Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3052/05.3TBVLG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: FACTOS INSTRUMENTAIS
CONSIDERAÇÃO EM SEDE DE RECURSO
DOCUMENTO PARTICULAR
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
ADMISSIBILIDADE DA PROVA TESTEMUNHAL
Nº do Documento: RP201509293052/05.3TBVLG-A.P1
Data do Acordão: 09/29/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Pode lançar-se mão, mesmo em recurso, dos factos instrumentais, alegados no processo e resultantes da discussão da causa, nos termos do artº 5º nº2 al.a) CPCiv, mais a mais se constam do pedido formulado em recurso, tal como aliás já resultava, neste caso, do direito de pregresso – artº 264º nº3 CPCiv95/96.
II – A força probatória plena decorrente da confissão em documento extrajudicial não inibe a prova por testemunhas quer retirada do contexto do documento rectius a prova das circunstâncias em que a declaração foi produzida (artº 393º nº3 CCiv), quer quando acompanhada de circunstâncias que tornem verosímil a convenção contrária ao documento – v.g., um princípio de prova escrita, como o é um cheque passado a terceiro, que não, em contrato de crédito ao consumo, ao mutuante ou ao fornecedor do bem.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ● Rec. 3052/05.3TBVLG-A.P1. Relator – Vieira e Cunha. Adjuntos – Des. Maria Eiró e Des. João Proença Costa. Decisão de 1ª instância – 23/9/2014.

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Súmula do Processo
Recurso de apelação interposto na acção com processo especial de oposição à execução comum nº3052/05.3TBVLG-A, da 1ª Secção de Execução da Comarca do Porto (Instância Central).
Oponentes/Executados – B… e esposa C….
Exequente –D…, S.A.

Tese do Oponente
O contrato definitivo de concessão de crédito, que ligava os Oponentes ao Exequente, nunca chegou a ser celebrado. Por tal motivo igualmente não chegou a ser transferido para os Oponentes qualquer quantia, designadamente a aposta na livrança.
Tese do Exequente
Os Oponentes celebraram com a Exequente um contrato de financiamento para a aquisição de bens de consumo duradouros (um veículo automóvel, que foi entregue aos Oponentes).
A quantia mutuada foi entregue directamente à entidade vendedora do veículo.
Para garantia das obrigações com origem nesse contrato, os Oponentes entregaram ao Exequente a livrança título executivo, destinada a ser preenchida conforme a “convenção de preenchimento da livrança”.
Sentença
A Mmª Juiz “a quo” julgou a oposição à execução improcedente, absolvendo o Exequente do pedido.

Conclusões do Recurso:
1 – Com base na prova documental e testemunhal produzida nos autos, o tribunal a quo nunca poderia ter dado como provados os factos dos quesitos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º e 12º da base instrutória.
2 – Outrossim, deveria ter dado como provado que os opoentes nunca receberam do opoído a quantia supostamente financiada nem o veículo automóvel objecto do alegado financiamento.
3 – Em consequência deveria ter sido julgado como inexistente o negócio e obrigação subjacentes ao título executivo e, como tal, procedente e provada a respetiva causa impeditiva da obrigação exequenda.
4 – Mesmo que assim se não entendesse, o contrato sempre estaria ferido de nulidade, que torna inexequíveis o título e a obrigação exequenda.
5 – Ao decidir conforme decidiu, a douta sentença recorrida incorreu em erro notório na apreciação da matéria de facto e violou, por erro de interpretação, nomeadamente o disposto nos arts. 3º, 6º e 7º do DL 395/91 de 21 Set.

Por contra-alegações, a Exequente sustenta o bem fundado da douta sentença recorrida; para além do mais invoca que os Oponentes litigam em abuso de direito.

