Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3134/13.8TBSTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
FACTOS COMPLEMENTARES QUE RESULTEM DA DISCUSSÃO DA CAUSA
ACTIVIDADE PERIGOSA
COBERTURA
TRABALHOS DE PAVIMENTAÇÃO DA VIA
NEXO CAUSAL ENTRE O FACTO E O DANO
Nº do Documento: RP201702213134/13.8TBSTS.P1
Data do Acordão: 02/21/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTO Nº 755, FLS. 62-82)
Área Temática: .
Sumário: I - Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.
II - Além dos factos articulados, o juiz pode considerar ainda os factos complementares que resultem da instrução da causa, entendidos estes como os que se mostram essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das exceções deduzidas que sejam complemento ou concretização de outros oportunamente alegados pelas partes.
III - Porém, para o fazer, o juiz, antes do encerramento da audiência, deverá dar conhecimento às partes da sua intenção de usar tal mecanismo de ampliação da matéria de facto previsto no art. 5º, nº 2, al. b) do Cód. do Proc. Civil.
IV - O que determina a qualificação de uma atividade como perigosa é a sua especial aptidão para produzir danos, o que resultará da sua própria natureza ou da natureza dos meios empregados e só poderá ser apurado face às circunstâncias do caso concreto.
V - Os trabalhos de pavimentação da via por envolverem a colocação de massas betuminosas, que atingem temperaturas elevadíssimas, em dia em que existe perigo de precipitação, constituem atividade perigosa para os efeitos do art. 493º, nº 2 do Cód. Civil.
VI - Contudo, o mero exercício de uma atividade qualificada como perigosa não dispensa a alegação e prova do nexo de causalidade entre o facto e o dano, a qual incumbe ao lesado, nos termos do art. 342º, nº 1 do Cód. Civil, por constituir facto constitutivo do direito por ele invocado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 3134/13.8 TBSTS.P1
Comarca do Porto – Póvoa de Varzim – Instância Central – 2ª Secção Cível – J5
Apelação
Recorrente: “B…, Lda.”
Recorrida: “C…, S.A.”
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e Maria de Jesus Pereira

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
A autora “B…, Lda.”, com a sua sede social sita na Rua …, n.º .., …, Guimarães, vem intentar contra (i) “C…, S.A.”, com a sua sede social sita na Rua …., n.º …., …; (ii) “D…, S.A.”, com a sua sede social sita na Rua …, n.º …, Póvoa de Varzim; (iii) “E…, S.A.”, com a sua sede social sita na Avenida …, n.º …, Vila Nova de Famalicão, e, finalmente; (iv) “F…, S.A.”, com a sua sede social sita na Rua …, n.º …, Porto, a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário, pedindo que, julgada provada e procedente a presente ação e por via dela:
1.º - Sejam as rés condenadas, solidariamente, a pagar à autora a quantia global de 53.489,10€, acrescida dos respetivos juros desde a citação, à taxa legal, e até efetivo e integral pagamento, em decorrência dos seguintes montantes parciais peticionados:
a) A quantia de 17.277,97€ para a completa reparação do veículo automóvel da autora identificado no artigo 2.º da petição inicial;
b) A quantia de 24.900,00€ pela privação da utilização do seu veículo desde a data do acidente (17/04/2012) até à presente data, resultante de 498 dias de indisponibilidade da viatura multiplicados pelo valor mínimo referido de 50,00€/dia, s/IVA;
c) A quantia de 3.000,00€ devido à desvalorização do veículo automóvel, conforme vai alegado nos artigos 78.º a 82.º da petição inicial;
d) A quantia de 6.964,88€ pelo parqueamento do veículo da Autora, desde 01/06/2012 até à presente data, resultante de a uma tarifa diária de 12,50€, acrescido da taxa de IVA em vigor;
e) A quantia de 1.076,25€, que a autora terá que despender para a aquisição de um novo cavalete com as mesmas características e medidas do danificado; e, finalmente,
f) A quantia de 270,00€, como lucro cessante, correspondente ao valor de venda ao público de um objeto da qualidade, dimensão e características equivalentes a uma porta em vidro temperado com a dimensão de 2,188X0,960 metros, conforme vai alegado nos artigos 91.º a 95.º da petição inicial;
2.º - Sejam ainda as rés condenadas, solidariamente, a pagar à autora, em execução de sentença, uma eventual diferença entre o valor peticionado em 1.º, alínea a) como necessário para a reparação do veículo e o do seu efetivo custo de reparação, não apenas em resultado daquilo que resulta alegado no artigo 56.º da petição inicial como mercê do normal aumento dos preços das peças, acessórios e mão-de-obra, acrescido de juros desde o trânsito em julgado da sentença, à taxa legal, e até efetivo e integral pagamento;
3.º - Sejam também as rés condenadas, solidariamente, a pagar à autora, em execução de sentença, o montante correspondente ao número de dias, multiplicado pelo valor diário acima referido, que a autora permaneça privada da utilização da sua viatura, contabilizados desde a data da entrada em juízo da presente ação judicial até à data da efetiva disponibilização do veículo à autora, acrescido de juros desde o trânsito em julgado da sentença, à taxa legal, e até efetivo e integral pagamento;
4.º - E, finalmente, serem, ainda, as rés condenadas, solidariamente, a pagar à autora, em execução de sentença, o montante correspondente ao número de dias, multiplicado pelo valor diário acima referido, que o veículo automóvel da autora permaneça estacionado na mencionada oficina, contabilizados desde a data da entrada em juízo da presente ação judicial até à data da efetiva disponibilização do veículo à Autora, acrescido de juros desde o trânsito em julgado da sentença, à taxa legal, e até efetivo e integral pagamento.
Para tanto, e em síntese, alegou que por força do acidente de viação ocorrido no dia 17/04/2012 sofreu diversos danos, nomeadamente numa viatura de sua propriedade, interveniente naquele acidente, que ocorreu por força das obras que as rés, em regime de consórcio, levavam a cabo na autoestrada …, de alargamento da via, o que faziam sem os cuidados mínimos a que estavam obrigadas, originando assim uma nuvem de fumo que fez com que os condutores que circulavam naquela via perdessem totalmente a visibilidade na estrada, o que foi causal do dito acidente.
Consequentemente, devem as rés ser condenadas a ressarcir a autora nos danos por esta sofridos e nos prejuízos por si redamados.
As rés contestaram, apresentando cada uma delas a sua contestação nos autos, todas pugnando pela improcedência da ação, alegando, em suma, que foram integralmente cumpridas as “legis artis” da obra em curso, obras essas fiscalizadas pelo dono de obra, a I… (a quem devia ser exigida responsabilidade, pois que as rés trabalham sob as suas ordens e direção e por sua conta), sendo que causal do acidente foi o não cumprimento das normas de circulação rodoviária que se impunham aos condutores que naquela via, devidamente assinalada como estando em obras, circulavam. Mais impugnaram os danos invocados pela autora.
Alegaram ainda que o regime de consórcio entre elas em vigor, por força do contrato outorgado, não implica um regime de solidariedade legal perante terceiros, pelo que, a ser assim, estando apenas a ré “C…, S.A.”, naquele momento, a trabalhar naquela via, só a mesma poderia ser responsabilizada pelos pagamentos reclamados nos autos.
A ré “C…, S.A.” afirmou ter cumprido escrupulosamente as ordens, instruções e diretrizes da fiscalização da I…, dizendo que o acidente se ficou a dever exclusivamente ao incumprimento das regras de segurança rodoviária e ao desrespeito do limite máximo de velocidade e distância de segurança que impendiam sobre os condutores.
As rés “C…, S.A.” e “E…, S.A.” solicitaram a intervenção acessória provocada da sociedade seguradora “G…, S.A.”.
A autora replicou, impugnando a matéria alegada pelas rés e concluindo como na petição inicial.
Admitido o chamamento, e citada a ré seguradora, esta apresentou contestação nos autos.
Foi proferido despacho saneador e realizou-se a audiência de discussão e julgamento, a qual decorreu em obediência ao formalismo legal, como consta da respetiva ata.
Por fim, proferiu-se sentença que julgou a ação totalmente improcedente, por não provada e, em consequência, absolveu as rés do pedido.
Inconformada com o decidido, a autora interpôs recurso de apelação, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:
I - A sentença recorrida viola e faz uma errada interpretação das disposições legais constantes dos artigos 5.º, 6.º, 7.º, 411.º, 547.º, 602.º, n.º 1, 607.º e 611.º, do Código de Processo Civil (C.P.C.), na redação vigente, dos artigos 1.º, alínea a), 3.º, n.º 2, 5.º, n.º 2, 18.º, n.º 1, 19.º e 24.º, n.º 1 e 2, todos do Código da Estrada (C.E.), aplicáveis ao caso vertente e dos artigos 342.º, n.º 1, 349.º, 351.º, 483.º, n.º 1 e 493.º, n.º 1 e 2, todos do Código Civil.
II - Decorre da nova fisionomia do processualismo civil que está na disponibilidade do Tribunal, em homenagem à prevalência da decisão de mérito sobre a forma, usar factos, notórios, instrumentais, complementares ou concretizadores, ainda que não alegados pelas partes, para fundamentar a apreciação jurídica da questão litigiosa.
III - Da instrução da causa resultaram provados um conjunto de factos que, embora não tivessem sido, expressamente, alegados pelas partes, mostram-se relevantes para apuramento da verdade e para a decisão a proferir sobre a relação material controvertida.
IV – Efectivamente, apenas com os depoimentos e esclarecimentos das testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento foi possível alcançar, com lógica e plausibilidade, toda a sequência dos embates ocorridos no acidente de viação em causa, pois do esboço/croqui elaborado pelas autoridades policiais na participação, sobretudo, quanto ao posicionamento final dos veículos identificados após a ocorrência dos embates, não era, notoriamente, compaginável com as declarações prestadas, então, pelos intervenientes e versadas no mesmo documento.
V - Cumpre inserir os factos alegados e considerados provados pelo Tribunal a quo, designadamente, nos pontos 18.º, 19.º e 20.º da Fundamentação de Facto da Petição Inicial constante da sentença judicial, ora recorrida, em toda a dinâmica apurada do acidente em causa, pois, essa reconstituição é nuclear ao apuramento da verdade, essencialmente, para alcançar os motivos subjacentes à eclosão do mesmo.
VI - Apenas com essa conjugação factual é possível, perceber se, efectivamente, os embates sofridos pela viatura da Autora, ora Apelante, foram ocasionados, única e exclusivamente, pela perda de visibilidade dos condutores directamente envolvidos, ou se, eventualmente, os mesmos se ficaram a dever à falta de cumprimento das regras de segurança rodoviária como afiança a decisão em sindicância.
