Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
393/19.6T8AMT-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS PORTELA
Descritores: INSOLVÊNCIA
INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO
PARECER
DEVER DO ADMINISTRADOR
PRAZO
MODALIDADE
Nº do Documento: RP20191024393/19.6T8AMT-B.P1
Data do Acordão: 10/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O administrador da insolvência é um colaborador do tribunal, não é uma parte no processo e como tal, a emissão do parecer não é um direito dele, mas um dever funcional.
II - Deste modo, não está na sua disponibilidade emitir ou não emitir o parecer com formulação de uma proposta para qualificação da insolvência.
III - O incidente da qualificação da insolvência não é uma fase facultativa do processo, é antes obrigatório e indispensável.
IV - Por conseguinte, impondo-se ao administrador da insolvência emitir o parecer no exercício de um dever ou competência, não se poderá qualificar o prazo em causa como sendo de caducidade ou de prescrição.
V - Assim, o prazo concedido ao administrador de insolvência e a qualquer interessado para requererem, fundamentadamente, o que tiverem por conveniente para efeito da qualificação de insolvência como culposa, não deverá ser considerado como um prazo peremptório, mas sim meramente ordenador ou regulador.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº393/19.6T8AMT-B.P1
Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Comarca do Porte Este
Juízo de Comércio de Amarante
Relator: Carlos Portela (966)
Adjuntos: Des. Joaquim Correia Gomes
Des. António Paulo Vasconcelos
Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório:
Por sentença proferida em 05.04.2019 foi declarada a insolvência de B… Lda. com sede na Rua …, nº…, Freguesia de …, Paços de Ferreira.
Na mesma sentença e porque se entendeu que á data não existia elementos nos autos que permitissem concluir pela necessidade de abertura do incidente de qualificação de insolvência, não se declarou aberto tal incidente (cf. artigos 36º, nº1, alínea i) e 39º do CIRE).
Posteriormente, veio a Exma .Sr.ª Administradora de Insolvência e ao abrigo do disposto no art.º188º do CIRE, apresentar o Parecer de Qualificação de Insolvência no qual considera que a insolvência em apreço deve ser qualificada como culposa dada a presunção legal prevista nos nºs 1 e 2 alíneas d), f) e g) e a) do nº3 do art.º186º do CIRE.
Com base neste entendimento veio o Digno Magistrado do Ministério Público e em 30.05.2019, requerer ao tribunal a extracção de certidão de tal relatório e autuação da mesma por apenso como incidente de qualificação da insolvência.
Tal requerimento foi indeferido por despacho proferido em 18.06.2019.
Notificada do referido despacho veio então a Exma. Administradora de Insolvência e em 4.07.2019, apresentar o requerimento de fls.2 no qual pede que seja aberto Incidente de Qualificação de Insolvência., fazendo acompanhar o mesmo e entre o mais do supra referido Parecer de Qualificação de Insolvência.
Perante tal requerimento foi então proferido o seguinte despacho, cujo conteúdo aqui passamos a reproduzir na sua íntegra:
“Nos termos do disposto no artigo 188.º, nº 1 do CIRE, até 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º, o AI ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito de qualificação de insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afectadas pela qualificação, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação de insolvência, nos 10 dias subsequentes.
No caso dos autos, na sentença declaratória de insolvência não se declarou aberto o incidente de qualificação de insolvência.
O relatório a que se reporta o artigo 155.º do CIRE foi junto aos autos em 28-05-2019, como dimana dos autos principais.
Desta forma, o prazo a que se reporta o artigo 188.º, n.º 1 do CIRE já se encontrava ultrapassado quando, em 04-07-2019, a Exma. Sr.ª AI veio juntar a alegação fundamentada que deu origem ao presente incidente.
Nesta matéria seguimos de perto o Acórdão da Relação de Guimarães de 25-02-2016, Proc. n.º 1857/14.3TBGMR, in www.dgsi.pt.
