Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2313/11.7TBGDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ IGREJA MATOS
Descritores: INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
TRIBUNAL DE COMÉRCIO
SOCIEDADE COMERCIAL
GESTÃO DANOSA E FRAUDULENTA
Nº do Documento: RP201210092313/11.7TBGDM.P1
Data do Acordão: 10/09/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Nos casos em que a decisão que aprecie a competência do tribunal conclui pela respectiva incompetência absoluta o prazo para interposição de recurso é de 30 dias, e não de 15 dias, porque isso conduz ao termo do processo - arts. 105°, n°1 e 691°, n°1 do Código do Processo Civil.
II - Os tribunais de comércio são competentes, em razão da matéria, para as acções em que se peça a condenação, em benefício da sociedade, pelos prejuízos sofridos por gestão danosa de sociedade comercial, nos termos do artigo 77° n. 1 do Código das Sociedades Comerciais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 2313/11.7TBGDM.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I – Relatório

Recorrente(s): “B…”;
Requerido: “C…”, “D…”
2ª Juízo – Tribunal Judicial da Gondomar.
*****
Por sentença proferida nos autos, o Tribunal recorrido considerou que a presente acção tinha por objecto o exercício de um direito social, sendo, por isso, competente para dela conhecer o Tribunal de Comércio, de competência especializada, e não o Tribunal Cível de Gondomar.
Julgou-se, assim, verificada a excepção de incompetência material do tribunal e em consequência, foi declarado o mesmo materialmente incompetente para a presente acção com a consequente absolvição dos réus da instância.
A presente acção foi intentada por B…, na qualidade de sócio da sociedade E…, contra os sócios desta sociedade C… e D…, tendo sido formulados os seguintes pedidos:
1.Seja declarado que os RR. fizeram intencional e premeditadamente uma gestão danosa e fraudulenta da Sociedade E… de que são sócios gerentes.
2. Que abusaram dos direitos de que estavam investidos como sócios gerentes.
3. Que, nessa medida, causaram elevados prejuízos à referida Sociedade e, logicamente ao A., pelos quais são inteira e exclusivamente responsáveis.
Consequentemente, requer o autor:
4. Sejam declarados nulas e de nenhum efeito, por terem sido simuladas, quer na sua essência (porque na realidade não existiram) quer no seu preço, todas as vendas efectuadas pela E… à F…, com as legais consequências.
5. Sejam, além disso, os RR. pessoal e civilmente responsabilizados por todos os prejuízos causados à sociedade E… e ao aqui A., cujo valor não é possível, por ora estimar, por falta de elementos.
*
Inconformada, recorreu da sentença o autor B… formulando as seguintes CONCLUSÕES:
1. O pedido do A., ora Recorrente, de declaração de nulidade dos negócios celebrados pelos RR. não depende da especial qualidade do A. como sócio da E… -nem tão pouco da especial qualidade dos RR. como sócios gerentes.
2. Tal pedido, e a apreciação dos factos que lhe estão subjacentes, não é abrangido pela competência dos tribunais de comércio conforme está definida no art. 89 da LOFTJ (na versão aqui aplicável).
3. O direito a requerer a nulidade dos negócios celebrados pelos RR. com base no vício de simulação de que padecem, não é enquadrável na concepção de direitos sociais como “todas as prerrogativas dirigidas à protecção de cada sócio de uma determinada sociedade, mercê, exclusivamente, da qualidade de sócio que lhe está conferida, e que lhe advêm do contrato de sociedade, de conteúdo complexo e sujeito a um quadro legal que apresenta variedade e complexidade pouco usuais.
4. No caso sub judice tal não sucede.
5. Não se trata de uma acção social, proposta por um sócio da sociedade E…, de responsabilidade contra gerentes ou administradores da E… com vista à reparação a favor da sociedade.
6. O peticionado pelo A. não se insere no referido conceito de exercício de direitos sociais.
7. O que o A. pretende é a declaração de nulidade dos negócios simulados realizados pelos RR. que e a quem acciona a título pessoal.