VII - Assim, a Apelante considera viciada por erro de julgamento a decisão da matéria de facto, devendo passar – em face dos meios de prova individualizados – a constar da matéria dos factos provados que fundamentarão a decisão final os factos individualizados nas alíneas a) a J) da conclusão do ponto i) da Secção III da Motivação desta peça processual.
VIII - O Tribunal a quo considerou, expressamente, na sentença recorrida, como não provado que o veículo da Autora seguia a uma velocidade de 60/70 Km hora.
IX - Tal decisão não resultou de uma total ausência de prova sobre o mesmo, mas, efectivamente, da presunção judicial consignada de que todos os veículos intervenientes no acidente seguiriam em excesso de velocidade e em desrespeito pela distância mínima de segurança entre os mesmos.
X - Ocorre que tal presunção não pode ser considerada nos termos consagrados porquanto nenhum dos meios de prova produzidos em audiência de discussão e julgamento demonstrou factos dos quais, cabalmente, se possa inferir aquela conclusão.
XI - Pelo contrário, todos os meios de prova que incidiram sobre esta matéria e os factos evidenciados demonstram que não existiu qualquer desrespeito pelos limites de velocidade impostos naquela via em concreto ou desrespeito pelas distâncias mínimas de segurança, sobretudo, relativamente aos veículos que estiveram directamente relacionados com os embates sofridos pelo veículo da Autora, ora Apelante.
XII - Sem prejuízo disso, é incontornável que a matéria do, alegado, excesso de velocidade em que circulavam os veículos intervenientes no acidente, bem como o desrespeito pelas distâncias mínimas de segurança em que seguiam, são factos alegados pela Ré, C…, S.A., pelo que, em observância às regras da repartição do ónus da prova, era à mesma que incumbia provar tal acervo factual.
XIII - O Tribunal a quo considerou, ainda, expressamente, como não provado que a colisão em cadeia ocorrida se deveu à perda de visibilidade que os condutores dos veículos intervenientes sofreram com uma nuvem de fumo provocada pelas obras que as rés tinham em curso.
XIV - Tal decisão - e pese embora a sentença recorrida reconheça estarmos perante uma grande, extensa e intensa nuvem de fumo, que envolveu todos os veículos que embateram e de que a mesma terá surgido de forma algo inesperada para os utentes da via – assentou nos seguintes argumentos: por um lado que a dita nuvem seria visível para os condutores a pelo menos cinquenta metros de distância; e que dentro da mesma tal visibilidade também lhes era possível.
XV – Entendemos, porém, que avistar a nuvem a cinquenta metros de distância e perceber que a mesma é apta, pela sua dimensão, características, opacidade e intensidade, a cercear-lhes, totalmente, a visibilidade da faixa de rodagem, de molde a não conseguirem perceber, sequer, a presença de outros veículos no local, são, no nosso entendimento, situações completamente distintas.
XVI - Cinquenta metros não são uma distância suficiente para que os condutores - que poderiam circular a 80 Km/hora - tivessem apercebido, da dimensão, características, opacidade e intensidade da nuvem que estavam a visualizar, antecipar (como algo assim fosse recorrente e facilmente antecipável) que a mesma lhes iria cercear, totalmente, a visibilidade e proceder, imediatamente, a manobras tendentes à imobilização do veículo.
XVII - Os cinquenta metros em questão não são, sequer, suficientes para um veículo automóvel percorrer a denominada distância de paragem.
XVIII - A distância de paragem é a distância percorrida por um veículo que se pretende parar o mais rapidamente possível, medida entre o ponto em que o condutor tem possibilidade de tomar consciência da necessidade de parar e o ponto de paragem. A distância de paragem inclui, portanto, a distância que é percorrida durante o tempo de percepção-reacção.
XIX - Circulando a 80 Km/hora a distância de paragem necessária de um veículo é, pelo menos, de 57,7 metros.
XX - A própria configuração da via, ligeira curva à direita, com inclinação descendente, limitava, reconhecidamente, a visibilidade e aumentava, acentuadamente, a distância de paragem.
XXI - Quanto à pretensa visibilidade no interior da referenciada nuvem alicerçou-se a sentença recorrida, sobretudo, no depoimento da testemunha, H…, agente da Guarda Nacional Republicana, o qual, porém, terá chegado ao local momentos após a ocorrência dos embates.
XXII - O fenómeno de evaporação ocorrido, embora tivesse sido grande, extenso e intenso, caracteriza-se por ser de rápida dissipação no ar, como, grosso modo, todos os intervenientes no acidente reconheceram.
XXIII - Efectivamente, a quantidade de fumo terá surgido de forma súbita e imprevisível, mas, também, rapidamente desapareceu, restabelecendo uma visibilidade mínima, pelo que, é seguro afirmar que aquando da chegada do veículo automóvel tripulado pelo Agente da Guarda Nacional Republicana já a mesma estivesse em processo de dissipação no ar, como, aliás, o próprio reconheceu.
XXIV - É indesmentível que entre a chegada ao local do primeiro veículo automóvel envolvido no acidente e a chegada da viatura conduzida pelo Agente da Guarda Nacional Republicana ter-se-ão passado, seguramente, minutos, já que é o mesmo quem reconhece, também, que quando chegou ao local já os condutores dos veículos acidentados estavam fora das viaturas, tendo-se passado, portanto, o tempo necessário à verificação de todos os embates ocorridos, pois, não é admissível que os condutores estivessem já no exterior das viaturas enquanto ainda durassem os embates entre os diversos veículos automóveis.
XXV - Quanto à pretensa equiparação do fenómeno visualizado a um simples nevoeiro, a testemunha em causa acabou por reconhecer que não presenciou os momentos em que ocorreram os embates e portanto não poderia atestar a dimensão, intensidade e possibilidade de visualização através da mesma para a ter, na ocasião, como um simples nevoeiro.
XXVI - É imperioso apurar, contudo, se no momento em que os condutores entraram na dita nuvem de fumo era possível vislumbrar o que quer que fosse dentro da mesma de molde a evitar os embates e se à distância em que seria visíveis, eventualmente, os obstáculos dentro da referenciada nuvem de fumo era possível aos condutores envolvidos evitar os consequentes embates com as outras viaturas.
XXVII - Entre os 6 (seis) veículos que estiveram directamente relacionados com os danos provocados no veículo da Autora, apenas a condutora do veículo n.º 3 terá tido alguma visibilidade no interior da nuvem, enquanto todos os restantes são peremptórios em afirmar que no interior da mesma não era possível qualquer visibilidade, mormente, com aptidão e distância suficiente para evitar os embates ocorridos.
XXVIII - Com a ressalva de que a condutora do veículo n.º 3 não foi inquirida em audiência de discussão e julgamento, pelos motivos constantes dos autos, e portanto não teve a possibilidade de transmitir, explicar e caracterizar, pessoalmente, a sua intervenção no acidente, mormente, a velocidade a que circulava, a distância que seguia do veículo que a precedia e se a tal visibilidade que teve foi anterior ou já no interior da nuvem.
XXIX – Todavia, o facto de a condutora do veículo n.º 3, pese embora a nuvem de fumo que avistou, ter conseguido visualizar o acidente ocorrido antes da sua chegada ao local, parar e accionar os sinais luminosos de emergência, pode ter várias explicações plausíveis e que, desde logo, não inviabilizam ou contrariam os depoimentos dos restantes condutores.
XXX – Explicações que assentam, por exemplo, no facto de ter sido o quarto veículo a chegar ao local do acidente; estar aquela ao volante de um veículo ligeiro enquanto o veículo que lhe embateu na sua traseira era um veículo pesado de mercadorias, e, portanto, o posicionamento dos condutores é completamente distinto; na capacidade de resposta e a execução da manobra de travagem de um veículo ligeiro em relação a um veículo pesado de mercadorias; no facto de estarmos perante um fenómeno que não é estático, pois sendo a primeira condutora a surgir no local pela via da esquerda, onde, seguramente, a intensidade do fumo provocado poderia seria ligeiramente menor em relação aquelas que circulavam pela via da direita, pois, as obras que estavam a ser levadas a cabo situavam-se do lado direito, junto aos perfis de betão que na ocasião delimitavam a faixa de rodagem.
XXXI - Embora não o tenha consignado, expressamente, na fundamentação da sentença, o Tribunal a quo considerou como não provado, o surgimento, de forma súbita e imprevisível, de uma grande quantidade de fumo opaco e intenso naquele local, justamente no momento da passagem dos outros veículos automóveis intervenientes no acidente de viação, embora aluda na sua fundamentação que a nuvem terá surgido de forma algo inesperada.
XXXII – Todavia, dos depoimentos evidenciados das diversas testemunhas inquiridas sobre a matéria e supra identificadas é manifesto que a referida nuvem surgiu de forma súbita e imprevisível, no local, no momento da passagem dos veículos intervenientes nos embates sofridos pelo veículo da Autora.
XXXIII – Por sua vez, embora não o tenha consignado, expressamente, na fundamentação da sentença, o Tribunal a quo considerou como não provado o valor do aluguer de um veículo de substituição de igual categoria e características do veículo identificado no artigo 2.º da Petição Inicial não é inferior a € 50,00/dia, s/IVA.
XXXIV – Contudo, do acervo documental carreado para os autos ficou, suficientemente, demonstrado o quantitativo diário necessário para o aluguer de um veículo de características semelhantes ao veículo da Autora, ora Apelante.
XXXV – Finalmente, embora a sentença recorrida tenha considerado provado que na ocasião do acidente [o] veículo automóvel da Autora transportava, como carga, uma porta em vidro, fazendo, naquele momento, o trajecto entre a ….–Maia e Guimarães; que tal objecto destinava-se a ser vendido pela Autora, e que, todavia, em face da irremediável destruição daquele objecto em consequência do acidente mencionado, a Autora foi forçada a produzir uma nova porta em vidro, o certo é que o Tribunal a quo julgou como não provado que o montante que corresponde ao valor de venda ao público de um objecto daquela qualidade, dimensão e características cifra-se na quantia de € 270,00.
XXXVI – Mas, do documento referido conjugado com o depoimento da testemunha identificada resulta demonstrada a veracidade da matéria ali em relevo, mormente, o quantitativo corresponde ao valor de venda ao público de um objecto daquela qualidade, dimensão e características.
XXXVII – Assim sendo, a Apelante considera viciada por erro de julgamento a decisão da matéria de facto, devendo passar – pelos meios de prova evidenciados e pelas regras da repartição do ónus da prova - a constar da matéria dos factos provados que fundamentarão a decisão final os factos individualizados nas alíneas a) a e) da conclusão do ponto ii) da Secção III da Motivação desta peça processual.