Desde as alterações introduzidas pela Lei nº. 16/2012 de 20/4 ao CIRE, deixou de ser obrigatório que o juiz, na sentença de declaração da insolvência, declare aberto o incidente de qualificação de insolvência, com carácter pleno ou limitado (artº. 36º, al. i) do CIRE). Com efeito, antes o incidente de qualificação da insolvência era sempre aberto oficiosamente pelo juiz logo aquando da declaração da insolvência.
E porque o incidente era sempre aberto oficiosamente pelo juiz, o parecer do Administrador da Insolvência era um ato obrigatório desse incidente (tal como era a decisão a proferir pelo juiz) e que, além da sua relevância no auxílio ao juiz para proferir a sua decisão, assumia-se como um dever funcional do Administrador, isto é, estando aberto o incidente o Administrador tinha o dever de emitir o parecer que lhe era imposto por lei, tal como o juiz tinha o dever de proferir decisão, qualificando a insolvência como culposa ou fortuita.
Todavia, com a entrada em vigor da Lei nº. 16/2012 de 20/4, e ao contrário do que sucedia antes, o incidente de qualificação da insolvência deixou de ter carácter obrigatório, sendo que a lei prevê a sua abertura apenas em dois momentos:
- na sentença que declara a insolvência, situação em que o incidente é aberto oficiosamente pelo juiz, caso disponha, nesse momento, de elementos que o justifiquem (artº.36º, nº. 1, al. i) do CIRE);
- ou em momento posterior, se o juiz o considerar oportuno em face das alegações que, a propósito dessa matéria, sejam efectuadas pelo Administrador da Insolvência ou por qualquer interessado nos 15 dias subsequentes à realização da assembleia de credores para apreciação do relatório ou subsequentes à apresentação do relatório a que alude o art.155.º do CIRE, caso não haja lugar à aludida assembleia de credores) – cfr. artº.188º, nº. 1 do CIRE.
Uma vez aberto o incidente de qualificação da insolvência - seja oficiosamente pelo juiz na sentença de declaração de insolvência, seja por iniciativa do Administrador ou de qualquer interessado - o Administrador da Insolvência, caso não tenha sido ele a dar início ao incidente, o que aconteceu nos presentes autos, deverá apresentar o parecer sobre os factos relevantes no prazo de 20 dias, se não for fixado prazo mais longo pelo juiz, como decorre do disposto no nº. 3 do artº.188º do CIRE.
Este parecer (a que se refere o actual nº. 3 do artº.188º do CIRE) equivale ao parecer a que lei aludia antes das alterações introduzidas pela citada Lei nº. 16/2012, pois trata-se de um ato obrigatório e corresponde ao cumprimento de um dever funcional do Administrador da Insolvência nos termos atrás expostos.
Diferentes são as alegações a que alude o nº. 1 do artº.188º do CIRE, pois o que está aí em causa não é a prática de um ato que seja obrigatório por fazer parte de um procedimento ou incidente já em curso, mas sim a iniciativa processual - que pode ou não ser exercida pelo Administrador da Insolvência ou por qualquer interessado - tendo em vista a eventual abertura do incidente de qualificação da insolvência.
Deste modo, o prazo fixado no nº. 1 do citado preceito não é um prazo meramente regulador ou ordenador, porquanto o que aí está em causa é uma iniciativa processual - que pode ser exercida pelo Administrador da Insolvência ou por qualquer interessado – no sentido de desencadear a possível abertura do incidente de qualificação da insolvência e que apenas poderá ser admitida se for apresentada dentro do prazo que está fixado na lei.
Pelo exposto, indefere-se liminarmente o requerimento apresentado pela Sr.ª Administradora da Insolvência, por ser manifestamente extemporâneo.
Sem custas, atenta a simplicidade.
Registe e notifique.”.
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Inconformado com tal despacho dele veio interpor recurso o Digno Magistrado do Ministério Público, apresentando desde logo e nos termos legalmente prescritos, as suas alegações.
A Insolvente veio contra alegar.
Foi proferido despacho no qual se considerou o recurso tempestivo e legal e se admitiu o mesmo como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Recebido o processo nesta Relação emitiu-se despacho onde se teve o recurso por próprio, tempestivamente interposto e admitido com efeito e modo de subida adequados.