Factos Apurados
A - Nos autos de execução comum, a que os presentes se encontram apensos, o exequente D1…, S.A. deu à execução uma livrança, no valor de 32.591.302$00 (equivalente a € 162.564,73), com data de emissão de 29 de dezembro de 2000 e com vencimento em 7 de julho de 2003, na qual figuram como subscritores os ora opoentes.
B - Essa livrança, apresentada a pagamento, não foi paga.
C - Por documento escrito denominado "Contrato de financiamento para aquisição de bens de consumo duradouros" com o n.º ….., datado de 29/12/2000, o exequente declarou emprestar aos opoentes, que declararam aceitar, o montante de 26.000.000$00 (equivalente a € 129.687,45) para aquisição de um veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca Mercedes, à E…, Lda.
D - Obrigando-se os opoentes a pagar ao exequente essa quantia acrescida dos encargos administrativos e fiscais e dos juros à taxa anual efetiva e contratada de 13,66%, numa primeira prestação no valor de € 3.665,34, e o restante em 72 prestações, mensais, iguais e sucessivas, de € 2.883,79 cada.
E - Para garantir o cumprimento dessas obrigações, os opoentes entregaram ao exequente uma livrança caução, assinada pelos opoentes, destinada a ser preenchida, quanto à data, local de pagamento e valor correspondente ao saldo em dívida, de capital, juros, demais encargos e despesas de contrato, em caso de não cumprimento do contrato de financiamento referido em c).
F - Conforme acordado entre opoentes e exequente, e constante do documento escrito denominado "convenção de preenchimento da livrança", assinado pelos opoentes e que faz parte integral daquele contrato de financiamento.
G – (facto não provado, consoante fundamentação infra).
H – (facto não provado, consoante fundamentação infra).
I - (facto não provado, consoante fundamentação infra).
J - Os opoentes não pagaram as prestações referidas em d), razão pela qual o exequente pôs fim ao contrato referido em c) e procedeu ao preenchimento da livrança de acordo com o mencionado em e) e f), aí fazendo constar o valor do capital em dívida, respetivos juros remuneratórios e moratórios e demais encargos administrativos e fiscais, bem como o respetivo local e data de vencimento.
Os opoentes nunca receberam do opoído a quantia supostamente financiada, nem o veículo automóvel objecto do alegado financiamento (facto acrescentado nesta instância, consoante fundamentação infra).