XXXVIII - A sentença recorrida, na sua fundamentação de facto, considerou provado que na altura da vistoria do veículo da autora o mesmo tinha cerca de 231 mil Km tendo-lhe sido atribuído um valor venal de 3.900,00 euros.
XXXIX - O apuramento ou determinação do valor venal do veículo da Autora não tem qualquer relevância ou interesse para a decisão do presente pleito judicial, porquanto, a indemnização peticionada pela Autora, ora Apelante, não radica nas regras subjacentes aos princípios aplicáveis ao regime do seguro automóvel obrigatório, como seja o conceito de valor venal para efeitos de subsunção à situação de perda total.
XL - O valor encontrado pelo perito avaliador como valor venal, atribuído ao veículo da Autora no relatório de peritagem que elaborou, teve como objectivo, unicamente, o enquadramento da resolução do sinistro pela companhia de seguros através do mecanismo de perda total no âmbito do regime jurídico do seguro automóvel.
XLI - A obrigação de indemnização que impende sobre a Ré, C…, S.A., ora Apelada, radica no princípio geral ínsito no artigo 562.º do C.C. e não no regime do seguro automóvel obrigatório.
XLII - Assim sendo, a Apelante considera viciada por erro de julgamento a decisão da matéria de facto, devendo passar a constar da matéria dos factos não provados que fundamentarão a decisão final os facto individualizado no ponto número 43.º do segmento da decisão designado Fundamentação de Facto, da contestação da Ré, C…, S.A., ora Apelada.
XLIII - Com a nova lei que resulta do artigo 662.º do C.P.C., se os elementos constantes do processo, incluindo a gravação da prova produzida na audiência final, não forem suficientes para o Tribunal da Relação formar a sua própria convicção sobre os pontos da matéria de facto impugnados, tem a possibilidade de, mesmo oficiosamente: a) ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento; b) ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova.
XLIV - Cremos, porém, que o Venerando Tribunal da Relação do Porto encontra-se habilitado a proceder à modificação da decisão de facto proferida nos presentes autos ou, caso, superiormente, assim o entenda, a ordenar a renovação da prova produzida ou a produção de novos meios de prova.
XLV - Sem prejuízo da alteração à fundamentação de facto que supra propugnamos, cremos que, ainda, assim, encontram-se, manifestamente, preenchidos todos os pressupostos necessários à responsabilidade civil extracontratual da Ré, C…, S.A., ora Apelada, nomeadamente, facto ilícito (constituído pela omissão do zelo exigível), a culpa (que aqui se presume), o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano – artigo 483.º, n.º 1, do C.C.
XLVI - Os embates sofridos pela viatura da Autora, ora Apelante, ficaram a dever-se à conduta imprevista, negligente e inconsiderada da Ré, C…, S.A., ora Apelada, na execução da obra que se desenvolvia naquele local e que se incluía no âmbito da empreitada aludida nos autos.
XLVII - Acresce ainda que, independentemente, da culpa, suficientemente, evidenciada, na vertente de dolo ou mera culpa, sempre se dirá que a Ré, C…, S.A., ora Apelada, na execução da obra que se desenvolvia no local, sempre seria responsável, objectivamente, pela ocorrência da lesão do direito da Autora e pelos danos invocados, porquanto, é patente que a mesma, na ocasião, mantinha sobre o imóvel onde decorreram as obras poderes de direcção e controlo que caracterizam um dever de guarda e vigilância, nos termos referenciados pelas condições contratuais fundamentadores da presunção de culpa estabelecida no n.º 1 do artigo 493.º, do C.C., quer do imóvel, que passou a deter durante o período, quer na actividade construtiva que nele decorria.
XLVIII - Acresce, também, que a Ré, C…, S.A., ora Apelada, na execução da obra que desenvolvia no local, sempre será responsável, objectivamente, ainda, pelos prejuízos sofridos pela Autora nos termos da disposição constante do artigo 493.º. n.º 2, do C.C.
XLIX - Por relevante, ainda, para apuramento da responsabilidade da Ré, C…, S.A., ora Apelada, cumpre salientar que em face da matéria factual condensada – e, desde logo, daquela que decorre da fundamentação de facto da sentença recorrida - é manifestamente notório que a Ré, C…., S.A., ora Apelada, violou a normas constantes dos artigos 3.º, n.º 2, e 5.º, n.º 2, ambas do C.E.
L – Por sua vez, no que concerne ao disposto no artigo 24.º, do C.E., cumpre consignar que a norma impõe ao condutor o dever particular de regular a velocidade do veículo em função da visibilidade em cada momento, de tal sorte que possa parar no espaço livre visível à sua frente, todavia – como é evidente – esta imposição não permite responsabilizar o condutor pelos acidentes que decorram do surgimento de obstáculos inesperados, criando-lhe uma situação nova, anormal, imprevisível que lhe altere subitamente a visibilidade e as expectativas.
LI - A presença na via da identificada nuvem de fumo originada pelas obras levadas a cabo pela Ré, C…, S.A., ora Apelada, constituía, na ausência de sinalização adequada, um obstáculo imprevisto e imprevisível, susceptível de comprometer a qualificação da velocidade como excessiva, como referiu a sentença recorrida.
LII - Os factos apurados não permitem ao tribunal determinar que os condutores intervenientes nos embates sofridos pelo veículo da Autora, ora Apelante, incluindo o seu condutor, em face daquelas circunstâncias não tomaram todas precauções necessárias a uma condução segura, nomeadamente aquelas que são exigidas a um condutor prudente, não se lhe podendo imputar qualquer culpa efectiva na produção do acidente, nem a violação de qualquer regra estradal que a pode fazer presumir, designadamente, as normas de segurança rodoviária contidas nos artigos 18.º, n.º 1 e 24.º do C.E.
LIII - Assim, no que concerne à pretensa violação destas normas, como alude a sentença recorrida, cumpre evidenciar que não ficou demonstrado – e tal ónus incumbia à Ré, C…, S.A., ora Apelada, em obediência às regras da repartição do ónus da prova – que os veículos envolvidos nos embates sofridos pelo veículo da Autora, ora Apelante, circulassem em excesso de velocidade e/ou, ainda, estivessem a desrespeitar as distâncias de segurança entre eles.
LIV – De resto, agora, quanto às distâncias de segurança cumpre evidenciar que o embate do veículo n.º 1 na traseira da viatura da Autora, o embate deste, por sua vez, quando projectado e na sequência do embate que sofreu, na traseira do veículo n.º 4, o embate do veículo n.º 5 no veículo n.º 3, e deste, por sua vez e nessa sequência no veículo da Autora, e do embate do veículo n.º 6 no veículo n.º 3, e deste, novamente, no veículo da Autora, só por si não é suficiente para retirarmos a conclusão que entre os mesmos não foram respeitadas as distâncias de segurança.
LV - Porquanto não pode ignorar-se que a força dos embates – nomeadamente, o ocorrido entre veículo n.º 4 no veículo n.º 1, do veículo n.º 5 no veículo n.º 3 e do veículo n.º 6 no veículo n.º 3 – influenciou, seguramente, a dinâmica dos restantes embates, concretamente, prejudicando ou impossibilitando a imobilização do veículo da Autora para evitar o embate com a traseira do veículo n.º 4 e do veículo n.º 3 em evitar o embate no veículo da Autora.
LVI - A regra de que o condutor deve especialmente fazer parar o veículo no espaço livre à sua frente significa dever assegurar-se, no exercício da condução automóvel, de que a distância entre ele e qualquer obstáculo visível é suficiente para, em caso de necessidade, o fazer parar.
LVII - Tal regra pressupõe, mais uma vez, a inverificação de condições anormais ou obstáculos inesperados, não lhe sendo exigível que contem com eles, sobretudo os derivados da imprevidência alheia.
LVII - O surgimento, de forma súbita e imprevisível, de uma grande, extensa e intensa quantidade de fumo, no local, não pode deixar de se qualificar como evento anormal e imprevisível, para o efeito da aplicação do normativo constante do artigo 18.º, n.º 1, do C.E.
LIX - Acresce, ainda, que a necessária distância de segurança sempre pressupõe que o veículo que o precede é visível, ou seja, está ao alcance da visão do condutor na extensão da faixa de rodagem.
LX - Ora, como resulta demonstrado, à saciedade, da matéria factual supra evidenciada, à excepção da condutora que tripulava o veículo n.º 3, todos os restantes condutores que estiveram envolvidos nos embates sofridos pelo veículo da Autora, incluindo este, não visualizaram, sequer, os veículos que os precediam a uma distância suficiente que lhes possibilitassem executar ou iniciar manobras que garantissem a distância de segurança entre os mesmos.
LXI - Finalmente, para a presunção judicial realizada poder funcionar nos moldes referidos na sentença recorrida, é indispensável que esteja, claramente, provado, no plano objectivo da ilicitude, o cometimento de uma infracção ao C.E., presumindo-se a culpa do contraventor se não forem por ele demonstradas circunstâncias excepcionais excludentes do juízo de imputação subjectiva.
LXIII - Ora, no caso dos autos, a presunção, nos termos em que vem formulada pelo Tribunal a quo, acabaria por funcionar ainda no plano objectivo da ilicitude - isto é, no âmbito dos elementos que contribuem para a tipificação das infracções previstas nos artigos 18.º, n.º 1 e 24.º, n.º 1, do C.E., - ao inferir a velocidade excessiva e o desrespeito das distâncias de segurança da mera circunstância de terem ocorrido embates sucessivos e de estes não terem demonstrado, nomeadamente, que respeitavam os limites de velocidade e a distância de segurança exigível face às concretas condições de circulação rodoviária.
Pretende assim a revogação da sentença recorrida, condenando-se a ré “C…, S.A.” a pagar à autora, ora apelante, os montantes acima, suficientemente, discriminados, por estarem manifestamente evidenciados todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual.
A ré “C…, S.A.” apresentou contra-alegações, nas quais se pronunciou pela confirmação do decidido.
Cumpre então apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Novo Cód. do Proc. Civil.
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As questões a decidir são as seguintes:
I – Apurar se deve ser alterada a matéria de facto dada como provada e não provada;
II – Apurar se no caso “sub judice” é aplicável a presunção de culpa prevista no art. 493º, nº 2 do Cód. Civil.
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É a seguinte a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida:
Da petição inicial:
1.º A autora é uma sociedade comercial com a natureza jurídica de sociedade por quotas, cuja actividade habitual e com o intuito lucrativo, exercida na indicada sede social, consiste na actividade de armazém e comércio de vidros nacionais e estrangeiros e acessórios para a construção civil.