8. Tal direito e pretensão não lhe advém especialmente “do contrato de sociedade, de conteúdo complexo e sujeito a um quadro legal que apresenta variedade e complexidade pouco usuais.”
9. Tal pretensão resulta do seu interesse pessoal na declaração de tais nulidades por estar individual e pessoalmente prejudicado por tais negócios fraudulentos, conforme o previsto na primeira parte do nº1 do art. 77 do C.S.C.
10.O cerne deste processo não se determina pela especial qualidade das partes mas pela natureza dos negócios realizados que, por serem simulados, são nulos,
11. Sendo o tribunal a quo competente para conhecer dessas nulidades.
12.Acresce que a lei aqui aplicável não atribui ao tribunal de comércio competência para julgar todas e quaisquer questões relacionadas com a actividade (nem sequer com o funcionamento) das sociedades comerciais.
13.Pelo que, também o direito de indemnização do sócio contra o gerente ou administrador, pela prática de actos nulos e ilícitos, não cabe no enunciado do art. 89º, nº 1, da LOFTJ.
14.Assim, a competência para conhecer desta acção não é do tribunal de comércio, mas sim do tribunal de competência genérica, por via nomeadamente do art. 77º, nº 1, da LOFTJ.
15.Uma acção ut singuli não consubstancia o exercício de um direito social e a sua apreciação não estará submetida à competência dos tribunais de comércio.
16.O Tribunal Judicial de Gondomar é materialmente competente em razão da matéria para conhecer dos pedidos do Autor; quer do pedido de nulidade dos negócios praticados pelos RR, quer do direito à indemnização por danos produzidos na sua esfera jurídica individual, consequentes àquelas práticas.
O Acórdão recorrido viola, assim, os arts. 77º, n.1, e 89º., nº. 1, alínea c), da LOFTJ, resultando igualmente mal interpretados os arts. 240º, 294º e 286º do C.C.
Termina o recorrente pedindo a revogação da decisão recorrida, ordenando-se o prosseguimento dos autos.
Foram produzidas contra-alegações pelos réus tendo sido formuladas, em súmula, as seguintes Conclusões:
A. A decisão tomada pelo Dign.º Tribunal “a quo” na parte que vem agora impugnada pelos aqui Apelante, não merece qualquer reparo ou correcção, encontrando-se em plena conformidade com o direito e a justiça. Senão vejamos:
EM PRIMEIRO LUGAR,
B. Insurgem-se os aqui Apelados, quanto à tempestividade da apresentação das presentes alegações de recurso, e cujo conhecimento, aliás, esvazia de sentido um qualquer posterior conhecimento das questões objecto do presente recurso.
C. Assim, em sede de douto despacho saneador, conhecendo a Merit.º Juiz “a quo” da excepção de incompetência material, tal qual alegada pelos aqui Réus/Apelados, veio a proferir douta decisão que julgou procedente aquela excepção da incompetência material do tribunal judicial “a quo” e, em consequência, absolveu os Réus da instância.
D. Ora, pretendendo o Apelante impugnar a decisão proferida quanto à competência do tribunal, certo é que tal recurso encontra acolhimento na alínea b) do n.º 2 do art.º 691.º do C.P.C., e não no seu n.º 1.
E. Com efeito, dispõe o n.º 1 do referido preceito legal que «Da decisão do tribunal de 1.ª instância que ponha termo ao processo cabe recurso de apelação.» e o n.º 2, na sua alínea b) que «Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões do tribunal de 1.ª instância: decisão que aprecie a competência do tribunal».
F. Destarte, por não puder lançar mão do n.º 1 do art.º 691.º do C.P.C., antes, da decisão em apreço, cabendo recurso de apelação nos termos da já citada alínea b) do seu n.º 2, não se poderá conhecer do presente recurso, porque intempestivo.