Colhidos os vistos legais, cumpre pois decidir.
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II. Enquadramento de facto e de direito:
Ao presente recurso são aplicáveis as regras previstas na Lei nº41/2013 de 26 de Junho.
É consabido que o objecto do presente recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso obrigatório, está definido pelo conteúdo das conclusões vertidas pelo apelante nas suas alegações (cf. artigosa 608º, nº2, 635º, nº4 e 639º, nº1 do CPC).
E é o seguinte o teor das mesmas conclusões:
1. O administrador da insolvência pode dar cumprimento ao disposto no artigo 188.º, n.º 1, do CIRE no relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE, devendo, nesse caso, ser extraída certidão de tal relatório e autuada por apenso com incidente de qualificação da insolvência;
2. No caso em apreço, o parecer de qualificação da insolvência como culposa foi apresentado dentro do prazo previsto no artigo 188.º, n.º 1, do CIRE;
3. De qualquer modo, o prazo previsto no artigo 188.º, n.º 1, do CIRE, concedido ao administrador da insolvência e a qualquer interessado para requererem, fundamentadamente, o que tiverem por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa, não deverá ser considerado como um prazo peremptório, mas meramente ordenador ou regulador;
4. Pelo que deverá o presente recurso ser julgado procedente e revogada a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que aprecie o parecer de qualificação da insolvência apresentado pela administradora da insolvência e declare aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos termos do artigo 188.º, n.º1, parte final, do CIRE.
Porém, Vossas Excelências, farão, como sempre, JUSTIÇA.
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Por seu turno a apelada conclui do seguinte modo as suas contra alegações:
a) O Digníssimo Magistrado do Ministério Público veio interpor recurso do despacho que indeferiu a pretensão da Exma. Sra. Administradora de Insolvência e melhor vertida nas alegações apresentadas pela mesma extemporaneamente, quando, em momento algum anterior se pronunciou do despacho que indeferiu o pedido formulado por este Magistrado no que respeita à extracção de certidão.
b) O facto do Ministério Público praticar o acto no prazo a que se refere o art.º 139º do Código do Processo Civil sem que para tal seja sancionado com multa correspondente, constitui uma inconstitucionalidade por violação do princípio da identidade de armas e igualdade.
c) O prazo de 15 dias a que se alude no nº 1 do artigo 188º do CIRE é um prazo de caducidade.
d) A caducidade, também dita de preclusão, jamais podendo tal ato ser praticado à posteriori.
e) O prazo de caducidade não se suspende, nem se interrompe senão nos casos em que a lei o determine, conforme decorre do artigo 328º do Código Civil;
f) O decurso do prazo de 15 dias previsto no número 1 do artigo 188º é um prazo de iniciativa processual e o seu decurso preclude o direito do administrador ou de qualquer interessado de requerer abertura do incidente.
g) A Exma. Sra. Administradora de Insolvência apenas veio apresentar as alegações para efeitos de qualificação da insolvência pelo meio processual adequado, 38 dias após a data da entrega do relatório a que se refere o art.º 155º do CIRE e 91 dias após a sentença que decretou a insolvência.
h) É falso que do relatório a que se refere o art.º 155º deva ou possa resultar o seu parecer para efeitos de qualificação da insolvência, por não ser esse o meio processual adequado, não podendo o juiz, ad lib, autuar por apenso tal relatório com o fim pretendido pela Exma. Sra. Administradora.
i) Desde a entrada em vigor da Lei n.º 16/2012, de 20/04 e, posteriormente, do DL n.º 79/2017, de 30/06, que este incidente tornou-se facultativo, e, uma vez decorrido o prazo a que se refere o n.º 1 do art. 188º do CIRE, por o mesmo ser peremptório (desde logo constatável pela utilização da preposição “até”), jamais pode o(a) Administrador de Insolvência ou qualquer outro interessado praticar o ato, por preclusão.