2.º Encontra-se registado em nome da autora o veículo automóvel ligeiro de mercadorias da marca “MITSUBISHI”, modelo “…”, cor branca, identificado com a matrícula ..-..-RM, conforme resulta do Título de Registo de Propriedade e do Livrete Automóvel.
3.º No âmbito de um contrato de concessão rodoviária celebrado com o Estado Português, a sociedade comercial “I…, S.A.”, celebrou, em 18/06/2010, um contrato de empreitada, na qualidade de dono da obra, com a primeira, segunda e terceira rés, e, ainda, com a sociedade comercial “J…, S.A.”, sociedade comercial com a natureza jurídica de sociedade anónima, com a sua sede social sita na Rua …, n.º …, ….-… Porto, em consórcio externo, na qualidade de empreiteira, para a realização da construção do alargamento e beneficiação para 2X3 vias do sublanço …/…, da … – auto-estrada Porto/Valença, nos termos e condições constantes do contrato junto a fls. 175/200 dos autos cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
4.º As rés, e, ainda, a identificada sociedade “J…, S.A.”, são sociedades comerciais com a natureza jurídica de sociedade anónima, que se dedicam, com intuito lucrativo, entre outras, à actividade de construção civil e obras públicas.
5.º Na execução do aludido contrato de empreitada competia às sociedades consorciadas, nomeadamente, a execução das obras de alargamento e beneficiação para 2X3 vias da secção corrente de auto-estrada entre o Km. 9+450 e o Km 21+900, da …, auto-estrada Porto/Valença, sitos no sublanço …/…; alargamento e beneficiação das passagens inferiores e passagens agrícolas; construção de novas passagens superiores; demolição de passagens superiores; construção de uma passagem superior pedonal provisória; alargamento e beneficiação do viaduto sobre a …; construção de muros de suporte; construção da reformulação do nó de … e da respectiva praça da portagem; construção da reformulação das duas passagens superiores.
6.º As sociedades comerciais identificadas, em consórcio externo, na qualidade de empreiteira, assumiram, ainda, que eram as únicas responsáveis por todos os acidentes ou danos, quer pessoais, quer materiais, que os trabalhos de execução da obra ou acção dos seus agentes ou operários, subempreiteiros, tarefeiros, fornecedores e montadores pudessem causar, tanto ao pessoal como a terceiros, incluindo utentes da auto-estrada e a outras empresas que trabalhavam na mesma obra (ver artigo 16º nº 2 do dito contrato).
7.º As sociedades comerciais identificadas, em consórcio externo, na qualidade de empreiteira, assumiram, também, elaborar o desenvolvimento e especificação do plano de segurança e saúde devidamente adaptados às condições da execução da empreitada, bem como assegurar a sua permanente actualização.
8.º A sociedade comercial “J…, S.A.”, foi incorporada, por fusão, na “F…, S.A.”, quarta ré, o que foi averbado na competente conservatória do registo comercial, pela inscrição 15, resultante da apresentação n.º 2/20120628, de 28/06/2012, com o que se deu a extinção daquela sociedade comercial e o respectivo cancelamento da matrícula, tal como melhor resulta da Certidão Comercial Permanente junta como documento n.º 3 e cujo conteúdo aqui se dá por inteiramente reproduzido.
9.º Já no que concerne à “F…, S.A.”, a fusão aludida foi averbada na competente conservatória do registo comercial, pela inscrição 15, resultante da apresentação n.º 1/20120628, de 28/06/2012, tal como melhor ressalta da Certidão Comercial Permanente junta como documento n.º 4 e cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido.
10.º No dia 17 de Abril de 2012, cerca das 16 horas e 32 minutos, na auto-estrada …, no sentido Porto/Valença, no sublanço …/…, concretamente, ao Km 19.550, na localidade de …, freguesia de …, concelho da Trofa, ocorreu um acidente de viação, com várias colisões em cadeia, que foi propalado na comunicação social.
11.º Em tal acidente foram intervenientes 9 (nove) veículos automóveis, sendo 3 (três) deles pesados e 6 (seis) ligeiros, incluindo-se, nestes, a viatura propriedade da autora, conduzido, na ocasião, pelo seu funcionário K…, residente na Rua …, n.º …, …, ….-… Guimarães.
12.º Assim, nas referidas circunstâncias de tempo, modo e lugar, o veículo automóvel da autora circulava pela auto-estrada …, no sentido Porto/Valença, designadamente, no sublanço …/….
13.º Fazendo-o pela metade mais à direita da faixa de rodagem disponível, atento o sentido de marcha, próximo dos perfis de betão que, na ocasião, limitavam a via pelo seu lado direito, o que implicava a supressão da berma.
14.º No momento em que realizava uma ligeira curva à sua direita, com ligeira inclinação descendente, sensivelmente, ao km 19.550, na referida localidade de …, freguesia …, concelho da Trofa, o condutor do veículo da autora avistou, uma grande nuvem de vapor.
15.º Tal extensa e intensa nuvem provinha das obras de alargamento da faixa de rodagem, que estavam a ser desenvolvidas naquele concreto local e que se incluíam no âmbito da empreitada supra aludida.
16.º Consistindo essa nuvem de fumo, concretamente, numa concentração no ar de vapores oriundos das massas betuminosas que estavam a ser colocadas no pavimento da nova via da faixa de rodagem da obra de alargamento da autoestrada, no lado direito, junto aos perfis de betão que na ocasião delimitavam a faixa de rodagem.
17.º Tais vapores resultaram da chuva que veio a ocorrer após a colocação das referidas massas betuminosas no pavimento, que atingem elevadíssimas temperaturas, não ultrapassando então a temperatura ambiente os 14º graus centígrados.
18.º Naquele momento, local e condições, o veículo automóvel da autora foi, inicialmente atingido, na sua retaguarda, por outra viatura que seguia no mesmo sentido de marcha.
19.º E com aquele embate, em acto contínuo e numa fracção de segundos, o condutor do veículo da autora perdeu o controlo da viatura, a qual entrou em despiste.
20.º Tendo sido projectada, ainda na sequência do choque sofrido, contra uma outra viatura, embatendo-lhe e sendo, novamente, esbarrada por outro veículo, acabando voltada, em sentido contrário, e imobilizada junto às guardas de protecção do lado esquerdo da via, atento o normal sentido de marcha, onde, de resto, também acabou por colidir.
21.º Em consequência directa, necessária e adequada do descrito embate, o veículo automóvel da autora ficou com a zona frontal, traseira e lateral, sobretudo, na lateral direita, bastante danificada, não só ao nível da chapa, como ao nível mecânico e seus componentes e acessórios.
22.º Para a completa reparação do veículo, que ainda não foi reparado, será necessária a quantia de € 17.277,97 (dezassete mil duzentos e setenta e sete euros e noventa e sete cêntimos), valor que poderá aumentar, em cerca de 20% daquele montante, após a completa desmontagem do veículo acidentado e a verificação de outros danos, por ora, ainda não visíveis, tal qual resulta do Relatório de Peritagem Final realizado pela “L…, S.A.” ao veículo acidentado na oficina, “M…”.
23.º Como consequência do sinistro, o veículo da autora ficou impedido de circular, vendo-se assim a autora privada da utilização daquela viatura desde a data do acidente.
24.º Tal veículo era utilizado diariamente ao serviço da autora no exercício da sua actividade comercial, nomeadamente, no transporte de e para clientes dos vidros e acessórios que comercializa.
25.º Tal veículo, não sendo uma viatura nova, estava estimado e em perfeito estado de conservação.
26.º A autora não tem garagem ou lugar privativo onde pudesse guardar o acidentado veículo automóvel, tendo sido informada, em 01/06/2012, pela oficina “N…, Lda.”, nos termos do teor constante do documento n.º 22 junto com a p.i. e cujo conteúdo aqui se considera integralmente reproduzido, de que lhe será cobrada, a partir daquela data, uma tarifa diária de € 12,50, acrescido da taxa de IVA em vigor, pelo aparcamento do veículo.
27.º Naquela ocasião, ao serviço da autora, o referido veículo automóvel transportava, como carga, um objecto frágil, concretamente, uma porta em vidro temperado com a dimensão de 2,188X0,960 metros.
28.º No momento da eclosão do acidente, o veículo automóvel da autora, vinha equipado com um cavalete em tubo inox reforçado, próprio para transportar vidros, com as seguintes medidas: 2,20X1,30 metros.
29.º Tal cavalete, na sequência dos embates sofridos pela dita viatura ficou completamente danificado não sendo o mesmo passível de qualquer reparação ou aproveitamento.
30.º Em face disso, para a aquisição de um novo cavalete com as mesmas características e medidas do danificado será necessária despender a quantia de € 1.076,25 (mil e setenta e seis euros e vinte e cinco cêntimos), conforme o Orçamento junto como documento n.º 23 da p.i. e cujo conteúdo aqui se considera inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais.
31.º Na ocasião do acidente, o veículo automóvel da autora fazia, naquele momento, o trajecto entre as instalações da “O…, Lda.”, em …–Maia, onde o referenciado vidro vinha de um tratamento térmico (têmpera), com destino a Guimarães.
32.º Tal objecto destinava-se a ser vendido pela autora à sua cliente a sociedade comercial “P…, Lda.”, identificada com o N.I.P.C. ………, com sede na Rua …, …, ….-… Guimarães.
33.º Todavia, em face da irremediável destruição daquele objecto em consequência do acidente mencionado, a autora foi forçada a produzir uma nova porta em vidro temperado com a dimensão de 2,188X0,960 metros para fornecer ao cliente acima referenciado.
Da contestação da 1ª ré “C…”:
34.º Entre as rés foi celebrado um contrato de consórcio externo, nos termos exarados a fls. 171 a 174 dos autos cujo teor aqui damos por integralmente reproduzido (junto como doc. n.º 1 da contestação da ré C…).
35.º Naquele dia 17 de Abril de 2012, a equipa de pavimentação da ré C… encontrava-se a executar trabalhos de pavimentação na …, que comportaram a colocação de betuminoso no local, e depois disso, a sua compactação.
36.º No que concerne aos trabalhos de pavimentação, o ponto 3.4 das Cláusulas Técnicas do Caderno de Encargos (junto como doc. n.º 3 da contestação da ré C…) estipulava concretamente que: “Não será permitido o espalhamento da mistura betuminosa quando a temperatura ambiente for igual ou inferior a 5ºc ou em tempo de chuva; ou, ainda, quando, segundo o critério da Fiscalização, exista fundado receio de precipitações atmosféricas”.
