia o reconhecimento da qualidade de consumidor a um promitente-comprador de uma fracção onde instalara um estabelecimento comercial de um qualquer ramo que não o imobiliário. Não pomos em causa a solução ali decretada, segundo a qual esse promitente-comprador era, quanto àquela fracção, um consumidor, pois que ela própria não era objecto da sua actividade comercial. Só que essa solução nos parece indiferente para o caso em apreço, onde uma tal qualidade de consumidor se não identificou para C…, como infra se verificará.
Entendemos, então, que o conceito de consumidor utilizado na jurisprudência em questão não pode deixar de ser o conceito legal de consumidor, estabelecido no nº 1 do art. 2º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho (Lei de Defesa do Consumidor), nos termos da qual se considera “consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.” Mal se compreenderia, aliás, que na definição de uma solução de uniformização de jurisprudência fosse utilizado um conceito com uma expressa definição legal, sem que fosse esse o conteúdo pressuposto para tal conceito.
Assim, tal como consta do Ac. do STJ de 14/10/2014 supra citado e se deixou antever no Acórdão de Uniformização nº 4/2014, para beneficiar do direito de retenção, o promitente-comprador - in casu o impugnante C… - está onerado com a alegação e demonstração da sua qualidade de consumidor, para o que deveria ter alegado e demonstrado que a fracção em questão não se destinava a qualquer aproveitamento comercial, mas sim ao seu uso ou da sua família.
No caso dos autos, porém, é a própria sentença que admite nada ter sido apurado a esse propósito. E não se pode defender que haveria de ser qualquer outra parte a demonstrar o contrário, isto é, o fim comercial a que era destinada a habitação. Com efeito, a qualidade de consumidor assume, neste regime jurídico, a natureza de facto constitutivo do direito de retenção, estando sujeito à regra do nº 1 do art. 342º, do C. Civil, como referido no Ac. citado, de 14/10/2014.
Assim, no caso sub judice, é forçoso concluir que o impugnante C… não logrou demonstrar a sua qualidade de típico “consumidor”, conforme lhe era imposto pelo regime resultante do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014 e do âmbito de aplicação aí conferido ao art. 755º, nº 1, al. f) do Código Civil, para que pudesse beneficiar, no presente processo de insolvência, em face do disposto nos arts. 106º, nº 2 e 104º, nº 5 do CIRE, do direito de retenção ali previsto.
A conclusão que acaba de se enunciar implica que se não possa reconhecer, em face do citado regime legal, o direito de retenção de C… sobre a fracção que lhe foi entregue, para garantia do crédito que lhe foi reconhecido sobre a insolvente, em razão do incumprimento, por esta, do contrato-promessa consigo celebrado. Recorde-se que a sentença recorrida fixou esse crédito no valor de €100.000,00, acrescido de juros de mora, vencidos desde o início de Maio de 2008 até ao final do prazo para a reclamação de créditos, em termos que não foram impugnados.
Por fim, a esse respeito, cumpre rejeitar o entendimento mencionado marginalmente pelo tribunal a quo segundo o qual, independentemente da qualidade de consumidor, ao impugnante ainda se deveria reconhecer o direito de retenção, segundo ali se referiu, “à luz da ratio das normas legais em apreciação e da citada jurisprudência, incluindo a do Ac. nº4/2014, (…), a quem, como o impugnante, independentemente de ser ou não consumidor, celebrou contrato promessa de aquisição de bem imóvel, cumprindo integralmente a sua prestação, em data anterior à da constituição da hipoteca que com essa retenção concorre na verificação e graduação dos correspondentes créditos.
Com efeito, na ausência da qualidade de consumidor verifica-se a impossibilidade de aplicação da solução afirmada pelo citado Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, afastando-se, então, a actuação do regime do art. 755º, nº 1, al. f) do CIRE, como se explica naquele aresto, em termos que aqui será dispensável repetir. A solução será, então a definida no art. 106º, nº 2, 104º, nº 5 e 102º, nº 3, conferindo-se ao promitente-comprador, em função da prestação que realizara, um crédito sobre a insolvência, mas já não assistido pelo privilégio de um direito de retenção sobre a coisa que era objecto mediato do contrato promessa de onde emerge o crédito.
A apelação haverá, pois, de proceder nestes termos, recusando-se o reconhecimento de um direito de retenção sobre a fracção em causa, como privilégio do crédito de 100.000,00 e juros que lhe foi reconhecido.
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A solução que acaba de se enunciar terá ainda uma consequência no segmento da sentença que operou a graduação de créditos, designadamente no respeitante ao crédito de C… que, relativamente ao imóvel em questão, designado por fracção “A”, foi graduado em primeiro lugar, com precedência sobre o crédito dos apelantes.
O não reconhecimento do direito de retenção sobre essa fracção, para garantia da satisfação do crédito de C…, tem por efeito a respectiva desqualificação, passando esse crédito a ser graduado juntamente com os dos demais credores reconhecidos, em posição de igualdade e quanto a todos os bens da massa insolvente. Relativamente a tal fracção, o crédito hipotecário dos apelantes resulta graduado em primeiro lugar, com precedência sobre os restantes credores reconhecidos em posição de igualdade.
*
Procederá, nestes termos, a presente apelação, com a revogação da decisão recorrida no que respeita ao reconhecimento do direito de retenção a favor de C…, para garantia do crédito que lhe foi reconhecido, bem como no que respeita à respectiva graduação com precedência sobre o crédito hipotecário dos apelantes, no respeitante á fracção “A”, supra identificada.
No mais, que não era objecto do recurso, se mantem inalterada a decisão recorrida.

Sumariando:
1 - A solução decretada pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014 deve ser alvo de uma aplicação restritiva, nos termos da qual o direito de retenção do promitente-comprador, nos termos da al. f) do nº 1 do art. 755º do C. Civil, em caso de insolvência do promitente-vendedor, depende, além da tradição do imóvel negociado, da sua qualidade de consumidor.
2 – Por ser facto constitutivo do seu direito, é ao promitente-comprador que cabe a alegação e prova dessa qualidade de consumidor, a aferir em face do n.º 1 do art. 2.º da Lei n.º 24/96, de 31-07.

3 - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar procedente o recurso, em face do que revogam a decisão recorrida na parte em que deu por reconhecido ao impugnante C… um direito de retenção sobre a fracção “A” melhor identificada supra, para garantia do crédito de €100.000,00 e juros, que lhe foi reconhecido sobre a insolvente. Em consequência, revogam ainda a decisão recorrida na parte em que graduou tal crédito com precedência sobre o crédito hipotecário dos apelantes, para ser pago pelo produto da fracção em causa. Tal crédito fica graduado em posição de igualdade com os dos restantes credores reconhecidos, relativamente a todos os bens da massa insolvente.
Custas pelo apelado.
Registe e notifique.

Porto, 25/10/2016
Rui Moreira
Fernando Samões
Vieira e Cunha