G. É que, a supradita alínea b) encontra-se, pois, expressamente referida no n.º 5 do mesmo art.º 691.º do C.P.C., o qual, por sua vez, circunscreve o prazo de interposição de recurso e apresentação de alegações a 15 (quinze) dias.
H. Assim, enquadrando-se a decisão recorrida na previsão da al. b) do n.º 2 do art.º 691.º -decisão que aprecie a competência do tribunal – e sendo o prazo para interposição de recurso de 15 dias, tendo as alegações de recurso sido apresentadas no 30.º (trigésimo dia), assim o foram de forma extemporânea.
I. Não obstante, poderá o Recorrente vir alegar que a decisão recorrida se insere no n.º 1 do referido art.º 691.º, na medida em que põe termo ao processo. No entanto, nem sequer assim se concede!
J. É que, concluindo o Dign.º Tribunal “a quo” pela incompetência material do tribunal, isso não conduz necessariamente ao “termo do processo”, pois que, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 105.º do C.P.C., o Autor, ora Apelante, pode requerer a remessa do processo ao tribunal em que a acção deveria ter sido proposta.
K. Logo, nenhum sentido faria que aqui beneficiasse de prazo maior – de 30 (trinta) dias – para efeito de recurso, quando, na verdade dispõe da faculdade de dar continuidade “à presente lide”, desta feita no tribunal materialmente competente para conhecer da causa.
L. Assim, por tudo o supra exposto, tendo sido extemporaneamente interposto o recurso, deverá o mesmo ser rejeitado.
SEM PRESCINDIR,
M. Acresce que, caso venha a ser decidido pela tempestividade do presente recurso, sempre apraz referir que, salvo o devido respeito, no caso, a convicção do Dign.º Tribunal “a quo” está devidamente fundamentada.
N. Com efeito, é entendimento dos aqui Apelados que o Merit.º Juiz “a quo” formou a sua convicção, fundamentando-se de modo lógico e coerente, como decorre da motivação da decisão aqui em causa, devendo manter-se a douta decisão ora recorrida.
O. Na verdade, a divergência do Apelante reconduz-se apenas à convicção do Dign.º Tribunal “a quo”.
P. Afigura-se-nos de todo displicente esta questão, sendo infundada a sua alegação.
Q. Assim sendo, colhendo sustentação nos fundamentos supra enunciados e defendidos pelo Tribunal “a quo”.
R. Com efeito, a presente a acção foi intentada por B…, na qualidade de sócio da sociedade E…, contra os sócios desta sociedade C… e D…, resultando, claramente, dos pedidos aduzidos, que se trata de uma acção social proposta por um sócio da sociedade E… de responsabilidade contra gerentes ou administradores da E… com vista à reparação, a favor da sociedade, do prejuízo que esta tenha sofrido com a sua gerência, a qual se encontra prevista no art. 77º do Código das Sociedades Comerciais, inserindo-se todo o peticionado no referido conceito exercício de direito sociais do sócio autor.
S. Logo, entendemos, «não haver dúvidas de que tal acção tem por objecto o exercício de um direito social, sendo, por isso, competente para dela conhecer o tribunal de comércio, de competência especializada, e não o presente tribunal cível de Gondomar.» -cf. Acórdão da Relação do Porto de 23-02-2012 in www.dgsi.pt.
T. De modo que, pelo exposto, e salvo o devido respeito, o certo é que, a douta motivação de recurso ora apresentada pelo Apelante não colhe qualquer sustentação.
U. Devendo, por isso, manter-se a decisão de total procedência da excepção da incompetência material do tribunal de competência genérica, com a consequente, absolvição dos Réus/Apelados da instância.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II – Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar;
O objecto do recurso é delimitado, em regra, pelas conclusões das alegações, nos termos dos artigos 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.ºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil (CPC), este na redacção introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24/8, aqui aplicável.

A questão que importa dirimir é facilmente apreensível e resume-se a descortinar qual o tribunal especializado competente no âmbito da jurisdição comum para dirimir o conflito em causa nos autos – tribunal cível ou tribunal de comércio. Previamente, foi suscitada ainda uma questão prévia que se prende com a eventual extemporaneidade do presente recurso.