37.º Tais medidas fundam-se no facto de quer as baixas temperaturas, quer a água da chuva, provocarem efeitos nefastos no comportamento estrutural da camada de betuminoso, estragando-a, provocando uma diminuição do grau de compactação da massa, a existência de um elevado índice de vazios e assim, uma menor qualidade e durabilidade da mistura betuminosa.
38.º As obras da empreitada eram seguidas diariamente pelos representantes do dono da obra, a I….
39.º No dia 17 de Abril de 2012, foram consideradas as condições atmosféricas favoráveis à execução de trabalhos de pavimentação, tendo os trabalhos decorrido normalmente durante o dia.
40.º No período da tarde, contudo, quando começou a chover, as massas betuminosas ainda estavam quentes, pelo que a água da chuva, ao entrar em contacto com as massas betuminosas, condensou e evaporou-se, gerando uma “nuvem” de vapor de água, que era visível a uma distância média, de cerca de 50 metros.
41.º O troço da auto-estrada em obras estava devidamente sinalizado com limite de velocidade máxima de 80 km/hora.
42.º O limite de velocidade, a sinalização e todos os requisitos de segurança dos utentes e da segurança para a execução dos trabalhos estava previsto no Plano de Saúde e Segurança, patenteado pela I…, e desenvolvido pela empreiteira, neste caso, as rés.
43.º Na altura da vistoria do veículo da autora o mesmo tinha cerca de 231 mil Km tendo-lhe sido atribuído um valor venal de 3.900,00 euros.
44.º As rés transferiram para a Q…..-Seguros e S…, através do contrato titulado pela Apólice n.º ../…./……/., a responsabilidade civil causada a terceiros e resultantes de riscos inerentes à execução de obras no âmbito da actividade das rés de construção civil e obras públicas e, de tal apólice.
45.º Em 27 de Novembro de 2012, a chamada concretizou a transferência e integração da carteira da Sucursal em Portugal da Q… para a G…, passando a apólice aqui referida a ser titulada pela chamada.
Da contestação da 2ª ré “D…”:
46.º A ré D…, naquele dia não se encontrava a executar quaisquer trabalhos, por si ou por terceiros, nem tão pouco tinha, nesse mesmo no dia, hora e local, qualquer trabalhador ao seu serviço.
Da contestação da 4ª ré “F…”:
47.º No seio do consórcio ficou definido entre as consorciadas, que a então J…, S.A. seria apenas responsável, como o foi, pelos trabalhos relativos a obras de arte, e que os trabalhos de via, designadamente, de movimentação de terras, terraplanagens e pavimentação, incluindo aplicação de betuminoso, seriam da responsabilidade das outras três empresas integrantes do consórcio e co-rés nos presentes autos.
48º. A então J…, S.A., não era, como não foi, responsável pela execução de quaisquer dos referidos trabalhos de via, nomeadamente, de movimentação de terras, terraplanagens e pavimentação, incluindo aplicação de betuminoso, não se encontrando, assim, a executar quaisquer trabalhos, por si ou por terceiros, no dia, hora e local do acidente em causa.
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Não se provaram quaisquer outros factos dos alegados e levados aos temas de prova, e outros que tivessem interesse e/ou relevância para a boa decisão da presente causa, designadamente:
- Que o veículo da autora seguia a 60/70 km hora;
- Que a colisão em cadeia ocorrida se deveu à perda de visibilidade que os condutores dos veículos intervenientes sofreram com uma nuvem de fumo provocada pelas obras que as rés tinham em curso;
- Que, mesmo a ser reparado, o veículo a autora sofrerá uma desvalorização na ordem dos 3 mil euros;
- Que foi a fiscalização da I… que naquele dia 17/04 considerou as condições atmosféricas favoráveis à execução dos trabalhos, que não havia indícios de precipitação iminente da parte da manhã, e que foi a I… quem ordenou a suspensão dos trabalhos quando começou a chover já da parte da tarde.
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Passemos à apreciação do mérito do recurso.
I – O recurso interposto pela autora incide, em larga medida, sobre a factualidade dada como provada e não provada pela 1ª instância, pretendendo esta que no elenco dos provados passem a constar os seguintes factos:
“a) O primeiro veículo a chegar ao local em questão foi o veículo n.º 4 - como identifica a participação policial - com a matrícula ..-CV-.., conduzido por T….
b) O condutor de tal veículo, derivado ao fumo, proveniente do alcatrão que andava a ser colocado fora da via, abrandou a marcha em relação à velocidade que seguia e ligou os quatro piscas, quando o veículo que seguia na sua rectaguarda embateu na sua traseira.
c) O veículo que embateu na rectaguarda do veículo n.º 4 foi o veículo da Autora quando projectado e na sequência do embate que sofreu na sua rectaguarda pelo veículo n.º 1 - como identifica a participação policial – com a matrícula ..-HX-.., conduzido por U….
d) O primeiro embate deste acidente em cadeia foi a colisão do veículo n.º 1 na traseira do veículo da Autora, o qual, por sua vez, foi embater na traseira do veículo n.º 4, que, entretanto, havia abrandado a sua marcha.
e) Em seguida chegou ao local em causa nos autos o veículo n.º 3 - como identifica a participação policial – com a matrícula ..-CG-.., conduzido por V….
f) Este veículo circulava na via da esquerda quando se deparou com um acidente, ligou os quatro piscas e parou, quando um pesado, concretamente, o veículo n.º 5 - como identifica a participação policial – com a matrícula ..-..-NP, conduzido por W…, lhe embateu na traseira, projectando, em consequência, a sua viatura contra o veículo que se encontrava à sua frente, in casu, o veículo da Autora.
g) O veículo n.º 6 - como identifica a participação policial – com a matrícula ..-JS-.., conduzido por X…, seguia pela via da direita, que, pese embora tentasse, sem sucesso, desviar o veículo para a esquerda de molde a evitar os embates, embateu, efectivamente, no veículo n.º 5 e no veículo n.º 3.
h) Posteriormente, chegou ao local o veículo n.º 7 - como identifica a participação policial – com a matrícula ..-..-XO, conduzido por Y…, que circulava na via da direita, quando o veículo n.º 6, que circulava à sua frente, se desviou para a via da esquerda, acabando por seguir atrás do mesmo, e quando estava praticamente imobilizado, foi embatido pelo veículo n.º 9 - como identifica a participação policial – com a matrícula ..-..-QS, conduzido por H…, na traseira e projectado, por sua vez e em consequência, contra a traseira do veículo n.º 6.
i) O veículo n.º 8 - como identifica a participação policial – com a matrícula ..-FB-.., conduzido por Z…, terá chegado ao local após o veículo n.º 7, mas antes de ter ocorrido o embate do veículo n.º 9 no veículo n.º 7, nos moldes referidos na alínea anterior.
j) O veículo n.º 8 circulava na via da direita quando deparou-se com um acidente, tendo, este, conseguido parar a tempo de embater no pesado que estava imobilizado à sua frente - veículo n.º 5 - e, só após, sido embatido na lateral esquerda traseira pelo veículo n.º 9, sendo este, assim, o último veículo a chegar ao local.”
Para além destes, deverão também ficar a constar do elenco dos factos provados os seguintes:
“a) O veículo da autora seguia a 70/80 Km hora;
b) As colisões directamente relacionadas com os embates sofridos pelo veículo da Autora ficaram a dever-se à perda de visibilidade que os condutores dos veículos intervenientes sofreram com uma nuvem de fumo provocada pelas obras que as rés tinham em curso;
c) A referida nuvem surgiu de forma súbita e imprevisível, no local, no momento da passagem dos veículos intervenientes nos embates sofridos pelo veículo da Autora;
d) O valor do aluguer de um veículo de substituição de igual categoria e características do veículo identificado no artigo 2.º da Petição Inicial não é inferior a € 50,00/dia, s/IVA;
e) O montante que corresponde ao valor de venda ao público de um objecto daquela qualidade, dimensão e características cifra-se na quantia de € 270,00, por referência aos pontos 27.º, 31.º a 33.º da Fundamentação de Facto da sentença recorrida.”
Simultaneamente, pretende que dos factos provados seja eliminado o seu nº 43 que tem a seguinte redação: “Na altura da vistoria do veículo da autora o mesmo tinha cerca de 231 mil Km tendo-lhe sido atribuído um valor venal de 3.900,00 euros.”
Como fundamento da sua pretensão indica excertos dos depoimentos que foram prestados pelas testemunhas K…, U…, W…, X…, H… e AB….
Indica também a participação do acidente de viação elaborada pela GNR constante de fls. 66 e segs., os documentos nºs 10 a 21 juntos com a petição inicial, relativos ao aluguer de um veículo de substituição e o documento nº 25 também junto com a petição inicial, referente ao custo da porta em vidro.
Procedemos assim à audição integral dos depoimentos indicados.
K… é funcionário da autora desde 1980 e vinha, na ocasião, a conduzir o veículo desta – o pesado de matrícula ..-..-RM. Disse que seguia pela faixa da direita. Havia bastantes sinais e ia no limite dos sinais que lá estavam – 70/80 km/h. Perguntado sobre a causa do acidente respondeu que para si foi o alcatrão – foi uma nuvem que lhe fez perder a visibilidade por completo (“uma parede intensa; perdi a visibilidade por completo”). Mais referiu que havia bastantes sinais, mas de nuvem não se apercebeu. Apercebeu-se de limite de velocidade e de perigo de obras. Disse depois que à sua frente não ia veículo nenhum. Estava um parado no fumo, porque não tinha visibilidade nenhuma para seguir em frente. Relativamente à porta em vidro que transportava disse que ficou destruída, mas não sabe o seu valor. Mais afirmou que quanto se apercebeu da nuvem de fumo travou, agarrou-se ao volante e pensou “seja o que deus quiser”. Ficou virado em sentido contrário e levou várias pancadas. Não viu praticamente nada e saiu do carro com as pernas a tremer. Mas referiu que quando parou, dentro da nuvem, via os outros veículos. A nuvem, 15 a 20 minutos depois, desapareceu. Disse ainda que viu a nuvem – de cor cinzento claro - a cerca de 50 metros de distância.
U… foi um dos intervenientes no acidente. Conduzia o ..-HX-.., Volkswagen …. Disse que havia um ligeiro nevoeiro (maresia), mas com muita visibilidade à frente. Não dava para grandes velocidades. Tinha que andar com prudência. Lembra-se que o carro à sua frente ia muito longe. De repente é envolvido por uma nuvem de fumo espessa e no momento imediatamente a seguir tinha batido num carro à frente. Não via absolutamente nada. Referiu que não havia nenhuma sinalização para fumo. Disse que bateu numa carrinha de caixa aberta (era o veículo que vinha à sua frente) e por trás apercebeu-se de um camião Ford. Explicou que atrás de si vinha um camião que empurrou o seu carro e o entalou contra a carrinha de caixa aberta. Isso fez que o seu carro se desviasse para a esquerda; só que à esquerda vinha outro camião e, assim, enquanto os outros carros estavam já parados o seu continuava a andar. Mas o seu não era o carro da frente, era o terceiro ou quarto da contagem. Referiu também que o carro que seguia à sua frente ia a 50 metros ou mais de distância. Circulava a cerca de 80 km/h. Travou a fundo, quando o viu à frente, parado, mas não teve tempo de nada.