Fundamentos
A pretensão da Apelante ancora-se no questionar do bem fundado da decisão impugnada, nos seguintes aspectos:
- saber se, com base na prova documental e testemunhal produzida nos autos, o tribunal a quo não poderia ter dado como provados os factos provados sob as als. C) a H) e se mais deveria ter sido dado como provado que os opoentes nunca receberam do opoído a quantia supostamente financiada nem o veículo automóvel objecto do alegado financiamento;
- e, mesmo que assim se não entendesse, o contrato sempre estaria ferido de nulidade, que torna inexequível o título.
Vejamos pois.
I
Sindiquemos, em primeiro lugar, os factos provados sob as als. C) a H), para o que ouvimos na íntegra o suporte áudio relativo ao julgamento realizado.
Ora, a materialidade constante do documento e expressa no facto C, que ninguém colocou em causa, não pode deixar de se ter por provado, e, consequentemente, confirmar-se, relativamente à decisão do tribunal a quo.
Também a factualidade sob D – “obrigando-se os opoentes a pagar ao exequente essa quantia acrescida dos encargos administrativos e fiscais e dos juros à taxa anual efectiva e contratada de 13,66%, numa primeira prestação no valor de € 3.665,34, e o restante em 72 prestações, mensais, iguais e sucessivas, de € 2.883,79 cada” – resulta da materialidade do documento, pelo que nada obsta à prova de um facto, posto que a materialidade do documento não foi questionada.
No facto E consignou-se, na continuação de D: “para garantir o cumprimento dessas obrigações, os opoentes entregaram ao exequente uma livrança caução, assinada pelos opoentes, destinada a ser preenchida, quanto à data, local de pagamento e valor correspondente ao saldo em dívida, de capital, juros, demais encargos e despesas de contrato, em caso de não cumprimento do contrato de financiamento referido em c)”.
É, de facto, o que consta do contrato escrito e da declaração subscrita pelos Oponentes, com excepção da conclusão “em caso de não cumprimento do contrato de financiamento referido em C)”, conclusão que, porém, o declaratário médio sempre poderia tirar da expressão (essa sim constante do escrito) – “podendo o D1… fazer de tais títulos o uso que entender, na defesa do seu crédito”.
Confirma-se pois a resposta dada em E) e F).
Mas já os factos sob G) e H) terão de ser encarados de forma diferente (“na data da outorga desse contrato, os opoentes declararam ter recebido o veículo automóvel em condições de cumprir o fim a que se destina” e “o exequente apenas disponibilizou a referida quantia, porque os opoentes declararam ter recebido o veículo).
Sob essa declaração resta o depoimento de Fabiana Barbosa (bancária e funcionária do Autor) no sentido de que terá feito um contacto telefónico com os ora Oponentes, no sentido de averiguar se receberam o bem.
Ora, este simples atestar de um facto ocorrido há mais de dez anos, facto fugaz, verbalmente prestado, sendo certo que a depoente trataria de outras concessões de crédito, não nos garante, com a certeza necessária às realidades práticas da vida, que a declaração dos ora Oponentes foi efectivamente emitida.
Daí que não haja qualquer garantia segura, para lá de um mero depoimento testemunhal quase só meramente impressivo, de que a quantia em causa foi disponibilizada “apenas porque existiu a garantia de recebimento de um veículo”, do qual só se conhecia… a marca e o preço (26 milhões de escudos).
Os factos G) e H) terão assim que ser considerados “não provados”, e, como tal, inconsiderados para o acervo da prova.
Do mesmo passo, não pode subsistir o facto provado em I), pois não se pode “saber”, “conhecer”, factos que não se provam ter acontecido.
Por fim, questiona-se se não deveria ter sido dado como provado que “os opoentes nunca receberam do opoído a quantia supostamente financiada nem o veículo automóvel objecto do alegado financiamento”.
Trata-se de matéria alegada no processo (cf. artºs 8ºss. do douto petitório) e que resulta efectivamente provada da discussão da causa.
Por um lado, a quantia invocadamente mutuada foi entregue a F…, que no contrato de financiamento figura como “avalista”.
Nenhuma prova aduziu o Exequente no sentido de ter entregue a quantia invocadamente mutuada, fosse ao mutuante (e não foi efectivamente entregue, como resulta do cheque de fls. 175 dos autos), fosse ao fornecedor do bem, posto que é o próprio gerente de E…, o invocado fornecedor, quem, ouvido em juízo, afirmou, peremptório, “eu nunca fiz esta operação”, “nunca fiz nenhuma operação com o Sr. B…”, “não houve levantamento da viatura na E…”.
Dir-se-á que esta testemunha, G…, possui, como possui na realidade, um contencioso com o ex-D…, todavia o seu depoimento é coerente com os restantes indícios probatórios – é difícil conceber como uma entidade dadora de crédito ao consumo o faz sem identificar minimamente o bem objecto do crédito que prestaria.
As testemunhas do Autor referenciaram que se tratava de uma viatura nova, sem matrícula – mas como justificar que se pague uma viatura nova que não tem matrícula, isto é, que, para todos os efeitos, não foi ainda fornecida, nem se sabe se existe? E como justificar que não exista um registo no Autor de onde se retire, hoje por hoje, a identificação do bem objecto do contrato?
Todo este conjunto de provas, e a interpretação que delas fazemos nesta instância, nos conduzem à efectiva prova do facto alegado e abundantemente discutido em audiência, isto é, de que “os opoentes nunca receberam do opoído a quantia supostamente financiada nem o veículo automóvel objecto do alegado financiamento”.
Trata-se hoje em dia de factos instrumentais, resultantes da discussão da causa, e dos quais podemos lançar mão, nesta instância – artº 5º nº2 al.a) CPCiv, mais a mais constando do pedido formulado em recurso, tal como já resultava do direito de pregresso – artº 264º nº3 CPCiv95/96.