j) Admitir que tais alegações possam ser apresentadas após tal prazo coloca, desde logo, em causa a certeza e segurança do direito.
k) A tramitação do incidente de qualificação da insolvência que resulta do art.º 188º do CIRE permite afirmar que, caso não seja aberto o incidente de qualificação na sentença que declara a insolvência, não fica inviabilizada a hipótese de ser aberto em momento posterior. CONTUDO, Para tal, têm de se encontrar preenchidos os seguintes pressupostos: um pressuposto temporal (até 15 dias) e um pressuposto subjectivo (requerimento do administrador da insolvência ou qualquer interessado.
l) Não se verificando, in casu, a verificação de tal limite.
Termos em que o Recurso de Apelação ora interposto deve ser julgado totalmente improcedente e, em função disso, ser MANTIDO o douto Despacho proferido pelo Tribunal a quo, como é de JUSTIÇA.
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Perante o antes exposto, resulta claro ser a seguinte a questão suscitada no âmbito deste recurso:
A da tempestividade do requerimento (de Incidente para qualificação de insolvência) apresentado pela Sr.ª Administradora da Insolvência.
Para apreciar e decidir tal questão importa ter em conta os elementos processuais antes melhor descritos no ponto I. desta decisão.
Desde logo o que importa referir é o que decorre do disposto no nº1 do art.º 188º, do CIRE, segundo o qual: “Até 15 dias após a realização da assembleia de apreciação do relatório, o administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para o efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afectadas por tal qualificação, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes.”
Mais, o “relatório” a que se refere a parte inicial do antecedente preceito legal é o que está consignado no art.º 155º, do CIRE, o qual deve ser apreciado na respectiva “assembleia de apreciação do relatório”, a que se refere o disposto no art.º 156º, do CIRE.
E isto sem prejuízo do tribunal, em sede de sentença de declaração de insolvência, poder, fundamentadamente, declarar prescindir da realização da mesma (cf. art.º 36º, n.º 1, al. n) in fine, do CIRE).
Assim, nesta hipótese em que não é designado dia para a realização da assembleia de apreciação do relatório, os prazos previstos no CIRE, contados por referência à data da sua realização, contam-se com referência ao 45º dia subsequente à data da prolação da sentença de declaração de insolvência (cf. art.º 36º, n.º 4, do CIRE).
Já o n.º3 do referido art.º 188º, do CIRE prescreve que que: “Declarado aberto o incidente, o administrador de insolvência, quando não tenha proposto a qualificação da insolvência como culposa nos termos do n.º 1, apresenta no prazo de 20 dias, se não for fixado prazo mais longo pelo juiz, parecer, devidamente fundamentado e documentado, sobre os factos relevantes, que termina com a formulação de uma proposta, identificando, se for caso disso, as pessoas que devem ser afectadas pela qualificação da insolvência como culposa.”
Ora no caso dos autos já se viu que não teve lugar a realização da referida “assembleia de apreciação do relatório”, sendo certo que a sentença que declarou a insolvência da sociedade em apreço 05.04.2019, sem que tivesse declarado a abertura do incidente de qualificação da insolvência (art.º 36º, n.º 1, al. i), do CIRE).
Também sabemos que o requerimento inicial (alegações) de abertura do incidente de qualificação da insolvência como culposa foi apresentado pela Sr.ª Administradora Judicial em 04.07.2019 (cf. fls.2 e seguintes).
Tudo isto após ter sido indeferido por despacho proferido em 18.06.2019, o pedido apresentado em 30.05.2019 pelo Digno Magistrado do Ministério Público, de extracção de certidão do relatório da AI e de autuação da mesma por apenso como incidente de qualificação da insolvência.
Resulta por isso claro que o que está em causa neste recurso é saber da tempestividade ou não do aludido requerimento/alegações apresentado pela administradora judicial em 04.07.2019.
Por isso, não podem ser aqui apreciadas (por extravasarem claramente do objecto do recurso), as questões de constitucionalidade suscitadas pelo Insolvente nas alíneas a) e b) das suas contra alegações.