W… foi um dos intervenientes no acidente. Conduzia um pesado, uma Scania com um semi-reboque. Disse que quando chegou à zona do acidente perdeu a visibilidade, entrou numa nuvem de fumo, provocada pelas obras, e limitou-se a travar o camião, sem ter noção da faixa de rodagem. Bateu nos carros que já estavam parados pela mesma razão. Antes de chegar ao local não havia nenhum sinal a alertar para o possível aparecimento de uma nuvem de fumo. A causa do acidente, na sua perspetiva, foi a colocação do pavimento novo. Referiu ainda que estava a chover e que seguia a 70/80 km/h, tendo o camião carregado.
X… foi um dos intervenientes no acidente. Conduzia o ..-JS-.., um Mercedes pesado. Disse que o acidente se ficou a dever ao espesso nevoeiro que surgiu, uma parede branca de fumo. Só havia informação de obras na estrada, mas não de fumos. Ia atrás de um camião, a cerca de 20/30 metros de distância, quando surgiu a nuvem. Seguia a cerca de 70 km/h (trazia ligado o sistema de regulação de velocidade). Não conseguiu ver os veículos em que embateu nem os que foram embatidos por si. Mas a seguir referiu que, indo atrás de um camião, travou, puxou para o lado, bateu no rail e bateu noutro carro que ia à frente. Quando parou já lá estava a “carambola” toda. A chuva que então caía era a chamada “morrinha”.
H… é o agente da GNR que elaborou a participação do acidente. Não assistiu ao acidente, no qual tiveram intervenção nove veículos (3 pesados e 6 ligeiros). Disse que chegou a entrar na “nuvem” (vapores, fumos, de cor acinzentada) e que dentro desta se via a mais de 50 metros. Salientou que quando chegou ao local (estava perto por causa doutra ocorrência) seguia em marcha de urgência a mais de 100 km/h e conseguiu imobilizar a sua viatura sem embater nas outras que já lá estavam, embatidas. A nuvem ainda esteve lá algum tempo, mas admite que quando chegou ao local já estaria a dissipar-se. A nuvem teve a sua origem na colocação do pavimento combinada com a chuva. Mais disse que a obra estava sinalizada: sinais de 80, de outros perigos, de proibição de ultrapassagem a pesados. No entanto, não é normal que surja uma nuvem como sucedeu neste caso. Em sua opinião, afirma que, neste caso, um veículo ligeiro a 80 km/h teria todas as condições para parar sem embater noutros veículos. Realçou, aliás, que houve condutores (dois ou três) que o conseguiram fazer, tendo imobilizado as suas viaturas, ligado os 4 piscas e só depois é que foram embatidos na retaguarda. Assim, o acidente podia ter sido evitado. Disse também que há nevoeiros mais intensos do que aquele.
AB… é funcionário da autora há cerca de 16 anos, aí trabalhando como escriturário. Disse que o preço da porta em vidro que se partiu no acidente anda por volta dos 300,00€.
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1. O art. 662º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil estabelece que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa
A autora/recorrente pretende, em primeiro lugar, que sejam aditados à factualidade dada como provada numerosos factos, que enumera nas alíneas a) a j), e dos quais resultaria uma pormenorizada descrição do acidente, a qual na sentença recorrida se tinha circunscrito aos nºs 18, 19 e 20 cuja redação é a seguinte:
“18.º Naquele momento, local e condições, o veículo automóvel da autora foi, inicialmente atingido, na sua retaguarda, por outra viatura que seguia no mesmo sentido de marcha.
19.º E com aquele embate, em acto contínuo e numa fracção de segundos, o condutor do veículo da autora perdeu o controlo da viatura, a qual entrou em despiste.
20.º Tendo sido projectada, ainda na sequência do choque sofrido, contra uma outra viatura, embatendo-lhe e sendo, novamente, esbarrada por outro veículo, acabando voltada, em sentido contrário, e imobilizada junto às guardas de protecção do lado esquerdo da via, atento o normal sentido de marcha, onde, de resto, também acabou por colidir.”
Acontece que toda a nova factualidade, que a autora/recorrente deseja ver aditada e que transcende em muito os transcritos nºs 18, 19 e 20, não foi alegada pelas partes nos articulados, sendo a sua consideração, em sede de sentença, sustentada nos depoimentos produzidos em audiência de julgamento pelos intervenientes no acidente de viação e no conteúdo da respetiva participação elaborada pela GNR.
Na perspetiva da recorrente, esses factos deveriam ser tidos em atenção pelo juiz ao abrigo do art. 5º, nº 2, al. b) do Cód. do Proc. Civil.
Dispõe-se o seguinte nos nºs 1 e 2 deste preceito:
«1. Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.
2 – Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:
a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;
c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
(…)”
Factos essenciais são os que integram a previsão da norma em que se funda a pretensão do autor (ou reconvinte) ou a exceção deduzida pelo réu (ou reconvinte), sendo a sua prova indispensável para a procedência da ação, da reconvenção ou da exceção.
Factos instrumentais são os que se destinam a realizar a prova indiciária dos factos essenciais, já que através deles se poderá chegar, mediante presunção judicial, à demonstração dos factos essenciais correspondentes – assumindo, pois, em exclusivo, uma função probatória e não uma função de preenchimento e substanciação jurídico-material das pretensões e da defesa.
Factos complementares tratam-se de factos essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das exceções deduzidas que sejam complemento ou concretização de outros oportunamente alegados pelas partes.[1]
O art. 5º do Cód. do Proc. Civil, em termos de matéria de facto, diz-nos o que constitui o ónus de alegação das partes e como se delimitam os poderes de cognição do tribunal.
Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas. Mas o tribunal deve considerar na sentença factos não alegados pelas partes, ou seja, a circunstância de não terem sido alegados pelas partes não impede o juiz de considerar factos que se mostrem relevantes. Têm, no entanto, de se tratar de factos que resultem da instrução da causa, que tenham surgido no processo através dos meios de prova produzidos, dispondo, por isso, de consistência prática e que não se reconduzam a meras conjeturas ou possibilidades abstratas.
No caso dos autos, a autora/recorrente pretende que à factualidade provada seja aditado, como já se referiu, um vasto conjunto de factos não alegados – alíneas a) a j) – concernentes à dinâmica do acidente, que, recortando-se como complementares dos por si alegados, seriam, pela sua relevância, suscetíveis de conduzir ao sucesso da pretensão deduzida.
Todavia, não se pode ignorar que, para além de decorrerem da instrução da causa, sempre as partes terão que dispor, previamente, da possibilidade de se pronunciarem sobre tais factos, em linha com o disposto na parte final do art. 5º, nº 2, al. b) do Cód. do Proc. Civil.
Apesar da audiência de julgamento se desenvolver inevitavelmente com observância do princípio do contraditório (art. 415º do Cód. do Proc. Civil), esta circunstância não basta para se ter por cumprida aquela exigência legal.
Com efeito, a mera presença das partes, representadas pelos seus mandatários, na audiência de julgamento em que os novos factos teriam sido revelados, com a possibilidade de requererem quanto a estes o que melhor entendessem, é insuficiente para que se tenha por satisfeito o preceituado na parte final da alínea b) do nº 2 do art. 5º do Cód. do Proc. Civil.
É que as partes só podem ser confrontadas com o poder oficioso que é conferido ao juiz por esta norma adjetiva quando as circunstâncias processuais concretas permitirem afirmar que as partes tinham a obrigação de contar com essa possibilidade, o que pressupõe sempre, no mínimo, o anúncio pelo tribunal, antes do encerramento da audiência, de que está a equacionar usar esse mecanismo de ampliação da matéria de facto.
O que se compreende porque se trata de salvaguardar a confiança que é necessário ter quanto ao conteúdo dos atos do processo e de não impor aos mandatários graus de diligência e atenção absolutos, exigindo-lhes que a todo o momento prevejam todas as hipóteses e levem o esforço probatório aos limites apenas para evitar que, se o tribunal vier a considerar relevantes outros factos, os mesmos resultem provados ou não provados.
Por outro lado, não se pode excluir que perante um novo facto que interesse à parte contrária mas que, não tendo sido alegado, a parte supunha que não seria considerado pelo tribunal, a parte, sabedora agora da intenção do tribunal de o levar em consideração, possa requerer que o tribunal leve ainda em consideração outro facto que igualmente se lhe afigura poder relevar, agora já não em proveito da parte contrária mas no seu próprio interesse.[2]
Deste modo, sendo de acolher a significativa ampliação factual que é visada pela autora/recorrente no que concerne à dinâmica do acidente, por ser resultado da instrução da causa, sempre os autos teriam que regressar à 1ª instância para observância do disposto na parte final do art. 5º, nº 2, al. b) do Cód. do Proc. Civil e assim se possibilitar às demais partes o exercício do contraditório.
De qualquer forma, uma questão se coloca previamente a esta: Será que toda essa factualidade relativa ao acidente descrita pela autora/recorrente nas alíneas a) a j) resulta da instrução da causa e é, por isso, de considerar como provada?
Ora, entendemos que a resposta a esta questão deve ser negativa, porquanto a prova produzida em audiência sobre a forma como o acidente ocorreu, que se reconduziu aos depoimentos de vários dos condutores envolvidos (K…, U…, W… e X…) e ao do militar da GNR que elaborou a participação e chegou ao local pouco depois da sua verificação (H…), é insuficiente para que a pretensão recursiva da autora possa ter acolhimento.
Desses depoimentos, que acima se deixaram sintetizados, não resultou de modo algum demonstrada a sequência de embates que a autora pretende que seja dada como assente. O que deles flui é uma situação de grande confusão com vários embates num espaço temporal muito curto, o que vulgarmente se designa por “choque em cadeia”. Ou para utilizar a terminologia da testemunha X…, uma “carambola”.
Extrair de tais depoimentos, conjugados com o conteúdo da participação de acidente de viação elaborada pela GNR e do “croquis” que a acompanhou, a ordenada sucessão de colisões descrita pela autora/recorrente não se nos afigura minimamente possível.