III – Fundamentos;

3.1. De facto;
Tendo em vista a apreciação do pedido formulado pelos recorrente e da questão prévia levantada pelo apelado, a factualidade a considerar é a alegada e supra reproduzida.
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3.2. De direito;
Questão Prévia – Da tempestividade do presente recurso
Alega o apelado que o recurso em apreço foi intentado fora do prazo legal. Na verdade, segundo alega, o presente recurso encontra acolhimento na alínea b) do n.º 2 do art.º 691.º do C.P.C., e não no seu n.º 1.
Nessa alínea, pode ler-se que «Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões do tribunal de 1.ª instância: decisão que aprecie a competência do tribunal».
Ora, a supradita alínea b) encontra-se, pois, expressamente referida no n.º 5 do mesmo art.º 691.º do C.P.C., o qual, por sua vez, circunscreve o prazo de interposição de recurso e apresentação de alegações a 15 (quinze) dias, tendo as alegações de recurso sido apresentadas no 30.º (trigésimo dia).
E, mais se diz, nem sequer se argumente que a decisão recorrida se insere no n.º 1 do referido art.º 691.º, na medida em que põe termo ao processo. É que, concluindo o Dign.º Tribunal “a quo” pela incompetência material do tribunal, isso não conduz necessariamente ao “termo do processo”, pois que, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 105.º do C.P.C., o Autor, ora Apelante, pode requerer a remessa do processo ao tribunal em que a acção deveria ter sido proposta; não faria sentido pois que o apelante beneficiasse de prazo maior – de 30 (trinta) dias – para efeito de recurso, quando, na verdade dispõe da faculdade de dar continuidade “à presente lide”, desta feita no tribunal materialmente competente para conhecer da causa.
Decidindo.
A reforma dos recursos decorrente do DL 303/07, de 24 de Agosto, abrange os recursos interpostos quer de decisões finais de procedência ou de improcedência, quer de despachos de indeferimento liminar, quer de decisões de absolvição da instância, quer ainda de decisões interlocutórias, isto é, de decisões que não ponham termo ao processo.
Em termos genéricos o novo regime consagra serem susceptíveis de recurso autónomo imediato, as decisões que ponham termo ao processo (art.691º, nº1 do CPC), e as referidas no art.691º, nº2. Todas as outras decisões só são impugnáveis no recurso da decisão que tenha posto termo ao processo (art.691º, nº 3, 4 e 5).
Pois bem. Na decisão proferida e ora recorrida apreciou-se a competência do tribunal, reconhecendo-se a incompetência absoluta em razão da matéria com a consequente absolvição dos RR. da instância.
O prazo-regra para interposição dos recursos ordinários é de 30 dias, na apelação e na revista interpostas de decisões finais (art.685º, nº1). Porém, de acordo com o estabelecido no art.691º/5, o prazo é reduzido para 15 dias, nomeadamente e por a que ao caso interessa, nas decisões que apreciem a competência do tribunal.
Porém, este preceito deve ser visto de um modo restritivo sobretudo porque haverá que concatená-lo com o prazo de 30 dias que é sempre atribuído relativamente às decisões que ponham termo ao processo. Assim, a lei ao declarar que cabe recurso da decisão que aprecie a competência do tribunal – art.691º/2-b) – tem notoriamente em vista a decisão meramente interlocutória que julgue o tribunal competente e, portanto, que não põe termo ao processo. O prazo de interposição do recurso é, neste caso, de 15 dias.
Se a decisão proferida puser termo ao processo terá que se entender enquadrar-se a mesma também no nº1 do art.691º, conferindo-se então o prazo para interposição de recurso de 30 dias. E isto, porque, ao concluir pela incompetência absoluta do tribunal, teremos que necessariamente o processo conhece o seu termo (arts.105º, nº1, 493º, nº2 e 494º-a) do C.P.C.).