Voltando à questão que nos preocupa cabe chamar novamente o que decorre do disposto no nº1 do art.º188º do CIRE.
E a propósito do mesmo dizem o seguinte Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda:
“Uma vez que é de uma faculdade conferida aos interessados que o nº1 trata pode dar-se o caso de não haver qualquer alegação de nenhum interessado.
Mas pode suceder que o incidente de qualificação já tenha sido aberto na sentença declaratória e, se assim for, seguem-se naturalmente os termos dos n.ºs 3 e seguintes.
Na outra hipótese, será normal que o juiz, em face do silêncio dos interessados, nada despache, situação em que a insolvência se haverá necessariamente como furtuita.
É, porém, de crer que, apesar da falta de alegações, o juiz possa, por sua própria iniciativa, e desde que o processo contenha elementos suficientes para a suportar, decidir a abertura.
Concorrem para esta asserção, as seguintes razões.
Desde logo, se o juiz pode, numa fase precoce do processo – momento da declaração da insolvência –, optar por abrir o incidente, não se vê porque recusar esse poder no quadro do art.º 188º, numa altura em que, a própria marcha possa ter revelado factos significativos – e até com valor próprio e autónomo, como sucede com o previsto no art.º 83º, n.º 3 – e indiciadores da culpa, que nem sequer eram facilmente perceptíveis àquela primeira data.
De resto, como ficou dito, dispondo agora o juiz de uma segunda oportunidade para avaliar a situação, em conformidade com a disciplina do n.º 1 deste art.º 188º, normal será que prescinda de decidir logo na primeira, pelo que limitar o seu poder de abertura do incidente à alegação de interessados pode até ter um efeito perverso.
Por outro lado, é indiscutível, à vista da parte final do n.º 1, que o juiz não tem de seguir o entendimento manifestado nas alegações dos interessados, podendo, sem dúvida, decidir pela não abertura do incidente apesar do que for sugerido e requerido. Não se vê nenhum motivo sério para que essa liberdade só ocorra quando o resultado seja favorável aos potenciais afectados pela qualificação da insolvência. É que a questão da qualificação não é, nem pode ser, considerada como algo que se situa no estrito âmbito dos interesses particulares e, nessa medida, no âmbito da disponibilidade.
Acresce que (…), o legislador alterou o actual n.º 5 – anterior n.º 4 – no sentido de, mesmo coincidindo os pareceres do administrador e do Ministério Publico na proposta da qualificação da insolvência como fortuita, o tribunal não ficar vinculado a ela, ainda que, se decidir em conformidade, a decisão seja irrecorrível.
Ora, se bem avaliarmos, o poder de, mesmo nessa situação particular, mandar prosseguir o incidente justifica, só por si, que não fique também vinculado a não abrir o incidente quando ninguém alegou nada.
Finalmente, não pode deixar de se ter presente o poder oficioso do juiz consagrado no art.11.º.” (cf. Código da Insolvência e da recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 2015, págs. 687-688).
Perante tal posição doutrinária, a qual também nós subscrevemos, deve pois concluir-se que o prazo, previsto no n.º1 do art.º188º, do CIRE, concedido ao administrador de insolvência e a qualquer interessado para requererem, fundamentadamente, o que tiverem por conveniente para efeito da qualificação de insolvência como culposa, não deverá ser considerado como um prazo peremptório mas meramente ordenador ou regulador (neste sentido e entre outros os Acórdãos desta Relação do Porto de 29.10, 2009, processo 10/07.7TYVNG-B.P1, de 14.03.2017, processo 2037/14.3T8VNG-E.P1 e de 07.05.2019, processo 521/18.9T8AMT-C.P1, ambos em www.dgsi.pt).
Assim, se a qualquer momento (até ao encerramento do processo), reunidos que estejam os necessários elementos que o justifiquem, o juiz poderá determinar ex officio a abertura do incidente de qualificação de insolvência como culposa, não vemos, por maioria de razão, que o mesmo esteja impedido de o fazer, a requerimento fundamentado de qualquer interessado ou do administrador de insolvência, ainda que para além do prazo previsto no art.º188º, n.º 1, do CIRE.