Aliás, das declarações que constam da participação como prestadas por cada um dos condutores intervenientes no acidente, singelas e algo vagas, o que mais se destaca é precisamente a confusa sucessão de embates, que também resulta do próprio “croquis” que evidencia um amontoado de veículos embatidos.
Como tal, no que toca à dinâmica do acidente de viação, nada se adita ao que se mostra assente na sentença recorrida em sede de factualidade provada, assim soçobrando, nesta parte, a impugnação factual da autora.
2. A autora/recorrente pretende depois que seja dado como provado que o seu veículo seguia a 70/80 km/hora.
O condutor deste veículo – a testemunha K… – afirmou a este propósito, no seu depoimento, que seguia no limite dos sinais que lá estavam – 70/80 km/hora -, mas este depoimento quanto a esta matéria, só por si, não permite dar como provado tal facto, pelo que, também nesta parte, improcede a impugnação fáctica.
3. Prosseguindo, a autora/recorrente entende que deverá ser dado como provado que as colisões diretamente relacionadas com os embates sofridos pelo veículo da autora ficaram a dever-se à perda de visibilidade que os condutores dos veículos intervenientes sofreram com uma nuvem de fumo provocada pelas obras que as rés tinham em curso [b)] e que a referida nuvem surgiu de forma súbita e imprevisível, no local, no momento da passagem dos veículos intervenientes nos embates sofridos pelo veículo da autora [c)].
Trata-se de questão da maior importância para o desfecho da presente ação e que, por isso, mereceu atenção detalhada por parte da Mmª Juíza “a quo” que sobre ela escreveu o seguinte (fls. 825 e v):
“… concluindo o tribunal, em face da prova produzida, pela inegável existência do embate do veículo da autora nos termos que ficaram provados e pela inegável existência de uma nuvem de fumo com origem nos trabalhos levados a cabo naquela estrada, [cabe] aferir se aquele (embate) foi consequência desta (nuvem), ou seja do nexo de causalidade entre ambas.
Ora, neste particular fazemos apelo, mais uma vez, à forma como o embate propriamente dito se deu, sem esquecer que as obras naquela estrada estavam devidamente assinaladas. Limite de velocidade (80km/hora) ao longo de todo o troço intervencionado, proibição de ultrapassagem, bem como placas de aviso e sinalização conforme exigido pela própria I…. Dos depoimentos dos condutores, incluindo dos veículos pesados, e do depoimento do GNR que ali se deslocou no imediato, foi atestada a sinalização da estrada a indicar obras, dizendo que estava a chover. O Sr. agente, não obstante a nuvem referida, com assertividade afirmou que se as restrições de condução fossem cumpridas, com distâncias de segurança entre as viaturas, os choques poderiam, a seu ver, ser evitados. E tanto assim foi que, não obstante a existência daquele imprevisto, certo é que o mesmo não foi impedimento para alguns dos condutores que ali passaram, pois que lograram parar o seu veículo sem embater. Ora, na verdade, resulta até das regras de experiência comum, que os condutores são muitas vezes confrontados na estrada com o aparecimento súbito de um nevoeiro cerrado, que retira em grande parte a visibilidade da estrada, devendo, como tal, o condutor experiente rodear-se de maiores cuidados e adequar a velocidade que leva às condições que na estrada enfrenta. Ora, da descrição da nuvem, a mesma surge como uma cortina de vapor intenso, acinzentado, que algumas testemunhas descrevem como um nevoeiro muito forte e intenso, e que, não obstante a mesma, alguns condutores nem por isso sofreriam qualquer acidente.”
Ora, depois de ouvidos os depoimentos das testemunhas atrás referidas e que se sintetizaram, entendemos que nenhuma censura há a fazer ao percurso argumentativo que foi trilhado pela Mmª Juíza “a quo” quanto à questão do nexo de causalidade entre o surgimento da nuvem de fumo provocada pelas obras e a ocorrência do embate, decidindo pela sua inexistência.
Com efeito, não pode deixar de se sublinhar que as obras que estavam a ocorrer na via se achavam devidamente sinalizadas, de tal forma que se tais indicações tivessem sido atendidas, com consequente diminuição de velocidade e respeito pela distância de segurança, ter-se-ia seguramente evitado o acidente. O que é atestado pela circunstância de vários condutores, face à situação imprevista surgida, terem conseguido imobilizar os seus veículos sem embaterem.
Aliás, se fosse como é sustentado pela autora/recorrente, e conforme afirma a Mmª Juíza “a quo”, sempre que surgisse numa estrada com elevado trânsito rodoviário um súbito banco de nevoeiro cerrado ou uma inesperada trovoada acompanhada de chuva torrencial, que diminuíssem de forma muito significativa a visibilidade, ocorreriam, de forma inevitável, acidentes de trânsito.
E a experiência diz-nos que, apesar das dificuldades acrescidas para a circulação automóvel, tal não acontece.
Assim, igualmente nesta parte, improcede a impugnação factual da autora.
4. A autora/recorrente sustenta também que deve ser dado como provado que o valor do aluguer de um veículo de substituição de igual categoria e características do veículo identificado no artigo 2.º da Petição Inicial não é inferior a €50,00/dia, s/IVA, o que corresponde a matéria por si alegada no art. 74º da petição inicial.
Nesse sentido, a autora juntou com a petição inicial os documentos identificados sob os nºs 10 a 21, que correspondem a várias simulações de aluguer de veículos ligeiros de mercadorias com características semelhantes ao dos autos obtidas na Internet junto de empresas da especialidade (“AC…” e “AD…”) e de um orçamento elaborado pelo agente da “AE…” em Guimarães.
Os valores aí referenciados são de molde a tornar plausível o que se mostra alegado no art. 74º da petição inicial, de tal forma que, nesta parte, a impugnação factual da autora será acolhida, acrescentando-se à factualidade provada o nº 33–A com a seguinte redação:
“O valor do aluguer de um veículo de substituição de igual categoria e características ao identificado no nº 2 desta matéria de facto não é inferior a €50,00/dia, s/IVA.”
5. A autora/recorrente pretende ainda que seja dado como provado que o valor de venda ao público de um objeto da qualidade, dimensão e características do que se acha descrito no nº 33 da matéria de facto – porta em vidro temperado com a dimensão de 2,188x0,960 metros – ascende a 270,00€.
Com tal propósito indica o documento nº 25 junto com a petição inicial – fatura emitida pela própria autora referente a porta em vidro com características semelhantes – e também o depoimento da testemunha AB….
Este, como escriturário da firma autora, afirmou que o preço de venda ao público de um vidro daquelas características andaria por volta dos 300,00€ e da fatura referida consta como preço unitário de uma porta semelhante o valor de 270,00€.
Por conseguinte, nesta parte, é de acolher a impugnação factual, passando o nº 33 da matéria de facto a ter a seguinte redação:
“Todavia, em face da irremediável destruição daquele objeto em consequência do acidente mencionado, a autora foi forçada a produzir uma nova porta em vidro temperado com a dimensão de 2,188X0,960 metros para fornecer ao cliente acima referenciado, cujo valor de venda ao público ascende à quantia de 270,00€.”
6. Por último, entende a autora/recorrente que deverá ser eliminado da factualidade provada o seu nº 43, cujo texto é o seguinte: “Na altura da vistoria do veículo da autora o mesmo tinha cerca de 231 mil Km tendo-lhe sido atribuído um valor venal de 3.900,00 euros.”
Sucede que a quilometragem do veículo da autora (231.020 km) e o seu valor venal (3.900,00€) decorrem do relatório de peritagem final junto aos autos pela própria autora a fls. 85/6, razão pela qual esse facto, independentemente da sua maior ou menor relevância, deverá permanecer no elenco dos provados.
Assim sendo, nesta parte, improcede a impugnação factual.[3]
*
II. 1. Em sede de responsabilidade civil extracontratual incumbe ao lesado provar a culpa do autor da lesão, a menos que, excluindo-se os casos de responsabilidade objetiva ou pelo risco, exista presunção legal de culpa, em que a parte escusa de provar o facto que a ela conduz, bastando-lhe a prova do facto que serve de base à presunção – cfr. arts. 487º, nº 1 e 350º do Cód. Civil.
No art. 493º do Cód. Civil, que tem a epígrafe “danos causados por coisas, animais ou atividades” preceitua-se o seguinte:
«1. Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo de vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.
2. Quem causar danos a outrem no exercício de uma atividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, exceto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.»
No que tange ao nº 2, não se diz na lei o que se deve entender por atividade perigosa, tratando-se assim de matéria a apreciar, em cada caso, segundo as circunstâncias.[4]
Almeida Costa (in “Direito das Obrigações”, 11ª ed., págs. 585/6) defende que a atividade perigosa deve tratar-se de atividade que, mercê da sua natureza ou da natureza dos meios utilizados, tenha ínsita ou envolva uma probabilidade maior de causar danos do que a verificada nas restantes actividades em geral.
Por seu turno, Vaz Serra (in BMJ, nº 85, pág. 378) define actividades perigosas como as que criam para os terceiros um estado de perigo, isto é, a possibilidade ou, ainda mais, a probabilidade de receber dano, uma probabilidade maior do que a normal derivada das outras atividades.
Estamos pois perante um conceito relativamente indeterminado, carecido de preenchimento valorativo caso a caso, em função das circunstâncias concretamente provadas, quer quanto à atividade em si mesma considerada, quer quanto aos meios de que o agente se serviu para a pôr em prática.[5]
No caso dos autos provou-se que se encontravam a decorrer obras de alargamento e beneficiação do sub-lanço …-… da … (Autoestrada Porto/Valença). No momento e local em que ocorreu o acidente aqui em apreciação estavam a ser colocadas massas betuminosas no pavimento da nova via da faixa de rodagem da obra de alargamento da autoestrada, no lado direito, junto aos perfis de betão que na ocasião a delimitavam (cfr. nº 16).
Após a colocação das massas betuminosas no pavimento, estas atingem temperaturas elevadíssimas, sendo que naquele momento a temperatura ambiente não ultrapassava os 14ºgraus centígrados (cfr. nº 17).
Os trabalhos de pavimentação, que comportaram a colocação de betuminoso e, depois disso, a sua compactação, estavam a ser executados por uma equipa da ré “C…, S.A.” (cfr. nº 35).
No que concerne aos trabalhos de pavimentação, no ponto 3.4 das Cláusulas Técnicas do Caderno de Encargos estipulava-se que “não será permitido o espalhamento da mistura betuminosa quando a temperatura ambiente for igual ou inferior a 5ºc ou em tempo de chuva; ou, ainda, quando, segundo o critério da fiscalização, exista fundado receio de precipitações atmosféricas” (cfr. nº 36).