Note-se que a decisão em crise é susceptível de recurso autónomo imediato na medida em que determinou o fim do processo e, por isso, deve entender-se, nos termos expostos, que o recurso que sobre ela recair tem o prazo de 30 dias a contar da notificação da decisão para ser interposto.
Salvo o devido respeito, não poderá colher o argumento aduzido pelo apelado no sentido de que o processo, de facto, não terminaria já que o apelante pode sempre requerer a sua remessa do processo ao tribunal em que a acção deveria ter sido proposta, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 105.º do C.P.C.. O aproveitamento do processado não significa que não haja um novo processo que inclusivamente corre em tribunal distinto; por outro lado, mesmo esse aproveitamento sempre dependerá, por um lado, da iniciativa da parte, e por outro, de um acordo de todas as partes sobre esse aproveitamento, conforme reza o citado preceito.
Entende-se, por isso, em síntese, que o presente recurso se encontra em prazo acolhendo-se a tese do Conselheiro Abrantes Geraldes expressa em “Recursos em Processo Civil – Novo Regime”, 2010, pg. 199 e ainda o Ac. da Rel. de Coimbra, disponível no sítio da DGSI, citado na obra em causa, de 27.10.2009.
Inexiste, portanto, qualquer extemporaneidade do presente recurso.
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Excepção de incompetência em razão da matéria:
Na despacho/sentença recorrido o tribunal de primeira instância entendeu que “Nos termos do disposto no artigo 89° n°1, alínea c) da Lei n.º 3/99 de 13 de Janeiro (que aprova a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais), compete aos Tribunais de Comércio preparar e julgar as acções relativas ao exercício de direitos sociais.
Sublinhe-se que o A. alega no artigo 72 do petitório uma violação pelos RR. dos respectivos deveres de gerência enquanto sócios da empresa “E…, Lda.” em virtude do prejuízo sofrido com a actuação ilícita dos RR., na gestão dessa empresa que reputam de danosa.
Desse modo, o pedido formulado articula justamente que “seja declarado que os RR. fizeram intencional e premeditadamente uma gestão danosa e fraudulenta da Sociedade E… de que são sócios gerentes”.
Como é sabido, a competência material do tribunal afere-se pelos termos em que a acção é proposta sendo determinada em função da relação jurídica tal como o autor a configura na petição inicial (cf., entre muitos, o Ac. STJ de 09.05.1995, Col.Jur.-Ac.STJ-, 1995, vol. II).
Analisando a questão, procedendo a um breve enquadramento genérico, observamos que o artº 211º da Constituição da República Portuguesa, estabelece que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais” (nº 1) e que “na primeira instância pode haver tribunais com competência específica e tribunais especializados para o julgamento de matéria determinadas” (nº 2).
Na sequência destes princípios programáticos, também o legislador ordinário, nos arts 66º do Código de Processo Civil e 18º nº 1, da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais - LOFTJ), estabeleceu que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, fixando-se aos tribunais judiciais uma competência dita residual.
Estipula o artº 17º da LOFTJ que, na ordem interna, a competência se reparte pelos tribunais judiciais segundo a matéria, a hierarquia, o valor e o território.
Dispõe, por sua vez, o artº 67º do Código de Processo Civil, que são as leis de organização judiciária que determinam as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judicias dotados de competência especializada.
Sendo, os tribunais judiciais de 1ª instância, em regra, os tribunais de comarca, cuja área de competência é a comarca, podendo, todavia, existir tribunais com competência sobre uma ou mais circunscrições ou sobre áreas especialmente definidas na lei, entre eles pode haver tribunais de competência especializada, aos quais compete conhecer de matérias determinadas, independentemente da forma de processo aplicável - arts 62º, 63º e 64º, nºs 1 e 2, da LOFTJ.
Os tribunais judiciais podem desdobrar-se em juízos que, nos tribunais de comarca podem ser de competência genérica ou especializada, competindo aos primeiros preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outro tribunal - artº 77º, nº 1, al. a) da LOFTJ.