Ora é consabido que alguma jurisprudência defende orientação diversa, ou seja a de que o prazo aludido no art.º188º, n.º 1, do CIRE, por se tratar de um prazo de “iniciativa processual”, quando o incidente de qualificação de insolvência ainda não foi determinado oficiosamente pelo tribunal na sentença que decretou a insolvência, deverá antes ser considerado um prazo peremptório. (neste sentido cf. os Acórdãos da Relação de Coimbra de 10.03.2015, processo nº631/13.9-L.C1, e da relação de Guimarães de 25.02.2016, processo nº1857/14.3TBGMR-DG1, ambos em www.dgsi.pt.).
Para este entendimento, releva no essencial, a ideia de que, no actual quadro legal, o juiz apenas poderá, oficiosamente, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência na sentença que declara a insolvência, se dispuser então de elementos relevantes; para daí se concluir que, fora desse momento, apenas poderá fazê-lo na sequência de “iniciativa processual” formulada pelo administrador da insolvência ou por qualquer outro interessado, dentro do prazo assinalado na lei.
Não é este, como já vimos, o nosso entendimento no quadro legal em vigor e em situações como a dos autos nas quais não houve lugar à realização da “assembleia de apreciação do relatório” (art.º156º, do CIRE), razão pela qual consideramos que não pode ser tido em conta e sem mais, o prazo previsto no nº3 do art.º155º do CIRE.
No entanto, o que sabemos é que o requerimento inicial (alegações) de abertura do incidente de qualificação da insolvência como culposa foi apresentado pela Sr.ª Administradora Judicial em 04.07.2019 (cf. fls.2 e seguintes).
E isto sem que antes e em 18.06.2019, tenha sido indeferido o pedido apresentado em 30.05.2019 pelo Digno Magistrado do Ministério Público, de extracção de certidão do relatório da AI e de autuação da mesma por apenso como incidente de qualificação da insolvência.
Ora não pode ser posto em causa a importância do relatório referido no art.º155º do CIRE, o qual se trata de uma peça fundamental para apreciação do comportamento do devedor, sendo certo que ainda mais essencial se revela, nos casos – como o dos autos – em que não teve lugar a realização da assembleia prevista no art.º 156º, do CIRE.
É aliás de salientar que tal entendimento, tem hoje consagração legal no actual n.º1 do art.º 188º do CIRE, com a redacção introduzida pela Lei n.º 114/2017, de 29.12, onde se prevê expressamente que o respectivo prazo de 15 dias, nos casos em que não tenha lugar a assembleia de apreciação do relatório, deverá contar-se após a junção aos autos do relatório a que se refere o art.º 155º.
Nos autos, não está comprovada a data em que teve lugar a apresentação do relatório a que se refere o artr.º155º do CIRE.
Mas sabemos quais as razões que levaram a Sr.ª Administradora de Insolvência a requerer, a abertura do presente incidente de qualificação da insolvência como culposa, já depois do prazo de 60 dias decorrido da data da sentença de declaração de insolvência, as quais e salvo melhor opinião, não lhe são imputáveis.
Deste modo e valendo as razões antes melhor expostas, não se justificava o indeferimento liminar do requerimento que a mesma, veio apresentar a fls.2 e seguintes.
Merece pois provimento o recurso aqui interposto pelo digno Magistrado do Ministério Público.
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Sumário (cf. art.º663º, nº7 do CPC).
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III. Decisão:
Pelo exposto, julga-se o presente recurso procedente e revoga-se o despacho recorrido, determinando-se que o mesmo seja substituído por outro que aprecie o parecer de qualificação da insolvência apresentado pela Administradora de Insolvência e caso assim se entenda declare aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos termos do nº1 do art.º188º do CIRE.
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Custas do recurso a cargo da massa insolvente.
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Notifique.
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Porto, 24 de Outubro de 2019
Carlos Portela
Joaquim Correia Gomes
António Paulo Vasconcelos