Estas medidas têm como fundamento o facto de quer as baixas temperaturas, quer a água da chuva, provocarem efeitos nefastos no comportamento estrutural da camada de betuminoso, estragando-a, provocando uma diminuição do grau de compactação da massa, a existência de um elevado índice de vazios e assim, uma menor qualidade e durabilidade da mistura betuminosa (cfr. nº 37).
Sucede que no dia 17.4.2012 as condições atmosféricas foram consideradas favoráveis à execução de trabalhos de pavimentação, tendo os trabalhos decorrido normalmente durante o dia (cfr. nº 39).
Contudo, no período da tarde, quando começou a chover, as massas betuminosas ainda estavam quentes, pelo que a água da chuva, ao entrar em contacto com tais massas condensou-se e evaporou-se, gerando uma “nuvem” de vapor de água, que era visível a uma distância média, de cerca de 50 metros (cfr. nº 40).
Ora, perante este contexto factual, não podemos deixar de concluir que os trabalhos de pavimentação da via, que comportaram a colocação de betuminoso e depois a sua compactação, integram o conceito de atividade perigosa.
Com efeito, as massas betuminosas ao serem colocadas no pavimento atingem temperaturas elevadíssimas e os trabalhos que envolvam o espalhamento da mistura betuminosa não podem ser efetuados quando a temperatura ambiente for igual ou inferior a 5ºc ou em tempo de chuva; ou, ainda, quando, segundo o critério da fiscalização, exista fundado receio de precipitações atmosféricas.
Daqui decorre que os trabalhos de colocação de betuminoso no pavimento e sua compactação só devem ser executados quando as condições atmosféricas se mostrem favoráveis, designadamente quando não haja chuva, nem receio de precipitação.
Acontece que no caso dos autos, apesar de se ter entendido que as condições meteorológicas eram favoráveis, no período de tarde começou a chover, numa altura em que as massas betuminosas ainda estavam quentes.
Deste modo, a concreta natureza da atividade desenvolvida, que envolve a colocação de massas betuminosas que atingem temperaturas elevadíssimas e que só pode ser efetuada em contexto meteorológico adequado, leva-nos a qualificar a mesma como perigosa, o que terá como consequência a aplicação da presunção de culpa prevista no art. 493º, nº 2 do Cód. Civil.
2. Assim, o lesante só poderá exonerar-se da responsabilidade provando que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias para os evitar os danos. Afasta-se indireta, mas concludentemente, a possibilidade de o responsável se eximir à obrigação de indemnizar, com a alegação de que os danos se teriam verificado por uma outra causa, mesmo que ele tivesse adotado todas aquelas providências.[6]
No caso dos autos provou-se que a realização das obras se encontrava devidamente sinalizada e que a colocação das massas betuminosas no pavimento foi efetuada de forma correta. Porém, face à matéria de facto dada como assente, constata-se que, embora, em 17.4.2012, as condições atmosféricas tenham sido consideradas favoráveis para trabalhos de pavimentação, começou a chover no período da tarde desse dia, numa altura em que as massas ainda estavam quentes.
Verifica-se, pois, que a ré “C…, S.A.” procedeu aos trabalhos de pavimentação havendo possibilidade de ocorrência de chuva, o que significa, desde logo, que não adotou todas as providências que eram exigidas pelas circunstâncias para evitar a produção de danos e, por isso, não logrou ilidir a presunção de culpa prevista no art. 493º, nº 2 do Cód. Civil.
3. Contudo, não pode deixar de se assinalar que o funcionamento da presunção de culpa, que dispensa a autora da sua prova, pressupõe sempre que, previamente, se faça a prova da base da presunção, o que incumbe à autora, que pretende fazer valer um direito de indemnização, porquanto se trata de facto constitutivo deste seu direito – cfr. art. 342º, nº 1 do Cód. Civil.
É que se no caso do pressuposto da culpa o lesado está dispensado do ónus da sua prova, por via da presunção de culpa do art. 493º, nº 2, do Cód. Civil, decorrente da inversão do regime regra contido no art. 487º, já no caso da prova relativa ao nexo de causalidade entre o facto e o dano, tal ónus pertence ao lesado, como pressuposto autónomo do dever de indemnizar e facto constitutivo do direito que se arroga, nos termos do art. 342º, nº 1, do mesmo diploma.[7]
A questão que então se coloca é a de saber se, perante a factualidade dada como assente e não assente, é possível concluir ter a autora conseguido provar que a ocorrência dos factos se ficou a dever à ré “C…, S.A.” e aos trabalhos que estava a realizar.
A Mmª Juíza “a quo”, na sentença recorrida, entendeu que tal prova não foi feita e esse entendimento merece a nossa concordância.
O embate em cadeia, tal como esta assinala, apenas aconteceu porque condutores houve que, face à velocidade a que seguiam, não guardaram para os veículos que os antecediam distância que lhes permitisse parar antes de os alcançarem, caso estes afrouxassem a velocidade ou parassem mesmo, situação que sempre poderia acontecer, por exemplo, no caso de aparecimento de um súbito nevoeiro cerrado.
Da participação efetuada pela GNR flui que alguns dos veículos ao chegar ao local onde surgiu a nuvem de fumo, não embateram em nada, tiveram tempo para abrandar a sua marcha, ligar os quatro piscas e até parar, o que aconteceu, inclusive, com o condutor do veículo da autora, que não embateu em ninguém por si só, mas apenas por ter sido embatido por trás por uma outra viatura.
Como tal, terá que se concluir que apenas alguns dos veículos que não circulavam com a velocidade adequada à situação que se verificava, caracterizada pela presença de piso molhado e pela existência de obras na via devidamente assinaladas, é que provocaram o acidente dos autos que redundou num choque em cadeia e que assim se ficou a dever, única e exclusivamente, à falta de cuidado dos seus condutores e ao incumprimento do disposto no art. 24º, nºs 1 e 2 do Cód. da Estrada, onde na redação em vigor à data dos factos se preceitua o seguinte:
«1 - O condutor deve regular a velocidade de modo que, atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, possa, em condições de segurança, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.
2 - Salvo em caso de perigo iminente, o condutor não deve diminuir subitamente a velocidade do veículo sem previamente se certificar de que daí não resulta perigo para os outros utentes da via, nomeadamente para os condutores dos veículos que o sigam.
(…)».
Tal como se ficou a dever ainda ao incumprimento do disposto no art. 18º, nº 1 do Cód. da Estrada onde, também na redação em vigor à data dos factos, se estatui o seguinte:
«O condutor de um veículo em marcha deve manter entre o seu veículo e o que o precede a distância suficiente para evitar acidentes em caso de súbita paragem ou diminuição de velocidade deste.
(…)».
Acontece que se tais regras, referentes à velocidade e à distância entre os veículos, tivessem sido respeitadas, bem como a cautela acrescida que se impõe num local em que estão a decorrer obras na via, assim como à que se impõe quando se circula com chuva e piso molhado, os veículos, como sucedeu com o da autora, teriam conseguido, como conseguiram outros dos veículos intervenientes no acidente, reduzir a sua marcha atempadamente, ligar os quatro piscas, não embatendo nos veículos à sua frente.
Constata-se assim não ter ficado demonstrado em julgamento que os embates sucessivos se ficaram a dever, direta e exclusivamente, à “nuvem” de vapor em causa nos autos, nem à alegada falta de visibilidade provocada pela mesma, mas à velocidade, falta de atenção, zelo e destreza de alguns dos condutores dos veículos que seguiam naquela estrada, tudo fazendo crer que se por algum motivo – o aparecimento de um nevoeiro intenso, pesado e cerrado com que muitas vezes nos confrontamos na estrada – um dos veículos tivesse abrandado ou travado, o acidente teria, ainda assim, ocorrido.
Pelo que, em sintonia com a sentença recorrida que temos vindo a seguir nesta parte, há que concluir no sentido de que a autora não logrou demonstrar a base da presunção de culpa que impendia sobre a ré, ao não provar o nexo de causalidade direto entre a nuvem surgida e o acidente ocorrido.
Inexiste pois fundamento para a responsabilidade das rés, razão pela qual se impõe a confirmação da sentença recorrida e a improcedência do recurso interposto.
*
Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. do Proc. Civil):
- Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.
- Além dos factos articulados, o juiz pode considerar ainda os factos complementares que resultem da instrução da causa, entendidos estes como os que se mostram essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das exceções deduzidas que sejam complemento ou concretização de outros oportunamente alegados pelas partes.
- Porém, para o fazer, o juiz, antes do encerramento da audiência, deverá dar conhecimento às partes da sua intenção de usar tal mecanismo de ampliação da matéria de facto previsto no art. 5º, nº 2, al. b) do Cód. do Proc. Civil.
- O que determina a qualificação de uma atividade como perigosa é a sua especial aptidão para produzir danos, o que resultará da sua própria natureza ou da natureza dos meios empregados e só poderá ser apurado face às circunstâncias do caso concreto.
- Os trabalhos de pavimentação da via por envolverem a colocação de massas betuminosas, que atingem temperaturas elevadíssimas, em dia em que existe perigo de precipitação, constituem atividade perigosa para os efeitos do art. 493º, nº 2 do Cód. Civil.
- Contudo, o mero exercício de uma atividade qualificada como perigosa não dispensa a alegação e prova do nexo de causalidade entre o facto e o dano, a qual incumbe ao lesado, nos termos do art. 342º, nº 1 do Cód. Civil, por constituir facto constitutivo do direito por ele invocado.
*
DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela autora “B…, Lda.”, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da autora/recorrente.

Porto, 21.2.2017
Rodrigues Pires
Márcia Portela
Maria de Jesus Pereira
_____________
[1] Cfr. Pais de Amaral, “Direito Processual Civil”, 2015, págs. 301/302; Lopes do Rego, “Comentários ao Código de Processo Civil”, vol. I, 2ª ed., págs. 252/3.
[2] Cfr. Ac. Rel. Porto de 30-4-2015, proc. 5800/13.9 TBMTS.P1, disponível in www.dgsi.pt. (e cuja argumentação seguimos neste ponto).
[3] Assinala-se ainda inexistir fundamento para a Relação usar dos poderes que lhe são conferidos pelo art. 662º, nº 2, als. a) e b) do Cód. do Proc. Civil com vista à renovação da produção da prova ou à produção de novos meios de prova (conclusões XLIII e XLIV).
[4] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol, I, 4ª ed., pág. 495.
[5] Cfr. Acórdão do STJ de 15.11.2011, proc. 5486/09.5 TVLSB.L1.S1., disponível in www.dgsi.pt.
[6] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 496.
[7] Cfr., neste sentido, Ac. STJ de 20.5.2004, p. 04B1528, disponível in www.dgsi.pt.