Entre os tribunais de competência especializada incluem-se precisamente os tribunais de comércio que foram criados na nossa orgânica judiciária (cf.. o artigo 78º, alínea e) da LOFTJ).
E, segundo estatui o seu artigo 89º, nº 1, compete aos tribunais de comércio preparar e julgar: a) os processos especiais de recuperação da empresa e de falência; b) as acções de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade; c) as acções relativas ao exercício de direitos sociais; d) as acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais; e) as acções de dissolução e de liquidação judicial de sociedades; f) as acções de declaração em que a causa de pedir verse sobre propriedade industrial, em qualquer das modalidades previstas no Código da Propriedade Industrial; g) as acções a que se refere o Código do Registo Comercial; e h) as acções de nulidade e anulação previstas no Código da Propriedade Industrial - sendo, também, o competente para apreciar ainda “os respectivos incidentes e apensos” (cf. o seu nº 3).
Importará, então, indagar se o caso em apreço cabe nalgum destes itens.
Deste artigo ficam facilmente afastadas, por aqui não terem aplicação, as suas alíneas a), b), d), e), f), g) e h), pois não estamos perante processos especiais de recuperação da empresa e de falência; acções de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade; acções de suspensão e anulação de deliberações sociais; acções de dissolução e liquidação judicial de sociedades; acções em que a causa de pedir verse sobre propriedade industrial, numa das modalidades do Código da Propriedade Industrial; acções a que se refere o Código do Registo Comercial e acções de nulidade e anulação previstas no Código da Propriedade Industrial.
Resta, assim, a alínea d): as acções relativas ao exercício de direitos sociais.
Em concreto, são formulados pelo autor vários pedidos os quais incluem, como já fomos sublinhando, que se declare que os RR. fizeram uma gestão danosa e fraudulenta da Sociedade E… de que são sócios gerentes; que abusaram dos direitos de que estavam investidos como sócios gerentes; que, nessa medida, causaram elevados prejuízos à referida Sociedade. Requer-se em consequência e nomeadamente que os RR. sejam civilmente responsabilizados por todos os prejuízos causados à sociedade E….
O que vem formulado é manifestamente um pedido de indemnização contra os réus em virtude da sua gerência de uma sociedade por quotas que o demandante, também sócio da empresa, considera danosa.
Situando-nos nos direitos dos sócios perante a sociedade, há uma distinção fundamental a fazer, entre, de um lado, os direitos extracorporativos ou extra-sociais e, de outro, os corporativos ou sociais.
Em termos genéricos, os primeiros são os direitos de que os sócios são titulares independentemente da qualidade de sócios, como terceiros face à relação jurídica social. Os segundos são os que têm por pressuposto a qualidade de sócio. Dividem-se, por sua vez, em direitos gerais ou comuns e direitos especiais (vide Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, vol. II, Das Sociedades.
Na categoria dos direitos sociais, cabem os indicados no art. 21º do Cód. das Sociedades Comerciais (CSC), sob a epígrafe “Direitos dos sócios”, que se podem considerar como direitos principais ou essenciais dos sócios: direito aos lucros; direito a participar nas deliberações dos sócios; direito a informação sobre a vida da sociedade; direito de ser nomeado para os órgãos sociais. Mas, na mesma categoria, se incluem outros direitos, tais como: direitos de acção judicial de sócio (v.g., direito de impugnação de deliberações anuláveis - art. 59º -, direito de requerer inquérito judicial por falta de apresentação das contas - art. 67º -, direito de propor acção social de responsabilidade contra membros da administração - art. 77º-, direito de preferência nos aumentos de capital por novas entradas em dinheiro (nas sociedades por quotas e anónimas - arts. 266º, 458º e ss.), direito de exoneração em certas circunstâncias (v.g. arts. 3º, 6º, 137º, 161º, n.º 5), direito à quota de liquidação (art. 156º).