Do aditamento aos factos se deu já nota, no elenco supra, relativo aos provados.
II
Temos portanto perante nós, de um lado, uma declaração escrita dos Oponentes, relativa ao recebimento de determinada quantia e o compromisso de a devolver de forma remunerada – todavia, de outro lado, temos a prova de que tal quantia, ou o produto da mesma, pelo menos enquanto traduzido no contrato (bem de consumo) não foi efectivamente entregue aos Oponentes.
Trata-se assim, no contexto das afirmações efectuadas no documento de “crédito ao consumo”, de uma confissão, na acepção do disposto no artº 352º CCiv, isto é, “o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e que favorece a parte contrária”, e confissão extrajudicial – artº 358º nº2 CCiv.
A confissão extrajudicial possui força probatória material, tal como definido no artº 358º nº2 CCiv – “a confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena”.
Trata-se de uma força probatória plena, a qual, porém, pode ser contrariada, conforme dispõe o artº 347º CCiv.
Este contrariar da força probatória plena não implica, em princípio, o uso da prova testemunhal, como decorre do disposto nos artºs 393º nº2 e 394º CCiv – “não é admitida a prova por testemunhas quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por qualquer outro meio com força probatória plena”; “é inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artºs 373º a 379º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento, ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores”.
Esta proibição tem sido, ao menos maioritariamente, interpretada com restrições pelos tribunais, na esteira do estudo do Prof. Vaz Serra, Bol.112/191ss. ou na Revista Decana, 101/270ss, 103/13ss. ou 107/311ss.
Não há dúvida de que as normas citadas, proibindo a prova testemunhal, têm na base a desconfiança em relação a esta prova, consubstanciada em brocardos conhecidos – lettres passent témoins, verba volant scripta manent.
Mas as restrições do citado e consagrado Autor a uma interpretação lata ou meramente declarativa do preceito, passam por dois tipos de observações:
- a primeira, a de que a prova da declaração não inibe a prova do contexto do documento rectius a prova das circunstâncias em que a declaração foi produzida (artº 393º nº3 CCiv);
- a segunda, na esteira das leis francesa e italiana, ordenamentos onde se admite a prova testemunhal, desde que acompanhada de circunstâncias que tornem verosímil a convenção contrária ao documento – poderá ser um princípio de prova escrita, poderá ser ainda que se prove ter sido impossível moral ou materialmente, ao contraente, obter uma prova escrita, ou pode ser que se tenha perdido, sem culpa do contraente, o documento que fornecia a prova (louvamo-nos no voto de vencido do Consº Nascimento Costa no Ac.S.T.J. 3/6/99 Col.II/138 e 139; todavia, a doutrina é maioritária, no sentido apontado, na jurisprudência do nosso mais alto tribunal – veja-se, por todos, S.T.J. 23/2/2010 Col.I/71, relatado pelo Consº Alves Velho, ou S.T.J. 7/2/08 Col.I/77, relatado pelo Consº Santos Bernardino; deste Tribunal da Relação, veja-se, por todos, Ac.R.P. 26/11/07 Col.V/184 e 185, relatado pelo Desemb. Caimoto Jácome).
O citado Ac.S.T.J. 7/2/08, citando o Prof. Vaz Serra, Revista Decana cit., escreveu: “Efectivamente, se as circunstâncias do caso concreto tornam verosímil a convenção, a prova testemunhal desta não tem já os mesmos perigos que a regra dos artºs 394º e 395º se destina a conjurar, dado que o tribunal se não apoiará, para considerar provada a convenção, apenas nos depoimentos das testemunhas, mas também nas circunstâncias objectivas que tornam verosímil a convenção; nesta hipótese, a convicção do tribunal está já parcialmente formada com base nessas circunstâncias e a prova testemunhal limita-se a completar essa convicção, ou antes, a esclarecer o significado de tais circunstâncias”.
Tudo isto para concluir que, com base na prova escrita consistente no próprio fac-simile do cheque que materializou a entrega da quantia que se tinha em vista mutuar, se concluiu que os Oponentes não chegaram sequer a receber, nem a quantia mutuada, nem o bem objecto do contrato, como bem de consumo.
Tanto basta para afirmar os subscritores da livrança logram demonstrar a inexistência do direito do Exequente, nas relações imediatas, por via de o Exequente não ter chegado a materializar a prestação declarada no contrato, em benefício dos Oponentes – artºs 17º e 77º LULL.
Por todo este conjunto factual, e obviamente, a oposição à execução deveria ter procedido, sendo certo que não se demonstraram (ou até se discutiram) factos que conduzissem a qualquer convencimento em matéria de abuso de direito.

Resumindo a fundamentação:
I – Pode lançar-se mão, mesmo em recurso, dos factos instrumentais, alegados no processo e resultantes da discussão da causa, nos termos do artº 5º nº2 al.a) CPCiv, mais a mais se constam do pedido formulado em recurso, tal como aliás já resultava, neste caso, do direito de pregresso – artº 264º nº3 CPCiv95/96.
II – A força probatória plena decorrente da confissão em documento extrajudicial não inibe a prova por testemunhas quer retirada do contexto do documento rectius a prova das circunstâncias em que a declaração foi produzida (artº 393º nº3 CCiv), quer quando acompanhada de circunstâncias que tornem verosímil a convenção contrária ao documento – v.g., um princípio de prova escrita, como o é um cheque passado a terceiro, que não, em contrato de crédito ao consumo, ao mutuante ou ao fornecedor do bem.

Dispositivo (artº 202º nº1 CRP):
Julga-se procedente, por provado, o recurso interposto, e, em consequência, revoga-se a douta sentença recorrida, pelo que, na integral procedência da oposição à execução, se determina a extinção da execução de que a mesma oposição dependia.
Custas pelo Apelado.

Porto, 29/IX/2015
Vieira e Cunha
Maria Eiró
João Proença