Importa, neste caso, concluir que está em discussão precisamente uma situação das previstas no art.77º do CSC, ou seja, o direito de propor acção social de responsabilidade contra membros da administração
Preceitua esta norma:
Artigo 77.º
Acção de responsabilidade proposta por sócios
1 - Independentemente do pedido de indemnização dos danos individuais que lhes tenham causado, podem um ou vários sócios que possuam, pelo menos, 5% do capital social, ou 2% no caso de sociedade emitente de acções admitidas à negociação em mercado regulamentado, propor acção social de responsabilidade contra gerentes ou administradores, com vista à reparação, a favor da sociedade, do prejuízo que esta tenha sofrido, quando a mesma a não haja solicitado.
Ora, o autor, independentemente de pretender ser individualmente ressarcido, peticiona inequivocamente a responsabilização destes sócios gerentes relativamente a todos os prejuízos causados à sociedade E…, o que enquadra a acção no preceito ora relatado.
Por isso, a acção adequada ao exercício efectivo desse direito é a prevista no acima referido artº 89º, nº 1, al.c), enquanto estabelece que o Tribunal de Comércio é o competente para preparar e julgar as acções relativas ao exercício de direitos sociais.
Neste exacto sentido decidiu esta Relação em Ac. de 11.3.2003, p. 0221583, in dgsi.pt. e do sumário do qual, em fidelidade ao texto, se diz que “Os tribunais de comércio são competentes, em razão da matéria, para as acções em que se peça a condenação em indemnização pelo prejuízo sofrido por actuação ilícita na gestão de sociedade comercial, nos termos do artigo 77º n.1 do Código das Sociedades Comerciais. Tais acções respeitam ao exercício de direitos sociais.”. Ainda desta Relação e numa situação igualmente idêntica temos o Ac. de 23.02.2012, relator: Fernando Samões, processo nº9398/10.11TBVNG.P1, também disponível no mesmo site.
O tribunal de comércio é um tribunal de competência especializada, pelo que a instauração da presente acção neste tribunal de competência específica cível, viola as regras da competência em razão da matéria - cf.. artigo 67° do C.P.C; registe-se que nada interfere com esta excepção a circunstância de ter sido intentado previamente um procedimento cautelar de arrolamento, apenso aos presentes autos.
A infracção das regras de competência em razão da matéria, determina a incompetência absoluta do tribunal - artigo 101° do Código de Processo Civil -, podendo tal incompetência ser arguida pelas partes, mas devendo, em todo o caso, ser suscitada oficiosamente pelo tribunal até ser proferido despacho saneador – artigo 102° n.º 2 do C.P.C.
A verificação da incompetência absoluta implica a absolvição do réu da instância, independentemente do eventual acordo das partes quanto ao aproveitamento dos articulados para remessa do processo ao tribunal em que a acção deveria ter sido proposta - artigo 105° do C.P.C..
Improcede totalmente o recurso deduzido, devendo manter-se a decisão recorrida e, assim, considera-se competente o Tribunal de Comércio da respectiva área territorial de Gondomar, no caso o Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia, para julgar a presente acção.
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Resumindo a fundamentação (art.713º, nº7 do Código do Processo Civil):
I – Nos casos em que a decisão que aprecie a competência do tribunal conclui pela respectiva incompetência absoluta o prazo para interposição de recurso é de 30 dias, e não de 15 dias, porque isso conduz ao termo do processo – arts. 105º, nº1 e 691º, nº1 do Código do Processo Civil.
II - Os tribunais de comércio são competentes, em razão da matéria, para as acções em que se peça a condenação, em benefício da sociedade, pelo prejuízos sofridos por gestão danosa de sociedade comercial, nos termos do artigo 77º n.1 do Código das Sociedades Comerciais.

IV – Decisão
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente o presente recurso, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pelo recorrente.

Porto, 9 de Outubro de 2012
José Manuel Igreja Martins Matos
Rui Manuel Correia Moreira
Henrique Luís de Brito Araújo